Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
246/13.1TBCNF-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: INTERVENÇÃO ESPONTÂNEA
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
PRESSUPOSTOS
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DIREITO DE PROPRIEDADE
BALDIOS
Data do Acordão: 04/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU/INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 311º DO CPC
Sumário: I – No âmbito de uma acção de reivindicação interposta contra pessoa que alega ocupar o imóvel reivindicado ao abrigo de um contrato de arrendamento que celebrou com outrem, é de admitir a intervenção principal espontânea da pessoa que, alegando ser o titular do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, cedeu ao Réu o respectivo gozo através de contrato de arrendamento.

II – Em tal situação, a pretensão formulada (reivindicação da coisa) põe em causa, simultaneamente, o direito de quem se arroga a titularidade de um direito incompatível com essa pretensão e o direito de quem, em nome deste e ao abrigo de um contrato de arrendamento, exerce a posse sobre a sobre a coisa reivindicada; daí que os titulares destes direitos tenham, em relação ao objecto da causa, um interesse igual ou paralelo, tendo em vista a defesa do direito que, alegadamente, pertence ao primeiro e do qual também depende o direito ao gozo ou detenção da coisa pelo segundo, configurando-se uma situação de litisconsórcio voluntário que justifica a intervenção principal espontânea de um deles quando a acção apenas foi proposta contra o outro.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito de uma acção intentada pelos Compartes dos Baldios de A... contra B..., S.A., onde se pedia o reconhecimento de que uma determinada parcela de terreno – ocupada pela Ré – constitui baldio dos moradores de A... e onde a Ré se defendia com a alegação de que a ocupação do terreno em causa era feita ao abrigo de um contrato de arrendamento e um contrato de cessão de exploração que havia celebrado com o Conselho Directivo dos Baldios da Freguesia de C...que, em caso de procedência da acção, teria que indemnizar a Ré pelos danos sofridos em consequência dessa decisão, veio o Conselho Directivo dos Baldios da Freguesia de C... deduzir incidente de intervenção principal espontânea, requerendo a sua intervenção como associado da Ré.

Alega, para o efeito e em suma, que a Ré alegou nos autos possuir a parcela reivindicada em nome da Requerente; que é ela (Requerente) a verdadeira titular dessa parcela e que, como tal, a justa composição do litígio justifica a sua intervenção a título principal.

Tal incidente veio a ser indeferido liminarmente por despacho proferido em 09/07/2014, em virtude de não ter sido invocada nenhuma das situações previstas nos arts. 32º, 33º e 34º do CPC.

Discordando dessa decisão, o Conselho Directivo dos Baldios da Freguesia de C...veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

a) Nos presentes autos, alegou a Ré que a coisa contra si reivindicada pelo A. era por ela R. possuída não em nome próprio, mas em nome alheio, ou seja, em nome do ora Apelante.

b) Tal, de per si e sem mais, justificaria a oportunidade da intervenção deste, e a título principal, de forma provocada ou espontânea.

c) Acresce que a mesma intervenção, a título principal, é de crucial importância para que se obtenha ajusta composição do litígio.

d) Por isso e em tempo, o Conselho Directivo dos Baldios da freguesia de C..., aqui Apelante, arrogando-se a sua qualidade de verdadeiro titular do terreno em causa, suscitou espontaneamente a sua intervenção, a título principal, em tempo para poder deduzir articulado próprio de contestação, e porque foram postos em causa pelo A., de forma muito gravosa e lesiva, os legítimos direitos e interesses daquele, de forma hábil e capciosa, procurando evitar o confronto directo com os verdadeiros titulares da coisa em litígio.

e) O Apelante requereu a sua intervenção principal enquanto legítimo proprietário do bem reivindicado, ou seja na qualidade de verdadeiro titular da relação material controvertida.

f) Apresentado o respectivo requerimento, acompanhado por articulado próprio de contestação, proferiu a Meritíssima Senhora Juiz do Tribunal a quo despacho de indeferimento liminar, que constitui a decisão recorrida.

g) O Tribunal fundamentou a decisão de indeferimento na alegada circunstância de o Apelado não invocar qualquer das situações previstas nos arts. 32.º, 33.º e 34.º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do art. 311.º do mesmo diploma legal.

h) Não assiste razão à Meritíssima Senhora Juiz do Tribunal a quo.

i) A presença do Apelante na causa, como litisconsorte, permitirá esclarecer devidamente, e de forma definitiva, a situação controvertida.

j) No ensinamento de José Alberto dos Reis, "Propôs-se uma acção cujo objectivo é fazer reconhecer o direito a certa cousa ( ... ) o destinatário natural da acção como réu, a pessoa verdadeiramente interessada em contradizer a pretensão do autor é aquele que a possui em nome próprio, aquele que se inculca titular do direito real sobre ela ( ... )" (cfr. Código de Processo Civil anotado, Vol. I,3.ª ed, Coimbra 1982, p.423).

l) A oportunidade e a pertinência da intervenção do litisconsorte foi suficientemente alegada, mormente nos artigos 5.º e 10.º da peça processual do Apelante.

m) De forma inequívoca, o então Requerente e aqui Apelante reconduziu a situação aos pressupostos jurídicos do artigo 32º°, afastando, sem réstia de dúvida, a aplicabilidade do artigo 33.º (litisconsórcio necessário) e do artigo 34.º (referente a acções proposta contra ou por ambos os cônjuges).

n) À luz do antigo Código de Processo Civil, mas ainda pertinente no contexto do actual 311.º do CPC, Lopes do Rego pronunciou-se sobre a adequação da figura da intervenção principal numa hipótese semelhante: "nos casos em que a acção de reivindicação põe em causa simultaneamente um direito próprio do demandado e o direito da pessoa em nome de quem o demandado possui, o incidente adequado para o trazer ao processo será a intervenção principal ( ... )".

o) Não é nem suficiente nem razoável a fundamentação alegada pelo Tribunal, a final, para justificar a improcedência do requerimento de intervenção.

p) A exposição factual do Requerente é clara e bastante para permitir o exercício de uma prerrogativa do juiz - a qualificação jurídica do interveniente como litisconsorte voluntário (cfr. n.º 3 do artigo 5.º do C.P.C.) e a consequente procedência da sua pretensão.

q) Decidindo diversamente a Meritíssima Senhora Juiz do Tribunal a quo interpretou menos correctamente e violou, portanto, o disposto, entre outros preceitos, no n.º 3 do artigo 5.º, no art.º 32.º e no art.º 311.º, todos do Código de Processo Civil.

Assim, conclui, deve ser revogado o despacho recorrido, proferindo-se decisão que admita a sua intervenção, a título principal, para se associar à Ré e que admita o articulado de contestação por si apresentado, bem como a continuação dos autos para os seus ulteriores termos com permanência da Apelante na lide.

O Autor apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1ª – O Recorrente, ao deduzir o seu articulado de Intervenção Principal Espontânea e apresentar a sua Contestação, sustenta esta peça processual no disposto nos artigos 311º e 314º do C. P. Civil.

2ª – Após o desenvolvimento do seu articulado de Intervenção/ Contestação o Recorrente CONSELHO DIRECTIVO DOS BALDIOS DA FREGUESIA DE C..., conclui nos seguintes termos (A) Deverá admitir-se a Intervenção agora requerida pelo CONSELHO DIRECTIVO DOS BALDIOS DA FREGUESIA DE C..., para se associar à Ré; (B) Deverá admitir-se o presente articulado próprio de Contestação; (C) Deverá, a final, a presente Acção ser julgada improcedente, por não provada, e deverá a Ré ( B...) ser absolvida do pedido.

3ª – Deduzindo Intervenção Principal Espontânea, por alegadamente ter interesse igual ao da Ré na causa, facto é que o Recorrente/ Requerente da intervenção nada pede ou requer a final em defesa do seu alegado interesse, ou direito, no desfecho da causa ... Nada pede de concreto que permita a salvaguarda do seu pretenso direito.

4ª – Ao referir que a Ré alegou que a coisa contra si reivindicada pelo Autor era por ela Ré possuída não em nome do próprio, mas em nome alheio, ou seja, em nome da ora Apelante, o que, de per si e sem mais, justificava a oportunidade da Intervenção deste (Recorrente) a título principal, a Apelante falseia deliberadamente a verdade dos factos pois não decorre de nenhuma parte do articulado da Ré B..., S.A. que esta tenha produzido uma tal afirmação.

5ª – Negando a existência do Baldio de A..., a Recorrente, através daquela falsa alegação imputada à Ré, pretende invocar um direito próprio, nomeadamente que a Ré possui o Baldio questionado em nome dela Recorrente.

6ª – A referência feita pela Ré B..., no seu articulado, à Apelante, vai em sentido diverso, que é o da existência de um eventual direito de regresso contra aquela (Apelante), para a hipótese de vir a ser dado provimento ao pedido do Autor, sendo até esse o motivo que justificou o pedido feito pela Ré de Intervenção Provocada da Apelante ... Pedido esse que foi indeferido por despacho de 08101/2014, sem reparo das partes.

7ª – Do articulado (Intervenção Espontânea e Contestação) da Apelante não decorre qualquer pedido no sentido de que não seja reconhecido ao Autor direito sobre o Baldio de A..., nem o pedido inverso de que seja reconhecido à Apelante algum direito sobre o mesmo Baldio em discussão nos Autos.

8ª – Condição essencial para que a intervenção espontânea seja aqui admissível é, nos termos do artº. 311º do C. P. C., que o interveniente tenha, em relação ao objecto da acção, um interesse igual à parte a que se associa, por forma a que fosse admissível a sua intervenção como litisconsorte necessário ou mesmo como litisconsorte voluntário dela.

9ª – A Recorrente, e Requerente da Intervenção, não invoca, em beneficio dessa sua intervenção, um qualquer interesse seu igual ao da B..., S.A., com quem se pretende associar, mas, antes pelo contrário, o facto de ser titular (como se arroga e alega) de um direito de propriedade e posse incompatíveis com os direitos que os COMPARTES DE A... invocam.

10ª – O Apelante não actuou no seu próprio interesse, uma vez que não veio a juízo fazer valer um direito seu.

11ª – De qualquer modo a dedução da Intervenção Principal Espontânea por parte do Apelante nunca seria o meio processual próprio para este intervir nos Autos e fazer valer a defesa dos seus alegados interesses ou direitos, não se enquadrando em nenhuma das situações previstas nos artºs. 32º, 33º e 34º do C. P. Civil.

12ª – Ao decidir nos termos em que o fez o Tribunal "A Quo" não violou quaisquer dispositivos legais enunciados pelo Recorrente.

Conclui pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão ou não reunidos os pressupostos necessários para que seja admitida a sua intervenção principal.


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III.

Apreciemos, então, a questão suscitada.

Dispõe o art. 311º do CPC que “estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32º, 33º e 34º”.

Utilizando as palavras de Eurico Lopes Cardoso e Álvaro Lopes Cardoso[1], a intervenção principal caracteriza-se pela igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte a que se associa, permitindo-se que um terceiro se associe “…a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio …”.

O que releva, portanto, para efeitos de admissibilidade da intervenção principal espontânea é a questão de saber se o terceiro tem ou não, em relação ao objecto da causa que se encontra pendente, um interesse igual ou paralelo ao de uma das partes primitivas, por ocorrer uma situação de litisconsórcio necessário ou voluntário, nos termos dos arts. 32º, 33º e 34º.

Entendeu a decisão recorrida que a Apelante não havia invocado qualquer das situações previstas nos citados arts. 32º, 33º e 34º e que, como tal, não poderia ser admitida a sua intervenção principal.

Mas, salvo o devido respeito, não concordamos com tal decisão.

A Apelante não aludiu – é certo – a nenhum dos aludidos preceitos legais, mas isso não significa que os concretos fundamentos que invocou não possam e não devam ser enquadrados no âmbito de previsão dessas normas (ainda que estas não tenham sido expressamente invocadas).

A presente acção havia sido intentada contra a B..., S.A. pretendendo-se ver reconhecido que uma determinada parcela de terreno – ocupada pela Ré – constitui baldio dos moradores de A... e que a Ré fosse condenada a restituir ao Autor tal parcela de terreno que estava a ocupar de forma ilegítima e abusiva. A Ré defendeu-se, alegando – em suma e entre outras coisas que agora não relevam – que pelo menos uma parte da parcela por si ocupada pertence aos baldios da Freguesia de C...e que tal ocupação é feita ao abrigo de um contrato de arrendamento e um contrato de cessão de exploração que celebrou com o Conselho Directivo dos Baldios de C....

O ora Apelante veio requerer a sua intervenção principal com o objectivo de defender o direito que, alegadamente, lhe pertence e que incide sobre a parcela de terreno que é reivindicada pelos Autores, sustentando que tal terreno não faz parte dos baldios de A... mas sim dos baldios de C....  

Ora, em face desta situação, parece impor-se a conclusão de que a Apelante tem, em relação ao objecto da causa, um interesse igual ou paralelo ao do Réu, porquanto, de acordo com os factos que alegam, será ela a titular do direito que se opõe ao direito reclamado pelo Autor e, ao abrigo do qual, a ocupação da Ré poderá encontrar legitimação, já que, tal ocupação radica em contratos que alegadamente foram celebrados entre a Ré e o Apelante e que pressupõem a efectiva existência do direito que o Apelante pretende defender através da sua intervenção na presente acção.

É certo, portanto, que a Ré e o Apelante têm interesses iguais ou paralelos relativamente ao objecto da causa, já que ambos têm interesse na defesa do direito que alegadamente pertence ao Apelante: o Apelante porque reclama ser o titular do direito que é reclamado ou reivindicado pelo Autor e a Ré porque o direito de ocupar a parcela em causa radica nesse direito e nos contratos que, com base nele, celebrou com o Apelante.

Refira-se que, em tempos (antes do Dec. Lei 329-A/95 de 12/12), o CPC previa, no seu artigo 320º, que aquele que fosse demandado como possuidor de uma coisa em nome próprio e a possuísse em nome alheio deveria nomear à acção a pessoa em nome de quem possuísse.

A situação dos autos integrar-se-ia no âmbito de previsão dessa norma, uma vez que, ao alegar que a ocupação e o uso da parcela em questão, assentava em contratos – designadamente um contrato de arrendamento – que havia celebrado com o ora Apelante, a Ré estava a invocar claramente que a posse/detenção que exercia sobre a coisa reivindicada era exercida em nome do ora Apelante, na medida em que era exercida ao abrigo de um contrato de arrendamento com este celebrado[2]. E, nessa medida, deveria, em face desse regime legal, nomear à acção a pessoa em nome de quem possuía: o ora Apelante.

Este incidente – que, como decorria do seu regime legal, tinha como objectivo a substituição do réu pelo chamado, sendo aquele julgado parte ilegítima – era objecto de alguma controvérsia por não se adequar a determinadas situações e, designadamente, a situações com a dos autos. Com efeito, Lopes do Rego[3], manifestando reservas relativamente à admissibilidade desse incidente no âmbito de uma acção de reivindicação, dizia, a propósito de uma situação idêntica àquela que nos ocupa, que tal incidente não se adequava à situação em que a acção de reivindicação era intentada contra o locatário (titular de uma posse em nome alheio), porquanto não se compreenderia que o locatário estivesse legitimado a defender a detenção correspondente ao seu direito pessoal de gozo através de recurso às acções possessórias e carecesse de legitimidade para contradizer uma pretensão que punha em causa tanto o direito do proprietário-locador como o seu próprio direito, enquanto locatário e sustentava que, nestes casos – em que a acção de reivindicação põe em causa simultaneamente um direito próprio do demandado e o direito da pessoa em nome de quem o demandado possui –, o incidente de intervenção adequado para trazer o outro interessado seria a intervenção principal.

Reconhecendo as objecções colocadas, o legislador, através do citado Dec. Lei 329-A/95, veio a eliminar aquele incidente com a seguinte justificação constante do respectivo preâmbulo:

Afigura-se inteiramente justificada a eliminação, pura e simples, da nomeação à acção, sendo certo que tal incidente perdeu já, mesmo no domínio do direito vigente, sentido e utilidade, por ter desaparecido o pressuposto base essencial em que assentava: na verdade, nem o mero «detentor» da coisa reivindicada - perante o estatuído no artigo 1311.º do Código Civil - nem aquele que actuou «por ordem ou em nome de terceiro» na prática de um facto danoso podem ser considerados partes ilegítimas nas acções de reivindicação e de efectivação da responsabilidade civil, pelo que não existirá nenhuma ilegitimidade passiva a ser suprida precisamente através da nomeação à acção, e resultando, consequentemente, inaplicável a previsão contida no n.º 3 do artigo 322.º do Código de Processo Civil - absolvição da instância, por ilegitimidade do demandado, quando, não aceitando o autor a nomeação, o juiz se convencer de que ele possui ou actuou em nome alheio.

Considera-se que, em ambos os casos, as hipóteses suscitadas encontrarão tratamento perfeitamente adequado nos quadros da intervenção principal, já que possuidor e detentor, comitente e comissário, se configuram como titulares de situações jurídicas paralelas, qualquer deles podendo ser demandado pelo reivindicante ou pelo lesado logo desde o início da causa ou em consequência de subsequente intervenção litisconsorcial na lide”.

Reconheceu, portanto, o legislador que, em tais situações, quer o detentor da coisa reivindicada (possuidor em nome alheio) quer o titular do direito/possuidor em nome próprio, têm legitimidade para ser demandados, sendo, por isso, titulares de interesses iguais ou paralelos que, podendo justificar uma situação de litisconsórcio inicial, também poderão justificar a intervenção principal de um deles quando a acção apenas foi interposta contra o outro.

É indiscutível, com efeito, que, quer a Ré, quer o ora Apelante, têm interesse directo em contradizer, o que, nos termos do art. 30º do CPC, lhes confere legitimidade. O Apelante, alegando ser titular de um direito incompatível com aquele que se pretende ver reconhecido na acção (porquanto alega ser ele o titular do direito a cuja titularidade o Autor também se arroga), tem evidente interesse em contradizer, no sentido de defender o seu direito e evitar a perturbação da posse que, em seu nome, é exercida pela Ré. A Ré, alegando ser locatária da parcela reivindicada – situação que corresponde ao exercício de uma posse em nome de quem lhe cedeu o gozo do locado (no caso, o Apelante) – tem também interesse directo em contradizer, defendendo a sua detenção e defendendo o direito daquele em nome de quem possui e do qual depende a legitimidade do gozo ou detenção que exerce sobre a coisa locada. Refira-se que a lei confere expressamente ao locatário (art. 1037º, nº 2, do CC) o direito e a legitimidade para usar dos meios facultados ao possuidor caso seja privado da coisa ou seja perturbado no exercício dos seus direitos e, como tal, não poderá deixar de lhe ser reconhecida, por maioria de razão, legitimidade para se defender no âmbito de uma acção de reivindicação cuja procedência irá implicar a privação da coisa locada.

Estamos, portanto, perante uma situação em que, de acordo com os factos alegados, a relação material controvertida respeita à Ré e ao Apelante, configurando-se, portanto, uma situação de litisconsórcio voluntário (art. 32º do CPC) que justifica a dedução do incidente de intervenção principal.

Tendo em conta a matéria de facto alegada, o Apelante (interveniente) é titular de uma relação jurídica (ou direito) própria (que pretende fazer valer através da sua intervenção na acção) substancialmente conexa com a relação material controvertida que se configurava entre as partes primitivas, sendo que a pretensão formulada nos autos, além de pôr em causa o direito próprio da Ré (enquanto locatária e possuidora em nome do Apelante), põe em causa, simultaneamente, o direito próprio do Apelante (enquanto titular do direito a que o Autor também se arroga e enquanto titular da posse que, em seu nome, é exercida pela Ré).

É indiscutível, portanto, que, em relação ao objecto da causa (reivindicação de uma determinada parcela de terreno) a Ré e o ora Apelante têm interesses iguais ou paralelos, porquanto, sendo (alegadamente) titulares de direitos próprios (no caso do Apelante, a posse e/ou direito de propriedade sobre a parcela reivindicada e, no caso da Ré, o direito ao gozo da aludida parcela emergente de um contrato que celebrou com o Apelante e a posse que, por via desse contrato, exerce em nome deste), ambos têm interesse directo em contradizer a pretensão formulada pelo Autor, defendendo o direito que, alegadamente, pertence ao Apelante e do qual também depende o direito ao gozo ou detenção da parcela por parte da Ré.

E não se diga – como parece dizer o Apelado – que o Apelante não pretende, por via da intervenção que requereu, fazer valer um direito seu em virtude de nada ter pedido no sentido de salvaguardar esse direito (já que, na contestação que apresentou, não pede que não seja reconhecido ao Autor o direito sobre o Baldio de A... e também não pede que lhe seja reconhecido algum direito sobre esse direito).

De facto, para fazer valer o direito próprio de que invoca ser titular, o Apelante não tinha que formular qualquer pedido (em reconvenção) e não tinha que pedir o expresso reconhecimento do direito que vem invocar, já que, como é evidente, o Apelante não deixa de fazer valer e de defender o seu direito quando, contestando a existência do direito invocado e alegando ser titular de um direito que com aquele é incompatível, pede, com esses fundamentos, a improcedência da acção e a absolvição da Ré do pedido.

Importa, portanto, revogar a decisão recorrida e admitir a intervenção principal do Apelante.    


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – No âmbito de uma acção de reivindicação interposta contra pessoa que alega ocupar o imóvel reivindicado ao abrigo de um contrato de arrendamento que celebrou com outrem, é de admitir a intervenção principal espontânea da pessoa que, alegando ser o titular do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, cedeu ao Réu o respectivo gozo através de contrato de arrendamento.

II – Em tal situação, a pretensão formulada (reivindicação da coisa) põe em causa, simultaneamente, o direito de quem se arroga a titularidade de um direito incompatível com essa pretensão e o direito de quem, em nome deste e ao abrigo de um contrato de arrendamento, exerce a posse sobre a sobre a coisa reivindicada; daí que os titulares destes direitos tenham, em relação ao objecto da causa, um interesse igual ou paralelo, tendo em vista a defesa do direito que, alegadamente, pertence ao primeiro e do qual também depende o direito ao gozo ou detenção da coisa pelo segundo, configurando-se uma situação de litisconsórcio voluntário que justifica a intervenção principal espontânea de um deles quando a acção apenas foi proposta contra o outro. 


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IV.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, revogando-se a decisão recorrida, admite-se a intervenção principal do ora Apelante, Conselho Directivo dos Baldios da Freguesia de C..., como associado da Ré.
Custas a cargo do Apelado.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 3ª ed., pág. 101.
[2] Refira-se que, ao contrário do que parece sustentar o Apelado, é totalmente irrelevante o facto de a Ré ter afirmado ou não, no seu articulado, que possuía a parcela em nome do Apelante, porquanto, ainda que não o dissesse expressamente, a tal se reconduz a factualidade que alegou.
[3] Revista do Ministério Público, Ano 4, Vol. 13, fls. 114 a 120.