Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
157/20.4GASBG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DADOS DE TRÁFEGO
REGISTOS DA REALIZAÇÃO DE CONVERSAÇÃO E COMUNICAÇÃO TELEFÓNICA
CONSENTIMENTO DA VÍTIMA
INTERVENÇÃO DO JUIZ DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 05/19/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 187.º, N.º 4, AL. C), E 189.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: O consentimento, efetivo ou presumido, da vítima de crime, a que se reporta a alínea c) do n.º 4 do artigo 187.º do CPP, aplicável ao caso ex vi do artigo 189.º, n.º 2 do mesmo diploma, constituindo pressuposto adicional da aquisição para o processo da facturação e listagem detalhada de todas as conversações e comunicações recebidas (trace-back) por dois cartões telefónicos em determinados períodos, não dispensa a intervenção do juiz de instrução criminal, ordenando ou autorizando, através de despacho fundamentado, a obtenção e junção aos autos do referido meio de prova.
Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito dos Autos de Inquérito n.º 157/20.4GASBG (Atos Jurisdicionais) provindos do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – JL Criminal – Juiz 2, por despacho judicial de 22.03.2021, foi indeferido o requerimento apresentado pelo Ministério Público dirigido ao Senhor juiz de Instrução Criminal, no sentido de ser solicitado às operadoras MEO/Altice e NOS faturação e listagem detalhada de todas as conversação e comunicações recebidas (trace-back) por dois cartões telefónicos (identificados) em determinados períodos (igualmente descritos).

2. Não se conformando com a decisão recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

1. Por decisão datada de 22.03.2021, indeferiu o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal o pedido formulado pelo Ministério Público, em 19.03.2021, tendente à obtenção da faturação e listagem detalhada de todas as conversações e comunicações recebidas (trace-back) pelo cartão telefónico n.º (…), titulado pelo ofendido, no período compreendido entre os dias 11.11.2020 e 17.11.2020 e entre os dias 06.02.2021 e 07.03.2021.

2. Entende o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal que, uma vez que o ofendido/vítima deu o seu consentimento (cfr. fls. 14), pode e deve a referida informação relativa a registos da realização de comunicações telefónicas ser solicitado diretamente à operadora, quer pelo Órgão de Polícia Criminal ou pelo Ministério Público, não havendo necessidade de intervenção de um Juiz.

3. Salvo o muito e devido respeito, não pode o Ministério Público concordar com a referida decisão do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal.

4. Resulta do Auto de Denúncia junto aos autos e das declarações complementares do ofendido A(…), bem como dos print`s efetuados do telemóvel deste, que o mesmo, no período compreendido entre 11.11.2020 e 17.11.2020, recebeu centenas de chamadas telefónicas no seu telemóvel, com o n.º (…), maioritariamente em período noturno, provenientes de número não identificado.

5. No Aditamento elaborado pela GNR (cfr. ref.ª 1705040, com data de 11.03.2021), dá-se conta que o ofendido, no período compreendido entre 06.02.2021 e 07.03.2021, recebeu, no mesmo número de telemóvel, novas chamadas de número não identificado, ali se fazendo constar que o ofendido, entretanto, mudou para a operadora NOS, embora tenha mantido o mesmo número de telemóvel.

6. Os referidos factos são suscetíveis de integrar a prática de um crime de perturbação da vida privada, cometida através de telefone, p. e p. pelo art. 190.º, n.º 2 do C.P.

7. Para alcançar a identificação do autor dos referidos factos, é imprescindível comprovar qual o verdadeiro número de telefone a partir do qual são estabelecidos os referidos contactos telefónicos, e, ainda, confirmar quais os contactos estabelecidos (datas e horas) por tal número, para o telemóvel do ofendido.

8. Neste sentido, afigura-se essencial obter a listagem das chamadas efetuadas para o telemóvel do ofendido (968277601), com referência ao período temporal compreendido entre os dias 11.11.2020 e 17.11.2020 (inclusive) e 06.02.2021 e 07.03.2021 (inclusive), revelando-se a obtenção de tal informação como diligência de prova adequada e do maior interesse para o prosseguimento da investigação em curso e a descoberta da verdade material dos factos, sendo certo que o ofendido deu o seu consentimento para o feito (cfr. ref.ª 1682759).

9. A sociedade que explore uma rede ou preste serviços de comunicações eletrónicas fica obrigada a manter o sigilo das comunicações – cfr. arts. 27.º, n.º 1, al. h), da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro (Lei das Comunicações Eletrónicas) e 4.º, n.º 2, da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei relativa ao tratamento de dados pessoais e a proteção da privacidade das comunicações eletrónicas).

10. Por forma a assegurar o direito à reserva da intimidade da vida privada constitucionalmente consagrado (cfr. art. 26.º, n.º 1, da CRP), a lei fundamental garante a inviolabilidade das comunicações (cfr. art. 34.º. n.º 4, da CRP).

11. O sigilo das comunicações só poderá ser limitado em casos excecionais, como sejam a prossecução da investigação criminal e na medida do estritamente necessário (cfr. art. 34.º, n.º 4, parte final, da CRP e art. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto).

12. Aquele sigilo abrange três tipos de dados: os dados de conteúdo (teor da comunicação), os dados de tráfego (hora e duração da comunicação) e os dados de base (dados de identificação).

13. As informações reputadas necessárias no âmbito da investigação do presente inquérito, tratam-se de registos de realização de comunicações telefónicas, implicando, assim, a obtenção de dados de tráfego (data/hora e duração das comunicações efetuadas pelo suspeito para o telemóvel do ofendido).

14. Relativamente aos dados de tráfego, entende-se que os mesmos contendem com a esfera da vida privada íntima e, nessa medida, é-lhes aplicável o regime previsto para a autorização das escutas telefónicas, já que o grau de ofensa da privacidade deste meio de obtenção de prova se equipara à ofensa que as escutas telefónicas comportam (cf. Diretiva da PGR n.º 5/2000, publicada no DR, II série, de 28 de agosto de 2000).

15. Nos termos do disposto no art. 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, «A obtenção e junção aos autos de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do art. 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo», havendo, portanto, uma remissão expressa para o regime das escutas telefónicas.

16. Ora, a factualidade indiciada nos presentes autos refere-se a “crime de catálogo” (cfr. art. 187.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal – crime de “perturbação da paz e sossego”, cometido “através do telefone”), sendo certo que se está também perante um “alvo do catálogo legal” (cfr. art. 187.º, n.º 4, al. c) do Código de Processo Penal – “vítima de crime, mediante o respetivo consentimento (…)”).

17. Em suma, os elementos que se pretende obter nos presentes autos tratam-se de registos da realização de comunicações telefónicas e, como tal, constituem dados de tráfego, pelo que são aplicáveis para a sua obtenção as regras previstas para as escutas telefónicas, só podendo, deste modo, a sua obtenção ser ordenada ou autorizada por um Juiz, sob pena de nulidade (cfr. art. 189.º, n.º 2, 190.º e 269.º, n.º 1, al. e), todos do C.P.P.).

18. Ao contrário do entendimento expresso pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, o Órgão de Polícia Criminal e o Ministério Público não detêm legitimidade para a obtenção de dados de tráfego (registo da realização de conversações ou comunicações, com indicação da data/hora), ainda que a vítima tenha expressado o seu consentimento para a obtenção de tais elementos.

19. E existência de consentimento da vítima do crime é um pressuposto para a obtenção judicial dos elementos em causa e não um fundamento para a recusa da intervenção de um Juiz (cfr. art. 187.º, n.º 4, al c), aplicável ex vi o art. 189.º, n.º 2, ambos do CPP).

20. No caso concreto, encontram-se reunidos todos os pressupostos legais de que depende a autorização judicial para a obtenção dos registos da realização de comunicações telefónicas para o telemóvel do ofendido, nos períodos acima indicados, já que:

a. investigam-se, nos presentes autos, factos suscetíveis de integrara a prática de crime de perturbação da vida privada, cometido através do telefone;

b. existe uma grande necessidade de descobrir elementos factuais investigativos e também de recolher meios de prova;

c. a obtenção do registo da realização de comunicações telefónicas para o telemóvel do ofendido é o meio adequado a atingir a descoberta da verdade material e a identificação dos suspeitos;

d. no caso concreto, a prossecução da verdade material e a recolha de meios de prova não podem ser alcançados “sem dificuldades particulares acrescidas, alcançados por meios mais benignos de afronta aos direitos fundamentais”.

21. O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, ao entender que, no caso concreto, não seria necessária a intervenção de um Juiz para a obtenção de registos da realização de comunicações telefónicas não deu cumprimento ao disposto nos arts. 189.º, n.º 2 e 190.º, ambos do Código de Processo Penal.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por outra que autorize a obtenção dos registos da realização de comunicações telefónicas para o telemóvel do ofendido, nos termos explicitamente requeridos na promoção do Ministério Público datada de 19.03.2021, assim se fazendo justiça.

3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

4. O Exmo. Procurador da República emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso merecer provimento.

5. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, importa decidir se, verificando-se o consentimento da vítima a que se reporta a alínea c), do n.º 4, do artigo 187.º do CPP, a obtenção e junção aos autos dos registos de realização de conversações ou comunicações, nos termos do n.º 2, do artigo 189.º do mesmo diploma, não exige a autorização do juiz de instrução criminal.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho em crise [transcrição]:

Veio o Ministério Público requerer ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 187.º, n.º 1, al. e), n.º 4, al. c), 189.º, n.º 2, e 269.º, n.º 1, al. e), todos do C.P.P., a obtenção das seguintes informações:

a) pela operadora MEO/Altice: faturação e listagem detalhada de todas as conversações e comunicações recebidas (trace-back) pelo cartão telefónico n.º (…), no período compreendido entre os dias 11.11.2020 e 17.11.2020 (inclusive);

b) pela operadora NOS: faturação e listagem detalhada de todas as conversações e comunicações recebidas (trace-back) pelo cartão telefónico n.º (…), no período compreendido entre os dias 06.02.2021 e 07.03.2021 (inclusive).

Ora, compulsados os autos, e como por nós já referido, dos mesmos deflui que o ofendido/vítima deu o seu consentimento (cfr. fls. 14), pelo que, ao abrigo do artigo 187.º, n.º 4, alínea c), ex vi, artigo 189.º, n.º 1, ambos do CPP, indefere-se o requerido, podendo e devendo tal ser solicitado, diretamente à operadora, quer pelo OPC ou pelo Ministério Público – e nunca pela vítima, juntamente com o consentimento prestado pela vítima, não havendo necessidade da intervenção de um juiz, só em caso da mesma se recusar a fornecer tais elementos.

Notifique e

Devolva os autos ao Ministério Público.

3. Apreciação

Brevitatis causa a questão que se coloca no presente recurso traduz-se em saber se a obtenção junto das operadoras - no caso a MEO/Altice e a NOS - da faturação e listagem detalhada de todas as conversações e comunicações recebidas pelo cartão telefónico identificado no despacho em crise, nos períodos de tempo no mesmo descritos – elementos que se mostram em conformidade com a promoção apresentada pelo Ministério Público – tem, ou não, de ser autorizada pelo juiz de instrução criminal, ou seja se relativamente aos mesmos opera o princípio da “reserva do juiz”.

Vejamos as duas posições em confronto.

O Ministério Público, considerando estar em causa a investigação de um crime de perturbação da vida privada, cometida através do telefone, p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 2, do Código Penal, defendendo a imprescindibilidade da identificação do número de telefone a partir do qual foram estabelecidos os contactos telefónicos e confirmar quais os contactos estabelecidos [datas e horas] por tal número para o telemóvel do denunciante, invocando, entre outros, os artigos 187.º, n.º 1, alínea e), n.º 4, alínea c), 189.º, n.º 2, 190.º e 269.º, n.º 1, alínea e, todos do CPP requereu ao juiz de instrução que fosse diligenciado pela obtenção junto das operadoras MEO/Altice e NOS da “faturação e listagem detalhada de todas as conversações e comunicações recebidas (trace-back) pelo cartão telefónico n.º (…)” [correspondente ao denunciante] durante o período de tempo que indicou, dando conta do consentimento prestado pelo ofendido.

O juiz de instrução criminal, perante o consentimento da vítima, convocando os artigos 187.º, n.º 4, alínea c) e 189.º do CPP, entendeu que tanto o OPC, como o Ministério Público, sem necessidade da sua intervenção, podiam solicitar – diretamente - às operadoras os ditos elementos.

Quid iuris?

Depois de sublinhar a excecionalidade, proporcionalidade e subsidiariedade do recurso às escutas telefónicas e enunciar o princípio da “reserva do juiz”, atribuindo ao juiz de instrução a competência para, durante o inquérito e a requerimento do Ministério Público, autorizar a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, nas várias alíneas do n.º 1, do artigo 187.º do CPP o legislador enuncia [taxativamente], com referência ora à moldura penal abstrata correspondente [cf. a alínea a)], ora ao ilícito típico em investigação, os crimes [chamados «crimes de catálogo»] em que, mediante despacho fundamentado, podem ter lugar, como é o caso da “devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone” – [cf. a alínea e)], reservando o n.º 4 do preceito à identificação daqueles contra quem podem ser autorizadas a interceção e gravação.

Neste domínio, dispõe o artigo:

4. A interceção e a gravação previstas nos números anteriores só podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra:

a) Suspeito ou arguido;

b) Pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou

c) Vítima de crime, mediante o respetivo consentimento, efetivo ou presumido.”

A tipicidade dos alvos das escutas telefónicas [o universo dos escutados] há muito reclamada – dado o caráter fortemente restritivo de direitos, liberdades e garantais do meio de obtenção de prova em questão - pelo TEDH, só com a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, foi definida.

Neste catálogo fechado o último grupo que surge como possível alvo é o constituído pelas vítimas do crime, exigindo-se, neste caso, o respetivo consentimento “efetivo ou presumido”, requisito que não se vê possa dispensar o despacho do juiz de instrução criminal. Com efeito, nem o n.º 1, nem o n.º 4 do artigo 187.º, nem o n.º 2 do artigo 189.º do CPP [“A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo”], tão pouco a alínea e) do n.º 1 do artigo 269.º do mesmo diploma, autorizam semelhante interpretação; pelo contrário, exige-se, sob pena de nulidade [cf. artigo 190.º do CPP], em qualquer das situações que profira despacho fundamentado, funcionando o consentimento da vítima como pressuposto adicional.

É certo que a norma em questão [alínea c), do n.º 4 do artigo 187.º] tem provocado alguma estranheza, como resulta das palavras de Costa Andrade quando escreve: “Um dispositivo como este pode, naturalmente, mostrar-se adequado e ajustado no contexto da prevenção de perigos. Basta pensar em situações em que se torna urgente localizar a vítima de um crime de rapto ou sequestro. Mas o preceito soa já estranho e mesmo perturbador quando inserido no ordenamento processual penal.

Desde logo, (…) o consentimento de um dos interlocutores retira à intromissão (das autoridades) a qualidade de violação do sigilo das comunicações e da pertinente área de tutela. Não que as conversações se transformem só por isso, em vogelfrei, abandonadas pela ordem jurídica como objeto idóneo e universal de devassa. Trata-se, porém, de coisa diferente de um ato de telecomunicação, a reclamar outro estatuto e regime de tutela. Na medida em que, apesar de tudo, estas constelações sempre mantém uma conexão estreita com a inviolabilidade das telecomunicações, a verdade é que elas introduzem uma solução normativa centrífuga e de certo modo antinómica face ao regime geral das escutas telefónicas.

(…)

Não são naturalmente as soluções que estão em causa; mas o seu enquadramento e a colocação ao abrigo da disciplina das escutas, com que quase nada tem em comum (…).

Pela sua excentricidade face à fattispecie subjacente ao regime geral das escutas telefónicas, cabe ainda indagar se aquele regime vale aqui na plenitude dos seus pressupostos, exigências e implicações. Desde logo, se a matriz de legitimação é aqui o consentimento da vítima – e portanto e em última instância a sua autonomia pessoal – faz sentido limitar também aqui as escutas aos crimes do catálogo? Se não, o que justifica a inscrição da alínea c) do n.º 4 do artigo 187.º num sistema normativo de que se afasta logo na raiz? Se sim, como se logra a quadratura do círculo deste particular regime que põe de pé uma autonomia heteronomamente limitada?” – [cf. “Bruscamente no Verão Passado, a reforma do Código de Processo Penal”, Coimbra Editora, págs. 181-182]

Trata-se de idiossincrasias do sistema que de iure constituendi poderão vir a merecer reflexão por parte do legislador, sem que face ao direito constituído tenham a virtualidade de influenciar a decisão do caso em apreciação.

De facto, não se suscitando a dúvida sobre a natureza dos elementos pretendidos, consubstanciando os mesmos “dados de tráfego”, a interpretação conjugada das normas em questão, desde logo com recurso ao seu elemento literal, mas também teleológico, uma vez que estamos perante meios de obtenção da prova, aos quais se mostra associada uma considerável danosidade social, projetando-se também sobre terceiros estranhos ao universo dos sujeitos alvo - a respetiva utilização não compromete apenas os direitos fundamentais das pessoas visadas no n.º 4, mas também os de outros alheios ao processo -, tal como definidos no n.º 4, do artigo 187.º do CPP, aplicável ex vi do artigo 189.º, n.º 2, impede que aqueles sejam adquiridos para o processo à margem [dispensando] da intervenção do juiz de instrução criminal, sendo o mandado judicial o principal pressuposto da sua admissibilidade.

Na verdade, o despacho do juiz a que se reportam os n.ºs 1 e 4 do artigo 187.º e n.º 2 do artigo 189.º, do CPP surge como legitimador da escuta telefónica, bem como da aquisição dos dados de localização celular ou de registos de conversações ou comunicações, exigindo uma fundamentação, como refere Ana Raquel Conceição, citando a doutrina e jurisprudência espanholas, assente no essencial “em três pilares: o que se investiga; contra quem se dirige a investigação e qual a fonte de conhecimento – [cf. “Escutas Telefónicas – Regime Processual Penal”, “Quid Juris”, pág. 103]. A individualização do sujeito alvo é, pois, apenas um dos “aspetos” que deve integrar o despacho do juiz que há de escrutinar os factos por forma a aferir se são suscetíveis de integrar um dos crimes “do catálogo”, não o dispensando da formulação de um juízo de necessidade, adequação e proporcionalidade face à devassa que o meio proporciona., ainda que se dirija contra “vítima de crime” – na nossa perspetiva, necessariamente “do catálogo” – “mediante o respetivo consentimento, efetivo ou presumido”, também este objeto de “controlo” judicial – [vide, com relevância nesta vertente, o acórdão do TRC, de 28.04.2009 (proc. n.º 92/08.4GDCTB-A.C1)].

Conclui-se, pois, no sentido de que o “consentimento, efetivo ou presumido” da “vítima de crime” a que se reporta a alínea c), do n.º 4, do artigo 187.º, aplicável ao caso ex vi do artigo 189.º, n.º 2 do CPP constitui pressuposto adicional da aquisição para o processo do meio de obtenção da prova em questão, não dispensando aqueloutro principal, concretamente o mandado judicial, da competência exclusiva do juiz de instrução criminal.

III. Dipositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal, na procedência do recurso, em revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, partindo do pressuposto ser da exclusiva competência do juiz de instrução criminal – ainda que, nos termos da alínea c), do n.º 4, do artigo 187.º do CPP, se venha a concluir pelo consentimento da vítima de crime – autorizar a obtenção e junção aos autos dos “dados de tráfego” (artigo 189.º, n.º 2, do CPP), decida em conformidade.

Sem tributação.

[Texto processado e revisto pela relatora]

Coimbra 19 de Maio de 2021

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)