Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
164/05.7TBVLF.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: MANDATO
PROCURAÇÃO
REPRESENTAÇÃO
ABUSO DE PODERES
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – GUARDA – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 262º, 1157º E 1161º DO C. CIVIL.
Sumário: I – Não é possível proceder à reapreciação da matéria de facto se as Recorrentes se limitam a apresentar a sua discordância do Tribunal quanto à credibilidade conferida a determinada testemunha em detrimento de outra.

II - Quando a sentença proferida já foi anulada em anterior recurso, que determinou a anulação parcial do julgamento para ampliação da base instrutória, em novo recurso da sentença que posteriormente for proferida devem as Recorrentes suscitar de novo todas as questões que pretendem ver reapreciadas.

III - Mandato e representação são duas figuras distintas, podendo o mandato operar sem necessidade de procuração. De comum, têm a circunstância de quer o mandatário, quer o procurador agirem por conta do mandante ou dominus. O mandato com representação é um negócio misto de mandato e de procuração.

IV - É a relação subjacente que vai definir o conteúdo material da procuração, delimitar os poderes e modelar a atuação do procurador, ou seja, é pela relação subjacente que ele deve nortear a sua atuação. Em situações de alguma indefinição ou em caso de dúvida, será em função da relação subjacente que o procurador pode perspetivar qual seja o interesse do dominus.

V - Verifica-se o abuso de poderes quando, formalmente, o representante atua no domínio dos poderes que lhe foram conferidos, mas, em termos substanciais, se desvia da finalidade com que eles lhe foram conferidos; o procurador age contra (ou para além) o interesse do dominus, perseguindo normalmente um interesse próprio (ou de terceiro) e conflituante com o do representado. Já no excesso de mandato o procurador atua formalmente para além dos limites dos poderes conferidos.

VI - Não deve confundir-se o abuso de representação (abuso de poderes) com a representação sem poderes.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            S…, SA, (que entretanto alterou a sua denominação para R…, SA), instaurou ação contra I… (substituído no decurso do processo pelos seus herdeiros habilitados T…, …) e contra A…, pedindo a sua condenação a verem declarado o seu incumprimento contratual, a restituir-lhe o montante de € 37.400,00 e a pagar-lhe indemnização pelos prejuízos causados e resultantes de tal incumprimento contratual, sendo € 16.464,00 já quantificados e os restantes a liquidar em execução de sentença, bem como juros moratórios sobre tais quantias.

                Para suporte de tais pedidos, invocou um contrato firmado com o Réu I…, mediante o qual ele lhe transmitiu os “direitos de replantio da vinha” em 3 prédios, pelo preço de € 37.400,00. Esse negócio foi concretizado pelo Réu A…, que atuou como procurador do Réu I…, mas também em seu nome e interesse próprios.

Condição essencial desse negócio era o arranque prévio da vinha existente nos prédios, o que os Réus nunca fizeram, o que acarretou o indeferimento da autorização definitiva para o replantio da vinha e da transmissão dos direitos por parte do Instituto da Vinha e do Vinho (organismo que tutela tal tipo de contratos), e a consequente impossibilidade definitiva de concretização do negócio.

Ambos os Réus contestaram.

O Réu I… referindo não ter celebrado qualquer contrato, uma vez que o mandato conferido ao co-Réu não comportava poderes para a dita compra e venda, mas apenas para consulta.

O Réu A… descartou qualquer responsabilidade pessoal, uma vez que agiu apenas e tão só na qualidade de mandatário do I...

                As partes ainda esgrimiram argumentos em sede de réplica e tréplica.

Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença condenando os Réus a pagar à Autora a quantia de € 37.400,00, acrescida de juros de moratórios, absolvendo-os do demais peticionado.

Essa sentença foi objeto de recurso por parte das habilitadas T… e M...

Este Tribunal da Relação de Coimbra decidiu anular o julgamento “para que a 1ª instância amplie a base instrutória nos termos sobreditos e realize novo julgamento em conformidade com o artigo 712º, n.º 4 do CPC, e com atenção ao disposto no artigo 650º/3 e na 2ª parte daquele n.º 4, devendo por fim ser proferida nova sentença”.

A 1ª instância agiu em conformidade e após proceder a novo julgamento, proferiu sentença condenando “os réus …, enquanto herdeiros habilitados de I…, com fundamento em incumprimento contratual, a pagar à autora a quantia de 37.400,00 € (trinta e sete mil e quatrocentos euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento”. [[1]]

2.            Ainda inconformadas, apelam de novo as habilitadas T… e M… para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:

3.            A Autora contra-alegou e concluiu:

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.            OS FACTOS

A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:

                5.            O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 635º nº 3 e 4, 639º nº 1, 640º nº 1 e 608º n.º 2, ex vi do art. 663º nº 2, todos do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

No caso, são as seguintes as questões a decidir:

  • Impugnação da matéria de facto
  • Delimitação objetiva do recurso: conhecimento das questões suscitadas no anterior recurso
  • Se existiu vinculação contratual do Réu I… (mandato, procuração, representação sem poderes)

5.1.         IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO (conclusões 27ª a 38ª)

São hoje da maior amplitude os poderes conferidos aos Tribunais da Relação para proceder à alteração/modificação da matéria de facto, provada ou não provada, tida em conta na 1ª instância (cf. art. 662º do CPC).

Na verdade, permite-se-lhe agora que no processo de formação da sua própria convicção, o Tribunal da Relação possa, não só reapreciar os meios probatórios produzidos em 1ª instância, mas inclusive proceder à renovação desses meios de prova e até ordenar a produção de novos meios de prova.

Porém, essa sindicância está absolutamente dependente do cumprimento pelo Recorrente do ónus de alegação que se lhe impõe no art. 640º do CPC, do seguinte teor:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”.

                O incumprimento destas regras formais são tidas pela lei como preclusivas à possibilidade de o Tribunal da Relação se debruçar sobre a matéria de facto, impondo-se-lhe a rejeição do recurso nessa parte.

Nas suas conclusões, designadamente as numeradas de 27 a 38, as Recorrentes questionam a credibilidade atribuída pela 1ª instância ao depoimento da testemunha C...

Em função disso, pretendem “uma apreciação mais criteriosa dos factos” (conclusão 38).

Ora, resulta claro das conclusões de recurso, atrás transcritas, que as Recorrentes não cumpriram minimamente o ónus de alegação que se lhe impunha.

Na verdade, são elas totalmente omissas sobre qualquer um dos segmentos impostos nas diversas alíneas do nº 1 do referido art. 640º do CPC: não se identificam quais “concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”, nem qual o diverso sentido em que os factos deveriam ter sido considerados; da mesma feita, referindo-se o nome de duas das testemunhas ouvidas em julgamento, não se refere qual o segmento do respetivo depoimento que impunha decisão diversa, sendo que, tendo o depoimento dessas testemunhas sido sujeito a gravação, as Recorrentes omitiram completamente o segmento imposto pelo art. 640º nº 2 al. a) do CPC, ou seja, não indicaram com exatidão as passagens da gravação.

                Como refere Abrantes Geraldes, «Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida, (…).». [[2]]

                Poder-se-ia avançar com a hipótese de o tribunal lançar mão de um despacho de aperfeiçoamento; porém, a lei descartou tal possibilidade, como era, aliás, já entendimento unânime quer na doutrina, quer na jurisprudência. [[3]]

                O que das ditas conclusões se extrai com segurança é que as Recorrentes discordam do Tribunal quanto à valoração do depoimento duma testemunha em detrimento de outra.

Neste aspeto, sob pena de se estar a considerar a “livre convicção do Recorrente”, em detrimento da “livre convicção do julgador”, não é curial que se fundamente o ataque à matéria de facto fornecendo apenas a versão dos factos que se considera mais correta.

                Desde logo porque, tratando-se em ambos os casos de livre convicção”, com o que ela tem de pessoal, incumbiria sempre a mesma pergunta: qual delas seria a mais consentânea com a realidade material?

O dar mais ou menos credibilidade ao depoimento de uma testemunha (o que pode acontecer in totum ou apenas em parte), em detrimento de outra, é o que consubstancia/materializa o princípio da livre apreciação da prova, na sua vertente de liberdade da valoração dos meios de prova.

                Assim sendo, não se mostrando reunidos os pressupostos de índole formal exigidos pelo art. 640º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do CPC, rejeita-se o recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto.

5.2.          CONHECIMENTO DE QUESTÕES SUSCITADAS EM ANTERIOR RECURSO (conclusão 2ª)

                As Recorrentes sintetizaram as questões que pretendem ver apreciadas no recurso na sua conclusão 2ª, onde referem, para além do mais, aquelas “2.1 – Questões colocadas no recurso anterior e cuja apreciação ficou prejudicada pela necessidade de ampliação da base instrutória;”.

Efetivamente, como resulta do teor do douto acórdão proferido por esta Relação em 12/03/2013, não se tomou conhecimento sobre qualquer das questões sujeitas a recurso, antes se tendo decidido, oficiosamente, «(…) anular o julgamento, para que a 1ª instância amplie a base instrutória nos termos sobreditos e realize novo julgamento em conformidade com o artigo 712º, n.º 4 do CPC, e com atenção ao disposto no artigo 650º/3 e na 2ª parte daquele n.º 4, devendo por fim ser proferida nova sentença».

As questões suscitadas pelas Recorrentes no anterior recurso versavam, naturalmente, sobre o âmbito factual e sobre os fundamentos legais que foram tidos em conta na primeira sentença proferida.

Sucede que, ao determinar-se a anulação do julgamento (ainda que parcialmente), se tornou imprescindível a prolação de nova sentença, mormente porque o novo julgamento implicou uma ampliação da matéria de facto.

Uma sentença adquire força e valor de caso julgado, no sentido de ficar a ter “força obrigatória dentro do processo e fora dele”, logo que ultrapassado o prazo para se deduzir recurso ou reclamação: art. 619º nº 1 e 628º do CPC.

Por outro lado, e em termos gerais, pode dizer-se que contendo a sentença vários segmentos decisórios, pode a parte desfavorecida pretender que o recurso verse apenas sobre um ou outro, situação essa que vincula o tribunal superior e implica o trânsito em julgado dos segmentos decisórios não impugnados: art. 635º do CPC.

Assim, todas as questões suscitadas no recurso anterior perderam relevância e deixaram de ter objeto, uma vez que agora tudo se passa como se aquela primeira sentença, na parte não transitada em julgado, nunca tivesse existido.

5.3.         DA VINCULAÇÃO CONTRATUAL DE I... MANDATO E PROCURAÇÃO (conclusões 3ª a 26ª)

                Inexiste discordância entre as partes de que o negócio que se discute nos autos terá sido efetuado mediante interposta pessoa.

                Assim, a resposta à questão suscitada implicará dilucidar previamente a questão da procuração ou mandato outorgado ao A...

Se é hoje claro e consensual que a procuração nasceu da autonomização do instituto da representação em relação ao mandato, o mesmo já não pode dizer-se no tocante ao seu regime jurídico pois aqui continua a confundir-se frequentemente procuração com mandato.

Contudo, como é sabido, mandato e representação são duas figuras distintas, podendo o mandato operar sem necessidade de procuração.

Assim, o mandato com representação é um negócio misto de mandato e de procuração.

Juridicamente, o mandato é um contrato, ou seja, na sua estrutura existem pelo menos duas declarações de vontade e dele nascem, normalmente, obrigações para ambos os contratantes (mandante e mandatário): art. 1157º do Código Civil (de futuro, apenas CC).

Na constituição do mandato existe liberdade de forma.

O mandatário fica constituído num dever, a obrigação de praticar um ou mais atos jurídicos por conta do mandante.

Já a procuração, na medida em que constitui um mero acto de atribuição de poderes representativos, é um negócio jurídico unilateral e receptício; o procurador fica investido num poder (o poder de representação não obriga à prática dos atos, apenas a permite): art. 262º nº 1 CC.

Quer a origem, quer a extinção da procuração se processam por via unilateral.

Assim, por exemplo, mesmo que da procuração conste a renúncia ao direito de revogação, é livremente revogável, quer quanto à forma, quer quanto aos fundamentos (art. 265º nº 2 CC); só assim não será quando a procuração for outorgada ou constituída também no interesse do procurador ou de terceiro pois, nestas hipóteses, exige-se a concordância do interessado ou justa causa (art. 265º nº 3 CC).

O efeito jurídico da procuração é o de outorga de poderes de representação; já o efeito (jurídico) do poder de representação releva para que o ato praticado pelo representante produza efeitos na esfera jurídica do dominus.

Quanto à forma, ela dependerá da forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.

De comum, o mandato e a procuração têm a circunstância de quer o mandatário, quer o procurador agirem por conta do mandante ou dominus.

Este fator (agir por conta de outrem) é determinante no regime jurídico da procuração.

A frequência de tal confusão resulta da proximidade entre a figura do mandato e a da procuração; contudo, subjacente à procuração pode estar um qualquer outro negócio jurídico como um contrato de agência ou de trabalho; relevante é que alguém seja investido no poder de atuar por conta de outrem.

Assim, subjacente à procuração estará, sempre e naturalmente, uma qualquer situação da vida que constitui a sua causa; é uma concreta ocorrência que faz despertar a necessidade/vontade/oportunidade de se conferir poderes representativos a alguém.

Essa relação subjacente estabelece-se entre o dominus e o procurador, pelo que não pode confundir-se com o negócio a realizar: o negócio a realizar será o “fim” da procuração e não a sua causa; por outro lado, o negócio a realizar produz efeitos entre o dominus e o terceiro, enquanto que a relação subjacente produz efeitos jurídicos entre o dominus e o procurador.

A procuração é apenas o documento, o título que legitima o procurador a concretizar o negócio que o dominus não quer, ou não pode, concretizar por si próprio.

É a relação subjacente que vai definir o conteúdo material da procuração, delimitar os poderes e modelar a atuação do procurador, ou seja, é pela relação subjacente que ele deve nortear a sua atuação.

Em situações de alguma indefinição ou em caso de dúvida, será em função da relação subjacente que o procurador pode perspetivar qual seja o interesse do dominus.

As construções jurídicas atuais ligam não só à vontade mas ao interesse do representado. Daí que o interesse do dominus será sempre o critério de actuação do procurador.

O que motiva alguém a conferir a outrem poderes para o representar (que o mesmo é dizer, a outorgar procuração), podem ser as mais diversas circunstâncias, desde uma situação de necessidade (não ser possível estar fisicamente presente na concretização de um qualquer negócio), até a razões de simples comodismo (ausência de vontade de se deslocar para o efeito).

De qualquer forma, em termos jurídicos, não é esta motivação psicológica que constitui o aspeto mais relevante; ao instituto da representação apenas importam a motivação e o interesse juridicamente relevante.

E, se atendermos à diversidade e complexidade, quer das relações humanas, quer das circunstâncias objetivas da vida, não será difícil perspetivar que esse interesse pode ser comum, exclusivo ou preponderante a uma das partes ou a terceiro.

Por outro lado, será em função dessa relação subjacente que, em última instância, se poderão resolver questões (no domínio das relações internas, representante/representado) como a do abuso de poderes __ formalmente, o representante atua no domínio dos poderes que lhe foram conferidos, mas, em termos substanciais, desvia-se da finalidade com que eles lhe foram conferidos; o procurador age contra (ou para além) o interesse do dominus, perseguindo normalmente um interesse próprio (ou de terceiro) e conflituante com o do representado [[4]] __ ou do excesso de mandato __ o procurador atua formalmente para além dos limites dos poderes conferidos.

De referir que não pode confundir-se o abuso de representação (abuso de poderes) com a representação sem poderes (art. 268º CC) pois esta «(…) distingue-se do abuso de representação, de que trata o art. 269º, porque este é um desvio do fim que o acto deveria realizar, isto é, representa o exercício ilegítimo ou anormal do poder conferido, enquanto que naquela o acto é praticado em nome do representado mas sem terem sido conferidos, por este, ao representante, quaisquer poderes, ou fora dos limites da faculdade conferida.» [[5]] e são diferentes as consequências legais do negócio celebrado pelo procurador face ao representado.

Segundo o regime legal prescrito para o abuso de representação, a eficácia do negócio assim celebrado perante o representado dependerá de se apurar (…) se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso (art. 269º do CC, in fine).

A eficácia assegurada ao negócio nessas circunstâncias encontra fundamento na teoria da confiança, determinando a proteção de terceiros que, de boa fé e, por isso mesmo legitimamente, celebrem qualquer contrato.

O representado, por seu turno, também tem proteção legal, pois pode sempre demandar o representante que atuou em seu prejuízo.

Por força dessa eficácia, tudo se passa como se o contrato tivesse sido feito pelo próprio dominus, ou pelo seu representante no estrito cumprimento dos limites dos seus poderes de representação.

«O negócio celebrado com abuso de representação é, em regra, plenamente eficaz, correndo o risco do abuso por conta do representado, pelo que o acto se considera validamente celebrado em nome deste, sem prejuízo, obviamente, da responsabilidade que possa incidir sobre o representante». [[6]]

Já quanto à representação sem poderes, a lei sanciona-a com a ineficácia do negócio em relação ao dominus; contudo, e porque o representado pode até ter interesse no negócio, a lei prevê a possibilidade de este o ratificar; fazendo-o, o negócio adquire total eficácia, desde o momento da atuação do representante, como se nunca tivesse havido qualquer vício; fala-se por isso, a este propósito, de uma eficácia suspensa.

Por fim, convém referir que o agir por conta de outrem não significa que o procurador não tenha autonomia no seu agir.

A autonomia do procurador constitui até uma característica essencial da procuração pois se ela não existir, estamos antes perante a figura do núncio (a que se alude no art. 250º CC).

Na figura do núncio não existe qualquer espaço de liberdade de conformação; o núncio será a pessoa que apenas transmite uma declaração (“uma carta com pernas”), não tem qualquer capacidade decisória, de modelar os contornos da sua atuação.

Todavia, à autonomia do procurador não obsta a possibilidade de o dominus dar instruções: este pode sempre emitir orientações ou diretivas sobre a forma como deve agir o representante, modelando a sua atuação.

Delineado o regime legal, passemos ao caso em concreto.

                Entendem as Recorrentes nada permitir concluir “que a chamada “procuração” consubstancie um mandato a favor do réu A… para este poder vender os direitos de replantio a terceiros e, muito menos, para poder vender (esses invocados direitos) à autora”.

Consta do dito documento designado “procuração”, de 26.04.2002, que o Sr. I… «(…) Constitui seu Bastante Procurador o sr. A… (…) tratar de todos os assuntos respeitantes às suas propriedades sitas na Freguesia de Santa Comba Concelho de Vila Nova de Foz Côa.

Mais lhe confere Poderes para o Representar junto do Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro, sito no Peso da Régua, assinando e praticando tudo quanto necessário, Nomeadamente Consultar o Ficheiro vinícola, Declarações de Arranque, Modificações da Estrutura da Exploração Agrícola, Direitos de Plantação, Transferência de Direitos de Plantação. (…)». (negritos nossos)

Como se sabe, a regra nos negócios jurídicos em geral é a de a declaração negocial valer com o sentido que um declaratário normal [[7]], colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante e, quando corporizada num documento, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto: art. 236º nº 1 e 238º nº 1 do CC.

Sendo o Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro um organismo que coadjuva a Casa do Douro (a quem competia, à data, disciplinar a produção de vinho do Porto, designadamente no tocante aos direitos de plantação/replantação de vinha, atualização do cadastro, distribuição do benefício, poderes de fiscalização) poderia parecer à primeira vista que os poderes representativos concedidos se reportavam apenas aos atos necessários para que o referido A… tratasse apenas das questões burocráticas aos direitos de plantação e sua transferência.

E isto, naturalmente, que constitui situação bem diversa da concessão de poderes para a própria venda dos ditos direitos de plantação.

Uma coisa é que alguém conceda poderes a outrem para que, junto de um organismo oficial, assine e pratique todos os atos necessários a direitos de plantação e respetiva transferência.

Realidade fáctica e jurídica diferente é a concessão de poderes para venda desses direitos de plantação.

Ou seja, o Sr. I… poderia, por si próprio, proceder à negociação e conclusão do negócio de venda dos direitos de plantação de que era titular (designadamente em termos de escolha do comprador, do preço a pagar e das demais condições do negócio).

Porém, e dado que esse negócio está sujeito a determinadas condicionantes/autorizações de organismos oficiais, não querendo fazê-lo por si, poderia conceder ao Sr. A… os poderes para tratar da parte burocrático-legal desse negócio junto da Casa do Douro/ Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro.

Esta seria a melhor interpretação face ao texto da procuração.

Porém, como atrás já se deixou dito, há que contar com a relação subjacente para definir o conteúdo material da procuração, a delimitação dos poderes concedidos sendo que, em situações de dúvida, o critério de orientação residirá na motivação e no interesse do dono do negócio.

Ora, para além do texto da procuração, consta como factos provados que, em 2002, o réu I… pretendeu vender/transmitir a terceiros todos os direito de replantio da vinha respeitante aos prédios em questão e que foi para esse efeito que mandatou e passou procuração a favor do réu A… com os poderes para diligenciar pela venda ou transmissão onerosa dos referidos direitos (factos 6 e 7).
                Daqui resulta que o mandato (com representação) foi conferido com essa finalidade específica, de diligenciar pela venda dos direitos de plantação, tratando também de tudo o que fosse necessário junto do Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro.
                E nessa expressão genérica de “diligenciar pela venda dos direitos de plantação” deve considerar-se incluída a capacidade para escolha do comprador e do preço devido pela venda.

                «Cunha Gonçalves (…), citava, entre outros, os seguintes exemplos: (…) a) – O mandato para vender compreende os poderes de receber o preço convencionado e dar a respectiva quitação; (…)

Sem este princípio salutar de interpretação do mandato, obrigar-se-ia as pessoas a entrarem em concretizações minuciosas e desnecessárias na enumeração dos poderes conferidos ao mandatário e haveria de correr-se quase sempre o risco de o mandato não alcançar os seus objectivos, por falta de precisão e de providências quanto aos múltiplos incidentes que a sua execução pode encontrar na prática.». [[8]]
                Por outro lado, convém não esquecer que um dos pressupostos fundamentais do instituto da representação (e, por inerência, do mandato com representação) reside em determinada autonomia no agir do representante, «(...) consiste em a pessoa que age em nome de outrem declarar, em maior ou menor medida, a sua própria vontade e não, pura e simplesmente, a vontade desse outrem. (...) O representante não se limita a transmitir mecanicamente a vontade de outrem, mas resolve, quer por esse outrem. Nem que não seja senão porque, estando embora preordenada pelo dominus todas as condições do negócio, fica reservado ao representante o decidir em última instância sobre a sua conclusão ou não-conclusão.». [[9]]

                Ou seja, não tendo o Sr. I… dado instruções específicas sobre a pessoa do comprador e sobre o preço por que queria vender, deixou a definição desses elementos na esfera de liberdade de atuação do Sr. A…, seu procurador nomeado.

                Estamos no domínio do mandato geral, por contraposição ao mandato especial (art. 1159º do CC).

                «Considera-se mandato geral aquele que, formulado em termos absolutamente genéricos, confere os poderes para a prática de uma quantidade indeterminada de actos jurídicos de administração ordinária, relativamente a uma situação jurídica de que é sujeito o mandante. O conceito de administração ordinária é um conceito relativo, (…).

                Deve considerar-se mandato especial o encargo, aceite pelo mandatário, de praticar um ou mais actos jurídicos determinados. [[10]]

                Atente-se que no caso em apreço não estamos face a uma venda de imóveis, mas apenas dos direitos de plantação de vinha nesses imóveis, o que já cabe no âmbito duma gestão ordinária.

Nesta medida, temos de concluir que, através do mandato com representação, o Réu I… conferiu a A… poderes para vender a terceiros os direitos de replantio de vinha nos prédios em questão.

Quanto a um possível abuso de representação por parte de A… (no sentido de que este se tivesse desviado da finalidade pretendida pelo I…, antes agindo contra ou para além do seu interesse e perseguindo um interesse próprio), inexiste qualquer factualidade que o indique.

Segundo o regime legal prescrito para o abuso de representação, o negócio só seria ineficaz perante o representado desde que se provasse que “a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso”: art. 269º do CC, in fine.

Também nada se provou quanto a esse pressuposto.

Por fim, ficou provado que a Autora pagou o preço acordado a A. em 23.07.2002.

Assim, quanto à alegação de que A. não teria entregue o preço ao Réu I., tal não contende com a eficácia da venda, antes se tratando de uma questão diversa (o das relações internas, entre mandante e mandatário)  —— a da responsabilidade civil contratual, derivada do mandato concedido ——, mas sem qualquer relação com a Autora.

Na verdade, como se colhe da alínea e) do art. 1161º do CC, o mandatário está obrigado a “entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato”.

Às herdeiras habilitadas do Réu I… restará acionar A… para receber o preço.

                6.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)

a) Não é possível proceder à reapreciação da matéria de facto se as Recorrentes se limitam a apresentar a sua discordância do Tribunal quanto à credibilidade conferida a determinada testemunha em detrimento de outra.

b) Quando a sentença proferida já foi anulada em anterior recurso, que determinou a anulação parcial do julgamento para ampliação da base instrutória, em novo recurso da sentença que posteriormente for proferida devem as Recorrentes suscitar de novo todas as questões que pretendem ver reapreciadas.

c) Mandato e representação são duas figuras distintas, podendo o mandato operar sem necessidade de procuração. De comum, têm a circunstância de quer o mandatário, quer o procurador agirem por conta do mandante ou dominus. O mandato com representação é um negócio misto de mandato e de procuração.

d) É a relação subjacente que vai definir o conteúdo material da procuração, delimitar os poderes e modelar a atuação do procurador, ou seja, é pela relação subjacente que ele deve nortear a sua atuação. Em situações de alguma indefinição ou em caso de dúvida, será em função da relação subjacente que o procurador pode perspetivar qual seja o interesse do dominus.

e) Verifica-se o abuso de poderes quando, formalmente, o representante atua no domínio dos poderes que lhe foram conferidos, mas, em termos substanciais, se desvia da finalidade com que eles lhe foram conferidos; o procurador age contra (ou para além) o interesse do dominus, perseguindo normalmente um interesse próprio (ou de terceiro) e conflituante com o do representado. Já no excesso de mandato, o procurador atua formalmente para além dos limites dos poderes conferidos.

f) Não deve confundir-se o abuso de representação (abuso de poderes) com a representação sem poderes.

                III.           DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo das Recorrentes.

                                                                                                              Coimbra, 10/02/2014


(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)



[[1]] Logo na sua conclusão 1ª pretendem as Recorrentes a correção de lapsos de escrita constantes da sentença. No que toca ao nome de “M…”, tem-se como evidente tratar-se de erro de escrita, pelo que, ao abrigo do art. 249º do CC, aqui se corrige para “M…”.

O mesmo se diga quanto à amplitude da “procedência” da ação. Na verdade, a Autora atribuíra ao pedido o total de € 53.464,00, correspondendo ao somatório do montante de capital (€ 37.400,00) e dos juros moratórios que, à data da interposição da ação, já somariam € 16.464,00. Ora, como se lê no dispositivo da sentença, a condenação em juros foi atendida apenas desde a citação até integral pagamento”, o que forçosamente restringe o âmbito da condenação. Concluindo, deve substituir-se “procedente” por “parcialmente procedente”.
[[2]] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 135.
[[3]] Cf. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição, 2014, pág. 134; Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, Almedina, 2004, 2ª edição, pág. 585; Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2008, 8ª edição, pág. 170 (nota 331). Em termos jurisprudenciais, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (de futuro, apenas STJ), de 06.02.2008 (processo 07S3903), de 06/11/2006 (processo 06S2074) e de 24.01.2007 (processo 06S2969), todos disponíveis em www.gde.mj.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. Cf, ainda e do mesmo STJ, acórdão de 23.11.11, consultável na Coletânea de Jurisprudência (de futuro, apenas CJ), Acórdãos do STJ, XIX, III, pág. 126.

[[4]] 1 Com interesse, cf. Raul Guichard Alves, em estudo intitulado ”Notas sobre a Falta e Limites do Poder de Representação”, in separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, Janeiro-Setembro, 1995, Ano XXXVII (X da 2ª Série), nº 1, 2 e 3, pág. 33, nota 62, onde este autor nos dá nota de uma classificação operada por H. Stoll da forma seguinte: «Este autor distingue entre: actuações do representante contrárias ao fim ou finalidade para que o poder foi concedido (“zweckwidrige Geschafte”), isto é, que não prosseguem os objectivos que o dominus se propunha ao conceder os poderes, por exemplo, a conclusão de negócios anormais ou “extravagantes”; actuações contrárias a “vinculações internas” do representante (“pflichtwidrige Geschafte”), nas quais ele actua ao arrepio de instruções para o exercício do poder ou mesmo de restrições deste não integradas no conteúdo da procuração; actuações “desleais” (“treuewidrige Geschafte”), o que significaria afinal que o representante utiliza, “aproveita” a sua situação para prosseguir interesses próprios, desprezando o do dominus (actuando, assim, em prejuízo deste).
No mesmo sentido, Pais de Vasconcelos, “A Procuração Irrevogável”, Almedina, 2002, pág. 77/78.

[[5]] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”, vol. II, edição de 1988, pág. 19, nota 1ª ao artigo 268º.

[[6]] In acórdão do STJ, de 22.02.2005 (processo 04A4824).

No mesmo sentido, acórdão da Relação do Porto (RP), de 22.06.2004 (processo 0420834) e da Relação de Lisboa (RL), acórdão de 29.04.2003 (processo 1636/2003-7).

[[7]] Ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente, no contexto e no quadro das circunstâncias concretas em que as declarações foram produzidas.

[[8]] Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. II, Coimbra Editora, 3ª edição, pág. 712, anotação 3 ao artigo 1159º.
      [[9]] Manuel de Andrade, "Teoria Geral da Relação Jurídica", vol. II, Coimbra, 1983, pág. 302.
[[10]] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”, vol. IV, Rei dos Livros, 1995, pág. 269/270.