Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3586/09.0TACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: INQUÉRITO
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 02/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 17º, 30º, 262º, 263º,264º, 268º E 269º CPP
Sumário: Na fase de inquérito, é o MP que tem competência para ordenar a separação de processos.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
I.1. No âmbito do inquérito que corre termos nos Serviços do M.P. (DIAP – de Coimbra), investigam-se factos que poderão enquadrar a prática de crime de tráfico de estupefacientes e de branqueamento de capitais, pela arguida MJ... e outros.
I.2. Por despacho do M.P. (cfr consta de fls. 309) foi ordenada a separação deste processo, que originariamente estava integrado no inquérito nº 418/09.3JACBR, dando origem aos presentes autos.
Discordando de tal a arguida reclamou hierarquicamente, tendo tal reclamação sido indeferida, pelos despachos cujas cópias constam de fls. 309/310, 333/334 e 359.
A mesma arguida veio também requerer ao Juiz de Instrução que declarasse inexistente o despacho que ordenou a separação dos processo/inquéritos, pelo M.P., conforme consta da cópia de fls. 354, destes autos.
I.3. Tal pretensão, foi Indeferida, conforme se alcança da cópia do despacho do JIC, de fls. 364 destes autos.

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I.4. Discordando de tal decisão, veio a mesma arguida MJ..., recorrer daquele despacho, formulando na respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. O Mº Pº ordenou a separação do processo, invocando, para o efeito, exclusivamente regras da sua organização interna.

2. Não o podia fazer, pois a norma que sustenta tal separação é de direito adjectivo penal, o artigo 30° do CPP.

3. É da competência exclusiva do juiz a separação de processos, em inquérito e é-o, por força da letra do artigo 30° nº 1 do CPP, onde o Mº Pº surge como requerente; por força da colocação sistemática do mesmo na Secção III do Capítulo II do título I do Livro I do CPP; por força da tradição histórica, em processo penal, do termo tribunal e ainda, e por fim, do elemento teleológico onde sobressai a protecção de direitos fundamentais que, apenas, o juiz pode garantir.

4. Ao ter entendido de outra forma, a decisão recorrida violou os artigos 30° n° 1 e 268° nº 1, alínea f) do CPP.

5. Deve, pois, ser ordenado ao senhor juiz a quo que conheça da questão colocada.

6. Por mera cautela, vem arguir a inconstitucionalidade da interpretação efectuada dos aludidos normativos no sentido de não ser da competência do juiz conhecer da ilegalidade da decisão do Mº Pº de, invocando, exclusivamente, razões da sua organização interna, ordenar a separação de processos num caso de crimes conexos, por violação do n° 1 do artigo 32° da CRP.”
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I.5. Cumprido o artº 411, nº 6 do C.P.P. veio o M.P., (fls. 425/429) apresentar a resposta, na qual conclui que:

1º- A decisão sobre a separação de processos, prevista no art. 30, do C. P. Penal, em fase de inquérito, compete ao Ministério Público e não a juiz de instrução.
2º- Não havendo norma que expressamente considere esse acto como sendo de reserva de juiz;
3º- sendo a norma do art, 30 aplicável ao inquérito, ex vi art. 264, n.º 5, ambos do C. P. Penal;
4º- não poderia deixar de ser o Ministério Público, como dominus dessa fase, a decidir sobre a matéria.
5º- Nestes termos, por não se tratar de acto da competência do juiz, bem andou a Mma. JIC ao não conhecer da matéria.
6º- Acresce nada haver a censurar à decisão de separação de processos, tanto que foi praticada pela autoridade judiciária competente e em circunstancialismo que o justificava.
7º- Pelo exposto, não se verificando qualquer nulidade ou outro vício processual, deverá o presente recurso ser julgado improcedente.
JUSTIÇA ”
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Após, o recurso foi admitido (fls. 430).
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I.6. Nesta Relação, aquando da vista a que se reporta o art. 416.º do CPP, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, acompanhando o Digno Magistrado do M.ºP.º da 1.ª instância, emitiu o parecer de fls. 436/437, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso.

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I.7. Cumprido o artº 417.º, n.º 2 do CPP, ninguém veio dizer o que quer que fosse.
Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
II.1. Do objecto do recurso

Como resulta do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, de acordo com jurisprudência pacífica e com a doutrina, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, (vidé Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98).

Questão a decidir:
Apreciar a questão de se saber se a competência para ordenar a separação de inquéritos é do Ministério Publico ou do Juiz de Instrução Criminal.

Para melhor compreendermos as razões da recorrente e do Ministério Publico vejamos o teor do despacho de não recebimento do requerimento de abertura da instrução.
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Requerimento da arguida, para o JIC (por transcrição):

“Ex.mo Senhor Dr. Juiz.

MJ..., com os sinais dos autos, notificada do douto despacho de folhas 333 e 334, vem.

A) EXPOR O SEGUINTE:

1, Defende, na esteira da melhor Doutrina (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentaria do Código de Processo Penal, 1ª Ed., Pag.104) Jurisprudência (cf.,por todos, ac. RL de 1 de Julho de 1997. in CJ. ano XX, t.4,pag.134) que: tendo o processo já sido presente ao juiz, como ocorrera no caso, é ao juiz e não ao Mº Pº que compete tomar posição sobre a eventual separação de processos, sendo a decisão do Mº Pº, nestas circunstâncias, um acto praticado a non judice, sendo portanto inexistente e, consequentemente insusceptível de provocar efeitos jurídicos,

2.No caso, o Mº Pº não só ordenou a separação sem invocar qualquer situação processual que a permitisse - invocou, antes, a organização interna do Mº Pº - como vai sustentando o facto consumado, mesmo que este seja violador da lei.

B) REQUERER, com a fundamentação aduzida, se digne declarar inexistente o despacho que ordenou a separação que deu origem a este processo, com às consequências legais.
o Advogado”
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Despacho de rejeição, do JIC, de fls. 364 (por transcrição):

“Fls 352: Os actos e práticas pelo juiz de instrução durante o inquérito encontram-se discriminados nos arts 268º e 269º, ambos do C.P.P.
Neles não cabe a situação colocada pela arguida.
Esta poderia reclamar hierarquicamente, o que não fez.
Assim sendo, por extravasar o âmbito das referidas normas legais, nada a ordenar.”

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II. Da competência para ordenar a separação de inquéritos.


Face a tal, há agora que apurar se, caso concreto, assiste alguma razão à recorrente.
Vejamos.
No presente recurso está em apreciação a seguinte questão:

No processo de inquérito criminal em que estava em averiguação a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, foi proferido, pelo Ministério Publico, em 16/11/2009, um despacho que ordenou a separação de processos, a fim de averiguar, o que sucede nestes autos, um eventual crime de branqueamento de capitais.
Discordando dessa decisão reclamou hierarquicamente a arguida MJ... e depois requereu ao JIC que declarasse nulo tal despacho.
Tendo sido indeferida tal pretensão é desse despacho que a mesma arguida agora veio recorrer.
A questão a apurar é o saber se, em sede de inquérito, a competência para ordenar a separação de processos é do Ministério Publico ou do Juiz de Instrução.
Vejamos então.
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação – artigo 262.º/1 CPP – sendo que o Ministério Público pratica os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das referidas finalidades – artigo 267.º Código de Processo Penal.
Além disso, o inquérito é da competência do Ministério Público (artº 263º do CPP), a quem cabe exclusivamente a sua direcção, praticando como tal os actos e assegurando os meios de prova necessários “que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” (artº 262º nº 1 do Cod. Proc. Penal).
Com efeito na legislação processual penal encontram-se enumerados actos a praticar no decurso do inquérito e que têm que ser levados a cabo pelo juiz de instrução, ou por este autorizados, como se afere dos artºs 268º e 269º do CPP
Por outro lado ao juiz de instrução e de acordo com o que dispõe o art. 17º do C. de Processo Penal, compete exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, nos termos previstos nesse Código.
Tais funções conforme se afere do n.º 2 do art.º 205° da CRP., compete aos tribunais, designadamente, assegurando a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
Já ao MºPº, sendo embora um órgão de administração da justiça (v. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 368), não estão deferidas funções definidoras de direitos.
Contudo, a separação de inquéritos, (artº 30º do CPP), por si só, não comporta uma agravante processual ou uma violação dos direitos e interesses legalmente protegidos, pelo que nada impedirá que o MºPº tenha competência para o fazer.
Em resumo diremos que em inquérito competirá exclusivamente ao MºPº a prática de actos de investigação competindo e ao juiz de instrução as funções jurisdicionais, nomeadamente a prática de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais.
Aliás tal conclusão encontra suporte, no artº 264º do C.P.P. (referente à competência do MºPº) ao referir no seu nº 5 que é correspondentemente aplicável o disposto nos artºs 24º a 30º, preceitos estes relativos à conexão e separação de processos.
Tudo vale por dizer que a intervenção do juiz de instrução no inquérito, sobremodo norteada por preocupações garantísticas, se confina a casos bem contados, expressamente previstos na lei, incumbindo ao M° P° - entidade que tem, como se disse acima, a direcção do inquérito - directamente ou por intermédio dos órgãos de polícia criminal em que delegue (cfr. art. 270° do C.P.Penal), praticar no inquérito todos os demais actos que, por lei, assim lhe não tenham sido subtraídos. Ou seja, no inquérito, a competência do Ministério Público é a regra, sendo a excepção, exigindo expressa previsão na lei, a intervenção do juiz de instrução. Até porque, se a lei confia ao Mº Pº a direcção da investigação, permitindo-lhe dispor quais os actos que entenda necessários à realização da finalidade do inquérito, não se compreenderia que depois submetesse a actividade desenvolvida a fiscalização judicial.
Por isso o JIC, não tem competência para se pronunciar sobre a legalidade ou ilegalidade de diligências no inquérito, fora das situações previstas nos arts. 268 e 269 do CPP (ou expressas em outros preceitos). Até porque, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, autoridade judiciária tanto é o juiz, como o juiz de instrução, como o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência. (Neste sentido, vejam-se Ac. da Rel. Porto de 13-11-1996, in BMJ 461, 524; Ac. do TRP, de 2/12/2010, Processo: 4095/07.8TDPRT.P1, Relator: PAULA GUERREIRO; Ac. do TRL de 19/102010, Processo: 121/08.1TELSB-A.L1-5,Relator: CARLOS ESPÍRITO SANTO e Ac. do TRC de 25/11/2009, Processo: 131/04.8PBVNO.C2, Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS, estes in www.dgsi.pt).
Nem se diga, como pretende defender a recorrente que a prática dos actos de inquérito pelo M. Público ofende a Constituição, pois tal não sucede. Pelo contrário, tal consubstanciará uma consequência da estrutura acusatória do processo penal português (Neste sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, anotação ao art. 263).
É certo que estabelecem os nºs 1 e 5 do art. 32º, da C. R. Port., que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso; e que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
O princípio do contraditório traduz-se na estruturação da audiência de julgamento e dos actos instrutórios que a lei determinar em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa. Acusação e defesa são chamadas a deduzir as suas razões de facto e de direito, a oferecer provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear sobre o valor e resultado probatórios de umas e outras (Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, pg. 360). Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1, 4ª ed. pg. 523, “quanto à sua extensão processual, o princípio do contraditório abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição processual, e em especial, a audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar, devendo eles ser seleccionados sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa do arguido”.
Assim, o direito de o arguido ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, consagrado no art° 61°, n° 1, alínea b) do C.P.Penal, é a expressão, ao nível do direito ordinário, do princípio de audiência. Este direito não é, todavia, conferido, em todas as fases do processo e para todos os actos processuais, com a mesma latitude, pois que é a própria lei (corpo do n° 1 do predito art° 61°) que ressalva as excepções legais.
Relativamente à separação de processos é a própria lei processual penal que confere ao MP o poder de a determinar (art. 264º, 5, C. P. Pen.) desde que, como entendemos não tenha havido ainda intervenção judicial no inquérito (mesmo afora das situações supra descritas), posto que se fixou já uma regra de competência que não pode ser alterada, sem prejuízo da observância do princípio do juiz natural (ínsito na regra expressa no art. 31º, C. P. Pen.) – cfr. Maia Gonçalves, CPP, pg. 128.
Não se mostra, por isso violado qualquer preceito constitucional.
Por outro lado, não enxergamos como é que minimamente possam ser beliscados os direitos fundamentais do recorrente e as suas garantias de defesa, designadamente, os decorrentes do seu estatuto processual, que não sofreu qualquer distensão formal ou substancial com a separação de processos em análise, por a tal se opor, desde logo, a sua qualidade de arguido, constitucional e legalmente definida na lei processual, de forma estanque. Consequentemente não se verifica qualquer diminuição das garantias de defesa do recorrente, com a separação de processos em causa, sendo que estas e o estatuto de arguido não divergem e não admitem graduações, qualquer que seja o processo em causa ou a factualidade em análise.
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Face a todo o exposto, concluímos que improcederá o recurso da arguida, mantendo-se o despacho recorrido, bem como se declara que não se vislumbra a prática de qualquer violação à Constituição da Republica Português, com a interpretação efectuada, pelo tribunal “a quo”

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III. Decisão:
Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça de 3 UCs.

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Calvário Antunes (Relator)


.Mouraz Lopes