Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3608/16.9T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CONTEÚDO
EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
Data do Acordão: 01/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 724º DO NCPC.
Sumário: I- Na presente oposição à execução parte a executada do pressuposto de que, porque se obrigou no documento que constitui título executivo a proceder à entrega à exequente de uma parte de uma fracção autónoma a construir num terreno para construção, esta não tem direito a pedir o pagamento de uma quantia certa, mas à entrega de uma coisa certa, por isso devendo ter intentado execução para entrega de coisa certa.

II– Ora, a exequente não se obrigou pelo referido documento a entregar (uma parte de) uma fracção autónoma, mas à prestação de um conjunto de factos – o de concluir as obras num determinado prédio urbano dando origem a uma fracção autonóma, a obter a correspondente autorização de utilização, e logo que tal sucedesse, a proceder à transferência de 62/100 da propriedade dessa fracção para a exequente.

III- Não é concebível a “entrega” à sociedade exequente de 62/100 senão em função do facto da respectiva transferência de propriedade o que logo implicaria, ainda em função do pressuposto de que parte a sociedade executada que, quando muito, estivesse em causa a utilização de uma execução para prestação de facto e não de uma execução para prestação de coisa.

IV- Deverá, no entanto, entender-se que foi correctamente utilizada uma execução para pagamento de quantia certa, na medida em que o que do documento dado à execução resulta, é uma promessa unilateral da executada de uma dação em cumprimento, que não foi cumprida. Com efeito, a mesma obrigou-se, para pagar o remanescente do preço da compra à exequente do prédio em que se viria a inserir aquela fracção, a proceder à referida transferência dos 62/100 da mesma para a propriedade da exequente.

V- Visto que incumpriu definitivamente essa promessa, tendo vendido a terceiros a referida fracção, continuou a dever à sociedade exequente aquele valor remanescente (€110.000,00).

VI- Este valor, de acordo com o referido documento, seria pago não apenas pela aqui sociedade executada mas também por uma outra sociedade, na proporção, respectivamente, de 62/100 e 38/100, da referida fracção autónoma.

VII- A exequente procedeu à liquidação da obrigação exequenda, fazendo corresponder, por simples operação aritmética, 62/100 de €110.000,00 a €68.200,00, como lhe permite a al. h) do nº 1 do art 724º CPC, por isso devendo prosseguir a execução para pagamento desse valor.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I - Na execução que B..., Lda move a M... – Compra e Venda de Imóveis, Lda., deduziu esta oposição à execução, invocando, em síntese, e para o que importa nos presentes autos, a inexequibilidade do título dado à execução e a ineptidão do requerimento executivo.

 Referiu, para o efeito, que o documento que suporta a execução contém uma declaração pela qual um procurador da executada declara entregar, à exequente, uma parte (62/100) de uma coisa, a saber, uma fracção, ainda a construir, de um prédio composto por terreno para construção. Assim, a executada obrigou-se a entregar à exequente uma parte de uma fracção autónoma a construir num terreno para construção, o que significa que a obrigação que se constituiu foi a de entrega de uma (parte de) fracção autónoma, ainda a construir, sucedendo que a exequente pretende obter o pagamento de uma certa quantia (€68.200,00), o que é confirmado pela finalidade atribuída à execução – pagamento de quantia certa. Entende que a mesma não tem direito a pedir o pagamento de uma quantia certa, mas à entrega de uma coisa certa (ou melhor, de uma percentagem da coisa), que é a fracção autónoma e, por isso, deveria ter intentado execução para entrega de coisa certa, que é a adequada à natureza da obrigação constante do título, com o que entende se verifica erro na forma de processo. Admitindo que tal erro possa ser corrigido oficiosamente, determinando que se sigam os termos processuais adequados, sustenta ser já irremediável a contradição entre a causa de pedir e o pedido, implicando a mesma a ineptidão do requerimento de execução, nos termos do art 186º/2 al b) do CPC.

A exequente contestou, sustentando que não existe qualquer incompatibilidade entre o pedido e a causa de pedir, tanto mais que o Executado vendeu o imóvel a um terceiro, pelo que ela nunca poderia exigir em execução a entrega da coisa mas o seu sucedâneo, acrescendo que a executada percebeu devidamente o que estava em causa, como se constata da respectiva oposição, sendo que execução em causa é certa, liquida e exigível.

No entendimento de que os autos continham os elementos necessários à prolação de decisão de mérito, foi proferido saneador-sentença no qual se julgou a oposição à execução improcedente, determinando-se, em consequência, o prosseguimento da execução.

II – Do assim decidido apelou o opoente, que concluiu as suas alegações do seguinte modo:

...

Não foram produzidas contra alegações.

III –  A - O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

 A. A Exequente apresentou como título executivo o documento epigrafado de “declaração e reconhecimento de dívida”, constante de fls. 8 a fls. 9 dos autos de execução, complementado pelos documentos juntos aos autos de execução a fls. 3 a fls. 6 v.º (fotocópia da escritura notarial de compra e venda exarada de fls. 32 a fls. 34 do livro de notas n.º ... e de fls. 14 v.º a 16 v.º (informação predial referente ao prédio descrito sob a ficha n.º ..., que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

 B. Do documento epigrafado de “declaração e reconhecimento de dívida”, celebrado entre Exequente e Executada em 07 de Março de 2012 consta, em síntese, o seguinte: Na sequência da celebração de escritura notarial de compra e venda outorgada que foi no Cartório Notarial da ..., a sociedade executada adquiriu por compra à exequente o prédio urbano composto por terreno para construção urbana sito na ...; Nessa escritura foi declarado que do preço global de venda de €570.000,00, foram pagos em dinheiro, no acto, a quantia de €110.000,00, e ainda com a assunção de duas dívidas ao Banco C..., SA, que ascendem ao montante total de €350.000,00 que oneram o imóvel supra; A restante parte do preço, ou seja, a quantia de €110.000,00 serão pagos através da entrega, por qualquer acto de transmissão onerosa, à sociedade exequente, na proporção de sessenta e dois cem avos, da fracção autónoma a construir no imóvel acima identificado designado pela letra "D"; Tal montante seria liquidado pela sociedade executada à sociedade exequente, após a conclusão das obras no lote acima indicado e a emissão do alvará de autorização de utilização ao prédio ou à fracção a que se aludiu, constituindo-a a partir dessa precisa data em incumprimento.

C. O alvará de autorização de utilização do prédio foi emitido em 2013/12/03.

D. Sobre a fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de ... encontra-se inscrita aquisição por compra pela AP n.º .... de 2015/08/14 a favor de M..., figurando como transmitente o aqui Embargante.

 III – B - Sem embargo de, da al B) dos factos acima referidos, constar o essencial do documento a que se refere – que constitui o título executivo na execução a que são opostos os presentes embargos - impõe-se, a nosso ver, para melhor se perspectivar a questão objecto do recurso, transcrever na íntegra o documento em referência, o que se passa a fazer: 

«Declaração e Reconhecimento de dívida

J(….) na qualidade de procurador da sociedade por quotas com a firma “M... – Compra e Venda de Imóveis, Lda (….) declaro que na sequência de escritura de compra e venda outorgada hoje, no cartório notarial (…) em que esta sociedade adquiriu, por compra, à sociedade “B... – Sociedade de Prestação de Serviços Lda (…) o bem imóvel abaixo indicado, foi declarado que do preço global de venda de 570.000,00 €, foram pagos em dinheiro, no acto, 110.000,00 e ainda com a assunção de duas dívidas ao Banco C..., SA que ascendem ao total de 350.000,00 € e que oneram aquele imóvel.

A restante parte do preço, isto é, 110.000,00, são pagos da seguinte forma:

-através da entrega, por qualquer acto de transmissão onerosa, às sociedades “B... – Sociedade de Prestação de Serviços Lda” e “D..., Lda (…) na proporção de sessenta e dois cem avos e trinta e oito cem avos, respectivamente, da fracção autónoma a construir no abaixo indicado imóvel e designada pela letra “D”.

Desde já, por isso, reconhece a sociedade que representa como devedora da quantia de 110.000,0, a ser pago desta forma e sempre após a conclusão das obras no lote abaixo indicado e a emissão do correspondente alvará de autorização de utilização ao prédio ou à fracção aludida, constituindo-a a partir dessa data em incumprimento.

Todas as taxas camarárias e todos os encargos inerentes à emissão de quaisquer licenças que digam respeito a este imóvel são da exclusiva responsabilidade da sociedade que o ora declarante representa, obrigando a sociedade a assinar tudo o que for necessário aos fins referidos.

Bem imóvel referido e objecto da referida escritura de compra e venda:

Prédio urbano composto por terreno para construção urbana sito na...

Este documento é um acto necessário ao fim referido na procuração, que é a compra do aludido imóvel.

, 7 de Março de 2012»

III – C - Impõe-se ainda, e também, reproduzir o essencial do requerimento executivo, o que se passa a fazer:

(…) Finalidade da Execução – pagamento de quantia certa – Dívida Comercial (Execuções)

Titulo Executivo – Outro título com força executiva

Factos:

Foi efectuada declaração e reconhecimento de dívida entre as sociedades exequente e executada em 7/3/2012.

Do conteúdo da mesma extrai-se que na sequência da celebração da escritura notarial de compra e venda outorgada no Cartório Notarial da   (…)  a sociedade executada adquiriu por compra à exequente o prédio urbano composto por terreno para construção urbana, sito na ... Nessa escritura foi declarado ainda que do preço final de venda de € 570.000,00, foram pagos em dinheiro, no acto, a quantia de € 110.000,00, e ainda com a assunção de duas dívidas ao Banco C..., SA que ascendem ao total de 350.000,00 € que oneram o imóvel supra.

Consta do teor do referido reconhecimento de dívida, que a restante parte do preço, ou seja, a quantia de € 110.000,00, seriam pagos através da entrega, por qualquer acto de transmissão onerosa, à sociedade exequente, na proporção de sessenta e dois cem avos  da fracção autónoma a construir no acima identificado imóvel  designada pela letra “D”, o que perfaz o montante de € 68.200,00, do qual a sociedade executada se reconhece como devedora .

Ainda do teor do mesmo, consta que tal montante seria liquidado pela sociedade executada à sociedade exequente, após a conclusão das obras no lote acima indicado e a emissão de alvará de autorização de utilização ao prédio ou à fracção a que se aludiu, constituindo-a a partir dessa precisa data em incumprimento.

Ora, da consulta à certidão permanente do imóvel em causa, conclui-se que o respectivo alvará foi emitido em 2013/12/03, data a partir da qual a sociedade executada  se encontra em total incumprimento.

Foi esta, por diversas vezes, interpelada para proceder ao respectivo pagamento, o que até à data de hoje não o fez, pelo que o valor de € 68.200,00 ainda permanece em dívida.

Deste modo não restou outra alternativa à exequente, (…).   

IV – Confrontando as conclusões das alegações com a decisão recorrida, confronto de que resulta numa primeira linha o objecto do recurso, verifica-se constituírem questões a decidir no mesmo, se a utilização pela apelada de execução para pagamento de quantia certa em função do titulo dado à execução implicou erro na forma do processo, e se, em função do pedido que corresponde a essa finalidade, se verifica contradição entre o mesmo e a causa de pedir na execução, a qual importe a total nulidade desta.

Constitui pressuposto do entendimento da embargante/apelante, o de que, porque  se obrigou no documento que constitui título executivo a proceder à entrega à exequente de uma parte de uma fracção autónoma a construir num terreno para construção, esta não tem direito a pedir o pagamento de uma quantia certa, mas à entrega de uma coisa certa, por isso devendo ter intentado execução para entrega de coisa certa, sendo uma execução com tal finalidade a que se mostraria adequada à natureza da obrigação constante do título.

Ora, cabe desde já rejeitar este pressuposto, pela simples razão de que a exequente não se obrigou pelo referido documento a entregar (uma parte de) uma fracção autónoma, mas à prestação de um conjunto de factos – antes de mais, o de concluir as obras no lote nº 5 do prédio urbano composto por terreno para construção urbana sito na ...,  dando origem a uma fracção designada pela letra “D”, sendo para tanto responsável por todas as taxas camarárias e encargos inerentes à emissão de quaisquer licenças para aquele efeito, e obrigando-se a assinar tudo o que fosse necessário para esse fim, de tal modo que viesse a obter o correspondente alvará de autorização de utilização do prédio ou da aludida fracção, e, logo que tal sucedesse, proceder à transferência de 62/100 da propriedade dessa fracção para a exequente.     

Com efeito, não é concebível a “entrega” à sociedade exequente de 62/100 senão em função do facto da respectiva transferência de propriedade, o que logo implicaria, ainda em função dos pressupostos de que parte a apelante, que, quando muito, estivesse em causa a utilização de uma execução para prestação de facto e não de uma execução para prestação de coisa.

Por pouco nítidas que sejam, por vezes, as fronteiras entre a obrigação de prestar e a de fazer, na situação em causa nos autos há inteiramente que abstrair da utilização da expressão “entrega” utilizada na “Declaração e Reconhecimento” que constitui o título executivo, e reconduzir o comportamento que em termos finais se mostra devido pela executada a uma obrigação de fazer. Trata-se, evidentemente de prestações de facto jurídico e não de facto material, isto é, prestações «em que a conduta do devedor aparece destinada à produção de efeitos jurídicos, sendo assim esse resultado jurídico incluído na prestação».[1]

Mas, na verdade, do nosso ponto de vista, à apelante/executada não assiste qualquer razão, tendo sido e bem utilizada execução para pagamento de quantia certa, certo e indiscutível como é que no título dado à execução a mesma se reconheceu como devedora à exequente, a título de preço, da quantia de €110.000,00.

O que desse documento consta é, salvo melhor entendimento, uma promessa unilateral por parte da executada de uma dação em cumprimento, como passamos a explicar.

Lembrem-se, antes de mais, os contornos da dação em cumprimento, tal como os mesmos advêm do art 837º CC, onde se refere que «a prestação de coisa diversa da que for devida, ainda que de valor superior só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento».

Desta noção costumam extrair-se dois pressupostos desta figura, que lhe são essenciais.

Nas palavras de Antunes Varela [2] é necessário, em primeiro lugar, que «haja uma prestação diferente da que é devida»; em segundo lugar, que «essa prestação (diferente da devida) tenha por fim extinguir imediatamente a obrigação». Referindo ainda: «Uma vez verificado o duplo requisito que se desprende da lei a datio in solutum terá todo o cabimento, seja qual for a natureza da prestação debitória inicial e seja qual for o objecto da prestação diferente levada a cabo, quer pelo devedor, quer por terceiro», nada podendo obstar, por isso, a que a datio in solutum abranja a prestação de um facere, como sucede na situação dos autos. 

Veja-se que, na situação em causa, a obrigação a que a sociedade executada está obrigada em função do contrato de compra e venda (do prédio urbano composto por terreno para construção urbana sito na ...), é ao pagamento da quantia (remanescente, relativamente ao preço devido)  de € 110.00,00. Em função da dita “Declaração e Reconhecimento”, a sociedade executada, ao mesmo tempo que se reconhece devedora dessa quantia, obriga-se a realizar uma prestação diferente da do respectivo pagamento  – construir uma fracção autónoma naquele lote, custear as despesas necessárias à obtenção da respectiva licença de utilização e, após,  transferir para a propriedade da sociedade exequente, 164/100 dessa fracção – tendo como objectivo “pagar” aquela parte do preço, o que significa fazer extinguir a obrigação de pagamento do remanescente preço de 110.00,00 €. 

Não está em causa, note-se, criar uma nova obrigação em substituição daquela antiga, caso em que haveria novação. Essa situação, que implicaria que a obrigação de pagamento do remanescente do preço se tivesse extinto mediante a referida e nova obrigação de prestação de facto, dificilmente se coadunaria com a expressão empregue no documento em referência: «A restante parte do preço, isto é, 110.000,00, são pagos da seguinte forma». 

Tão pouco está em causa uma dação em função do cumprimento, à qual se refere o art 840º CC nos seguintes termos: «Se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida respectiva». Por isso, a dação pro solvendo tendo em comum com a dação em cumprimento a realização de uma prestação diferente da que é devida, «não tem no entanto, como esta, por fim, o de extinguir de imediato a obrigação, mas o de facilitar apenas o seu cumprimento». A ideia não é extinguir imediatamente a obrigação, mas apenas «se e à medida que o respectivo crédito for sendo satisfeito, à custa do novo meio ou instrumento jurídico para o efeito proporcionado ao credor».

Noutra perspectiva, pode bem aquilatar-se da diferença entre a dação em cumprimento e a dação em função do cumprimento – veja-se que na «dação em cumprimento é a actuação do devedor que vem a provocar a extinção da obrigação, enquanto na dação pro solvendo essa extinção é desencadeada por actuação do credor, em cumprimento de um encargo que lhe é conferido pelo devedor», como o assinala Menezes Leitão [3], que acrescenta que «a dação pro solvendo pode ser por isso qualificada como um mandato conferido pelo devedor ao credor para proceder à liquidação da prestação  realizada e se pagar com o dinheiro obtido por essa via  (…)».

Utilizando esta perspectiva, é bom de ver que na situação que está em causa nos autos não há dação pro solvendo, mas dação em cumprimento.

Sucede, como já se observou, que é traço específico da dação em cumprimento que «a prestação seja definitivamente realizada, não parecendo suficiente a mera celebração do acordo transmissivo do direito», esclarecendo Menezes Leitão esta asserção, referindo: «Efectivamente, apesar de entre nós o art 408º/1 determinar que a transmissão do direito se dá com a mera celebração do contrato, parece resultar claramente do art 837º que a dação em cumprimento só se verifica com a efectiva realização da prestação» [4].

Nas palavras de Antunes Varela[5] na dação em cumprimento, «a modificação operada na relação obrigacional esgota-se no próprio acto de extinção do vínculo, com a entrega de coisa diversa da que é devida, com a entrega do dinheiro ou com a prestação do facto». «Assenta numa troca da prestação acordada pelas partes no momento da satisfação do crédito».

È esta característica da dação em cumprimento – a de fazer extinguir imediatamente a obrigação – que implica, no contexto do documento a cuja interpretação se está a proceder – desde logo, em função do mesmo constituir uma “declaração e reconhecimento” e ser assinado apenas por quem assim declara e reconhece - que se opine no sentido de que o que nele está em causa é uma  promessa unilateral por parte da sociedade executada de realizar a prestação diversa, ficando, no entanto, diferida no tempo a execução dessa outra prestação, de tal modo que apenas, quando, e se, a mesma estiver totalmente executada, se dará a extinção da obrigação de preço. Sendo que a execução total dessa prestação implicaria que a sociedade executada viesse a celebrar o contrato definitivo que prometera, e assim, «por qualquer acto de transmissão onerosa», viesse a transferir para a propriedade da sociedade exequente os 164/100 da referida fracção D” [6]. Evidentemente, que o reconhecimento por parte da sociedade executada a que se vem fazendo menção, pressupõe que a sociedade exequente lhe concedeu a possibilidade de se liberar da remanescente obrigação de preço através das já referidas prestações de facto.

Nesta altura da exposição convém tornar claro que o documento dado à execução como título executivo, dito “Declaração e Reconhecimento”, não se reconduz à promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida a que se reporta o art 458º/1 CC. Essa figura – sempre envolta em polémicas e que «não é entre nós um negócio unilateral constitutivo de obrigações»[7] - pressupõe, por definição, o que não sucede com o documento que está em causa nos autos: que a promessa de prestação ou o reconhecimento de divida, sendo feita por simples declaração unilateral, o seja «sem indicação da respectiva causa».

«Causa», para o efeito, deve entender-se como «o fim especial típico expresso no conteúdo do negócio, ou como a função económico-social típica do negócio [8].

Ora, o documento em referência vincula a sociedade executada a uma obrigação, indicando «o motivo determinante, a função prática ou fundamento jurídico da mesma»,[9] que faz parte do respectivo conteúdo e permite inferir a figura concreta de que se trata – no caso, uma compra e venda e o remanescente do respectivo preço.

Dos factos provados resulta que a sociedade executada, que se vinculou nos termos expostos a prestar os acima referidos factos para fazer extinguir a obrigação de pagamento do remanescente preço da compra e venda do terreno, apesar de ter concluído as obras no referido Lote nº 5, apesar de ter construído a fracção “D”, apesar de ter obtido o alvará de autorização de utilização do prédio em 3/12/2013, não cumpriu a obrigação de transferir a propriedade de 64/100 da mesma para a sociedade exequente.

E o incumprimento dessa obrigação mostra-se definitivo, na medida em que, vendeu a dita fracção autónoma a terceiros, pois, sobre a mesma encontra-se inscrita aquisição por compra pela AP n.º 135 de 2015/08/14 a favor de M..., figurando como transmitente o aqui Embargante.

Não tendo cumprido aquilo a que se obrigou, não se verificou a extinção por dação em cumprimento da referida obrigação de preço.

Veja-se ainda em abono desta conclusão que é de todo o modo ínsito ao regime da dação em cumprimento a garantia contra vícios da coisa ou do direito transmitido, nos termos do art 838º/1ª parte CC, que remete para esse efeito para «os termos prescritos para a compra e venda», sendo conferida ao credor, na segunda parte dessa norma, e em alternativa a querer fazer-se valer dessa garantia, a opção pela prestação primitiva (e pela reparação dos danos sofridos).

Ora, se, quando ocorre dação em cumprimento, apesar de com ela se dar a extinção da obrigação primitiva, o legislador admite que esta obrigação renasça com todas as suas garantias e acessórios no caso da existência de defeitos ou ónus essenciais da coisa ou direito transmitido, caso o credor opte pela prestação primitiva, por maioria de razão, verificando-se incumprimento da prestação de facto que fora prometida, e por isso não tendo chegado a ocorrer a dação em cumprimento, sempre há-de estar ao dispor do credor valer-se da obrigação primitiva.

Referem a este respeito Pires de Lima/Antunes Varela [10]: «A remissão feita para as normas da compra e venda é explicada pelos autores através do carácter de contrato oneroso que reveste a datio in solutum. Entrega-se ou dá-se coisa (lato sensu) em troca da (extinção) do crédito. Dada, porém, a função substitutiva da datio, concede-se ao credor, quando haja vícios da coisa ou do direito transmitido, a faculdade de optar pela prestação inicial, que renasce como consequência da resolução do contrato».

Justifica-se assim, que a sociedade exequente, valendo-se do documento de “Declaração e Reconhecimento” constante de fls. 8 a fls. 9 dos autos de execução,[11] complementado pelos documentos juntos aos autos de execução a fls. 3 a fls. 6 v.º (fotocópia da escritura notarial de compra e venda exarada de fls. 32 a fls. 34 do livro de notas n.º 93-A, lavrada no Cartório Notarial da ...) e de fls. 14 v.º a 16 v.º (informação predial referente ao prédio descrito sob a ficha n.º ...), interponha execução para pagamento de quantia certa, fazendo valer a prestação primitiva referente ao remanescente do preço em dívida.

Este remanescente – de €110.000,00 – de acordo com o referido documento, seria pago, não apenas pela aqui sociedade executada, mas também por uma outra sociedade - a D.., Lda - na proporção, respectivamente, de 62/100 e 38/100 da fracção autónoma a construir e designada pela letra “D”.

 È sabido que deve ter lugar preliminarmente à execução propriamente dita uma operação de quantificação da obrigação – a liquidação – e que esta tem de ser feita dentro dos limites que lhe são fixados pelo título executivo.

Ora, a exequente procedeu à liquidação da obrigação exequenda por simples cálculo aritmético, fazendo-a em função de factos que estão abrangidos pelo título executivo.

Dispõe, efectivamente, o art 724º/1 al. h) do CPC que a liquidação por simples cálculo aritmético deve ser feita pelo exequente no requerimento executivo. Como o refere Rui Pinto [12] «esta liquidação é constituída por uma especificação no requerimento executivo dos valores que o exequente considera compreendidos na prestação devida  e pela conclusão do requerimento executivo com um pedido liquido – art 716º-1 », sendo que «o valor liquidado no requerimento pode ser impugnado em sede de oposição à própria execução». 

Foi assim que procedeu a sociedade exequente, fazendo corresponder, por simples operação aritmética, 62/100 de €110.000,00, a €68.200,00.

Do que se conclui que ainda que por razões diversas das referidas na decisão recorrida, há que a confirmar, fazendo prosseguir a execução.

Em conclusão:

I- Na presente oposição à execução parte a executada do pressuposto de que, porque se obrigou no documento que constitui título executivo a proceder à entrega à exequente de uma parte de uma fracção autónoma a construir num terreno para construção, esta não tem direito a pedir o pagamento de uma quantia certa, mas à entrega de uma coisa certa, por isso devendo ter intentado execução para entrega de coisa certa.

II– Ora, a exequente não se obrigou pelo referido documento a entregar (uma parte de) uma fracção autónoma, mas à prestação de um conjunto de factos – o de concluir as obras num determinado prédio urbano dando origem a uma fracção autonóma, a obter a correspondente autorização de utilização, e logo que tal sucedesse, a proceder à transferência de 62/100 da propriedade dessa fracção para a exequente.     

III- Não é concebível a “entrega” à sociedade exequente de 62/100 senão em função do facto da respectiva transferência de propriedade o que logo implicaria, ainda em função do pressuposto de que parte a sociedade executada que, quando muito, estivesse em causa a utilização de uma execução para prestação de facto e não de uma execução para prestação de coisa.

IV- Deverá, no entanto, entender-se que foi correctamente utilizada uma execução para pagamento de quantia certa, na medida em que o que do documento dado à execução resulta, é uma promessa unilateral da executada de uma dação em cumprimento, que não foi cumprida. Com efeito, a mesma obrigou-se, para pagar o remanescente do preço da compra à exequente do prédio em que se viria a inserir aquela fracção, a proceder à referida transferência dos 62/100 da mesma para a propriedade da exequente.

V- Visto que  incumpriu definitivamente essa promessa, tendo vendido a terceiros a referida fracção, continuou a dever à sociedade exequente aquele valor remanescente, (€110.000,00).

VI- Este valor, de acordo com o referido documento, seria pago não apenas pela aqui sociedade executada mas também por uma outra sociedade, na proporção, respectivamente, de 62/100 e 38/100, da referida fracção autónoma.

VII- A exequente procedeu à liquidação da obrigação exequenda, fazendo corresponder, por simples operação aritmética, 62/100 de €110.000,00, a €68.200,00, como lhe permite a al h) do nº 1 do art 724º CPC, por isso devendo prosseguir a execução para pagamento desse valor.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

Coimbra, 15 de Janeiro de 2018

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)

                                                                                         ***


[1]- A propósito desta distinção relativa às prestações de facto, cfr  Menezes Leitão, «Direito das Obrigações»,  vol I. 5ª ed, p 133. Refere este autor a respeito da distinção entre prestações de coisa e prestações de facto: «O interesse do credor (nas prestações de coisa)verifica-se normalmente em relação à coisa, e não em relação à actividade do devedor», ainda que «mesmo nos casos de  prestações de coisa, o credor não tenha qualquer direito sobre a coisa, o que só sucede nos direitos reais, mas antes um direito a uma prestação, que consiste na entrega dessa coisa (…) Pelo contrário, nas prestações de facto  não é possível distinguir entre a conduta do devedor  e uma realidade que exista independentemente dessa conduta. O direito do credor tem por objecto a prestação do devedor e o seu interesse não corresponde a nenhuma realidade independente dessa prestação»  
[2] - «Direito das Obrigações», Vol II, 7ª ed, p 172
[3] - «Direito das Obrigações», II Vol, 7ª ed, p 194
[4]- Obra citada, p 187
[5] - Obra citada, p 173
[6] -A respeito da configuração do que se designou por promessa unilateral de dação in solvendo, cfr Ana Prata «O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil», 2ª reimpressão da ed de 1994, p 256 e ss. A fls a 335 põe em relevo o carácter unilateral da convenção pela qual o devedor de uma obrigação se comprometa, com o acordo do respectivo credor, a entregar coisa diversa da devida, para extinguir uma obrigação primitiva. E a fls 317, referindo-se à promessa de contrato real, salientando embora, o facto de haver autores que «negam a possibilidade de se celebrar um contrato promessa de um contrato real quoad constitutionem, entre outros, com o argumento de que tal se traduziria em evitar a datio rei imprescindível à conclusão do negócio», diz aceitar essa possibilidade, referindo que «nada obsta  à conclusão de um acordo preparatório dele, desacompanhado de concomitante entrega do bem, pois tal acordo, não constituindo ainda o contrato real, em nada frustra ou ilude a necessidade daquela entrega para a celebração do contrato real, que só futuramente há-de ocorrer». 
[7]- Menezes Leitão, obra citada, p 276 
[8] - Vaz Serra, «Negócios abstractos. Considerações gerais. Promessa ou reconhecimento de divida e outros actos», BMJ nº 83. p 10 e ss
[9] - Mário Júlio Almeida Costa, «Direito das Obrigações», 9ª ed p 425
[10]- «Código Civil Anotado», p 121
[11]- Está-se a pressupor, evidentemente, a natureza de título executivo do documento particular em questão, em função da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, que repôs em vigor o disposto na al. c) do artigo 46.º do Código Processo Civil de 1961, com o âmbito de aplicação que a norma dispunha aquando da sua revogação efectuada pela Lei n.º 41/2013 de 26/06, pelo que os documentos particulares, não autenticados, deverão ainda ser tidos como título executivo, ainda que subscritos antes de 1/9/2013.
[12]- «Manual da  Execução e Despejo», 1ª ed, 2013,  p 243