Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
241/11.5TBNLS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
PENHOR
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 604.º, N.º 1 E 2; 666.º, N.º1;680.º; 735.º; 749.º;750.º; 751.º DO CC; DL Nº 555/99 DE 16/12, ALTERADO PELO DL Nº 177/2001 DE 4 DE JUNHO; ART.IGO 204, Nº 2, DA LEI Nº 110/2009 DE 16/09
Sumário: 1. Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora, gozam de privilégio mobiliário geral e prevalecem sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, independentemente da quantidade e natureza dos créditos em concurso.

2. Todos os outros créditos com privilégio mobiliário geral, - nomeadamente os elencados no art.º 747.º, nº 1, do Código Civil - não valem contra o penhor e seguem a hierarquia resultante do referido normativo.

3. Não há colisão normativa a obstar que os créditos da Segurança Social, por preferirem ao crédito com penhor anterior, e por força dessa prevalência, sejam pagos antes dos créditos laborais.

4. Não é inconstitucional, por não violar o princípio da confiança, ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 204.º, nº 2, da Lei 110/2009, na medida em que confere ao privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e respectivos juros de mora primazia sobre o penhor, mesmo que de constituição anterior.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de verificação de créditos que no Tribunal Judicial da Comarca de Nelas correm por apenso à insolvência de A...., após o deferimento de uma nulidade arguida por um dos credores que não fora notificado para impugnar a lista de credores reconhecidos - deferimento que implicou que a primeira sentença de verificação e graduação fosse dada sem efeito - achando-se entretanto reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência todos os créditos reclamados, veio a ser igualmente considerado verificado - de acordo com sentença proferida a fls. 40 e ss do apenso D - o crédito de € 60.000,00 do credor B...., garantido por penhor mercantil sobre determinado depósito a prazo.

Ao fundamentar-se a graduação, ponderou-se nesta decisão que, sem embargo da regra geral segundo a qual, relativamente aos créditos a que a lei atribui privilégio mobiliário geral, este não vale contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre as mesmas coisas, sejam oponíveis ao exequente, no caso específico dos créditos da segurança social tal privilégio prevalecia sobre qualquer penhor, ainda que anteriormente constituído.

Pelo que, ao proceder à pertinente hierarquização relativamente ao depósito a prazo identificado sob a verba nº 8 de fls. 53 e 57 do apenso A, foi estabelecida a seguinte ordem de pagamento:

1º - O crédito do Centro Distrital do Instituto de Segurança Social de ...., IP;

2º - O crédito da B.... (…);

3º - Os créditos dos trabalhadores identificados na lista que antecede;

4º - O crédito da Fazenda Pública;

5º - Os créditos de natureza comum;

6º - Os créditos de natureza subordinada.

Inconformada com esta graduação, dela interpôs a credora B.... oportuno recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

   

Dispensados os vistos cumpre decidir.

                                                                        *

Com relevo para a apreciação do recurso podem elencar-se os seguintes factos:
1. Pelo Sr. Administrador de Insolvência foi apresentada a fls. 43-46 e 48-49 a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art.º 129, nº 1 do CIRE:
2. Não foram apresentadas impugnações aos créditos listados.
3. Entre os créditos reconhecidos, além de múltiplos créditos comuns e subordinados, figuram como créditos privilegiados os créditos de trabalhadores, da Fazenda Nacional e do Instituto da Segurança Social IP- CD ......
4. O crédito de € 60.000,00 da B.... reconhecido por sentença proferida no apenso D encontra-se garantido por penhor sobre o depósito a prazo identificado sob a verba nº 8 no arrolamento que integra o apenso A.

*

A apelação.

Nas conclusões com que encerra o presente recurso a apelante Caixa Económica levanta as seguintes questões:

1º - A de saber se, estando garantido por penhor anteriormente constituído, o crédito da apelante deverá ficar graduado em primeiro lugar, à frente dos créditos da Segurança Social, dos trabalhadores e da Fazenda Nacional, pela conjugação da legislação ordinária aplicável.

2º - Assim não se entendendo, se é inconstitucional a interpretação do art.º 204, nº 2, da Lei 110/09 de 16/09 que prevê o pagamento preferencial dos créditos da Segurança Social mesmo perante os que se acham garantidos por penhor anteriormente constituído.   

Não houve contra-alegações.

                                                                        *

Quanto à questão da prioridade de pagamento do crédito da recorrente garantido por penhor.

Nesta questão está sob crítica a graduação efectuada na sentença ora impugnada, a qual, pelo valor do depósito bancário aí identificado, posicionou o pagamento do crédito de € 60.000,00 do ISS, IP, CD de .... à frente do crédito da recorrente, não obstante este se mostrar garantido por penhor anteriormente constituído, relegando-o dessa forma para segundo lugar, antes dos créditos laborais, da Fazenda Nacional, dos créditos comuns e subordinados.

Dispõe o art.º 604 nº 1 do C. Civil que “Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito a ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos”.

 Por sua vez, estatui-se no nº 2 do mesmo preceito que são tidas por causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.

De harmonia com o art.º 680 do CC, o penhor é um direito real de garantia, actuando como uma garantia especial do cumprimento das obrigações e tendo por objecto, imediata ou mediatamente, uma coisa móvel. Por ele o credor adquire direito a pagar-se do seu crédito e juros pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou direitos, preferindo aos demais credores (art.º 666, nº 1 do CC).

Ao lado dos direitos reais de garantia posicionam-se os privilégios creditórios gerais, mobiliários ou imobiliários, os quais, sendo ainda causas de preferência, todavia revestem natureza meramente obrigacional. Precisamente porque, por definição, não se formam ou constituem sobre coisas mas sobre obrigações, estes privilégios não são dotados do chamado direito de sequela que é apanágio dos direitos reais. Atribuem uma mera prioridade de pagamento impondo-se aos credores comuns na execução do património do devedor.

Não são verdadeiros direitos – direitos necessariamente subjectivos – apesar de assegurarem o cumprimento de obrigações.

Diversamente, os privilégios especiais (art.º 735, nº 2, 2ª parte, e nº 3, do CC), compreendendo o valor de determinados bens, embora não percam a nota obrigacional já aludida, mas porque são conferidos sobre um objecto individualizado, gozam da prevalência que lhes advenha da sua anterioridade sobre os direitos de terceiro, aos quais serão sempre oponíveis. Tratando-se de privilégios imobiliários especiais essa oponibilidade vai ainda mais longe, estendendo-se a certos direitos, ainda que de génese anterior – art.ºs 750 e 751  C.Civ.

No caso que agora nos ocupa, por disporem de causa de preferência no pagamento pelo depósito a prazo arrolado, apresentam-se em conflito graduativo quatro tipos de créditos:

Os créditos emergentes de prestações laborais, os créditos da Fazenda Nacional, os do Instituto da Segurança Social I.P., CD de …. e o da B...., ora recorrente.

Considerou a sentença que o penhor que garante o crédito da credora ora apelante sobre aquele bem só cedia perante o crédito do ISS, IP, CD de ...., porque assim o impunha a norma do art.º 204, nº 2, da Lei nº 110/2009 de 16/09, sem que, quanto aos outros créditos, isso prejudicasse a aplicação da regra geral de que o penhor confere ao credor respectivo prioridade de pagamento perante créditos que apenas beneficiam de privilégio mobiliário geral.

Importa desde já adiantar que, neste aspecto, se decidiu com acerto.

Se não vejamos.

Prescreve o art.º 204, nº 1, do chamado Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei 110/2009, de 16 de Setembro que “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora, gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do nº 1 do art.º 747 do Código Civil.”

Por sua vez, o nº 2 deste artigo estatui que “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”

Entende a recorrente que esta disposição do nº 2 só teria aplicação quando se verificasse um conflito graduativo exclusivo das duas referidas causas de preferência – a do privilégio mobiliário geral dos créditos do ISS e o penhor.

Ora – salvo o respeito devido por quem subscreva tal tese - nem isto resulta da letra da lei - qualquer que seja o ângulo da sua leitura - nem tão pouco se nos afigura que tal ideia haja estado na mente do legislador, sabendo-se como se sabe que só muito raramente com aqueles dois créditos não concorrerão outros igualmente privilegiados, como são os da Fazenda Nacional ou dos trabalhadores.

A norma do art.º 204 do CRCSPSS é basicamente idêntica à do art.º 10º do DL 103/80 de 5/05, e, à semelhança do que com esta então sucedeu, não foi acompanhada pela revogação ou alteração do princípio do art.º 749, nº 1, do CC, à luz do qual se proclamava que o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.

Ou seja, o que naquele artigo (como no art.º 10º do DL 103/80) se previu foi a derrogação da explicitada regra do art.º 749, nº 1, do CC, mas apenas no que concerne aos créditos da Segurança Social que gozam de privilégio mobiliário geral. Quanto aos demais – isto é, quanto a todos os outros créditos com privilégio mobiliário geral, nomeadamente os elencados no art.º 747, nº 1, do CC - mantém-se o mesmo princípio: não valem contra o penhor e seguem a hierarquia resultante do Código, que é a do mencionado art.º 747, n.º 1 do CC.   

Numa linha de aparente perturbação desta ordem de prevalência vêem alguns a prioridade conferida pelo art.º 377, nº 1, al.ª a) e nº 2 al.ª a) do actual Código do Trabalho ao privilégio mobiliário geral dos créditos emergentes de origem laboral.

Na verdade, dispõe-se nesse art.º 377:

“1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) (…).

2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do art.º 747 do Código Civil;

b) (…).”

Numa primeira abordagem, parece resultar do confronto destas normas que os créditos laborais deveriam ser pagos sempre à frente dos créditos da Segurança Social, atenta a prioridade do respectivo privilégio mobiliário geral que claramente decorre das expressões “antes” da alínea a) do nº 2 do art.º 377 do CT e “ nos termos referidos” do nº 1 do art.º 204 do CRCSPSS.

Esta preferência colidiria, porém, com a prevalência da que derivaria do penhor, dado que este cederia perante o privilégio mobiliário do crédito da Segurança Social.

É que interpondo-se um crédito garantido por penhor, preferiria o crédito da Segurança Social, embora sobre este preferisse o crédito laboral, o qual, por sua vez, não prevaleceria diante daquele crédito (o garantido por penhor), conforme o art.º 749, nº 1 do CC.

Há que discernir, no entanto, o que terá sido o efectivo desiderato do legislador, tendo em conta o princípio ínsito no art.º 9º, nº 3. do CC, de que “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e se exprimiu o seu pensamento em termos adequados”.

Com esse fim, não se deve perder de vista, desde logo, a circunstância de, já depois da publicação do actual Código do Trabalho, em 27 de Agosto de 2003, o legislador do CRCSPSS de 2009 ter conservado a precedência do privilégio mobiliário dos créditos da Segurança Social sobre o penhor anteriormente constituído. O que só pode significar que, não podendo ignorar a já falada regra geral da ineficácia dos privilégios mobiliários gerais do art.º 749, nº 1 do CC, também não podia deixar de estar ciente de que, com a hierarquização assim delineada, forçosamente situava o privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social numa situação de primazia relativamente a todos os outros créditos dotados do mesmo privilégio, incluindo os créditos mencionados no art.º 377, nºs 1, al.º a) e nº 2, al.ª a) do CT.

A isto acresce ainda a importância social de que cada vez mais acentuadamente se reveste a garantia mobiliária e imobiliária dos créditos da Segurança Social e que esteve na origem das disposições dos art.ºs 204 do CRCSPSS e do art.º 10 do DL 103/80 de 9/05.

Não é despiciendo o trazer aqui à colação o valor extraordinariamente decisivo que hoje assume para o Estado e para os cidadãos a sustentabilidade da segurança social, a qual, pela sua enorme repercussão social, em muito sobreleva o direito individual às retribuições fundadas no contrato de trabalho.

Como a este propósito se escreveu no Ac. do STJ de 16 de Dezembro de 2009, relatado pelo Ex.mo Cons. Fernando da Costa Soares, disponível na versão on line da Col. Jur. “A segurança social é, em última análise, o último baluarte da confiança que os cidadãos depositam no Estado, de que o trabalho em que se foi desdobrando a sua vida não deixará de ser reconhecido e compensado; por isso, mesmo os próprios trabalhadores, enquanto activos, descontam para a segurança social. Aquela confiança tem pleno assento e garantia no art. 2.º da C.R.P.. Se os trabalhadores merecem toda a protecção que a lei lhes confere, não a merece menos a segurança social, ora plasmada no ISS; e, pelos altos valores sociais que este último prossegue - valores cujo correspondente direito se encontra consagrado no citado art. 63.º da Constituição - é logicamente inevitável que são eles que têm de consubstanciar a cúpula, a nível dos créditos ora em questão, da protecção que o legislador lhes quer conferir”.

Neste quadro, não nos repugna admitir que, ao atribuir-se aos créditos laborais com privilégio mobiliário geral a prioridade aludida no art.º 377, nº 2, al.ª a) do CT na graduação diante “dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747 do Código Civil”, não se tenha querido dizer mais do que isso mesmo, isto é, que há uma preferência quanto aos créditos ali concretamente elencados, e não quanto a quaisquer outros, nomeadamente aos que a eles são de algum modo equiparados. Ora o art.º 204, nº 1, do CRCSPSS só determina que a graduação dos créditos da Segurança Social se faça “nos termos referidos na alínea a)” do mesmo número. Por conseguinte, da conjugação deste preceito com o acima referido – o do art.º 377, nº 2, al.ª a) do CT - não se pode retirar a vontade do legislador em remeter estes créditos para uma posição subalterna face aos créditos laborais. Em consequência, podemos concluir que não há afinal verdadeira colisão entre estas normas, a obstar a que os créditos da Segurança Social, por preferirem ao crédito com penhor anterior, e por força dessa prevalência, sejam pagos antes dos créditos laborais.

 Donde que se possa afirmar que, no jogo das normas da lei ordinária acima aludidas, ao colocar os créditos do ISS, IP - CD de .... em primeiro lugar, o crédito garantido por penhor da recorrente Caixa Económica em segundo lugar, e só depois os créditos laborais, a graduação operada pela decisão recorrida se revele, à luz do art.º 9º, nº 3, do CC, como a solução mais acertada. Sem embargo de, perante o que se deixou dito, não ser possível afirmar que uma tal solução tenha sido expressa nos termos mais adequados.

De todo o modo, o privilégio que atribui preferência ao pagamento dos créditos da Segurança Social está balizado pelos 12 meses anteriores ao início do processo de insolvência, uma vez que o art.º 97 nº 1 a) do CIRE impõe a extinção dos privilégios creditórios gerais constituídos antes desse período que acompanhem os créditos sobre a insolvência de que forem titulares, entre outros, as instituições de segurança social.

Assim sendo, só poderão ser graduados preferencialmente os créditos do ISS, IP – CD de .... abrangidos por aquele espaço temporal, pelo que a graduação a fazer deve ter em conta essa limitação.

 

Sobre a inconstitucionalidade da norma do art.º 204, nº 2 da Lei nº 110/2009 de 16/09.

 

Porém, além da interpretação proposta no quadro da lei ordinária, suscita também a recorrente a inconstitucionalidade da norma do art.º 204, nº 2, do CRCSPSS por ofensa dos princípios da confiança e segurança jurídicas ínsitos no art.º 2º da Const. da República, socorrendo-se da doutrina analogamente lançada pelo Ac. do TC nº 363/2002 de 17/09/2002 para a não preferência do privilégio imobiliário geral previsto no art.º 11 do DL 103/80 de 9/05 diante da hipoteca, com recurso ao disposto no art.º 751 do CC.

Com efeito, chamado a pronunciar-se sobre a eventual desconformidade com a lei fundamental do art.º 11 do DL 103/80, de 9/05 – equivalente ao actual art.º 205 do CRCSPSS –, interpretado à luz do art.º 751 do CC, veio aquele Tribunal a declarar a respectiva inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por virtude da preferência ali estatuída (e no art.º 2º do DL 572/76 de 3 de Julho), fundando-se na violação do princípio da confiança ínsito no art.º 2º da CRP.

Louva-se igualmente a apelante na orientação que cita como perfilhada por Miguel Lucas Pires[1], de acordo com a qual “os fundamentos utilizados pelos arestos que consideraram inconstitucional a aplicação do regime do art.º 751 do CC aos privilégios imobiliários da segurança social – a falta de publicidade, a falta de conexão sobre o bem que recai a garantia e a causa do crédito, a inexistência de limite temporal e a existência de garantias alternativas – são perfeitamente extensíveis ao regime delineado pelo nº 2 do art.º 10º para os privilégios mobiliários gerais”.

Cremos, todavia, que a extensibilidade propugnada não é tão solidamente defensável[2].

E que o não é demonstram-no logo, de forma autêntica, dois Acórdãos do TC que entretanto se debruçaram exactamente sobre este mesmo tema: os Ac.s nº 64/09 de 10/02/2009 e nº108/09 de 10/03/2009, disponíveis in. www.tribunalconstitucional.pt.

Este último aresto preocupou-se inclusivamente em desmontar a argumentação expendida por aquele autor, acabando por concluir que, diferentemente do que acontecia com o Ac. 363/2002 de 17/09/2002, três dos fundamentos ali avançados não se verificavam com o art.º 11 do DL 103/80: havia um limite temporal do privilégio (o do art.º 97, nº 1, al.ª a) do CIRE), não havia garantia alternativa (no caso do privilégio imobiliário existia a possibilidade de hipoteca legal do art.º 12 do DL 103/80) e não ocorria a frustração da fiabilidade do registo (que ocorria sempre com a hipoteca).

E para desvalorizar o que teve por o “único fundamento extensível” - a falta de conexão entre o bem sobre que recai a garantia e a causa do crédito – procurou o mesmo aresto evidenciar que não se detectavam os pressupostos necessários à violação do princípio da confiança no Estado de Direito da seguinte forma:

“Este Tribunal tem entendido que o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático (artigo 2º da CRP), é violado apenas quando haja uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos (cf., entre muitos outros, Acórdãos n.º 287/90, 303/90, 625/98, 634/98, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Seguindo o critério do Acórdão n.º 287/90:

«A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:

a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e, ainda

b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo 18º da Constituição, desde a 1ª revisão).

Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária».

Na verdade, o Tribunal Constitucional tem entendido que há um desrespeito do princípio da confiança, estrutural do Estado de direito democrático, quando se comprove ter existido uma afectação arbitrária ou demasiado onerosa de expectativas legitimamente fundadas dos cidadão (cfr. p. ex. os Acórdãos nº 625/98, nº 634/98, disponíveis in.www.tribunalconstitucional.pt ).

Porém, no caso do art.º 204, nº 2, da Lei 110/2009, de 16 de Setembro, de forma alguma se pode asseverar que com ele se processou uma inesperada e intolerável mutação na ordem jurídica.

É que não só há muito que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social por contribuições e respectivos juros está legalmente consagrado, como, inclusivamente, há várias décadas que está claramente posicionado uma situação de primazia relativamente ao penhor anteriormente constituído.

Já o art.º 14 do DL nº 38.538 de 24 de Novembro de 1951 prescrevia que os créditos por contribuições devidas a caixas sindicais de previdência, caixas de reforma ou de previdência e caixas de abono de família gozavam de privilégio mobiliário geral, o qual persistiu com o art.º 167 do DL nº 45 266 de 23 de Setembro de 1963, com o art.º 1º do DL nº 512/76 de 3 de Julho, e com o art.º 10º do DL 103/80 (embora se registassem dúvidas com o diploma que fez entrar em vigor o Cód. Civil de 1966, mais exactamente com o texto do artigo 8º do diploma que o aprovou, ou seja, o Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966). E desde o DL nº 512/76 que se acha expressamente consignada a prevalência do privilégio geral sobre o penhor (mesmo anteriormente constituído).

Mas a questão do alcance da atribuição dos privilégios mobiliários e imobiliários aos créditos da Segurança Social pode e deve ser vista ainda por outro prisma.

Ninguém negará que a concessão de um determinado privilégio creditório, porque sempre dispensado de registo e normalmente independente do momento da constituição do crédito que dele beneficia, representa, em si mesma, uma forma de distinção do credor que com ele é contemplado, excluindo-o da regra par conditio creditorum. Corresponde a um interesse público relevante, que coloca o crédito respectivo num plano de uma inequívoca superioridade relativamente aos demais créditos titulando interesses particulares ou individuais.

É patente que, através das regras dos art.ºs 749 a 751 do C.Civil, o legislador de 66 procurou temperar e regular a actuação dos privilégios creditórios perante direitos reais de terceiro oponíveis ao exequente.

Sem dúvida que o Ac. do TC nº 363/2002 impediu a supremacia do privilégio imobiliário geral atribuído aos créditos da Segurança Social sobre a hipoteca anteriormente registada, mercê de uma norma que os equiparava aos privilégios especiais do art.º 751 do CC. Mas o mesmo TC não foi ao ponto de considerar que o interesse público excepcional no pagamento preferencial dos créditos da Segurança Social, quando apenas estejam em causa direitos reais sobre móveis sujeitos ou não a registo – como é o caso do penhor – não deve conduzir ao sacrifício destes direitos, mesmo que anteriormente constituídos. Nesta hipótese, aquele interesse público excepcional sobreleva as eventuais (mas infundadas) expectativas dos particulares, ainda que cobertas pela “segurança” imanente ao registo. É que o registo predial visa proteger a segurança de direitos perante outros que com eles estão em relativo pé de igualdade, o que não se passa entre o direito do credor pignoratício e os direitos da Segurança Social. Não é a protecção da “confiança” constitucionalmente consagrada que se manifesta com peso suficiente para postergar o interesse da sociedade na satisfação destes direitos.

Em suma, não procede a questão da recorrente atinente à violação do princípio da confiança, ínsito no art.º 2º da Constituição da República Portuguesa, pelo artigo 204, nº 2, da Lei 110/2009, na medida em que confere ao privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora primazia sobre o penhor, mesmo que de constituição anterior.

  

Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, alteram a sentença de graduação recorrida, determinando que em primeiro lugar sejam pagos os créditos reconhecidos do ISS, IP- CD de .... constituídos nos 12 meses anteriores ao início do processo; em tudo o mais mantêm a decisão recorrida.

Custas na proporção de 7/8 pela apelante e 1/8 pela massa insolvente.

Relator: Freitas Neto

Adjuntos:

1º - Carlos Barreira

2º - Barateiro Martins


[1] Na sua obra “Dos Privilégios Creditórios: Regime Jurídico e sua influência no concurso de credores”, p. 132-134.
[2] Salvaguardada a deferência devida, pensamos que os invocados fundamentos se traduzem antes em meros argumentos, porquanto o único fundamento da inconstitucionalidade está no entendimento de que o art.11 do DL 103/80 – hoje art.º 205 do CRCSPSS – atenta contra o princípio da confiança plasmado no art.º 2º da CRP por postergar a preferência da hipoteca registada anteriormente diante do privilégio imobiliário geral atribuído ao crédito da Segurança Social.