Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1313/08. 9PBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: AMEAÇA
Data do Acordão: 10/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 153º CP
Sumário: A expressão “Mato-vos a todos” ilustra um sentimento de agressividade, patente no momento da sua afirmação, mas, também, inelutavelmente, projectando-se para um momento futuro e posterior
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

Nos presentes autos foi o arguido V… acusado da prática de dois crimes de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 do Código Penal.

Por despacho de fls. 177, foi a acusação rejeitada, por se considerar que os factos ali descritos não constituíam crime, nos termos do artigo 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do CPP.


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O Ministério Público interpôs recurso de tal despacho, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes conclusões:

I- No presente recurso a questão essencial prende-se com a apreciação do sentido da expressão "Mato-vos a todos", em ordem a permitir a imputação ao seu autor da prática de dois crimes de ameaça previsto no art. 153° do Código Penal.

II- A mencionada expressão foi dita pelo arguido, no decurso de uma discussão com outrem, relacionada com um diferendo relacionado com o final de relacionamento entre o arguido e uma das ofendidas.

III- A aludida expressão, ainda que situável no tempo presente, tem em si, dados os termos da sua formulação, uma componente que permite aceitar que a acção proposta se situe em momento futuro, ilustrando um caso em que o tempo verbal não corresponde ao tempo cronológico.

IV- Aquela detendo uma carga agressiva visível desde o momento da sua afirmação, não se esgota no momento presente, aceitando-se que, não ocorrendo qualquer ofensa física naquele momento, possa ilustrar a vontade de o praticar em momento posterior.

V- O contexto em que a frase foi dita aliada à existência de um diferendo entre arguido e as ofendidas e a possibilidade dele se prolongar no tempo, permite concluir pela idoneidade da mesma em causar medo e inquietação no seu destinatário.

VI- Ao proferir o despacho ora objecto de recurso o Exmº Juiz violou o disposto nos arts. 153°, n.º 1 do CP e arts. 311 ° e 312°, n.º 1 do CPP.

 Nestes termos entendo que deverá ser dado provimento ao recurso, substituindo-se o despacho do Exmº Juiz por outro que receba a acusação deduzida contra o arguido como autor de dois crimes de ameaça, previsto pelo art. 153º, n.º 1 do CP.


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O arguido não respondeu.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

É do seguinte teor o despacho recorrido (por transcrição):

(…)

 O crime de que o arguido está acusado é assim descrito na lei "quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias" (art. 1530 do C.P.). No acervo factual, consta "depois de ali encontrar a sua ex-mulher e mãe desta ( ... ) e dirigindo-se a ambas e exibindo um objecto com aparência de uma arma, proferiu a seguinte frase "Mato-vos a todos". A realidade exteriorizada pelo arguido encontra-se no presente do indicativo, não se mostrando alegado outro circunstancialismo. A ameaça pressupõe a exteriorização de um mal futuro, o que não é o caso. Trata-se antes de uma expressão grosseira dita num agora. O anúncio iminente de uma agressão a concretizar no preciso momento em que a expressão é proferida não revela um anúncio ou manifestação de execução de um mal futuro como exige a norma que a acusação pede para ser aplicada ([1]).

§4. Assim, nos termos do art. 311º nº 2 a) e nº 3 d) do C.P.P. rejeito a acusação.

(…).


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APRECIANDO

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações, de acordo com o estabelecido no art. 412º, n.º 1 do CPP, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.

No caso presente, perante as conclusões da motivação, a questão submetida à apreciação deste tribunal consiste em saber se os factos descritos na acusação são susceptíveis de integrar a prática do crime de ameaça.


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O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de dois crimes de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 do CP, porquanto:

«No dia 24 de Novembro de 2008, cerca das 13H30, o arguido dirigiu-se à residência de D…, mãe da sua ex-mulher (S…), sita na Rua… em Leiria.

Depois de ali encontrar a sua ex-mulher e mãe desta, abeirou-se delas e dirigindo-se a ambas e exibindo um objecto com aparência de arma, proferiu a seguinte frase: "Mato-vos a todos.",

Estas expressões foram ditas com o intuito de condicionar a livre determinação de D…s e S… .

O arguido estava ciente que as frases proferidas eram aptas a condicionar o comportamento de D… e S… .

O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.»

Considerou o Exmº Juiz a quo que a expressão proferida pelo arguido se encontra no presente do indicativo e, não tendo sido alegado outro circunstancialismo, a mesma não evidencia um anúncio de execução de um mal futuro, como exige a norma que a acusação pede para ser aplicada.

Discordando do despacho recorrido, alega o MP/recorrente que “foi conferida uma importância excessiva e inadequada ao tempo verbal (que não é o do presente do indicativo) da acção que o arguido entendeu assumir fazer, desligando-a das pessoas, do contexto e da vontade efectiva deste. Importa sublinhar, na avaliação do sentido posto pelo arguido na mencionada expressão, a circunstância de arguido e ofendidas terem relações familiares, são conhecidas, vivenciando um diferendo relacionado com um final de relacionamento. A expressão “Mato-vos a todos” ilustra um sentimento de agressividade, patente no momento da sua afirmação, mas, também, inelutavelmente, projectando-se para um momento futuro e posterior. Não é possível afirmar que o acto, a acção veiculada na expressão utilizada pelo arguido, se esgote, de forma total e inequívoca no momento presente, no momento da sua afirmação, como se depreenderia se ele tivesse dito: “Mato-vos já” ou “Mato-vos aqui mesmo” ou outra com forte expressão temporal de presente”.

Incorre na prática do crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 do Código Penal “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação (…).”

O crime será agravado quando se verificarem as circunstâncias previstas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 155º do CP.

Com o crime de ameaça pretende-se evitar os comportamentos geradores de sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo, isto é, que afectam a paz individual e, consequentemente, a liberdade de autodeterminação.

O bem jurídico protegido pela norma é a liberdade de decisão e de acção em geral dos cidadãos.

O nosso Código pune a ameaça “por um lado, pelo perigo que a acompanha e o alarme que pode inspirar sendo conhecida; e por outro, porque é um acto de natureza a causar, por si só, perturbação social, isto é, não lesando directamente a liberdade, perturba, contudo, a tranquilidade de ânimo, provocando um estado de agitação e incerteza no ofendido ameaçado que se não crê seguro na vida ou nos bens" – cfr. Código Penal Anotado, 2° Vol. Simas Santos e Leal Henriques, pág. 305.

O crime de ameaça é um crime de perigo concreto porquanto não exige a prova de que o resultado se tenha verificado, mas tão só que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ([2]).

De acordo com o referido dispositivo legal os elementos constitutivos de tal ilícito criminal são:

- anúncio feito pelo agente de que pretende infligir a outrem um mal que constitui crime, um mal  futuro;

- que esse anúncio seja adequado a provocar receio, medo ou inquietação ou prejudique a liberdade de determinação do sujeito passivo;

- que o agente tenha actuado com dolo.

Verificamos, assim, que o objecto da ameaça tem de constituir crime, isto é, tem de configurar em si mesmo um facto ilícito típico, daqueles que o próprio artigo 153º, n.º 1 enumera.

Também quanto ao elemento subjectivo a lei exige o dolo em qualquer das suas modalidades, que aqui se caracteriza pela consciência de que o comportamento assumido é susceptível de causar medo ou inquietação ou de perturbar a liberdade do visado.

Afigura-se-nos que assiste razão ao recorrente.

In casu, a expressão utilizada pelo arguido não se esgota num anúncio de um mal de execução iminente. Como refere o Exmº PGA no seu parecer “a expressão «Mato-vos a todos», dirigida a duas pessoas, nas circunstâncias descritas no libelo acusatório, pese embora ter sido usada no presente do indicativo, não deixa também de ter uma projecção de futuro, na linguagem corrente, pelo que se indicia, de modo suficiente, uma verdadeira ameaça dirigida às duas ofendidas - ex-mulher e sogra do arguido”.

Com efeito, tal expressão comporta um anúncio de um mal futuro, na medida em que não indica o momento exacto da acção, podendo ser substituída, ou ser sinónimo de «hei-de matá-los a todos». Aqui o verbo “haver” está no presente do indicativo, sendo inequívoco que traduz uma ideia de futuro.

Nestes termos, não devendo a acusação ser considerada manifestamente infundada, deverá ser proferido despacho de recebimento da mesma e designada data para julgamento do arguido, pela prática dos crimes que lhe são imputados pelo MP na acusação.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, determinando a sua substituição por outro que, recebendo a acusação, designe data para julgamento do arguido.

Sem custas


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ELISA SALES (RELATORA)

PAULO VALÉRIO

  


[1] - Cfr. entre outros, Ac. RP de 25-1-2006, rel. Isabel Pais Martins, Ac. RC de 9-1-2008, rel. Gabriel Catarino, acessíveis em www.dgsi.pt.

[2] - Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 348/349.