Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
450/18.6PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REVOGAÇÃO
AUDIÇÃO POR ESCRITO DO CONDENADO
PANDEMIA DA DOENÇA COVID-19
NULIDADE
Data do Acordão: 03/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 50.º E 56.º DO CP; ART. 495.º DO CPP; ART. 6.º-A, DA LEI N.º 1-A/2020, DE 19-03, ADITADO PELA LEI N.º 16/2020, DE 29-05
Sumário: Se antes da prolação da decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão – no caso, condicionada e acompanhada de regime de prova –, é objectivamente possível a audição presencial do arguido, a determinação de realização do contraditório por escrito – obviamente, sem a colaboração do técnico que fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão –, mesmo quando o respectivo despacho é proferido no período de vigência do artigo 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, aditado pela lei n.º 16/2020, de 29-05, viola o disposto no n.º 2 do artigo 495.º do CPP, dando causa à nulidade (insanável) prevista na alínea c) do artigo 119.º do dito diploma legal.
Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1 - Por sentença de 7 de Setembro de 2018, - cfr fls 58 e 59 - transitada em julgado em 07.05.2019 -, proferida nos presentes autos de processo comum singular, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha - Juiz 2, o arguido T., com os demais sinais nos autos, foi condenado:

“a) (…) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;

b) Nos termos dos artigos 50º, nºs 1,2,3,4 e 5, 51º, nºs 1,2 e 4, 52º, nº 1, alíneas b) e c), nºs 3 e 4, 53º, nºs 1 e 2, todos do C. Penal, foi decretada a suspensão da execução da pena de prisão pelo período de um ano, a partir do trânsito em julgado da sentença, sendo essa suspensão condicionada e acompanhada de regime de prova e incluindo-se neste regime, para além do mais, a vinculação de arguido a um plano de intervenção com acompanhamento pela DGRSP, a comparência do arguido em acção dinamizada pela DGRSP, direccionada para a problemática criminal em causa e ainda, desde que obtida a prévia aceitação do arguido, a obrigação de comparência do mesmo a consulta para diagnóstico e eventual tratamento à problemática alcoólica e, caso seja esse o entendimento médico, o efectivo tratamento, que poderá incluir internamento, se necessário, à referida problemática alcoólica.

c) (…) na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motorizados de qualquer categoria pelo período de 1 (um) ano, por aplicação do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.


*

2 - Por despacho de 2 de Setembro de 2020 foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão e determinado o seu cumprimento.

*

3 - Inconformado com a decisão, recorreu o condenado, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

         “1- Face ao incumprimento do PRS foi designada data para audição do condenado, nos termos do artigo 495º, nº 2 do Código de Processo Penal, para o dia 16 de março de 2020.

2- Todavia, “Em virtude da pandemia e das medidas adoptadas pelos Tribunais de contenção da mesma, foi determinada a audição do arguido por escrito.” (cfr. Decisão de que se recorre).

3- Durante o estado de emergência, face à proliferação de casos registados de contágio de Covid-19, tornou-se exigível a aplicação de medidas extraordinárias, entre elas, e para o que aqui nos interessa, destacam-se as relativas à justiça.

4- Na verdade, por via da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, alterada pela Lei 4-A/2020, de 6 de abril, foi decretada a suspensão da maior parte dos prazos processuais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, embora com algumas exceções.

5- A maioria dos prazos processuais esteve suspensa desde o dia 9 de Março de 2020 e até que fosse indicada a data de cessação da suspensão, à excepção dos processos urgentes, os quais continuaram a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, devendo estas últimas realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados.

6- Sendo que, caso assim não fosse possível, as mesmas poderiam realizar-se presencialmente apenas se estivesse em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a liberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes e desde que não implicasse a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes.

7- Ainda assim, a lei determinou a aplicação aos processos urgentes do regime de suspensão previsto para os restantes processos caso não fosse possível, nem adequado, assegurar a prática de atos ou a realização de diligências nos processos urgentes.

8- A nosso ver, bem andou a Meritíssima Juiz em não efectuar, presencialmente tal diligência, face à epidemia e, ao estado de emergência decretado em Portugal.

9- Mas será, que tal diligência – Audição de Condenado - poderia ser, ainda que face às circunstâncias excepcionais atrás descritas, ser substituída pela forma escrita?

10-Estamos perante uma decisão – revogação da suspensão - que interfere com a liberdade do condenado, já que, se traduz no cumprimento da pena de prisão substituída.

11-O condenado tem direito ao contraditório em sede de audiência, tal como é assegurado, pelo artigo 495º, nº 2 do C.P.P., ou seja, mediante audição pessoal e presencial do arguido o que configura uma garantia de defesa constitucionalmente consagrada – artigo 32º, nº 5, 2ª parte CRP.

12-Ao assim não proceder o Tribunal a quo preteriu o direito de audição prévia como estabelecido naquele artigo, pelo que, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão constitui uma nulidade insanável cominada no artigo 119º, alínea c) do C.P.P., a qual deve ser declarada oficiosamente, em qualquer estado do processo.

13-Face ao exposto deverá ser declarada nula a decisão a quo, por preterição do direito de audição prévia nos termos determinados no artigo 495º, nº 2 do C.P.P., por constituir nulidade insanável cominada no artigo 119º, alínea c) do C.P.P.

14-Foram assim violados os seguintes normativos: artigos 61º, nº 1, alínea b) e 495º, nº 2 ambos do C.P.P. e 32º, nº 5, 2ª parte da CRP.

15-Por outro lado, a suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição, a qual imprime a necessidade de evitar os efeitos das penas curtas de prisão, daí que, a lei tenha fixado limites apertados à revogação desta pena de substituição, o que se compreende, pois de modo algum elas promovem a ressocialização do agente na sociedade.

16-Resulta do artigo 56º do Código Penal que, a revogação da suspensão não opera de forma automática.

17-Cingindo-nos aqui à alínea a), subjacente ao caso em apreço somos de sublinhar que, a revogação só deve ter lugar quando, o incumprimento dos deveres, para além de ter que ser grosseiro ou repetido, revelar que, as finalidades (da punição) que estavam na base da suspensão já não podem ser alcançadas através dessa suspensão, ou seja, quando o comportamento do arguido já não é passível de um juízo de prognose favorável.

18-São assim, dois os pressupostos           para aferir da revogação da suspensão resultantes da alínea a) nº 1 do artigo 56º do C. Penal: infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o PRS e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

19-Salvo o devido respeito, no nosso modesto entender, não concordamos com a verificação dos pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena de prisão, tal como vêm definidos no artigo 56º, nº1, alínea a) do C. Penal.

20-De facto, é verdade que o arguido não cumpriu com o PRS elaborado, porém, tal incumprimento não reveste carácter grosseiro, não podendo por isso mesmo ser qualificado como tal, como passaremos a demonstrar factualmente.

21-Resulta dos autos que, o arguido, cfr. requerimento fls. 157 e 158, passou por um período conturbado na sua vida, donde resultaram vários processos movidos contra si, nomeadamente o do caso em apreço.

22-De facto, o arguido à data dos factos (2018) contava com 27 anos de idade, vivia com os pais, um jovem adulto sem prespectivas de trabalho, e com pouco juízo crítico e falta de responsabilidade relativamente aos seus comportamentos que deram azo aos vários processos que decorreram contra si.

23-Acontece porém que, na sequência desta condenação, a qual previa, uma pena de prisão efectiva, suspensa na sua execução, o arguido tomou consciência da gravidade do seu comportamento e da sua problemática com o álcool, e das consequências nefastas que poderiam advir para o seu futuro.

24-Perante essa ameaça de prisão, procurou desde logo dar um rumo a sua vida, pois: “Era para si importante afastar-se do meio onde vivia…porque com o afastamento ao seu meio natural poderia reestruturar a sua vida” - Requerimento acima citado fls. 157 e 158

25-Foi então que, em Outubro de 2018 o arguido, rumou a França “à procura de condições de empregabilidade, tendo usufruído do suporte de conhecidos já aí radicados para se inserir e adaptar ao novo contexto comunitário.” – Relatório da DGRSP datado de 25/11/2019, fls. 177 a 179.

26-O arguido esteve a trabalhar para a empresa “(…)”, onde exercia a actividade de armador de ferro e cuja compensação monetária era para si, bastante gratificante, conforme documentos juntos aos autos.

27-Nessa altura, exercia a sua profissão através de vínculos laborais de natureza temporária, os quais iam sendo renovados. Relatório DRSP datado de 25/11/2019, fls. 177 a 179.

28-Desde essa data que o arguido se encontra a trabalhar e a residir em França, mais concretamente na zona de Lyon.

29-Presentemente o arguido, já é detentor de uma relação jurídica de emprego por tempo indeterminado, com uma empresa representada por um português, o qual teve o seu início a 10 de Agosto de 2020. Doc. 1

30-A celebração do presente contrato deixou-o bastante orgulhoso e ainda mais motivado e confiante para dar continuidade à sua evolução pessoal, profissional e social, em pautar-se de acordo com as regras societárias.

31-Ora, como se pode constatar factualmente, o arguido afastou-se do seu meio natural, reestruturou a sua vida, tem um emprego, um rendimento gratificante, casa onde morar, não mais consumiu bebidas alcoólicas, encontrando-se nessa medida inserido social e profissionalmente.

32-Na verdade, o arguido teve sempre o cuidado em informar o Tribunal de todo o seu percurso, designadamente, dizendo onde estava, o que estava a fazer, juntando contratos de trabalho para o efeito, dando conhecimento das datas possíveis de estadia em Portugal na casa do agregado familiar dos pais, e da morada dos mesmos.

33-Sempre manifestou a sua inteira disponibilidade para comparência em Tribunal, apesar de estar dependente da articulação com a sua entidade empregadora em França (da qual o Tribunal tinha conhecimento), tal como em cumprir integralmente a medida proposta ou outras que a Meritíssima Juíz viesse a considerar como relevantes.

34-Mais informou Tribunal, que a sua ausência de Portugal e a alteração à morada da sua família, impossibilitou-o de receber correspondência, e tomar naturalmente, conhecimento do teor da mesma - requerimento fls. 157 e 158

35-Para além do mais, considerou como relevante informar que tinha procedido à entrega nos autos, a sua carta de condução na data de 18 de Abril de 2019, juntando comprovativo de tal prática.

36-Alcança-se igualmente dos autos que deu cumprimento à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de um ano.

37-De realçar também, o facto de ter dado cumprimento ao pagamento das custas judiciais a que foi condenado, encontrando-se totalmente liquidadas.

38-A fim de dar início à resolução das situações pendentes e nomeadamente as que envolvem o presente processo, compareceu pessoalmente na secção do processo no dia 29 de Março de 2019.

39-Nesta senda, somos de destacar o Relatório da DGRSP datado de 25 de Novembro de 2019, fls. 177 a 179 o qual refere precisamente que:

“Devido a constrangimentos relacionados com a ausência do condenado em França onde se encontra a residir por motivos profissionais desde Outubro de 2018 não foi possível realizar a entrevista presencial com T., prévia à elaboração do presente documento. O condenado foi contactado telefonicamente, tendo exteriorizado disponibilidade para dar cumprimento às imposições que lhe foram fixadas judicialmente…” – sublinhado nosso.

40-Foi assim elaborado o PRS face ao comportamento interessado do arguido, pelo que não podemos concordar que o arguido tenha revelado «total desprezo pelo cumprimento da pena» tal como referido na douta decisão a quo.

41-Acontece porém que, por dificuldade de articulação com a sua entidade empregadora em França, já que o arguido nesse período (só em Agosto de 2020 celebrou contrato por tempo indeterminado), apenas tinha vínculos laborais com empresas de trabalho temporário, pouco sensíveis a estas situações, e com receio de não ver renovado o seu contrato, acatava sem mais, aquilo que lhe era ordenado pela mesma, não tendo conseguido deslocar-se a Portugal entre 22 de Dezembro de 2019 a 3 de Janeiro, conforme articulado com a DRSP.

42-Foi então dado conhecimento pela DRSP do incumprimento do PRS aos autos, tendo sido designada data para Audição do Condenado, nos termos do artigo 495º, nº 2 do C.P.P. para 16 de Março de 2020, “data que, segundo indicação sua, estaria em Portugal.” – Decisão a quo.

43-Audição essa que foi dada sem efeito face à situação de pandemia.

44-Todavia, o arguido esteve em Portugal nessa data, certamente não terá tomado conhecimento da notificação que deu sem efeito tal diligência, e prova disso mesmo é que, no dia 16 de Março de 2020, o arguido deslocou-se ao Laboratório de Análises Clínicas Dr. (…) a fim de realizar colheita de análise de despiste de alcoolémia – Doc. 2

45-De sublinhar ainda que, conforme Decisão recorrida, e de acordo co CRC actualizado junto aos autos, o condenado não mais praticou qualquer tipo de ilícito criminal.

46-Posto isto, somos de concluir, salvo o devido respeito por opinião diversa, que o incumprimento do PRS não deve ser considerado grosseiro, pois, “… a infracção grosseira será a que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade, aqui se incluindo a colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção.” (cf. Acorado do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Maio de 2017, Proc. nº 317/14.7PBPDL-A-L1-9).

47-Perante o quadro factual descrito, pese embora o incumprimento do PRS, inerente à suspensão da pena, as finalidades visadas são, salvo melhor opinião, ainda susceptíveis de serem alcançadas, face ao percurso das condições de vida do condenado desde a prolação da sentença até ao presente.

48-Em suma:

- o condenado encontra-se inserido social e profissionalmente;

- encontra-se a evoluir a nível profissional, sendo que, desde Agosto de 2020 que se encontra a trabalhar no seio de uma empresa mais estruturada, cujo representante é português (Sr. D(…)) – Cfr. Doc. 1 ora junto, mais sensível e compreensivo de molde a proporcionar as condições necessárias ao arguido para o efectivo cumprimento das suas obrigações judiciais;

- celebrou com essa empresa um contrato de trabalho por tempo indeterminado onde exerce a profissão de armador de ferro;

- tomou consciência da sua problemática com o álcool, procurando logo após a sua condenação afastar-se dos seus pares, indo à procura de emprego em França, país onde tem suporte de pessoas conhecidas;

- tem-se pautado por um comportamento mais responsável e de acordo com os ditames sociais, encontrando-se em abstinência de consumos de álcool;

- tal como não praticou mais crimes.

49- Após a condenação o arguido tem mantido uma conduta merecedora de confiança pelo que, ao contrário do Tribunal a quo, entendemos que o arguido pode ainda oferecer garantias que permitam formular um juízo de prognose positivo e favorável, de que, futuramente, em liberdade, não voltará a delinquir, mantendo-se uma pessoa activa a nível profissional e abstinente dos consumos de álcool.

50-Até porque, a finalidade principal da pena de substituição é o afastamento do arguido da prática de novos ilícitos criminais, o que efectivamente, veio a acontecer.

51-Ex positis o douto Despacho ora em recurso fez uma incorrecta interpretação e aplicação da alínea a), nº 1 do artigo 56º do C. Penal

52- Porém, o incumprimento da suspensão, seja por violação das obrigações impostas, quer por “não correspondência” ao PRS, não leva automaticamente à aplicação de alguma sanção ou a que se revogue a suspensão da pena.

53- Veja-se, neste sentido, Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30/06/2010, Proc. nº 3506/02.3TDLSB.L1-3:

“II- A revogação da suspensão da pena nunca é uma consequência automática da conduta do condenado, dependendo sempre da constatação de que as finalidades punitivas visadas com a imposição de pena suspensa se encontram irremediavelmente comprometidas.”

54- Por outro lado, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão só deve ser usada como ultima ratio, ou seja, quando nenhuma das medidas previstas nas alíneas do artigo 55º do Código Penal, seja suficiente para afastar o condenado da prática de crimes no futuro.

55- Assim sendo, tendo em conta o circunstancialismo exposto, estamos em crer que, o desfecho poderia ser outro que não, a revogação da suspensão, a qual, com o devido respeito, nos parece ser desproporcionada.

56- Poderia, assim, o Tribunal a quo, ter optado por uma alternativa mais favorável ao arguido, fazendo uso das prerrogativas constantes do artigo 55º do Código Penal, nomeadamente a alínea d).

57- De acrescentar ainda que, caso assim o entendesse, a Mª Juíz podia igualmente, ajustar ou alterar o regime de prova, tendo em conta a vicissitude do condenado não se encontrar a residir em Portugal, e assim adaptar o PRS a essa nova realidade, ou eventualmente introduzir exigências acrescidas.

58- Face ao aduzido, o Tribunal a quo, salvo melhor entendimento, violou o determinado no artigo 55º do Código Penal, ao não ponderar a aplicação de uma norma que, face ao comportamento do arguido, após a prolação de sentença, o qual emigrou para França à procura de emprego e, por forma a afastar-se do meio natural a fim de não mais delinquir, o que está a conseguir, fosse mais ao encontro da ressocialização do condenado.


***

Termos em que, e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao recurso, e em consequência:

- ser declarada a nulidade insanável da Decisão a quo, ou caso V.ª s Ex.ª s assim não entendam,

- ser revogado o Despacho proferido, e ser substituído por outro que, determine a prorrogação do período de duração da suspensão da pena nos termos da alínea d) do artigo 55º do Código Penal.

Fazendo assim, V.ª s Ex.ª s, a habitual e necessária JUSTIÇA!”


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4 - O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, concluindo:

 “1 – Quanto à primeira questão suscitada importa dizer que após estudo mais detalhado da mesma parece assistir razão ao recorrente, porquanto tal parece ser actualmente a posição maioritária da jurisprudência (A esse respeito veja-se, para além, e designadamente, dos arestos citados na peça de recurso, o Acórdão da Relação de Lisboa de 13/08/2018, proferido no processo nº 595/04.0GGLSB.L1-3, disponível in www.dgsi.pt).

2 - Assim, não pode deixar de se concluir pela procedência da aludida nulidade insanável cominada no citado art.119º, al. c), do Código de Processo Penal, por preterição de audição presencial do arguido, nos termos do disposto no art.495º, nº2, do Código de Processo Penal.

3 - Todavia, já a segunda questão suscitada não merece o nosso acolhimento (ainda que a eventual procedência da primeira questão esvazie o conteúdo útil desta porque lhe é prévia).

4 - De qualquer modo, e independentemente da alegada nulidade insanável (dever ser ou não procedente) sempre se dirá que se mostram preenchidos os requisitos descritos no art.56º, nº1, al. a), do Código de Processo Penal.

Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, concedendo provimento ao recurso apenas quanto à primeira questão suscitada, V.Exas. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA!”


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5 - Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“(…)

4. Ora, quanto ao assinalado objecto do recurso, começaremos por dizer que acompanhamos a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1.ª instância, desde logo no que respeita à fundamentação que admite a existência da nulidade invocada, sendo certo que no caso em apreço estamos em presença da avaliação da violação dos deveres por parte do arguido.

A ser assim e no caso de ser julgada procedente esta questão, declarando-se a existência de nulidade insuprível, a mesma decisão será prejudicial em relação à apreciação das restantes questões enunciadas pelo recorrente.

Por outro lado, e para a hipótese de ser julgada improcedente a peticionada declaração de nulidade, acompanhamos de igual modo a posição do Ministério Público quanto à defesa que faz do douto despacho recorrido quando aprecia todos os incumprimentos, e são muitos, por parte do arguido em relação ao cumprimento da pena de prisão sob o regime da sua suspensão da execução.

É paradigmático o facto de:

- a sentença condenatória ter sido proferida no dia 07-09-2018;

- o trânsito ter ocorrido no dia 07-05-2019 (quase 8 meses depois); e

- o plano de reinserção social da DGRSP só foi homologado em 04-12-2020 (19 meses após o trânsito!), quando finalmente esta entidade pública conseguiu obter os favores do arguido para dar alguma colaboração nesse sentido.

Para, depois de tudo isso, nada mais ter cumprido.

O douto despacho recorrido neste aspecto e, partindo os dados dos autos que discrimina de forma concretizada e das informações da DGRSP, decidiu de forma adequada.

Contudo, como se referiu acerca da primeira das questões a lei permite ao arguido tudo o que se observa dos autos e ainda terá que lhe pedir o favor de apresentar em tribunal para ser ouvido presencialmente…

O sistema legal até permite, a nosso ver, a realização de um qualquer julgamento em processo penal de forma mais expedita do que – conforme se constata – a apreciação cabal da eventual violação de deveres por parte de um arguido condenado em pena suspensa quando coloca na disponibilidade deste, eventual colaboração com o tribunal.

É normal que o arguido aposte na sua impunidade, com sucesso, quando é condenado em pena suspensa.


*

Face ao exposto, porém, somos de parecer que do recurso do arguido deverá ser ponderada a procedência da nulidade invocada, no mais não lhe assistindo qualquer razão.”

*

6 - Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1 - Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A existência de nulidade insanável por falta da audição presencial do condenado;

- A não verificação dos pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena de prisão.


*

2 - Para a resolução destas questões importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

         “Por sentença proferida a 7 de setembro de 2018, transitada em julgado em 07.05.2019, foi o Arguido T. condenado na pena de dez meses de prisão, suspensa por um ano sujeita a regime de prova a delinear pela DGRS e que deveria contemplar a comparência em ação dinamizada pela DGRSP direcionada para a problemática criminal em causa e ainda, obtida a prévia aceitação do arguido, a obrigação de comparência do mesmo a consulta para diagnóstico e eventual tratamento à problemática alcoólica e, caso seja esse o entendimento do médico, efetivo tratamento, que poderá incluir internamento (cfr. fls. 58 a 59 e 110). A DGRSP não conseguiu elaborar o plano de reinserção social por o arguido se encontrar a residir em França e não responder aos contactos efetuados pelos serviços (cfr. fls. 142). Na sequência de tal informação, foi designada data para audição do Arguido para período temporal em que previsivelmente se encontraria em Portugal (fls. 145). O Arguido por requerimento de 27.09.2019 informou o Tribunal que se encontrava a trabalhar em França, mas que apesar de tal circunstância manifestava total disponibilidade para cumprir a sua pena, estando afastado do grupo de pares que o incentiva a práticas que deram origem a diversos processos criminais (fls. 157 e 158). Apesar disso, o arguido não compareceu na diligência agendada (fls. 163).

Nessa diligência foi proferido despacho concedendo um prazo de 10 dias para o arguido informar os autos do próximo período em que se deslocará a Portugal, com vista a, nesse período, realizar as entrevistas com a DGRSP e frequentar o programa taxa zero. Mais se autorizou que realizasse as consultas de alcoologia em França, juntando o respetivo comprovativo aos autos (cfr. despacho de fls. 163 verso). Visou-se, assim, com o referido despacho compatibilizar a realidade profissional do arguido com o cumprimento das obrigações decorrentes da suspensão da pena de prisão. O Arguido informou os autos de que se deslocaria a Portugal entre 22 de dezembro e 3 de janeiro de 2020, em requerimento de 08.10.2019 (fls. 165 e 166). Nessa sequência e, por contacto telefónico com o condenado, foi elaborado plano de reinserção social pela DGRSP (fls. 177 a 179), donde resultaram as seguintes obrigações: - informar os serviços da DGRSP acerca das datas de deslocação e períodos de permanência em Portugal e comparecer nas entrevistas que forem agendadas nesses períodos direcionadas para o cumprimento de obrigações fixadas judicialmente e para a promoção de competências reflexivas visando o exercício de um comportamento rodoviário responsável, colaborando pró-ativamente nos conteúdos abordados; - Comparência do arguido em ação dinamizada pela DGRSP direcionada para o comportamento rodoviário responsável; - Obrigação de comparência em consulta de diagnóstico e eventual tratamento à problemática alcoólica.

O plano foi homologado por despacho de 04.12.2019.

Apesar do período de deslocação do Arguido a Portugal ser o período do Natal, com poucos dias úteis para o funcionamento dos serviços, a DGRSP atendeu à situação de exceção e agendou ação de sensibilização “Álcool e comportamento rodoviário” para o dia 23.12.2019, pelas 10h00, agendando ainda consulta de alcoologia no Centro de Saúde de (…) para o dia 30.12.2019, pelas 12h00.

No entanto, o Arguido, apesar de informado de tais datas, não compareceu, nem justificou as suas faltas, nem por qualquer outra forma contactou a DGRSP – cfr. relatório de incumprimento de fls. 188.

Foi designado dia para audição do condenado em data que, segundo indicação sua, estaria em Portugal.

Em virtude da pandemia e das medidas adotadas pelos Tribunais de contenção da mesma, foi determinada a audição do Arguido por escrito. O Arguido nada veio expor ou requerer.

O período de suspensão terminou no dia 07.05.2020.

Foi junto aos autos CRC atualizado e lista de processos pendentes.

O M.P. promoveu, a fls. 242 e seguintes, a revogação da suspensão da execução da pena em que o arguido foi condenado nos presentes autos.

Cumpre apreciar e decidir:


***

Dispõe o artigo 56º do Código Penal que: “1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. 2. A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição das prestações que haja efetuado.”

Resulta do exposto que a revogação não opera automaticamente, sendo necessário comprovar que as finalidades da suspensão da pena de prisão não foram alcançadas. É, assim, o juízo sobre a possibilidade de ainda serem alcançadas, em liberdade, as finalidades da punição que norteará a escolha dos regimes do art. 55º ou do art. 56º do Código Penal.

No caso dos autos, entendeu-se que a mera ameaça da pena cumpriria de forma adequada e suficiente as exigências de prevenção, desde que se controlassem os fatores de risco identificados na sentença, nomeadamente o consumo de álcool.

Compulsado o certificado de registo criminal do condenado, resulta que o mesmo não foi condenado por qualquer outro crime no período de suspensão da presente pena.

A lei não define o que deve entender-se por “infringir grosseiramente ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos”, deixando ao critério do aplicador da lei a fixação dos seus contornos. A violação grosseira de que se fala, há-se ser uma indesculpável atuação em que o comum dos cidadãos não incorre não merecendo ser tolerada, indesculpável.

Incorre uma tal violação grosseira quando o condenado, sabendo perfeitamente que se devia apresentar às autoridades para poder beneficiar da suspensão, nada faz, mostrando-se esquivo e não se deixando notificar, durante os cerca de quatro anos em que o tribunal se desdobrou em inúmeras diligências a tentar, em vão, apurar o seu paradeiro e notificá-lo para proceder à sua audição. (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.03.2013, Processo n.º 876/06.8PLLSB-G.L1-3, in: www.dgsi.pt.)

Ora, o arguido sabia que tinha de cumprir o plano de reinserção social homologado, nomeadamente, comparecendo na ação dinamizada sobre comportamento rodoviário responsável e, bem assim, pelo menos numa consulta de alcoologia de diagnóstico.

Sucede que, apesar de tais ações terem sido cuidadosamente agendadas para um período em que o próprio informou que se encontraria em Portugal, o mesmo não compareceu, nem justificou as suas faltas, nem mais contactou a DGRSP no serviço de reagendar tais acções. Acresce que foi-lhe dada a possibilidade de frequentar as consultas de alcoologia em França, comprovando tal situação nos autos, circunstância que não se verificou igualmente.

O Arguido não se esforçou minimamente para cumprir as obrigações decorrentes do plano de reinserção social e que o Tribunal entendeu fundamentais na formulação do juízo de prognose positivo quanto á eficácia da mera ameaça de prisão no seu comportamento futuro.

Com efeito, os objetivos do PIRS, uma vez cumpridos, permitiriam confirmar o juízo de prognose favorável, no sentido de se entender que o arguido não mais praticaria crimes de idêntica natureza, porquanto tinha interiorizado valores e comportamentos conformes ao Direito ao vigente.

Se não fossem cumpridos, dificilmente se poderia concluir que o arguido tinha alcançado as finalidades da pena em liberdade, concretamente a sua reintegração social e a proteção do bem jurídico violado que apenas se alcança mediante a efetiva interiorização por parte do seu agente do desvalor da sua conduta.

Não tendo o arguido cumprido nenhuma das obrigações impostas no PIRS, entendemos inevitavelmente que esse incumprimento é grosseiro na medida em que é transversal a todas as medidas propostas, revelando total desprezo pelo cumprimento da pena e pela confiança em si depositada na possibilidade de cumprir a pena em liberdade. Encontra-se, assim, inequivocamente preenchido o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 56º do Código Penal, encontrando-se definitivamente inquinado o juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do condenado que persiste numa conduta de incumprimento, de desrespeito perante os compromissos assumidos no âmbito da presente suspensão da pena de prisão e de desprezo perante a oportunidade de resolver os fatores de risco que têm dominado o seu comportamento social de uma forma antijurídica.

Termos em que:

- Decido revogar a suspensão da pena de prisão e, em consequência, determinar que o Arguido T. cumpra a pena de prisão de dez meses em que fora condenado nos presentes autos (artigo 56º n.º 2 do C.P.). Notifique. Oportunamente, emitam-se mandados de detenção para cumprimento da pena de prisão, em EP competente.”


*

 III -Decidindo:

1. Da existência de nulidade insanável [por falta da audição presencial do condenado]

1. Alega o recorrente que não foi notificado pessoalmente a fim de ser ouvido na presença de técnico e que a revogação da suspensão é nula, nos termos do art.º 119º, al. c) do CPP, em conjugação com o art.º 495º, n.º 2 do mesmo diploma legal, porque foi decretada sem a sua prévia audição.

A posição do Ministério Público é concordante concluindo também pela verificação da nulidade insanável cominada no citado art.119º, al. c), do Código de Processo Penal, por preterição de audição presencial do arguido, nos termos do disposto no art.495º, nº2, do Código de Processo Penal.

2. Seguindo de perto o entendimento expresso no acórdão desta Relação de 4 de Novembro de 2020, proferido no processo [recurso] nº 29/17.0GAMGR-A.C1, relator Des Vasques Osório, importa considerar que:

“As entidades a quem foi solicitado apoio ao condenado no cumprimento por este dos deveres, regras de conduta e outras obrigações impostas, nos termos do disposto no nº 1, do art. 495º do C. Processo Penal, devem comunicar ao tribunal o seu incumprimento para os efeitos, além do mais, previstos nos arts. 55º e 56º, do C. Penal.

Feita a comunicação, depois de produzida a prova julgada necessária, depois de ouvido o condenado, na presença do técnico de serviço social que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, e depois de o Ministério Público ter emitido parecer, o tribunal decide se deve manter-se a suspensão da execução da pena de prisão, ainda que com agravamento das condições – art. 55º do C. Penal –, ou se deve a pena de substituição ser revogada – art. 56º, nº 1, a), do C. Penal (cfr. nº 2, do art. 495º do C. Processo Penal).

Como se vê, o despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão tem como pressuposto, além do mais, a prévia audição do condenado, como forma de assegurar o efectivo exercício do seu direito ao contraditório (cfr. art. 61º, nº 1, b), do C. Processo Penal).

Para tanto, deve o tribunal envidar todos os esforços, lançando mão dos meios legais ao seu dispor, para tornar efectiva a audição presencial do condenado, quando a suspensão da execução da pena de prisão tenha sido condicionada a apoio e fiscalização dos serviços de reinserção social, v.g., quando acompanhada de regime de prova, como sucedeu nos autos, sob pena de violação do disposto no art.495.º do Código de Processo Penal (cfr., acs. da R. de Coimbra de 12 de Julho de 2017, processo nº 2089/10.5PCCBR-A.C1, de 9 de Setembro de 2015, processo nº 83/10.5PAVNO.E1.C1, e de 19 de Junho de 2013, processo nº 464/10.4GBLSA.C1, todos in www.dgsi.pt).

Note-se, aliás, que no procedimento previsto no nº 2, do art. 495º do C. Processo Penal não está apenas em causa a assegurar o exercício do direito ao contraditório pelo condenado, mas também, colocar o tribunal em perfeitas condições de aferir da subsistência ou não de uma anterior decisão sua, onde o contributo do condenado pode ser e, normalmente, é, importante para a decisão a proferir, independentemente do seu sentido. 

Assim, a omissão da audição prévia do condenado, pelo tribunal, na presença do técnico de reinserção social que o apoia e fiscaliza tal como prescreve o art. 495º, nº 2, do C. Processo Penal, conforma, por regra, a nulidade insanável prevista no art. 119º, alínea c), do C. Processo Penal.

Em suma, e em jeito de conclusão, temos que da conjugação do disposto nos arts. 32º, nº 2, parte final, da Constituição da República Portuguesa e 61º, nº 1, b) e 495º, nº 2, do C. Processo Penal, resulta para o tribunal a obrigação de desenvolver todos os esforços que se revelem necessários para ouvir o condenado, presencialmente, bem como o técnico de reinserção social que o apoia e fiscaliza, antes de proferir decisão sobre a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

Só assim não deverá ser quando, feitos todos os esforços admissíveis, não for possível obter a comparência do condenado, por razões que lhe são imputáveis, v.g., a impossibilidade da sua localização e/ou detenção, por se ter colocado em fuga ou ser desconhecido o seu paradeiro, casos em que se deve então ter-se por cumprido o contraditório na pessoa do defensor [sob pena de, nestes casos, a possibilidade de revogação da suspensão ficar na disponibilidade do próprio condenado].”

        

Posto isto.

3. Compulsados os autos constata-se que o comportamento do condenado não reflecte a preocupação e responsabilidade supostas pelo regime de prova imposto, justificado pelas dificuldades que a permanência em França projecta no cumprimento das convocatórias dos serviços sociais.

De todo o modo, a conduta do arguido não desobriga o tribunal recorrido de desenvolver todos os esforços possíveis, para efectivar a audição física do condenado, nos termos e para os efeitos previstos no nº 2, do art. 495º, do C. Processo Penal, até porque é conhecido o seu paradeiro.

É certo que em 3-03-2020 e para “apreciar se a conduta do condenado se subsume no art 55º ou 56º do CP”, foi designado o dia 16-03-2020 para audição do condenado, data em que segundo indicação sua, estaria em Portugal - cfr fls 190.

 Porém, veio o arguido requerer a audição no dia 13 de Março por se encontrar em Lyon a 16 de Março em trabalho.

O que foi indeferido por despacho de 11-03-2020 - cfr fls 206 - por falta de agenda do tribunal, dando-se sem efeito a diligência designada para 16-03-2020. E foi ainda determinada a sua audição por escrito - em virtude da pandemia e das medidas adoptadas pelos Tribunais - “devendo pronunciar-se sobre o relatório de acompanhamento de fls 187 e 188 e do despacho de fls 190, devendo, querendo, justificar os incumprimentos das obrigações decorrentes da pena suspensa, juntar elementos que comprovem o que vier alegar e pronunciar-se com base no disposto nos arts 55º e 56º do CP quanto ao desfecho da sua pena.

O Arguido nada veio expor ou requerer.

Importa notar que 8 dias depois foi promulgada a Lei n.º 1-A/2020, Medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

Lei que foi alterada pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio e que sofreu já 11 actualizações, sendo a 11ª versão a mais recente Lei n.º 4-B/2021, de 01/02.

Ora o artigo 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, aditado pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, (cujo artigo 10.º estabelece que a lei produz efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março), já dispunha, nos seus n.º 2, 3 e 5, o seguinte:

“2 - As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:

a) Presencialmente e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela Direção-Geral da Saúde (DGS); ou

b) Através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e se for possível e adequado, designadamente se não causar prejuízo aos fins da realização da justiça, embora a prestação de declarações do arguido ou de depoimento das testemunhas ou de parte deva sempre ser feita num tribunal, salvo acordo das partes em sentido contrário ou verificando-se uma das situações referidas no n.º 4.

3 - Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se:

a) Através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou

b) Presencialmente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior, e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, higiene e sanitárias definidas pela DGS.

5 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é garantida ao arguido a presença no debate instrutório e na sessão de julgamento quando tiver lugar a prestação de declarações do arguido ou coarguido e o depoimento de testemunhas.

Daqui resulta que, mesmo em face da pandemia, a regra é a de que as diligências que não impliquem a produção de prova testemunhal ou a tomada de declarações dos arguidos devem ser realizadas através de meios de comunicação à distância.

Ora estando em causa a liberdade do arguido, por força de eventual revogação da suspensão de uma pena de 10 meses de prisão, impunha-se a presença física do condenado na diligência, a fim de explicar as razões do seu comportamento e quiçá afastar o aparente desinteresse e alheamento quanto às obrigações impostas.

Não esquecer que o despacho de revogação da suspensão da pena é complementar da sentença, traduzindo uma modificação do conteúdo decisório da sentença de condenação, tendo como efeito directo a privação da liberdade do condenado. As suas consequências aproximam-se muito das da sentença que condena em pena de prisão.

Na verdade, e como afirma André Lamas Leite (A Suspensão da execução da pena privativa da liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal”, em Stvdia Ivridica 99, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, BFDUC, 2009, págs. 620-623), “… a exigência constitucional do exercício do contraditório (art. 32º, n.º 2, in fine) e as previsões normativas dos artigos 61º, n.º 1, al. b), e 495º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, só admitem a conclusão de que é obrigatório que o tribunal, antes de determinar a revogação da suspensão de execução da pena privativa da liberdade, envide todos os esforços necessários à audição do condenado” (sublinhado nosso).

Com ressalva do respeito devido, que é muito, o entendimento do tribunal recorrido, quanto ao exercício do contraditório, expresso no despacho recorrido e também no despacho de 11-03-2020, não tem consagração no nº 2, do art. 495º, do C. Processo Penal, nem resulta justificada pela pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.

“É que, se fosse propósito do legislador, apenas e só, assegurar o contraditório em termos formais, bastaria tê-lo dito [bastaria a notificação de convocação para a diligência]. Porém, a norma exige mais, exige que a audição do condenado seja feita na presença do técnico de reinserção social, o que implica, necessariamente, que quer aquele, quer este, se encontrem, fisicamente, perante o tribunal.” - ac supra citado - sublinhado nosso.

Em conformidade com o exposto, e porque a realização da diligência com a presença do condenado era objectivamente possível, a determinação da realização do contraditório por escrito, (obviamente sem a colaboração do técnico social) violou o nº 2, do art. 495º, do C. Processo Penal, dando, consequentemente, causa à nulidade insanável prevista na alínea c), do art. 119º, do C. Processo Penal.

O que determina, nos termos do disposto no art. 122º, nºs 1 e 2, do mesmo código, a nulidade do despacho recorrido.

Em consequência, impõe-se a realização da referida diligência, com a regular convocação e presença do recorrente, e do técnico de reinserção social, seguindo-se, depois, os demais e necessários termos.


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Face ao decidido, fica prejudicado o conhecimento da restante questão suscitada no recurso.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência:

- Declaram a nulidade insanável da audição do recorrente por escrito, bem como, a invalidade do despacho recorrido.

- Determinam a audição presencial do arguido, com a efectiva presença do técnico de reinserção social – nos termos do nº 2 do art 495º do CPP - seguindo-se, depois, os demais e necessários termos do processo.


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Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal, a contrario).

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Coimbra, 10 de Março de 2021

Processado e revisto pela relatora

Isabel Valongo (relatora)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)