Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
128/15.2T9CDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: VENDA A PRESTAÇÕES
VEÍCULO
DECLARAÇÃO
VENDA
ÚLTIMA PRESTAÇÃO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
REGISTO
VALIDADE DO SEGURO
VENDEDOR
Data do Acordão: 04/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CONDEIXA-A-NOVA )
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1.º, Nº 1, E 29.º, DO DL N.º 54/75, DE 12-02; ARTS. 4.º, 21.º E 22.º DO DL N.º 291/2007, DE 21-08
Sumário: I - A presunção decorrente das disposições conjugadas dos arts. 1.º, n.º 1, e 29.º, do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro e do art. 7.º do C. Registo Predial, é uma presunção juris tantum.

II - É ilidida aquela presunção quando o adquirente, após a celebração do contrato de compra e venda, passou a assumir um comportamento, relativamente ao veículo, que é normal no titular do direito de propriedade.

III - A compra e venda de veículos automóveis não está sujeita a forma especial (cfr. arts. 217.º a 219.º do CC) e como o respectivo registo tem apenas efeito declarativo, e não constitutivo (cfr. art. 1.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro), a comummente designada declaração de venda é apenas o requerimento formulado pelo comprador e confirmado pelo vendedor, em impresso próprio, da aquisição do veículo por contrato verbal de compra e venda, a fim de promover o respectivo registo (cfr. art. 25.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).

IV - O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do própria dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo – 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 291/2007.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Condeixa-a-Nova – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 137º, nº 2 e 69º, nº 1, a), ambos do C. Penal, de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 81º, nºs 1 e 6, a) do C. da Estrada e de uma contra-ordenação p. e p. pelo art. 81º, nºs 5 e 6, b) do mesmo código.

            Os assistentes B... e C... deduziram pedido de indemnização civil contra D... , SA, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 173.318, por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros à taxa legal, desde a notificação do pedido e até integral pagamento.

            O Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, deduziu pedido de indemnização civil contra D... , SA, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 17.576,27, correspondente ao valor da assistência prestada à vítima.

            Os assistentes, em sede de pedido de indemnização civil, requereram a intervenção provocada do arguido e do Fundo de Garantia Automóvel, que foi deferida.

            Por sentença de 6 de Julho de 2016 foi o arguido condenado, pela prática dos imputados crime de homicídio por negligência e contra-ordenações, na pena de um ano e oito meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período condicionada ao cumprimento das obrigações de resposta às convocatórias da DGRS, às apresentações ao respectivo técnico e frequência de programa de segurança rodoviária, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de onze meses, e nas sanções acessórias de nove meses e de catorze meses de inibição de conduzir veículos motorizados.

            Mais foi declarada a ilegitimidade do Fundo de Garantia Automóvel e do arguido, enquanto demandado civil, e os mesmos absolvidos da instância, e condenada a demandada D... , SA., no pagamento aos assistentes, da quantia de € 161.318, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre a quantia de € 3.318, desde a data da notificação do pedido, e sobre a quantia de € 158.000, desde a data da decisão, e no pagamento ao Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, da quantia de € 17.576,27, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido.


*

            Inconformada com a decisão, recorreu a demandada civil D... , SA., formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1ª.) O Tribunal recorrido considerou provado que o veículo (...) SG estava garantido pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº (...) , válida, na data do acidente, estando a responsabilidade por danos causados a terceiros transferida para a demandada D... , Sa.

2ª.) A recorrente considera que houve erro de julgamento no tocante à resposta dada ao item 14) da matéria provada e no tocante ao facto do Tribunal “a quo” ter considerado NÃO PROVADO que o arguido tinha adquirido a viatura ligeira de passageiros com a matrícula (...) SG cerca de três semanas antes e NÃO PROVADO que o seguro da viatura estivesse, na data do sinistro, caducado e inválido.

3ª.) Com base nos depoimentos das testemunhas H... , I... e L... e nas declarações do arguido produzidas em julgamento e ainda por este prestadas a fls. 90 e 287 que confirmou em julgamento, conforme transcrições supra expostas e que aqui se dão por reproduzidas, é inequívoco que o Tribunal não poderia nunca ter considerado válido o seguro celebrado com a recorrente por ter havido alienação do veículo em data anterior ao acidente – cerca de três semanas.

4ª.) Logo, reapreciando a prova produzida e com base naqueles depoimentos/declarações terá o Tribunal ad quem de considerar provado que o arguido tinha adquirido o veículo (...) SG cerca de três semanas antes do acidente e que tal alienação produziu a caducidade/invalidade do contrato de seguro anteriormente celebrado com a recorrente pelo anterior proprietário H... .

5ª.) Nenhum relevo jurídico assume o facto do arguido não ter pago integralmente o preço do veículo porquanto a venda deu-se por mero efeito do contrato independentemente da obrigação de pagamento do preço estar ou não cumprida.

6ª.) Do mesmo modo, o facto do veículo estar registado em nome de pessoa diferente do arguido impede que este seja o verdadeiro proprietário porquanto o registo do veículo não tem natureza constitutiva do negócio de compra e venda.

7ª.) Decidindo como decidiu violou o Tribunal “a quo” o comando do artº. 21º do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto e os artºs. 219º, 406º, 408º, 875º e 879º, entre outros, do Código Civil.

Termos em que,

                Deve ser concedido provimento ao recurso e declarar-se que à data do acidente não se encontrava transferida para a recorrente a responsabilidade civil automóvel do veículo (...) SG, e a mesma absolvida dos pedidos.

Assim se fazendo JUSTIÇA


*

            O Fundo de Garantia Automóvel respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

                1. O Tribunal a quo julgou corretamente, ao condenar a Ré seguradora.

                2. A presunção registral não foi ilidida, já que não resultou provado que o Arguido tivesse adquirido o veículo em data anterior ao acidente.

                3. Sendo o proprietário o tomador do seguro, e não tendo havido alienação, o seguro tem de operar, já que era válido e eficaz.

                4. E como nasce a pretensão da seguradora, no sentido da caducidade do contrato de seguro por força de alienação do veículo?

                5. É que algumas semanas antes do acidente, o segurado prometeu vender o veículo ao Arguido … mas a venda não chegou a concretizar-se.

                6. De facto, ambos combinaram que a declaração de venda apenas seria assinada quando o pagamento integral estivesse efectuado.

                7. O veículo não foi alienado – foi sim, embora de modo informal, prometida a alienação!!

                8. E foi assumido por ambos os contraentes que a venda se faria depois do pagamento integral.

                9. Tanto o Arguido como o proprietário do veículo declararam em julgamento que quando o veículo estivesse totalmente pago iriam “passar” a declaração de venda.

                10. Bem andou o Tribunal a quo ao mencionar na douta sentença de fls. que «estando acordado o pagamento do preço em prestações, só quando o carro estivesse totalmente pago é que iria ser dele».

                11. A assinatura da declaração de venda seria a concretização / celebração do negócio prometido.

                12. Donde, que o contrato de seguro existia, sendo válido e eficaz à data do acidente que se discute nos presentes autos.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida. ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!


*

            Também os assistentes responderam ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

                1. O Tribunal a quo julgou e considerou, corretamente, que a viatura (...) SG estava garantida pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº (...) , válida na data do acidente, estando a responsabilidade por danos causados a terceiros transferida para a demandada D... .

                2. As declarações do arguido e demais testemunhas, proferidas no âmbito do inquérito, não podem ser valoradas, conforme resulta do despacho proferido nos autos, e da exposição apresentada pela recorrente.

                3. Da prova produzida em toda a sua plenitude, não ficou provado, de forma inequívoca, que a presunção decorrente do registo tenha sido ilidida, uma vez que ficou provado que o arguido não adquiriu o veículo em data anterior ao acidente.

                4. O tomador do seguro é o proprietário e, não tendo sido concretizada a alienação, o seguro tem de operar.

                5. O arguido refere que o carro só seria dele depois da venda total e do pagamento, referindo que, até lá, o veículo seria do H... .

                6. O arguido nunca pagou o veículo e nem sequer agiu como seu dono, não mais querendo saber do seu paradeiro após o acidente.

                7. Estamos, quando muito, perante uma promessa de venda que não se veio a concretizar.

                8. Negociações que foram realizadas entre duas pessoas, que não eram, sequer, titulares de habilitação legal quando o acidente se verificou, e sem que a demandada D... tivesse deixado de realizar o competente seguro que, após o acidente, vem dizer estar caducado.

                9. Bem andou o Tribunal a quo ao mencionar, na douta sentença, que: “(...) estando acordado o pagamento do preço em prestações, só quando o carro estivesse totalmente pago é que iria ser dele”

                10. O contrato de seguro existia, sendo válido e eficaz à data do acidente e, por tal, deve responder nos termos declarados na douta sentença.

Termos em que, com a manutenção da Douta SENTENÇA, deverá ser considerado improcedente o Recurso apresentado pela Demandada D... .

Assim será feita, JUSTIÇA!


*

            A Exma. Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir em ambos os recursos, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

- A consequente ausência de responsabilidade civil por parte da demandada recorrente e sua absolvição.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1) No dia 1 de Junho de 2014, cerca das 05.15 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula (...) SG, no IC2, no sentido Condeixa – Pombal.

2) No veículo seguia como ocupante B... , que ocupava o lugar da frente ao lado do condutor.

3) Próximo de Sangardão, ao Km. 171,200 do referido itinerário complementar, onde a estrada configura uma recta em patamar com cerca de 150 metros, e a hemi-faixa por onde circulava tem uma largura de 3,4 metros, ladeada por berma com a largura de 1,90 metros, arguido não corrigiu a trajectória do veículo relativamente à faixa de rodagem.

4) Assim, o veículo seguiu para o lado direito e, depois de atravessar a berma, foi embater violentamente, com a parte direita do veículo, num suporte de sinalização vertical e num poste em cimento de iluminação pública, fixos à margem da estrada.

5) Com o embate, o veículo voltou à hemi-faixa de rodagem onde circulava e onde se imobilizou atravessado e tombado sobre o lado direito, incendiando-se de seguida.

6) Em consequência do embate, o B... sofreu lesões que o impediram de sair do veículo, que continuou a arder, provocando-lhe queimaduras graves, pelo que foi transportado aos CHUC, onde ficou internado até 9 de Junho, data em que veio a falecer.

7) Realizada a autópsia médico-legal, das conclusões do respectivo relatório resulta que a morte de B... foi devida às lesões de queimadura do 2º e 3º grau, ocupando 55% da superfície corporal, complicadas de peritonite aguda e pneumonia aguda bilateral.

8) Mais conclui que as lesões de queimadura constituíram causa adequada de morte e que aquelas lesões têm características próprias das produzidas por chama, tendo ocorrido em contexto de acidente de viação e bem assim que as restantes lesões traumáticas descritas denotaram ter sido produzidas por instrumento contundente ou actuando como tal, podendo ser devidas ao acidente referido.

9) O acidente teve como causa exclusiva a conduta do arguido, traduzida na falta de conhecimentos e de habilitação legal para conduzir, da manifesta falta de cuidado e atenção, a que estava obrigado e de que era capaz, na sua imperícia no exercício da condução automóvel, e, bem assim no facto de se encontrar influenciado pelo álcool e substâncias estupefacientes que havia consumido, e cujas características e efeitos conhecia, e que resulta dos relatórios juntos de fls. 209 a 211, que aqui se dão por transcritos, que não o impediram de representar como possível, o acidente, mas não admitindo que tal viesse a ocorrer.

10) Com efeito, apresentava uma TAS de 0,76+/-0,10g/l de álcool no sangue e resultado positivo quanto aos canabinóides, com 17ng/ml relativos a 11-nor-9-carboxi-delta-9-tatrahidrocanabinol.

11) No local onde ocorreu o embate, a estrada é em recta, com mais de uma centena de metros e o piso estava seco e em razoável estado de conservação e possui iluminação pública, que se encontrava em funcionamento.

[Do pedido de indemnização civil dos demandantes B... e C... ]

12) Os demandantes são pais do falecido B... .

13) B... não deixou descendentes, nem fez testamento, tendo-lhe sucedido como seus únicos herdeiros os demandantes.

14) A viatura (...) SG estava garantida pelo contrato de seguro titulado pela apólice n.º (...) , válida, na data do acidente, estando a responsabilidade por danos causados a terceiros transferida para a demandada D... , S.A..

15) Com o despiste, viragem e o deflagrar das chamas, B... ainda consciente foi submetido a altas temperaturas e ao pavor de não conseguir sair da viatura por se encontrar encarcerado, momentos que resultaram na sua saída do veículo com a ajuda de populares, tendo ainda conseguido dizer o seu nome e perdido os sentidos.

16) Após assistência deu entrada no Serviço de Urgência do CHUC pelas 06:42 do dia 01 de Junho de 2014 onde se encontrava consciente e apresentava queimaduras de 2.º e 3.º grau com cerca de 55% da superfície corporal (face+cabeça+todo o toráx+abdómen+toda a região lombar) e traumatismo crânio encefálico.

17) Foi entubado e colocado cateter venoso central, tendo realizado exames imagiológicos, tendo a TAC crânio-encefálica relevado hemorragia e contusão cerebral e broncofribroscopia, fuligem dispersa pela traqueia e árvores brônquica e sinais inflamatórios.

18) Após, foi internado na Unidade de Queimados do C.H.U.C-E.P. por apresentar queimaduras de 2.º e 3.º grau em cerca de 43% de superfície corporal.

19) Durante o internamento esteve sempre intubado e ventilado mecanicamente.

20) Foram efectuados pensos diários, gasometrias, sessões de balneoterapia, tendo sido submetido a cirurgia para efectuar escarectomias e amputação de falanges distais dos cinco dedos da mão direita.

21) Vindo depois por agravamento do seu estado geral provocado por hemoperitoneu extenso diagnosticado após ecografia abdominal, transferido para o serviço de urgência para a equipa de cirurgia.

22) Apresentando peritonite aguda e pneumonia aguda bilateral.

23) Vindo a falecer em 09 de Junho de 2014.

24) No período que mediou entre a produção do acidente e o decesso de B... – 9 dias –, B... sofreu elevada e permanente agonia, dor, sofrimento, amputação e percepção da morte.

25) A vítima nasceu em 28 de Maio de 1991.

26) Com o desaparecimento da vítima, os demandantes sofreram um profundo abalo psíquico e grande angústia vivencial, acrescido no período que mediou entre a data do acidente e a data da morte do seu filho.

27) Para além do impacto causado pelo conhecimento da notícia do evento.

28) O traumatismo que os demandantes sofreram quer no período de internamento quer no momento de se verem confrontados com a realidade da morte do B... deixará sequelas que nunca se apagarão.

29) Agudizado na igual medida da violência do acidente que constituiu no dia seguinte ao encarar os jornais e notícias locais, em primeira página.

30) B... era o único filho dos quatro filhos dos demandantes que vivia com os mesmos e o único para quem a única família eram os seus pais, sendo por esse motivo o filho com que os demandantes tinham maior ligação.

31) Sobretudo para a demandante já doente e que tinha na vítima um apoio muito grande na sua doença que depois da sua morte se agudizou.

32) A demandante, depois da morte do filho, passou a ter muitos e graves problemas neurológicos, com vários episódios que a levaram aos serviços de urgência dos hospitais.

33) Apesar de já ser uma pessoa doente com a morte do filho, a demandante teve e tem muita dificuldade com a perda do seu filho.

34) Recorrendo a medicação para poder conseguir dormir, estando no presente absolutamente incapaz de poder trabalhar.

35) A vítima era o filho que estava destinado a tomar conta dos seus pais, sobretudo a sua mãe e com o acidente essa segurança deixou de existir.

36) Os demandantes vão lutando contra a imensa dor que é a perda de um filho.

37) Os demandantes sofrem ainda hoje ao recordar o acidente, a vida conjunta com o seu filho, emocionando-se, não conseguindo apagar da memória e do seu dia-a-dia a sua presença.

38) Cuidando e visitando com muita assiduidade a campa da vítima.

39) É difícil para os demandantes partilhar o vazio da casa, o vazio do carinho e o vazio do amor que nutriam pelo filho.

40) A vítima era um jovem saudável.

41) Era uma pessoa com muitos amigos.

42) Tinha a certificação profissional de mecânico de automóveis ligeiros e tinha perspectivas de um dia poder trabalhar no ramo para que estava formado.

43) Em consequência da morte da vítima, foram suportadas pelos demandantes as despesas de funeral e preparativos das exéquias, no montante de € 1188,00.

44) E o valor de € 1800,00 referentes à campa em granito (pedra).

45) No dia do acidente, as roupas que a vítima usava no momento da ocorrência ficaram destruídos – calças, sapatilhas, t-shirt, tudo no valor de € 80,00.

46) Os demandantes tiveram ainda no período em que a vítima esteve internada após o acidente custos com deslocações diárias ao hospital por vezes duas e três vezes por dia, durante os oito dias, assim como refeições em valor médio no montante de € 250,00.

[Do pedido de indemnização civil do demandante Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E.]

47) No dia 01 de Junho de 2014, B... deu entrada no Centro Hospitalar, tendo sido assistido no Serviço de Urgência, a que se seguiu internamento de 01 de Junho de 2014 a 09 de Junho de 2014.

48) Os encargos com a assistência prestada à vítima importam na quantia de € 17 576,27 (dezassete mil, quinhentos e setenta e seis euros e vinte e sete cêntimos), ainda em dívida.

[Das condições pessoais do arguido]

49) O arguido trabalha numa empresa, auferindo mensalmente a quantia de € 530,00 (quinhentos e trinta euros).

50) Vive com a mãe, reformada, auferindo mensalmente cerca de € 900,00 (novecentos euros), a irmã, psicóloga, auferindo mensalmente pelo menos o salário mínimo nacional, e uma outra irmã, estudante.

51) Vivem em casa arrendada, pagando de renda € 350,00 (trezentos e cinquenta euros).

52) O arguido tem concluído o 9.º ano de escolaridade.

53) O arguido já tirou a carta de condução.

54) O arguido já foi condenado, no âmbito do processo comum (Tribunal Colectivo) n.º 512/14.9 PCCBR, da Instância Central Criminal de Coimbra, por acórdão datado de 22 de Maio de 2015, transitado em julgado a 29 de Junho de 2015, pela prática, em 06 de Janeiro de 2014, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, artigo 204.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, este último por referência ao artigo 202.º, alínea c), todos do Código Penal, de cinco crimes de condução sem habilitação legal, previstos e punidos pelo artigo 3.º,m.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, de dois crimes de furto qualificado, previstos e punidos pelo artigo 203.º, n.º 1, artigo 204.º, n.º 2, alíneas a) e e), por referência ao artigo 202.º, alíneas b) e d), todos do Código Penal, de três crimes de uso de documento e identificação ou de viagem alheio, previstos e punidos pelo artigo 261.º do Código Penal, de quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento, previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a), c) e e), e n.º 3 do Código Penal, e de quatro crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 202.º, alíneas a) e b), todos do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução, com deveres, por igual período de tempo.

55) Foi condenado, no âmbito do processo comum (Tribunal Singular) n.º 1033/14.5TACBR, desta Instância Local, por sentença datada de 23 de Junho de 2015, já transitada em julgado a 08 de Setembro de 2015, pela prática, em 01 de Junho de 2014, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros).

56) No processo referido no ponto anterior, estava em causa a mesma situação da dos presentes autos.

(…)”.

            B) Dela constam os seguintes factos não provados:

            “ (…).

            A) O arguido tinha adquirido a viatura ligeira de passageiros, com a matrícula (...) SG, cerca de três semanas antes;

B) O seguro da viatura estivesse, na data do sinistro, caducado e inválido.

            (…)”.

            C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

            “ (…).

            A audiência de julgamento decorreu com o registo da prova nela produzida. Tal circunstância, que também nesta fase se deve revestir de utilidade, dispensa o relatório das declarações e depoimento nela prestados.

O decidido funda-se na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, livremente apreciada e valorada na sua globalidade de acordo com as regras da experiência comum.

Concretamente, para a prova dos factos imputados ao arguido, a convicção do Tribunal formou-se com base na sua confissão integral e sem reservas (artigo 344.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

Isto não prejudica o não apuramento da aquisição do carro, já que este aspecto, apesar de constar da acusação, não interessa verdadeiramente ao libelo acusatório, sendo, antes, um ponto a ser decidido no âmbito do pedido de indemnização civil.

Relativamente aos factos dos pedidos de indemnização civil, os mesmos resultaram apurados pela conjugação dos elementos documentais, designadamente escritura de habilitação a fls. 446 a 447, assento de nascimento da vítima a fls. 448 e 449, boletim de internamento a fls. 450, receita e factura da farmácia a fls. 451, declaração relativa a despesas de saúde de C... a fls. 452, relatório médico a fls. 453, declaração de presença no Hospital de C... a fls. 454, diplomas de formação da vítima a fls. 455, 456, 457, documentos comprovativos das despesas de funeral a fls. 458 e 459, factura de despesas médicas da vítima a fls. 656, com a prova testemunhal produzida. De facto a prova testemunhal serviu para complementar a prova documental, tendo E... e F... , presentes no local, na data do sinistro, explicitado, de modo congruente entre si, e logo credível, o sofrimento padecido pela vítima. Da mesma forma, G..., irmã da vítima, B... , assistente, pai da vítima, C... , assistente, mãe da vítima, J..., cunhado da vítima, e L..., irmão da vítima, corroboraram de modo espontâneo e, por conseguinte, verosímil, o sofrimento sentido pela vítima, pelos pais desta, destacando a importância da vítima para a família e as características de B... , nomeadamente o facto de ser um rapaz jovem e saudável. M..., que conhecia a vítima há vários anos, também confirmou o facto de a vítima ser um jovem saudável e sociável, o que fez de maneira clara e, por isso, convincente. Não obstante o referido, podia haver dúvidas quanto ao montante peticionado pelo Centro Hospitalar e quanto ao montante referente à campa, porquanto, no que diz respeito ao primeiro, apenas foi apresentada uma factura global, sem a especificação dos tratamentos realizados, e quanto ao segundo não foi apresentado comprovativo. Daí que o Fundo de Garantia Automóvel tenha a fls. 865, verso, impugnado o pedido de indemnização civil, quer do Centro Hospitalar, quer dos assistentes. No entanto, entende-se que estes aspectos deverão ser dados como provados, já que decorrem das regras de experiência comum. De facto, se a vítima sofreu os padecimentos apurados, é normal que tenha recebido os tratamentos médicos em conformidade, o que naturalmente importará, pela gravidade das lesões, um montante elevado. Por outro lado, se a vítima faleceu, terá de ser sepultada, o que, em princípio e na falta de indicação em contrário, implicará a compra de uma campa, existindo despesa por essa aquisição.

Quanto às condições económicas e pessoais do arguido, foram tidas em conta as declarações do mesmo, que não suscitaram quaisquer reservas no que respeita à sua credibilidade. O facto de o arguido actualmente possuir carta deveu-se ao documento junto por este em audiência de julgamento, não havendo razões para duvidar que o documento é fidedigno.

Relativamente aos antecedentes criminais, a respectiva prova resulta do teor do certificado do registo criminal de fls. 824 a 828. O facto de a anterior condenação se referir aos mesmos factos do que os dos presentes autos deriva da análise dos elementos dos autos e do conhecimento funcional deste Tribunal.

Quanto à aquisição do veículo sinistrado e a existência de seguro válido, a verdade é que a presunção da propriedade decorrente do registo não foi ilidida no caso. Na verdade, como decorre de fls. 130, o veículo está registado em nome do segurado e não do arguido. Isso significa que há uma presunção de que o veículo existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos definidos no registo (artigo 7.º do Código de Registo Predial, aplicável por força do artigo 29.º do Decreto-lei n.º 54/75 de 12 de Dezembro), tratando-se de presunção juris tantum (cf., por exemplo, o ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 14 de Outubro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça 470, página 630). Para ilidir esta presunção, é necessário, ou fazer a prova da nulidade do registo ou demonstrar a invalidade do negócio ou acto jurídico com base no qual foi feito o registo (cf. ANTUNES VARELA, in Revista de Legislação e Jurisprudência ano 118, página 307) ou, ainda, que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem. No caso em apreço, não se verificam as duas primeiras hipóteses (nulidade do registo ou invalidade do acto com base no qual foi feito o registo). Quanto à terceira hipótese, a de que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, certo é que subsistem dúvidas sobre se o veículo foi efectivamente vendido e adquirido pelo arguido. Por um lado, o arguido referiu que, estando acordado o pagamento do preço em prestações, só quando o carro estivesse totalmente pago é que iria ser dele. Daí que não tenha sido emitida declaração de venda, o que foi confirmado pelo segurado H... .

Sem prejuízo, quer o arguido, quer H... foram dando a entender, ao longo das suas declarações, de forma confusa, tanto que o veículo ainda era do segurado, tanto que o veículo já era do arguido. Desta confusão resultou, porém, nítido um aspecto: o arguido e o segurado estão unidos por uma grande amizade, o que fez com que o segurado confiasse que o arguido iria pagar o preço, deixando-o usar o veículo ainda antes desse pagamento. Mas, não sendo claros os termos do negócio de «venda» ou «empréstimo», a conclusão a retirar dessa incerteza é que a presunção do registo não foi ilidida, devendo ser atendida. Não há, por isso, caducidade do seguro, por se entender que o proprietário do veículo é o segurado. E esta conclusão não é prejudicada pelo depoimento de I.... Com efeito, I..., amiga do arguido, referiu que contava que o arguido lhe emprestasse a viatura. Isto podia significar que o arguido se arrogava proprietário do veículo, tanto mais que o ia emprestar a terceiro. Contudo, para além desta situação não se ter concretizado, dado que não chegou a haver empréstimo do carro, crê-se que esta atitude do arguido poderá não denotar a qualidade de proprietário deste, podendo perfeitamente inserir-se na relação de amizade e de confiança existente entre arguido e segurado. De facto, arguido e segurado eram, antes de mais, amigos, sendo perfeitamente legítimo pensar que o segurado confiava no arguido até para emprestar o carro a seus amigos. Acresce que, nada impede que se pense que o arguido iria pedir ao segurado que este emprestasse o carro a I.... Afinal, como já se disse, o carro não foi efectivamente emprestado a I..., sendo de todo razoável equacionar que o empréstimo seria antecedido por um pedido ao segurado, que não se chegou a realizar por o empréstimo ter ficado inviabilizado com o acidente ocorrido.

De resto, N...e P... nada adiantaram para o esclarecimento dos factos.

Além disso, não foram ainda dados como provados factos constantes do pedido de indemnização civil ou das contestações meramente conclusivos ou irrelevantes para a boa decisão da causa.

(…)”.


*

            Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

            1. Alega a recorrente – conclusões 2ª a – ter ocorrido erro de julgamento relativamente ao ponto 14 dos factos provados e aos pontos A e B dos factos não provados da sentença recorrida, pois que dos depoimentos das testemunhas H... , I..., e L... e das declarações do arguido resulta que o veículo automóvel de matrícula (...) SG, interveniente no acidente de viação causador da morte da vítima, havia sido vendido pelo anterior proprietário – H... – e comprado pelo arguido, cerca de três semanas antes do acidente, com a consequente caducidade do contrato de seguro que tinha por tomador o vendedor. No corpo da motivação a recorrente transcreveu os segmentos – as concretas passagens – dos depoimentos e das declarações consideradas relevantes para fundarem a impugnação deduzida, e indicou ainda como prova impositora de decisão diversa, as declarações do arguido prestadas a fls. 90 e 287 [e não, 297 como, por lapso, consta da motivação, sendo certo que são cópia das de fls. 90], portanto, na fase de inquérito.

O recurso da matéria de facto foi concebido pelo legislador como um remédio para sanar o que tem por excepcional no julgamento feito pela 1ª instância, o erro na definição do facto, não o tendo perspectivado e por isso, não o podendo nem devendo ser, pelos recorrentes, como um novo julgamento, como se o efectuado na 1ª instância não tivesse tido lugar. Daí que a lei imponha ao recorrente, e apenas a este, a identificação precisa do concreto erro [ou erros] que pretende corrigir pela via do recurso e a sua demonstração.

Por isso, o art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal sujeita o recorrente a um triplo ónus de especificação: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio]. E quando nas concretas provas especificadas se incluem provas por declarações gravadas, quanto a estas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta da audiência de julgamento, com a concreta indicação das passagens em que o recorrente funda a impugnação.

Por último, devem estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (cfr. art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal).

Não basta, porém, para a procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal. Na verdade, porque o tribunal decide, salvo nos casos de prova tarifada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, não raras vezes, é ignorado pelos recorrentes], é necessário que as provas especificadas, na observância do referido ónus, imponham decisão diversa da recorrida, recaindo a demonstração desta imposição também sobre o recorrente que, para tanto, deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1135).

A demandada civil e ora recorrente especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados identificando como tais, o ponto 14 dos factos provados e os pontos A e B dos factos não provados, da sentença recorrida, e justificou a sua dissensão quanto à convicção alcançada pelo tribunal a quo, com as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas H... , I..., e L..., tendo no corpo da motivação transcrito os segmentos das declarações e dos depoimentos que considerou relevantes para suportar a impugnação deduzida.

Mostra-se, pois, adequadamente cumprido pela recorrente o ónus de especificação, pelo que nada impede o conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto, com o objecto e limites que, por si, lhe foram assinalados, supra referidos.

Dito isto.

2. O ponto 14 dos factos provados e os pontos A e B dos factos não provados, impugnados constituem a face e o verso de uma mesma realidade, a existência de contrato de seguro válido, na data do acidente de viação. E como se percebe do respectivo teor, os pontos 14, provado e B), não provado, para além do que têm de factual, encerram verdadeiras conclusões de facto.

É a seguinte a sua redacção:

- [14] A viatura (...) SG estava garantida pelo contrato de seguro titulado pela apólice n.º (...) , válida, na data do acidente, estando a responsabilidade por danos causados a terceiros transferida para a demandada D... , S.A.;

- [A] O arguido tinha adquirido a viatura ligeira de passageiros, com a matrícula (...) SG, cerca de três semanas antes;

- [B] O seguro da viatura estivesse, na data do sinistro, caducado e inválido.

A Mma. Juíza a quo fundou a sua convicção quanto a estes factos, como decorre da motivação de facto da sentença, supra transcrita, com base no documento de fls. 130 e da presunção do registo que dele decorre, conjugado com as declarações do arguido e da testemunha H... , que concordantemente disseram ter ficado acordado o pagamento do preço do veículo automóvel causador do acidente a prestações e só quando o preço estivesse totalmente pago aquele seria do comprador, razão pela qual não havia ainda sido emitida a declaração de venda, mas que, confusamente, deram a entender, tanto o veículo já era do primeiro como ainda era do segundo, criando uma situação de incerteza sobre se o negócio envolvido seria uma compra e venda ou um mero empréstimo, situação que também o depoimento da testemunha I... não esclareceu uma vez que, dada a relação de grande amizade e confiança entre o arguido e a testemunha H... , a promessa de empréstimo do veículo pelo arguido à testemunha I... é ainda perfeitamente compatível com a circunstância de o veículo ter também sido emprestado ao arguido pelo H... , tendo, em consequência, feito valer a referida presunção e considerado titular do direito de propriedade do veículo esta última testemunha e não, o arguido, por via da alegada mas não provada, compra e venda.

A Relação ouviu o registo gravado das declarações prestadas na audiência de julgamento pelo arguido, delas resultando, em síntese, e na parte relevante:

[A perguntas do Ilustre Mandatário dos assistentes]

- O veículo ainda era propriedade do H... , ainda estava em nome dele, certa parte do valor acordado já lho tinha pago, comprou-lhe o carro, efectivamente comprou-lhe o carro, só que ainda não estava em seu nome, ainda não havia declaração de venda, comprou o carro umas semanas antes, são colegas de infância e como ele tinha esse e outros carros, não foi difícil terem acordado em ficar com o carro e pagar-lho às prestações, não pode precisar já o valor do carro, também não sabe precisar o valor já pago [circa 00:07:44 das declarações]; sabia que o carro tinha seguro e estava descansado por isso, acordaram em que o seguro ficava como estava até haver declaração de venda, passando então a responsabilidade do seguro a ser sua, até ao momento em que não o pagasse o carro não era seu, tinha apenas o usufruto do mesmo [circa 00;10.14 das declarações];

[A perguntas de Ilustre Mandatária]

- Acordaram em que, quando fosse paga a totalidade do preço, o carro seria seu, se não fosse paga a totalidade, o H... podia vir buscar-lho, depois do acidente teve uma conversa com o H... e ele disse que não queria saber do carro [circa 00:15:20 das declarações];

[A perguntas da Ilustre Mandatária da recorrente]

- O H... perdoou-lhe a dívida, comprou-lhe o carro e acordou o H... ir-lho pagando, o carro, legalmente, não era seu, não estava em seu nome, o sentido do negócio era garantir ao H... que pagaria todo o preço, se alguém lhe pedisse o carro, emprestava-o, o carro estava à sua disposição [circa 00:16:48 das declarações]; não sabe, por já não recordar, o preço acordado, nem quanto dele já havia pago [circa 00:21:05 das declarações].   

A Relação ouviu também o registo gravado do depoimento da testemunha H... , dele resultando, em síntese, e na parte relevante:

[A perguntas do Ilustre Mandatário do assistente]

- O Renault Clio era seu à data do acidente mas vendeu o carro anteriormente ao arguido, antes de lho vender fez um seguro em seu nome [do depoente], o carro era do arguido mas só ia passar para nome dele depois de ele lho pagar, ele nunca chegou a pagar-lho na totalidade [circa 00:00:53 do depoimento]; o seguro estava em seu nome porque a senhora da seguradora lhe disse que tinha que estar em nome do dono do carro, não pode precisar o momento em que foi feito o acordo e também não recorda o preço [circa 00:02:40 do depoimento]; ele dizia que ia pagar-lhe o carro a prestações e que queria o carro, ele também fixou responsável pelo pagamento do seguro [circa 00:04:30 do depoimento]; acordou que só transferia o carro para nome dele no fim de ele lhe pagar tudo, mas eram amigos de infância e tinha plena confiança nele [circa 00:05:25 do depoimento]; se quisesse andar com o Clio não o podia fazer porque já estava tudo à responsabilidade do arguido que já tinha pago alguma coisa mas não recorda quanto [circa 00:07:08 do depoimento]; nunca se preocupou com o carro e sobre este não tem nada a dizer, depois do acidente falou com o arguido e são muito amigos, mas sobre o carro nada falaram, e nada mais lhe exigiu, nem quer saber [circa 00:08:16 do depoimento]; não combinaram qualquer prazo para que a totalidade do preço fosse paga e a declaração de venda fosse emitida [circa 00:10:25 do depoimento];

[A perguntas da Ilustre Mandatária da recorrente]

- Não deu conhecimento à seguradora de que tinha vendido o carro mas não sabia que o tinha que fazer [circa 00:11:43 do depoimento], quando foi apanhado a guiar sem carta resolveu vender o carro, mas não recorda a data em que tal aconteceu, mas terá sido uns meses antes do acidente, mas tem certeza de que a venda do carro ao arguido foi mais de oito dias antes do acidente [circa 00:12:22 do depoimento];      

[A perguntas de Ilustre Mandatária]

- O carro só tinha uma chave e foi essa a que entregou ao arguido, o que acordaram é que o carro só ficaria no nome dele depois de pago todo o preço, e também acordaram que seria ele a pagar o seguro [circa 00:17:31 do depoimento].

A Relação ouviu ainda o registo gravado do depoimento da testemunha I..., dele resultando, em síntese, e na parte relevante:

[A perguntas da Ilustre Mandatária da recorrente]

- Esteve com o arguido num café no dia do acidente, o carro era do arguido e já o tinha visto com ele outras vezes, ele ia-lhe emprestar o carro no dia seguinte [circa 00:01:45 do depoimento];

[A perguntas de Ilustre Mandatária]

- Não sabe se o carro antes era do H... , nem se houve ou não venda [circa 00:03:01 do depoimento];

[A perguntas do Ilustre Mandatário dos assistentes]

- Sabia que o arguido não tinha carta de condução, viu-o mais de dez vezes a conduzir o Clio, também a depoente o conduziu uma vez, era o carro dele [circa 00:03:30 do depoimento].

Finalmente, a Relação ouviu o registo gravado do depoimento da testemunha L..., dele resultando, em síntese, e na parte relevante:

[A perguntas da Ilustre Mandatária da recorrente]

- Antes do acidente já tinha visto o arguido algumas vezes com ele, [circa 00:07:01 do depoimento].

Pois bem.

Começando pela prova documental especificada pela recorrente, diremos apenas que, tratando-se de declarações prestadas pelo arguido, na fase do inquérito e perante OPC, não podem as mesmas ser relevadas probatoriamente, sob pena de violação do disposto no art. 356º, nº 1 do C. Processo Penal, uma vez que, como a recorrente não pode ignorar, foi indeferido por despacho da Mma. Juíza a quo o requerimento por si formulado na audiência de julgamento, pretendendo que fossem lidas aquelas declarações do arguido [cfr. acta da audiência de julgamento de 6 de Junho de 2016, a fls. 896 a 899 verso].   

Essenciais para aferir a modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto no sentido propugnado pela recorrente são, assim, as declarações do arguido e o depoimento da testemunha H... .

Tendo presente, por um lado, que nem arguido nem testemunha, como manifestamente decorre das declarações respectivas, estão familiarizados com a ‘linguagem jurídica’ e que, por isso, os termos que amiúde usaram devem ser entendidos no sentido que têm na ‘linguagem comum’ [aliás, só com este sentido poderiam relevar para efeitos da fixação da matéria de facto], e por outro que, não obstante a longa amizade que os une, tais declarações revelam a existência em ambos do receio de outras consequências, decorrentes da verificação do acidente [só assim se explica que nenhum tenha conseguido lembrar-se do preço acordado para a transmissão do veículo, como nenhum se conseguiu também lembrar de quanto do preço já o arguido teria pago, antes de ocorrer o acidente], certo é que ambos acabaram por relatar a mesma ‘realidade’ quanto ao negócio que envolveu o (...) SG.

Vejamos.

Arguido e testemunha, ora dizem que o SG era deste, ora dizem que era do primeiro, mas apenas, como se percebe, porque haviam acordado em que a declaração de venda só seria emitida depois de paga a totalidade do preço. Por isso, concordantemente reconhecem que o primeiro havia comprado e o segundo havia vendido o veículo, algumas semanas antes do acidente, que os termos acordados quanto à declaração de venda visavam garantir ao vendedor que o preço seria integralmente pago, como também ambos referem o pagamento do preço a prestações. É por tudo isto que o arguido diz que ‘legalmente’ o carro não era seu pois não estava em seu nome, enquanto a testemunha diz que, se quisesse andar com o carro já não o poderia fazer porque ele era já da responsabilidade do arguido. E é também por isto que a testemunha contrata o seguro com a recorrente em 15 de Abril de 2014 [cfr. fls. 135, sendo certo que, apesar dos esforços desenvolvidos, não detectámos a apólice nº (...) , referida pela recorrente na sua contestação ao pedido de indemnização civil de fls. 511 e seguintes, como doc. nº 1 que se junta e se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais, mas que efectivamente o não foi então, e referida pela recorrente na contestação ao mesmo pedido de fls. 649 e seguintes, aqui identificado como doc. nº 1 que já se encontra junto aos autos e que se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais], quando decide vender o veículo por ter sido fiscalizado a conduzi-lo, não sendo titular de habilitação para tanto, razão pela qual, e fazendo fé nas suas declarações, indicou como condutora habitual do mesmo uma sua amiga, mas ficando o arguido responsável pelo pagamento do prémio respectivo.

Apesar das contradições intrínsecas, que são inegáveis, existentes nas declarações e no depoimento, o que neles, a nosso ver, se surpreende, é o receio, fundado ou não, pouco interessa para o caso, de arguido e testemunha intensificarem o grau de comprometimento e, portanto, de responsabilidade, de cada um nos acontecimentos. Daí as cautelas colocadas na forma como foram relatando o acordo que fizeram, mas sempre, claro está, numa perspectiva de quem é leigo em matéria jurídica.    

Deste modo, sempre com ressalva do devido respeito por diversa opinião, o que consideramos ter ocorrido, face às declarações e depoimento em questão, é que entre o arguido e a testemunha H... foi contratada, verbalmente, em data não concretamente apurada mas, seguramente, várias semanas antes de ter tido lugar o acidente de viação objecto dos autos, a compra e venda do veículo automóvel de matrícula (...) SG, obrigando-se o arguido a pagar o preço acordado [cujo valor nenhuma das partes revelou na audiência de julgamento] de forma fraccionada [que as partes também não revelaram na audiência de julgamento], ficando garantido aquele pagamento, também nos termos acordados, pela assinatura da declaração de venda, pela testemunha H... , apenas depois de ter recebido a totalidade do preço acordado, e ficando ainda o arguido responsável pelo pagamento do prémio do contrato de seguro que a testemunha, a fim de efectuar a venda e garantir o pagamento do preço, havia propositadamente celebrado com a recorrente. E que o arguido, após a celebração do contrato de compra e venda passou a assumir um comportamento, relativamente ao veículo, que é normal no titular do direito de propriedade, resulta, com meridiana clareza, quer das suas declarações, quer do depoimento da testemunha H... , quer ainda do depoimento da testemunha I....

Vale isto dizer que entendemos ter sido ilidida pela especificada prova por declarações a presunção juris tantum decorrente das disposições conjugadas dos arts. 1º, nº 1 e 29º do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro e do art. 7º do C. Registo Predial.

2. Assim, deve proceder a impugnação da matéria de facto deduzida pela recorrente, nela devendo, no entanto, ser reflectida a circunstância de os pontos de facto sindicados conterem, também, matéria conclusiva e de direito.

Deste modo:

O ponto 14 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

- Entre H... e a demandada D... , S.A., foi celebrado um contrato de seguro titulado pela apólice n.º (...) , pelo qual aquele transferiu para esta a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, emergente da circulação do veículo automóvel com a matrícula (...) SG.

É aditado aos factos provados o ponto 14-A, com a seguinte redacção:

- Cerca de três semanas antes da ocorrência do acidente objecto dos autos, o arguido adquiriu a H... o veículo automóvel com a matrícula (...) SG.

É eliminado o ponto A dos factos não provados.

É eliminado o ponto B dos factos não provados por conter apenas uma conclusão de direito.


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Da responsabilidade civil da recorrente e suas consequências

3. Como vimos, a recorrente, por via do contrato de seguro que celebrou com H... , assumiu a responsabilidade civil decorrente dos danos causados a terceiros pelo veículo automóvel de matrícula (...) SG, e por isso foi demandada pelos assistentes e pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, sempre no pressuposto de que, na data do acidente de viação em que o dito veículo foi interveniente e causou a morte da vítima, aquele contrato produzia os seus efeitos normais.

O contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel garante a reparação dos danos causados a terceiro em consequência de acidente de trânsito cuja responsabilidade seja imputável ao respectivo segurado.

Porque se trata de um contrato celebrado intuitu personae, dispõe o art. 4º, nº 1 do Dec. Lei 291/2007, de 21 de Agosto, que aprovou o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel [doravante, RSSORCA], que objecto do seguro é a responsabilidade da pessoa que possa ser responsável pelos danos causados a terceiros por um veículo terrestre a motor e não, o veículo, em si mesmo.

Nesta decorrência, estabelece o art. 21º, nº 1 do mesmo diploma que, o contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do própria dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo. E, complementarmente, determina o art. 22º, também do mesmo diploma, que a seguradora pode opor aos lesados, além do mais, a cessação do contrato de seguro nos termos do nº 1 do art. 21º.

Por seu turno, estabelece o art. 6º, nº 1 do RSSORCA que a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.

Não subsistindo dúvidas quanto às consequências da alienação do veículo segurado relativamente ao contrato de seguro, que se traduzem, como acabamos de ver, na cessação dos efeitos do contrato ou, preferindo-se, na sua caducidade [salvo se usado, pelo tomador, para segurar outro veículo], a questão que de seguida se coloca é a de saber quem era, efectivamente, o proprietário do veículo de matrícula (...) SG, conduzido pelo arguido, no momento do acidente.

Face aos factos provados que resultam da modificação operada pela via recursiva, a resposta é a de que o titular do direito de propriedade sobre o veículo era, como é, o arguido. Com efeito, o acordo que celebrou com a testemunha H... , tendo por objecto o (...) SG configura um contrato de compra e venda, tal como esta figura é definida no art. 874º do C. Civil, sendo um dos seus efeitos essenciais, a transmissão da propriedade da coisa (art. 879º, a) do C. Civil), efeito este que não depende do cumprimento da obrigação de pagar o preço (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II Volume, 4ª Edição Revista e Actualizada, 1997, Coimbra Editora, pág. 168).

Por outro lado, a compra e venda de veículos automóveis não está sujeita a forma especial (cfr. arts. 217º a 219º do C. Civil) e como o respectivo registo tem apenas efeito declarativo e não, constitutivo (cfr. art. 1º, nº 1 do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro), a comummente designada declaração de venda, é apenas o requerimento formulado pelo comprador e confirmado pelo vendedor, em impresso próprio, da aquisição do veículo por contrato verbal de compra e venda, a fim de promover o respectivo registo (cfr. art. 25º, nº 1 do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro).

Deste modo, resta concluir que o proprietário do veículo (...) SG na data do acidente, era o arguido, por o haver adquirido à testemunha H... , ainda titular inscrito no registo automóvel e tomador do contrato de seguro por via do qual foi a recorrente demandada nos autos, cerca de três semanas antes do sinistro.

Logo, nos termos do disposto no art. 21º, nº 1 do RSSORCA o contrato de seguro que havia sido celebrado entre H... e a recorrente encontrava-se caducado na data do acidente, não produzindo, portanto, efeitos, excepção esta que, nos termos do art. 22º do mesmo diploma, é oponível aos assistentes e ao Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, enquanto lesados.

Impõe-se pois a absolvição da recorrente quanto aos pedidos de indemnização contra si deduzidos.

4. Do que fica dito resulta que o arguido, enquanto proprietário do (...) SG, incumpriu a obrigação de segurar, imposta pelo nº 1 do art. 6º do RSSORCA, inexistindo contrato de seguro válido e eficaz que garantisse a sua responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo.

Deste modo, nos termos do disposto no art. 47º do mesmo diploma, a responsabilidade pela reparação de tais danos é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel. E a acção destinada a efectivar tal responsabilidade deve ser proposta contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, in casu, o arguido, sob pena de ilegitimidade (art. 62º, nº 1 do RSSORCA).

O Fundo de Garantia Automóvel e o arguido não foram, inicialmente, demandados pelos assistentes, mas vieram posteriormente a sê-lo, digamos assim, por via do deduzido e deferido incidente de intervenção principal provocada (cfr. art. 320º do C. Processo Civil). Assim, uma vez que, como supra se deixou exposto, a caducidade do contrato de seguro celebrado entre a testemunha H... e a recorrente determina que esta não possa ser condenada, como foi na sentença recorrida, nos pedidos contra si deduzidos, não pode também subsistir a, na sentença decretada, absolvição da instância do Fundo de Garantia Automóvel e do arguido.

Por outro lado, uma vez que os assistentes não recorreram subordinadamente (art. 404º, nº 1 do C. Processo Penal) da absolvição da instância do Fundo de Garantia Automóvel e do arguido, e porque o objecto do recurso de que cuidamos não engloba a responsabilidade civil destes, após remessa dos autos à 1ª instância, aí deverá ser proferida nova sentença, conhecendo desta questão, relativamente ao pedido deduzido pelos assistentes e ao pedido deduzido pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso.

Em consequência, revogam a sentença recorrida:

A) Na parte em que declarou a ilegitimidade do Fundo de Garantia Automóvel e do arguido A... , enquanto demandado civil, e os absolveu da instância civil; e,

B) Na parte em que condenou  a recorrente e demandada D... , SA., no pagamento aos assistentes, da quantia de € 161.318, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre a quantia de € 3.318, desde a data da notificação do pedido, e sobre a quantia de € 158.000, desde a data da decisão, e no pagamento ao Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, da quantia de € 17.576,27, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido.


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            C) Custas do recurso pelos demandantes, relativamente ao pedido respectivo (arts. 523º do C. Processo Penal e 527º, nºs 1 e 2 do C. Processo Civil).

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Coimbra, 26 de Abril de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)