Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1513/19.6T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCIDENTE
INCUMPRIMENTO
MULTA
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.41 DA LEI Nº 141/2015 DE 8/9 ( RGPTC )
Sumário: A condenação em multa prevista no artº 41º da Lei n.º 141/2015, de 08.09, que aprovou o RGPTC, não exige a prova de um incumprimento reiterado e grave - bastando um simples e singelo, posto que relevante -, e competindo ao incumpridor provar causa de justificação do mesmo, vg. que agiu sem culpa.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

L (…)  instaurou incidente de incumprimento alimentício contra LM (…) relativamente às filhas menores de ambos L (…)  e L (…)

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida a seguinte decisão:

«Face ao exposto, nos termos do disposto no art. 41º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, declaro o incumprimento do pagamento da prestação de alimentos por parte do requerido LM (…) às suas filhas L (…) e L (…), julgando vencida a quantia de € 486,60 (quatrocentos e oitenta e seis euros e sessenta cêntimos) referente à falta de entrega da pensão de alimentos das crianças de Março a Setembro de 2019, descontado o tempo em que as crianças estiveram acolhidas.

De harmonia com o disposto no artigo 41.º n.º 1 do Regime Geral de Processo Tutelar Cível, atento o incumprimento reiterado, vai o requerido condenado na multa no montante de € 100,00.»

2.

Inconformado quanto à condenação em multa recorreu o pai.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O recurso versa sobre a decisão de 18.11.2019, referência citius 81377379, a qual, ao abrigo do disposto no art. 41º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, condenou em multa no montante de € 100,00.

2. O tribunal a quo fundamentou a sua decisão no incumprimento reiterado.

 Contudo, dos factos provados resulta apenas o seguinte:

 III. Factos Provados Com interesse para a decisão da causa considera o Tribunal assentes os seguintes factos:

a)L (…) encontra-se registada como nascida a 19.07.2007 e filha de L (…) e LM (…)

 b)L (…) encontra-se registada como nascida a 04.02.2012 e filha de L (…) e LM (…).

c)Por decisão provisória datada de 26.03.2019, transitada em julgado, foram as crianças confiadas aos cuidados da mãe, determinando-se o pai ao pagamento da pensão de alimentos no montante mensal individual de € 50,00, até ao último dia de cada mês, a atualizar anualmente no montante de € 1,00 para cada uma das crianças, com início em Janeiro de 2020.

 d)O requerido não entregou qualquer quantia à mãe das crianças e jovens a título de pensão de alimentos desde Março a Setembro de 2019.

 e)As crianças estiveram acolhidas na C (…) de 18.04.2019 a 21.06.2019.

 3. Da motivação consta o seguinte, “No caso em apreço, verifica-se que o requerido não logrou fazer prova, como lhe competia, do pagamento da integralidade das quantias reclamadas, importando assim declarar o seu vencimento, descontado o tempo em que as crianças estiveram acolhidas, sendo irrelevantes nos presentes autos as alegadas dificuldades económicas do progenitor, não se tratando aqui da alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais.”

4. Entendemos que o tribunal não pode aplicar a multa nos termos em que o fez, sem que exista prova de que o incumprimento seja reiterado, grave e culposo.

5. Pois que, dos factos provados não podemos concluir por tal, não se vislumbrando que tenha existido da parte do recorrente qualquer incumprimento reiterado e grave, culposo, que permita assacar-lhe um efectivo juízo de censura, pelo que se entende que tal sentença é nula nos termos do art. 615, nº 1, b e c) do Código de processo civil.

6. Ou, caso assim não se entenda, o Mmo. Juiz, decidido da forma como o fez, violou expressamente as normas do art. art. 41º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.

7. Devendo por estes motivos ser revogada a decisão recorrida na parte em que condena o requerente numa multa.

Contra alegou a Digna Curadora pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

1. De harmonia com o disposto no art. 41º n.º 1 a 3 e 7 do RGPTC, quando um dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido, após a realização das diligências de prova que se afigurem necessárias e pertinentes, o juiz decidirá.

2. A requerimento, ou mesmo oficiosamente, o tribunal, perante o incumprimento, provê às diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa, até 20 unidades de conta.

3. O incumprimento reiterado por parte do pai, (retratado na matéria de facto dada por provada) consubstancia factualidade bastante para fundamentar a condenação em multa pelo mínimo legal (uma uc).

4. Cabe aos pais, no interesse dos filhos, velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento e dirigir a sua educação (art. 1878º, n.º 1, CC), estribando-se este princípio na ideia de unidade parental que se deve manter (se possível) mesmo após a dissolução da unidade conjugal ou vivencial. Ademais, cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos (art. 1885º, n.º 1, CC).

 5. O dever de alimentos dos pais para com os seus filhos menores assume uma tal magnitude – eivada inclusivamente por traços de cariz ético-moral que encontram a sua génese em princípios de direito natural – que os pais, enquanto devedores da prestação de alimentos, só se podem dela eximir em circunstâncias especialíssimas e extremas, sendo igualmente exigível aos pais que façam algum esforço e até sacrifício para cumprirem cabal e dignamente a sua eminente e relevante função de proteção e amparo dos filhos.

6. Atenta a especial fragilidade inerente à condição de criança dos filhos menores carecidos de alimentos, a repetição do não pagamento da pensão constitui em si próprio ato grave que merece censura e por si bastante para a condenação em multa pelo mínimo, como o fez o Mmº Juiz.

7. A decisão em recurso atendeu à factualidade provada e fez dela correta ponderação.

 8. Deve ser negado provimento ao recurso e confirmar-se a decisão recorrida.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Ilegalidade da decisão que condenou em multa.

4.

Os factos a considerar são os dimanantes do relatório supra, aliás, vertidos nas conclusões recursivas.

5.

Apreciando.

5.1.

Liminarmente.

O presente recurso, apresenta-se, ao menos numa exegese, a um tempo exigente e estrita, mas, a banda outra, razoável e sensata, quasi que em litigância com abuso de direito e, ao menos  perfunctóriamente, eivado  de má fé.

Abuso de direito porque, não obstante a faculdade recursiva concedida pelo artº 27º nº6 do RCP, estamos a falar numa quantia minudente, quer em termos absolutos, em si mesma – 100 euros -,  quer por comparação com o valor alimentício que se provou o recorrente não ter entregue, como devia e estava obrigado, às suas filhas - € 486,60 euros.

Na verdade, o trabalho e a despesa que o recorrente dá e acarreta aos órgãos públicos da justiça ultrapassam em muito tal valor.

Má fé porque é caso para dizer que o recorrente se sente, pressurosamente, injustiçado, e, quiçá, ofendido, por ser condenado numa multa de 100 euros decorrente de um provado incumprimento alimentício para  com as suas filhas; mas já não teve qualquer preocupação  ou pejo com as possíveis consequências nocivas  do mesmo para com as suas descendentes.

Urge litigar com razoabilidade, bom senso, e, se possível, até com alguma sensibilidade.

5.2.

Posto isto, e mesmo que assim não fosse ou não se entenda, perscrutemos o cerne da questão.

Em termos de prefácio.

Há que dizer que inexiste qualquer nulidade na sentença, como apontado.

Pois que nela se decidiu, e apenas se decidiu, qualitativa e quantitativamente, no âmago e âmbito do objecto do incidente, e, ademais, com adução alicerçante – curial ou menos curial, infra se analisará -  de lastro factual e jurídico.

Na verdade, o recorrente confunde nulidade com ilegalidade e disso se deu conta quando, afinal, centra o seu discurso nesta última vertente.

Quanto ao mais efetivamente relevante.

Estatui o artº 41º nº1 da  Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro, que fixou o REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL:

Artigo 41.º

Incumprimento

1 - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.

Vemos assim que a condenação em multa pode ser aplicada oficiosamente ou a requerimento e que a mesma não está dependente de um incumprimento reiterado ou prolongado no tempo, antes sendo requisito bastante para a sua emergência a verificação de um simples e único incumprimento.

Destarte, e no que tange ao pagamento da prestação alimentícia, tanto fundamenta a condenação em multa o não pagamento de uma mensalidade, como o não pagamento de várias mensalidades.

A reiteração não releva qualitativamente.

Pode é relevar quantitativamente, na medida em que a multa, neste caso, poderá/deverá ser mais elevada.

No caso vertente.

Diz o recorrente que não ficou provado que o incumprimento tivesse sido reiterado, grave e culposo, requisitos necessários para a sua condenação em multa.

No atinente à reiteração, e ainda que tal plus não fosse necessário, como se viu, ele, porque se provou que o pai não pagou vários meses de pensão de alimentos, existiu e está presente.

E foi por isto, e bem, que o julgador entendeu existir reiteração.

No atinente ao alegado pressuposto da «gravidade», vista a letra da lei nela não se enxerga a sua exigência.

Certo é que, aqui como noutros casos e matérias, não pode, numa sensata e razoável postura hermenêutica, ser um qualquer minudente incumprimento que apenas descambe numa quase inócua ou irrelevante afetação negativa do menor, que pode clamar a conclusão sobre a verificação de um incumprimento, máxime, e no que ora releva,  merecedor de condenação em multa.

Mas, naturalmente, principalmente neste campo dos  menores - no qual, como é consabido, são os interesses deles e a sua defesa, cabal, atempada e profícua, a pedra de toque de toda a dilucidação a qual, única ou determinantemente, releva -, não pode ser exigível um grau de gravidade tal que, se não for consecutido,  impede o recurso ao incidente de incumprimento e à possível condenação em multa.

Em todo o caso, provado que foi o incumprimento relevante e digno de tutela incidental, a falta de pagamento da pensão durante vários meses, a mãe cumpriu, suficientemente, o ónus que lhe competia.

Pois que, perante tal incumprimento, sobre ela não impende o ónus de provar causas adicionais não alicerçantes ou nucleares - mas apenas agravantes -, ou sub causas, ademais legalmente inexigíveis, como se viu.

Tal é assim, nomeada e frisantemente, no atinente à culpa do pai, ou falta dela, no apurado incumprimento.

Como é bom de ver, o incumprimento faz presumir esta culpa, quanto mais não seja por apelo às regras gerais – artº 799º do CC -.

Pelo que o ónus da prova da falta de culpa, como exceção perentória, impeditiva ou obstativa dos efeitos do incumprimento deda inerente presunção de culpa, sobre o recorrente impendia – artº 342º nº2 do CC.

Ónus que não logrou cumprir.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

A condenação em multa prevista no artº 41º da Lei n.º 141/2015, de 08.09, que aprovou o RGPTC, não exige a prova de um incumprimento reiterado e grave - bastando um simples e singelo, posto que relevante -, e competindo ao incumpridor provar causa de justificação do mesmo, vg. que agiu sem culpa.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2020.02.18.

Carlos Moreira (Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos