Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1220/12.0TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DOS JUÍZES
PROVA DOCUMENTAL
INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 653º, 654º E 659º, Nº 3 DO CPC; 20º DO CIRE.
Sumário: I – O princípio da plenitude da assistência dos juízes, postulado no art.654º CPC, só tem aplicação para a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art.653º CPC, e já não quanto à prolação da sentença, pelo que não tem de ser o juiz do julgamento de facto a elaborá-la.

II - O art.659º, nº 3 do CPC manda atender na sentença aos factos “provados por documentos“, devendo interpretar-se como reportando-se somente àqueles que fazem prova plena.

III - Tratando-se de documento particular, os factos compreendidos na declaração consideram-se plenamente provados na medida em que sejam desfavoráveis ao declarante, produzindo os seus efeitos jurídicos somente quanto ao real destinatário.

IV - A razão de ser da atribuição de força probatória plena às declarações desfavoráveis ao declarante que constem de documento particular assenta no facto de poder ser concebida como confissão extrajudicial.

V - A confissão extrajudicial escrita (enquanto declaração receptícia) apenas assume força probatória plena quando dirigida à parte contrária, pois em relação a terceiros é livremente apreciada pelo tribunal.

VI - A legitimidade do credor para requerer a insolvência do seu devedor (art.20º CIRE) não depende do prévio reconhecimento judicial do seu crédito.

VII - Sendo o crédito de natureza laboral, a legitimidade para requerer a insolvência, bem assim o interesse em agir, não fica dependente da emissão de pronúncia pelo tribunal do trabalho.

VIII - O conceito básico de insolvência traduz-se na impossibilidade de cumprimento pelo devedor das suas obrigações vencidas (art.3º, nº1 do CIRE), significando impossibilidade patrimonial, incapacidade económico-financeira do devedor para cumprir.

IX - Compete ao requerente da insolvência a alegação e prova ( art.23º, nº 1 do CIRE e art.342º, nº 1 do CC) dos factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência, ou seja, de um dos factos-índices do art.20º do CIRE. Ao requerido caberá a prova da inexistência dos factos-índices ou, uma vez verificados, o ónus da prova da sua solvência.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1.- A requerente – M… – instaurou na Comarca de Pombal acção com forma de processo especial, contra a requerida – A…, Lda., com sede na Rua ...

Alegando, em resumo, ter um crédito de € 38.201,61, de natureza laboral, e que a requerida se encontra em situação de insolvência, pediu a declaração de insolvência.

Contestou a requerida.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerida.

1.3.- Inconformada, a requerida recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

Contra-alegou a requerente, preconizando a improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – Objecto do recurso

         As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

         (1ª) Violação do princípio da plenitude e a nulidade da sentença;

(2ª) O crédito da requerente e a falta de interesse em agir;

         (3ª) Impugnação de facto (factos 46º e 47º);

(4ª) A situação de insolvência;

(5ª) A quantificação do crédito da requerente.

2.2. – Os factos provados (descritos na sentença)

2.3. - 1ª QUESTÃO

A sentença recorrida, com base nos documentos juntos, considerou provados os factos 46 e 47, ao abrigo do art.659 nº3 do CPC.

A Apelante alega que não tendo a Mmo Juiz, que elaborou a sentença, participado na audiência de discussão e julgamento, não podia conhecer desses factos, por violação do princípio da assistência dos juízes, sendo nula a decisão.

O exame crítico das provas ocorre em dois momentos: julgamento da matéria de facto e decisão final. No primeiro momento, o exame está submetido à regra do art.653 nº2 do CPC, enquanto no segundo destina-se a decidir da sua legalidade, nos termos do art.646 nº4 (art.659 nº3 do CPC).

As provas a que se reporta o art.659 nº3 do CPC são as que cumpre conhecer no momento da sentença, ou seja, as provas por presunção, as legais ainda não utilizadas, não abrangendo as provas de livre apreciação, cujo exame crítico (em conjunto) já foi feito aquando da fundamentação da matéria de facto (art. 655 nº1 do CPC).

Por isso, se as provas produzidas foram todas provas de livre apreciação, não há provas cujo exame crítico deva ser feito na sentença, visto que o juiz não pode reapreciar na sentença as provas de livre apreciação, cujo exame crítico foi já feito no momento do julgamento da matéria de facto.

Como é sabido, o princípio da plenitude da assistência dos juízes, postulado no art.654 CPC, só tem aplicação para a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art.653 CPC, porque tem subjacente os princípios da imediação, da oralidade e concentração, logo é o tribunal perante o qual foi feita a discussão da causa quem tem de proferir a decisão de facto (cf., por ex., Ac RC de 9/11/2011, em www dgsi.pt).

A sentença constitui uma fase distinta do julgamento da matéria de facto, inexistindo fundamento legal para que seja o juiz do julgamento de facto a elaborar a respectiva sentença.

Por outro lado, a violação do art.659 nº3 do CPC não configura nulidade da sentença, mas antes erro de julgamento que a verificar-se conduzirá à alteração ou ampliação da matéria de facto (cf., por ex., Ac do STJ de 13/3/05, em www dgsi.pt).

2.4. - 2ª QUESTÃO

A Apelante, dada a natureza laboral do crédito da requerente, excepcionou, na oposição, a incompetência material do tribunal, dizendo que só o tribunal de trabalho é o competente para conhecer dele, bem como a excepção dilatória inominada da falta de interesse em agir da requerente, mas no saneador decidiu-se, com trânsito em julgado, julgar improcedente a excepção de incompetência material, afirmando-se, quanto ao mais a validade e regularidade da instância

No entanto, invocou, em sede de recurso, a falta de interesse em agir da requerente, pelo que não podia pedir a declaração de insolvência com base nos créditos laborais.

O interesse processual ou interesse em agir, tem sido concebido como pressuposto processual referente às partes e porque não previsto expressamente, é havido como pressuposto processual inominado, cuja falta gera a absolvição da instância (art.288 nº1 e) CPC).

         Pelo lado do autor, o interesse processual consiste na “necessidade de tutela judiciária”, ou seja, “ na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”, sem que se trate de uma “necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada”, exigindo-se, por conseguinte “uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção” (cf. ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 1984, pág.170 e segs., MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pág.79 e segs.).

         O fundamento para conceber o interesse em agir em pressuposto processual contende com o objectivo de evitar acções inúteis, pois se a lei proíbe a prática de actos inúteis (art.137 CPC), por maioria de razão proibirá acções inúteis.

         O art.20 nº1 do CIRE (aprovado pelo DL nº53/2004 de 18/3) confere legitimidade para requerer a insolvência a “qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”.

         Para tanto, o requerente terá de alegar os factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência, através de petição escrita (art.23 nº1 CIRE), e, para além da alegação de um ou mais dos factos que servem de base à presunção legal, tem ainda de justificar na petição a origem, natureza e montante do crédito, bem como indicar os respectivos meios de prova (art.25 do CIRE).

         A legitimidade do credor não depende do prévio reconhecimento judicial do seu crédito, tanto mais que a lei não exige que o credor possua título executivo, pois havendo oposição do devedor, impõe-se a produção da prova respectiva, devendo ser apreciado em julgamento e declarado na sentença da insolvência, por força do princípio da auto-suficiência (art.96 nº1 CPC), “com o significado de que esse processo (de insolvência) é em regra o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar – a declaração de insolvência” (Ac RC de 29/2/2012, em www dgsi.pt).

         Sendo o crédito de natureza laboral, a legitimidade para requerer a insolvência não fica dependente da emissão de pronúncia pelo tribunal do trabalho, como se extrai claramente da letra da lei ao referir expressamente “ qualquer que seja a natureza do crédito”.

         Como se vê, a lei confere grande latitude ao requerente da insolvência – “qualquer credor” (tal como no direito espanhol - art.3º nº1 e 3 da Ley Concursal nº22/2003 de 9/7 -, diversamente do direito alemão, cuja legitimidade é conferida ao credor com interesse - § 14, I, da Insolvenzgesetz - independentemente da natureza do crédito.

         Neste aspecto, o actual Código da Insolvência seguiu a orientação legislativa já anteriormente plasmada no direito falimentar (art.1176 nº1 a) CPC e 1177 nº1 do CPC, art.8º nº1 do CPEREF) chegando a reproduzir as mesmas expressões (“qualquer credor, seja qual for a natureza do seu crédito”), em cujo domínio decidiu o Ac do STJ de 14/1/97, em www dgsi.pt) - “não é necessário, no plano da legitimidade, que o credor da insolvência já esteja habilitado com um título executivo comprovativo do seu crédito, servindo a audiência de julgamento para apurar a existência do seu direito, para além dos requisitos da providência requerida”.

         Assim, como primeiro pressuposto da declaração de insolvência, o credor – quando requerente – terá que alegar e provar o seu crédito.

         E compreende-se, tendo em conta a finalidade do processo de insolvência (art.1º do CIRE), pois, como se justificou no preâmbulo do DL nº53/2004 de 18/3 (que aprovou o Código) – “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores (…).”

         Posto isto, a circunstância do crédito do requerente ser de natureza laboral não é impeditiva da sua legitimidade para requerer a insolvência, e por maioria de razão do interesse em agir.

         De resto, mesmo que se configurasse como “questão prejudicial”, jamais se aplicaria a regra do art.97 do CPC, por, face à natureza excepcional, não poder ser aplicada analogicamente a casos diferentes dos aí previstos (cf., por ex., Ac STJ de 29/3/2012, Ac RC de 26/5/2009, de 2/3/2011, de 29/3/2012, disponíveis em www dgsi.pt).

2.5. - 3ª QUESTÃO

A Apelante impugna os factos provados, descritos em 46 e 47 (aditados na sentença), dizendo não terem suporte no documento, face à errada interpretação que o tribunal fez, manifestamente simplista do modelo IES.

O tribunal considerou provado que:

46) Em 2009 o Activo da requerida ascendia a € 304.009,40 e o Passivo a € 463.825,18 (apresentando um resultado líquido negativo de €111 825,93) e sendo o total do capital próprio negativo de € 159.815,78 e no passivo corrente registava o montante de € 306.498,58.

47) Em 2010 o activo da requerida totalizou € 334.415,87 e o passivo € 590.422,49 (apresentando um resultado líquido negativo de €96 180,84) sendo o total do capital próprio negativo de € 256.006,62 e no passivo corrente o valor de € 473.441,70.

Justificou dizendo:

“Os factos 46) e 47) são aditados nos termos do artigo 659º, n.º 3, do CPCivil, e resultam da prova documental existente nos autos, designadamente das IES referentes aos anos de 2009 e 2010“.

O art.659 nº3 do CPC manda atender na sentença aos documentos juntos ao processo, mas somente aqueles que fazem prova plena.

Os documentos juntos pela requerida com a oposição (cf. fls. 151 segs.) assumem a natureza de documentos particulares (agenda de dívidas de clientes e IES de 2009 e 2010 - arts.363 nº3, 373 CC -, com a força probatória reconhecida no art.376 nº1 e 2 CC.

Os documentos particulares, se não foi impugnada a letra e a assinatura, fazem prova plena em relação às declarações atribuídas, sem prejuízo da arguição da falsidade, ou seja, apenas fazem prova da materialidade das declarações (art.376 nº1 CC).

Dispõe o art.376 nº 2 CC que os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos estatuídos para a prova por confissão.

A razão de ser da atribuição de força probatória plena às declarações desfavoráveis ao declarante que constem de documento particular assenta no facto de poder ser concebida como confissão extrajudicial (cf. arts.358 nº 2 e 376 nº 2 CC).

A confissão, enquanto “reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária“ (art.352 CC), se for efectuada em documento autêntico ou particular “considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, e se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena“ ( art.358 nº2 CC ).

Por isso, tratando-se de documento particular, os factos compreendidos na declaração consideram-se plenamente provados na medida em que sejam desfavoráveis ao declarante, estando pressuposto que a declaração é recipienda, produzindo os seus efeitos jurídicos somente quanto ao real destinatário. E o art.358 CC distingue consoante o destinatário é a parte contrária ou um terceiro, tendo força probatória plena apenas no primeiro caso, dadas as maiores garantias de seriedade e de ponderação que a confissão oferece (P. LIMA /A VARELA, Código Civil Anotado, I, pág.316).

É que os factos objecto da declaração que forem contrários aos interesses do declarante apresentam-se como factos objecto de confissão, considerando-se provados nos termos gerais da confissão, pois “a regra do nº2 do art.376 constitui uma presunção fundada na regra de experiência de quem afirma factos contrários aos seus interesses o faz por saber que são verdadeiros (…)” (VAZ SERRA, RLJ ano 110, pág.85).

Quanto à confissão extrajudicial, diz o art.358 nº2 do CC que a “confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”, sendo que a “confissão judicial ou extrajudicial pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios de vontade, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, se ainda não tiver caducado o direito de pedir a sua anulação”.

         Como doutrinou MANUEL DE ANDRADE, a confissão “quando exarada em documento com força probatória plena e for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (art.358 nº2) ”, mas essa confissão escrita “só vincula o confitente (e través dele o juiz) quando dirigida à parte interessada ou seu representante; se for feita a um terceiro ou ainda se contida em testamento o juiz apreciá-la-á livremente “ (Noções Elementares de Processo Civil, pág.247, 255).

No mesmo sentido, elucida VAZ SERRA “Os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte, nos termos da confissão, sendo indivisível a declaração nesses termos. Portanto, nessa medida, o documento pode ser invocado como prova plena, pelo declaratário contra o declarante; em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal” (R.L.J., ano 114, pág. 287).

Dito de outro modo, quando a confissão é feita a terceiro, a norma do art.376 nº2 do CC cede perante a do art.358 nº4 CC, pelo que não constitui prova legal bastante do facto confessado (cf. LEBRE DE FREITAS, A Falsidade no Direito Probatório, pág.56, nota 119).

Por conseguinte, o documento, ainda que reconhecida a sua autoria, só pode ser invocado como prova plena pelo declaratário contra o declarante. Nas relações com terceiros a declaração constante do documento apenas vale como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.

Para dar como provados os pontos 46) e 47), o tribunal baseou-se essencialmente nos documentos de IES. Como é sabido, foi o DL nº 8/2007 de 17/1 quem criou a Informação Empresarial Simplificada (IES) destinada a agregar num único acto determinadas obrigações legais das empresas, designadamente, a declaração anual de informação contabilística e fiscal.

Consta do processo (fls. 241) que a requerente, notificada dos documentos (IES relativos aos anos de 2009 e 2010), não impugnou a autoria, logo apenas faz prova de que a requerida (declarante) emitiu essas declarações perante entidades administrativas (declaratárias), designadamente, a Administração Fiscal. Ora, sendo a requerente terceiro (e não declaratária), tais documentos não assumem a força probatória plena da confissão, sendo livremente apreciados (cf., por ex, Ac STJ de 13/7/2004, Ac STJ de 11/1/2011, sobre valor probatório das declarações de rendimentos para efeitos fiscais, disponível em www dgsi.pt).

Porque os documentos não têm força probatória plena, na acepção definida, houve clara violação do art.659 nº3 do CPC, já que o tribunal não podia considerar provados os factos descritos nos pontos 46) e 47).

Altera-se a matéria de facto, mantendo-se a descrita na sentença, com a eliminação dos pontos 46) e 47).

2.6. - 4ª QUESTÃO

O conceito básico de insolvência traduz-se na impossibilidade de cumprimento pelo devedor das suas obrigações vencidas, conforme estatui o art.3º nº1 do CIRE – “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”

Para as sociedades de responsabilidade limitada, agora alargada às outras pessoas colectivas e patrimónios autónomos, prescreve art.3º nº2 do CIRE, enquanto norma especial, - “são também considerados insolventes quando seja o seu passivo manifestamente superior ao activo, um e outro avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.

Assim, o que releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do cumprimento evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.

A impossibilidade significa aqui “impossibilidade patrimonial”, ou seja, uma situação de facto, incapacidade económico-financeira do devedor para cumprir (cf. REQUICHA FERREIRA, “Estado de Insolvência”, Direito da Insolvência, Estudos, pág.230).
Através dos “factos-índices”, elencados nas alíneas do nº1 do art.20 do CIRE, o legislador estabeleceu presunções juris tantum de verificação da situação de insolvência do devedor, pelo que, feita a prova pelo requerente, caberá ao requerido o ónus da prova da sua solvência, como se extrai do art.30 nº4 do CIRE (cf., por ex., C. FERNANDES/J. LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol.1º, pág. 132 e segs). De resto, era já este o entendimento adoptado no anterior regime falimentar, tanto no âmbito do CPC (art.1174), como na vigência do CPEREF (art.8) -cf., por ex., Ac STJ de 2/7/98, C.J. ano VI, tomo II, pág.157.

Por conseguinte, compete ao requerente da insolvência a alegação e prova (art.23 nº1 do CIRE e art.342 nº1 do CC) dos factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência, ou seja, de um dos factos-índices do art.20 do CIRE.

Ao requerido caberá a prova da inexistência dos factos-índices ou, uma vez verificados, o ónus da prova da sua solvência.
A sentença recorrida considerou verificados os factos-índices das alíneas a), b) e h) do nº1 do art.20 do CIRE, muito embora com justificação factual apenas referente à alínea h), em face dos factos 46) e 47), para concluir que “a superioridade do passivo relativamente ao activo, bem como uma insustentável ausência de liquidez indicia a impossibilidade de a mesma satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.

A primeira objecção respeita ao facto-índice da alínea h) (manifesta superioridade do passivo sobre o activo), que se baseia no critério adicional de insolvência para as pessoas colectivas e patrimónios autónomos, postulado no art.3º nº2 CIRE, reconduzido à chamada “teoria do deficit patrimonial”, mas embora compatível e complementar com o critério do nº1, que adopta a teoria da incapacidade para cumprir, sendo que a sentença socorreu-se oficiosamente, para o efeito, dos documentos IES de 2009 e 2010, quando a insolvência foi requerida em 2012. Ora, para além de se postergarem os factos aditados (nºs 46 e 47), a verdade é que mesmo que se admitissem jamais implicariam a subsunção à respectiva alínea h), pela simples razão de que nada nos diz que se reportem ao “último balanço aprovado”, sabido que a empresa mantém a sua actividade.
Por “suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas” (art.20 nº1, alínea a) CIRE), entende-se, por confronto com a descrição da alínea b), a suspensão total dos pagamentos, no sentido do incumprimento, equivalendo, de certa forma, à anterior “cessação de pagamentos” (art.1174 do CPC), abrangendo, assim, os casos em que o devedor “deixa de dar satisfação aos seus credores, em termos que projectam a sua incapacidade de pagar”.
Já o incumprimento de algumas das obrigações (alínea b)) apenas constitui facto-índice quando, pelas suas circunstâncias evidencie a impossibilidade de pagar, devendo o requerente, com a alegação de incumprimento, invocar no processo essas circunstâncias, das quais se possa deduzir a penúria generalizada.
Perante os elementos factuais disponíveis, não está provada a alínea a) do nº1 do art.20 do CIRE, visto que a dívida da renda do imóvel e a dívida de € 5.000,00 ao Estado estão a ser liquidadas, o que significa inexistir cessação de pagamentos.
Quanto ao incumprimento de algumas das obrigações, resulta demonstrado que a requerida deve aos CTT cerca de € 5.461,15, à F…, SA, cerca de € 28.250,90, à I… cerca de € 14.221,97, bem como a outros fornecedores e colaboradores, designadamente à requerente (a requerida admite o valor de € 13.441,34, sem conceder quanto à inclusão do montante correspondente às diuturnidades).
Contudo, não estão demonstradas circunstâncias que indiciem a impossibilidade de pagar, tanto assim que a requerida, titular do jornal “…“ continua com a sua actividade, sem dívidas bancárias, dispondo de ampla divulgação do seu o jornal, com mais de 3.500 assinantes, mantém a sua tiragem, sendo distribuído em 57 pontos de venda, tem actualmente um crédito sobre os clientes de aproximadamente € 95.000,00 e só a marca “…” tem um valor de € 200.000,00.
Em resumo, não está comprovada a situação de insolvência, o que implica a procedência da apelação e revogação da sentença, ficando prejudicada a questão da quantificação do crédito da requerente.
2.7. – Síntese Conclusiva
1. O princípio da plenitude da assistência dos juízes, postulado no art.654 CPC, só tem aplicação para a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art.653 CPC, e já não quanto à prolação da sentença, pelo que não tem de ser o juiz do julgamento de facto a elaborá-la.

2. O art.659 nº3 do CPC manda atender na sentença aos factos “provados por documentos“, devendo interpretar-se como reportando-se somente àqueles que fazem prova plena.

3. Tratando-se de documento particular, os factos compreendidos na declaração consideram-se plenamente provados na medida em que sejam desfavoráveis ao declarante, produzindo os seus efeitos jurídicos somente quanto ao real destinatário.

4. A razão de ser da atribuição de força probatória plena às declarações desfavoráveis ao declarante que constem de documento particular assenta no facto de poder ser concebida como confissão extrajudicial.
5. A confissão extrajudicial escrita (enquanto declaração receptícia) apenas assume força probatória plena quando dirigida à parte contrária, pois em relação a terceiros é livremente apreciada pelo tribunal.

         6. A legitimidade do credor para requerer a insolvência do seu devedor (art.20 CIRE) não depende do prévio reconhecimento judicial do seu crédito.
7. Sendo o crédito de natureza laboral, a legitimidade para requerer a insolvência, bem assim o interesse em agir, não fica dependente da emissão de pronúncia pelo tribunal do trabalho.
8. O conceito básico de insolvência traduz-se na impossibilidade de cumprimento pelo devedor das suas obrigações vencidas (art.3 nº1 CIRE), significando impossibilidade patrimonial, incapacidade económico-financeira do devedor para cumprir.
9. Compete ao requerente da insolvência a alegação e prova (art.23 nº1 do CIRE e art.342 nº1 do CC) dos factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência, ou seja, de um dos factos-índices do art.20 do CIRE. Ao requerido caberá a prova da inexistência dos factos-índices ou, uma vez verificados, o ónus da prova da sua solvência.

III – DECISÃO
         Pelo exposto, decidem:
1)
         Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, absolvendo a requerida do pedido.
2)
Condenar a requerente/apelada nas custas, em ambas as instâncias.

        
 Jorge Arcanjo (Relator)
Teles Pereira
 Manuel Capelo