Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
250/17.0T8VLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PERFEIÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA
MUDANÇA DE COMERCIALIZADOR
DEVERES DE INFORMAÇÃO DO NOVO COMERCIALIZADOR
BOA-FÉ
INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA DO TRIBUNAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8.º DO REGULAMENTO N.º 1129/2020, DE 30 DE DEZEMBRO (REGULAMENTO DAS RELAÇÕES COMERCIAIS DOS SECTORES ELÉCTRICO E DO GÁS); ARTIGOS 143.º A 146.º DO REGULAMENTO DE RELAÇÕES COMERCIAIS DO SECTOR ELÉCTRICO E DO GÁS, DA ENTIDADE REGULADORA DOS SERVIÇOS ENERGÉTICOS; DECRETO-LEI N.º 172/2006, DE 23 DE AGOSTO; DIRECTIVA DA ENTIDADE REGULADORA DOS SERVIÇOS ENERGÉTICOS N.º 8/2012, DE 21 DE JUNHO
Sumário: I) Deve considerar-se celebrado um contrato de fornecimento de energia eléctrica, sem necessidade de qualquer outra declaração negocial consensualizada entre as partes, se estas outorgaram num documento do qual consta, designadamente, o seguinte: «data de início do contrato – 27-08-2014»; «o objecto do presente contrato é o fornecimento de energia eléctrica pela … ao Cliente»; «a título de contrapartida pelo fornecimento de energia eléctrica efectuado pela …, o Cliente obriga-se a pagar um preço»; «potência contratada: 6,9 KVA».

II) Em caso de mudança de comercializador de energia eléctrica, a conclusão do processo de substituição de comercializador exige a realização de uma leitura do contador do consumidor para que se possa proceder à emissão da última factura do comercializador cessante, com o acerto final de contas.

III) O novo comercializador tem o dever de informar o consumidor da necessidade de realização daquela leitura e de que a impossibilidade da mesma poderá, em última hipótese, levar à não autorização da mudança de comercializador e ao consequente corte de fornecimento de energia eléctrica.

IV) O incumprimento do dever de informação referido em III) e a interrupção do fornecimento de energia eléctrica determinada pela impossibilidade de realização da leitura do contador de cujos agendamentos o consumidor não teve conhecimento fazem incorrer o novo comercializador em responsabilidade civil pelos danos decorrentes da interrupção.
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

A… e mulher, B… , NIF … e …, intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra C…, COMERCIAL, S. A., com sede na Rua …, pedindo a condenação da ré no pagamento aos autores da quantia de 8.010,01 EUR, a título de danos patrimoniais, e de 7.986,56, a título de danos não patrimoniais, num total de 15.996,57 EUR.

Alegaram, para tanto, que os autores residem, habitualmente, em França, sendo, no entanto, proprietários de uma casa de habitação sita na Estrada Nacional…, concelho e freguesia de …, onde permanecem quando se deslocam em férias a Portugal.

Que no âmbito do contrato de fornecimento de energia celebrado com a Ré, esta, sem qualquer aviso prévio, solicitou a interrupção do fornecimento de energia, que lhes causou vários danos.

Regularmente citada a ré apresentou a sua contestação.

Impugna a matéria de facto, apresentando uma versão dos factos com vista a demonstrar a sua ausência de responsabilidade pelo sucedido.

Explica que, em 27-08-2014, o autor manifestou interesse em celebrar com a ré um contrato de fornecimento de energia para o local de consumo sito na Estrada Nacional … (CPE: PT…); uma vez que já existia um contrato de fornecimento associado ao referido CPE, foi necessário iniciar o processo de mudança de comercializador, sendo que o contrato a celebrar com a ré apenas poderia ser ativado após a conclusão do referido processo, sob pena de o autor manter dois contratos para o mesmo local de consumo; o contrato com a ré nunca chegou a ser ativado uma vez que não foi possível concluir, com sucesso, o processo de mudança de comercializador.

Conclui, assim, que, não havendo contrato nem tendo a ré solicitado a interrupção do fornecimento de energia – factos este que na tese do autor sustentam o seu pedido - não há qualquer fundamento legal ou contratual que permita assacar qualquer responsabilidade à ré pelos danos alegados na petição inicial.

O Sr. Juiz do Juízo Genérico de Vila Nova de Foz Côa julga a ação parcialmente procedente e, consequentemente, decide:

a). Condenar a ré no pagamento, aos autores, a título de danos patrimoniais:

i. Do valor de 417,78 EUR, correspondente a despesas de deslocação dos autores de França para  …(ida e volta);

ii. Do valor de 50,00 EUR correspondente a despesas com a deslocação dos bombeiros para retirar a água da cave dos autores;

iii. De quantia que vier a ser posteriormente liquidada, correspondente ao valor despendido pelos autores com a reparação ou substituição dos bens danificados, bem como ao valor dos bens eventualmente irreparáveis.

b) Absolver a ré do demais peticionado”.

A ré não se conformando tal decisão, dela interpõe recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1. Em sede de contestação a Recorrente, de forma prévia, esclareceu que não tinha, à data do corte, qualquer contrato activo com os Recorridos, uma vez que o processo de mudança de comercializador havia sido objectado face à impossibilidade de recolha leitura com vista à emissão da última factura do comercializador cessante;

2. Por outro lado, e ainda qua assim não fosse, a verdade é que não poderia ser responsabilizada pelos alegados danos, uma vez que não tinha solicitado o corte;

3. Não obstante os fundamentos apresentados pela Recorrente e, bem assim, por todo a prova carreada para o processo e produzida em sede de audiência de julgamento, o Tribunal a quo decidiu estar em causa um incumprimento contratual da Recorrente

4. No mais foi a Recorrente absolvida do pedido de €7.7.986,56 (sete mil, novecentos e oitenta e seus euros e cinquenta e seis euros) referente aos danos não patrimoniais.

5. Inconformada com a decisão proferida, vem a Recorrente apresentar recurso da mesma, versando sobre matéria de facto e de direito, com reapreciação da prova gravada, no sentido de obter a revogação da sentença proferida a 07/10/ 2020.

6. A Recorrente não podia estar mais em desacordo com o Tribunal a quo. Na verdade, como se deixará exposto, o corte ocorrido em 08.01.2015 nada teve a ver com a objecção feita pela C… Distribuição ao pedido de mudança de comercializador solicitado pelos recorridos em Agosto de 2014!

7. Da prova produzida em julgamento, nomeadamente do depoimento do Sr. Eng.º F… ( minutos 04:04, 04:25, 05:51, 06:01 e 07:54 do ficheiro cheiro de áudio e minutos 05:40, 10:09 e 18:8:58 do ficheiro áudio 20191219120520-20191219120520 -873825-873825 -2870933]2870933 ], e bem assim, dos esclarecimentos trazidos aos autos pela C… Distribuição, resulta que o corte se deveu em exclusivo à impossibilidade de recolha de leituras por parte da C… Distribuição e, bem assim, à impossibilidade de agendamento de uma leitura extraordinária ,pelo que se impõe o aditamento de um facto novo e a reformulação do facto provado n.º 6 :

Facto n.º 41 (facto novo): “Durante o período compreendido entre 24/06/2013 e 7/1/2015 a C… Distribuição viu -se impossibilitada de recolher as leituras do contador associado ao local de consumo dos Recorrentes sito na Estrada Nacional …, por esta instalação se encontrar no interior da instalação?

Nova redação do facto provado n.º 6: “Face à ausência de leituras no período compreendido entre 24/06/2013 e 01/01/2015 e à impossibilidade de agendamento de uma leitura extraordinária, a C… Distribuição (ORD) emitiu relativamente ao local de consumo n.º…, uma ordem de serviço de “Interrupção Dunning Leituras BTN 100025384240, gerada a 07/01/2015, com as seguintes indicações “Deve recolher leitura, se não for possível, efectuar interrupção do Local de Consumo”.

8. Do depoimento da testemunha, colaborador da C… Distribuição, resulta, por um lado, que em momento algum é estabelecido uma causa /efeito entre a objecção do processo de mudança comercializador e a interrupção ocorrida em 08/01/2015 e por outro que a interrupção por dunning de leituras se deve exclusivamente à impossibilidade de recolha de leituras desde 2013, cerca de 2 anos antes de pedido de mudança de comercializador.

 9. E, bem assim, à impossibilidade de agendamento de uma leitura extraordinária nos termos do 269.ºdo Regulamento das Relações Comerciais para o sector energético (doravante RRC).

10. Acresce que, e conforme resulta dos factos dados como provados, a última objecção do Operador Logístico de Mudança de Comercializador é de 2014, mais concretamente de 22/09/2014 - facto provado n.º 38,

11. Tendo os Recorridos mantido o contrato com a C… , contrato esse que decorreu com toda a normalidade após essa última objeção, o que resulta do pagamento das facturas entretanto emitidas por aquela entidade .

12. Ou seja, o problema da recolha das leituras é bem anterior à questão do processo de mudança de comercializador e tem resolução passados 6 meses desde a data da última objeção.

13. Não estando relacionado um evento com o outro.

14. Na verdade, a objecção de um processo de mudança de comercializador não determina a interrupção do fornecimento da instalação do cliente, mas apenas a impossibilidade de mudar de comercializador mantendo-se o contrato com o comercializador origina.

15. Aliás, se bem lidas as 8 alíneas do n.º 1 do artigo 69.º do RRC com a epigrafe “Motivos de interrupção” não é possível encontrar como motivo de interrupção a objecção do processo de mudança de comercializador seja porque motivo for.

16. Face ao exposto é determinante, para a reapreciação da decisão proferida, que seja acrescentado um novo facto e a reformulação de um outro, que permita concluir, sem qualquer dúvida, que o motivo da interrupção do fornecimento de energia em 08/01/2015 é exclusivamente imputável aos Recorridos e nada tem a ver com o processo de mudança de comercializador.

17. Só com este aditamento será possível clarificar que o corte ocorreu, não por conta da objecção do processo de mudança de comercializador, mas sim por conta da ausência de leituras (desde 2013) e de leitura extraordinária, conforme decorre do artigo 69.º n.º 1 al. f) e da al. a) do n.º 1 do artigo 75.º, ambos do Regulamento das Relações Comerciais.

18. Conforme o esclarecido pela testemunha face à impossibilidade de recolha de leitura por um prazo superior a 06 meses, por impossibilidade de acesso ao contador – que se encontrava no interior do local de consumo –C… Distribuição deve promover a realização de uma leitura extraordinária – n.º 1 do artigo 269.º do RRC.

19. Devendo a data ser agendada entre as partes – n.º 4 do artigo 269.º do RRC.

20. Pela inclusão do novo facto e, bem assim, da reformulação do facto n.º 6, é imperioso concluir que nenhuma responsabilidade poderá ser assacada à Recorrente pelo corte ocorrido uma vez que:

21. A responsabilidade corte não pode ser imputada à Recorrente mas apenas e só aos Recorridos por não facultarem o acesso ao contador desde 06/ 2013 nem agendarem a leitura extraordinária de acordo com a comunicação da C… Distribuição;

22. Não foi a recorrente quem fez o corte, mas sim a C… Distribuição pelos motivos expostos postos nas alíneas anteriores – Facto provado n.º 6 (nova formulação) e 7;

23. À data do corte a comercializadora dos recorridos era a C… SU – facto provado n.º 4;

24. A Recorrente nunca forneceu energia para o local de consumo dos Recorridos – facto provado n.º 37 e 39

25. A decisão do caso sub judicie, nomeadamente no que respeita responsabilidade da Recorrente está umbilicalmente ligada à análise que o Tribunal a quo fez do corte e da sua real motivação.

26. Se e o Tribunal tivesse valorado a prova produzida de forma correcta a solução jurídica a que chegou ou seria totalmente diferente uma vez que resulta evidente que o corte ocorrido não está ligado ao processo de mudança de comercializador e à sua objecção mas sim a uma falta reiterada do acesso ao contador, necessariamente imputável aos Recorridos – que não permitiu à C… Distribuição retirar leituras desde 2013 aliado ao facto de não ter sido possível agendar a leitura extraordinária.

27. Pelo que se impõe a inclusão de um novo facto e a alteração do facto provado n.º 6 com vista à revogação da decisão.

2. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções da recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:

(…)

3. Sendo a responsabilidade pelo corte imputada aos Recorridos, por não facultarem o acesso ao contador desde 06/2013 nem agendarem a leitura extraordinária de acordo com a comunicação da C… Distribuição, arredada está a responsabilidade da recorrente no pagamento dos danos invocados pelos autores?

(…)

A 1.ª instância fixou a seguinte matéria de facto:

(factos invocados pelos autores)

1. Os autores são emigrantes em França, onde residem habitualmente, e são proprietários e possuidores de uma casa de habitação sita na Estrada Nacional …, a qual se encontra descrita no serviço de finanças daquela freguesia e concelho sob o artigo 2029.º, onde residem quando em férias em Portugal.

2. Os autores, quando se encontravam de férias em …, dirigiram-se ao agente daC… , D…, com vista à celebração de um contrato com a ré, tendo prestado informações para tal, as quais estão refletidas no documento junto com a petição inicial, sob o n.º 2, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, constando, no mesmo, além do mais, «data de início do contrato – 27-08-2014», «o objeto do presente contrato é o fornecimento de energia elétrica pela C… Comercial ao Cliente», «a título de contrapartida pelo fornecimento de energia elétrica efetuado pela C… Comercial, o Cliente obriga-se a pagar um preço», «potência contratada: 6,9 KVA».

3. Os autores pagaram as faturas à C… Serviço Universal, entre outras, as seguintes datas de vencimento, 23-09-2014, 15-10-2014, 21-11-2014, 05-12-2014.

4. A moradia dos autores, identificada em 1, tem uma cave, que se encontra a um nível inferior às duas ruas públicas com que confronta.

5. De forma a evitar que as águas pluviais entrem na cave da sua moradia, procederam os autores à colocação, junto a cada uma das portas da cave, de uma caleira com grelha para apanhar as águas e conduzi-las a um poço de bombagem, aguas essas que são depois, através de duas bombas elétricas, elevadas para a rede pública de drenagem de águas residuais pluviais.

6. A C… Distribuição – Energia, S.A., Operadora de Rede de Distribuição (ORD), emitiu, relativamente ao local de consumo n.º …, uma ordem de serviço de Leitura/Interrupção Dunning Leituras BTN – 100025384240, gerada a 07-01-2015, com as seguintes indicações: “Deve recolher leitura, se não for possível, efectuar a interrupção do Local de Consumo”.

7. A C… Distribuição – Energia, S.A., após verificar a falta de acesso aos equipamentos, deu ordem de interrupção do fornecimento de energia elétrica na casa dos autores, no dia 08-01-2015.

8. No inicio do mês de fevereiro de 2015, os autores tomaram conhecimento deste corte, bem como das consequências do mesmo, infra descritas.

9. No dia 03-02-2015, uma vizinha dos autores verificou existir uma grande quantidade de água à porta da cave da moradia dos autores.

10. Preocupada, telefonou aos autores, a um familiar destes e aos Bombeiros de….

11. Os Bombeiros de … deslocaram-se ao local, moradia dos autores, nesse mesmo dia 03-02-2015, tendo retirado a água que se encontrava acumulada no rés-do-chão da referida moradia, numa altura de cerca de 60 centímetros.

12. Os autores viajaram para Portugal para resolver a situação, deslocando-se, no seu veiculo automóvel, desde a sua residência habitual em…, França, para…, onde chegaram na madrugada do dia 06-02-2015.

13. No dia 04-02-2015, na sequência do alerta feito pela referida vizinha, deslocou-se ao local uma eletricista de nome G…, a qual entrou em contacto telefónico com a C…, após ter verificado não existir nenhuma avaria.

14. Após o referido contacto, a ré voltou a proceder ao fornecimento de energia elétrica na moradia dos autores, tendo para o efeito tal tarefa sido desempenhada por um seu funcionário no dia 05-02-2015.

15. Assim, esteve a moradia dos autores sem fornecimento de energia elétrica entre o dia 08-01-2015 e do dia 05-02-2015.

16. A cave da casa dos autores, em consequência da interrupção do fornecimento de energia efetuado pela ré, ficou inundada com as águas das chuvas, numa altura aproximada de 60 centímetros.

17. Por não ter energia elétrica, as bombas elétricas não ligaram, não cumprindo assim a sua função de reconduzir as águas pluviais para a rede pública, evitando a sua entrada na moradia.

18. Pelas razões que se deixaram expressas acima, os seguintes bens que os autores possuíam no rés-do-chão da sua moradia ficaram total ou parcialmente submersos e, consequentemente, total ou parcialmente danificados: (…)

23. Os autores, por intermédio do seu mandatário, enviaram carta registada à C… Distribuição-Energia, S.A. em 10-04-2015, junta aos autos pelos autores como documento n.º 10, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

24. A C… Distribuição-Energia, S.A. respondeu àquela carta através de carta datada de 20-04-2015, junta aos autos pelos autores como documento n.º 11, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

25. Em 12-06-2017, os autores responderam a esta missiva por carta junta aos autos pelos autores como documento n.º 12, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

26. A C… Distribuição-Energia, S.A. não respondeu a esta missiva.

27. Em 23-07-2015, os autores enviam nova carta à C… Distribuição-Energia, S.A., junta aos autos pelos autores como documento n.º 13, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

(…)

 (factos invocados pela ré)

30. A ré é uma sociedade do Grupo C… que se dedica exclusivamente à comercialização de energia elétrica, não tendo qualquer competência no que se refere à distribuição da energia elétrica, conforme melhor se alcança pelo teor da certidão permanente com o código de acesso 4414-2772-0368.

31. Uma vez que já existia um contrato de fornecimento associado ao CPE:PT…, relativo ao local de consumo sito na Estrada Nacional … (portanto, a residência dos autores, referida em 1), foi necessário iniciar o processo de mudança de comercializador, sendo que a ré apenas poderia iniciar o fornecimento de energia elétrica para o local de consumo referido no ponto 2 após a conclusão do referido processo, sob pena de os autores manterem dois contratos para o mesmo local de consumo.

32. À data do pedido de celebração do contrato a que alude o ponto 2 supra (agosto de 2014), a C… Distribuição-Energia, S.A. geria o processo de mudança de comercializador no sistema elétrico nacional, tendo gerido o processo dos autores.

33. Após o pedido de celebração do contrato a que alude o ponto 2 supra, a ré inseriu essa informação no Portal de Gestão de Mudança de Comercializadores.

34. Após tal inserção, a ré recebeu a indicação de que seria necessário o agendamento, com o autor, de visita ao local de consumo, agendamento este que se mostrava essencial à conclusão, com sucesso, do processo de mudança de comercializador.

35. Nunca foi possível estabelecer contacto com o autor para fazer este agendamento.

36. Foram feitas 12 tentativas de contacto com o autor para o n.º de telefone … – número de contacto indicado no contrato –, todas sem sucesso.

37. Esta impossibilidade no agendamento gerou uma recusa no Portal e, consequentemente, a mudança de comercializador não foi autorizada pela C… Distribuição-Energia, S.A., motivo pelo qual a ré nunca forneceu energia para o local de consumo do autor.

38. Após a primeira recusa – por impossibilidade de agendamento de uma ida ao local de consumo – foram submetidos mais 3 pedidos para a celebração de contrato com a C.. C, mais concretamente em 04-09-2014, 12-09-2014 e 22-09-2014 sendo que todos eles foram objetados pela C… Distribuição-Energia, S.A. com base no mesmo fundamento, ou seja, não agendamento da visita ao local no prazo previsto.

39. A C… C nunca forneceu energia para o local de consumo melhor identificado no artigo 2.º supra, não tendo emitido faturas de consumo ou exigido ao autor o pagamento de qualquer valor pelo fornecimento de energia.

40. Os autores nunca reportaram à ré os factos descritos na petição inicial.

(Factos não provados)

i. Aquando da celebração do contrato de fornecimento, a C… deslocou ao local um técnico tendo procedido à leitura do contador que aí se encontrava.

ii. No dia 03-01-2015, a ré, sem dar conhecimento ou avisar os autores, procedeu ao corte/interrupção do fornecimento de energia elétrica à moradia daqueles.

iii. Os autores sempre pagaram mensalmente as importâncias constantes das faturas apresentadas pela ré em sede de débito direto.

iv. 

(…)

 

4. Do Direito

A 1.ª instância configura a relação havida entre autores e ré como contrato de fornecimento de energia eléctrica, ou seja, o contrato pelo qual uma parte - a ora recorrente -, se obriga a vender à outra – os autores- continuadamente, eletricidade, obrigando-se a outra, em contrapartida, a pagar, com determinada regularidade, o preço correspondente à quantidade de eletricidade consumida, por referência a determinado período.

Justifica a sua apreciação jurídica pelo manancial fáctico provado:

“Ora, deslocando-se os autores ao agente da C…, D…, com vista à celebração de um contrato com a ré, tendo prestado informações para tal, as quais estão refletidas no documento junto com a petição inicial, sob o n.º 2, e tendo recebido tal documento, assinado por E… Administrador da C… Comercial, S.A., em representação da mesma, com, além do mais, o texto «data de início do contrato – 27-08-2014», «o objeto do presente contrato é o fornecimento de energia elétrica pela  C… Comercial ao Cliente», «a título de contrapartida pelo fornecimento de energia elétrica efetuado pela C… Comercial, o Cliente obriga-se a pagar um preço», «potência contratada: 6,9 KVA», não há como não concluir que temos duas declarações de vontade perfeitas, nos termos acima referidos, que deram origem à celebração de um contrato” (…) Manifestando os autores vontade de subscrever as cláusulas contratuais gerais previamente elaboradas pela ré e respondendo esta com o envio do documento n.º 2, existe, por um lado, imediatamente uma relação jurídica contratual entre os autores e a ré, atestada por tal documento, com as obrigações e direitos aí plasmados, como já se referiu.

Por outro lado, do comportamento dos autores depreende-se, indubitavelmente, que os mesmos pretendem cessar o contrato com a anterior comercializadora, que seria a C… Serviço Universal. Portanto, com o contrato celebrado entre as partes, a ré passa a ter poderes de representação do cliente junto da entidade encarregue da gestão do processo de mudança de comercializador, que, no caso, era a C… Distribuição-Energia, S.A. (...)

Concordamos com esta apreciação jurídica.

Mais, (…) é um contrato em que se estabelecem relações duradouras e relativamente mais complexas (do que a simples compra e venda) que impõem qualificação jurídica diversa. O contrato de fornecimento de energia elétrica não tem um regime jurídico especialmente criado para si (como ocorre, por exemplo, com a compra e venda ou com o contrato de sociedade). Trata-se, portanto, de um contrato juridicamente atípico. No entanto, o facto de ser celebrado massivamente, torna-o num contrato socialmente típico”.

A ré recorrente assim o não entende. Alega que o contrato não foi ativado, querendo com tal alegação afirmar que o contrato não chegou a existir e que, consequentemente, não havendo contrato (…) não há qualquer fundamento (…) contratual que permita assacar qualquer responsabilidade à Ré pelos danos alegados na PI» (artigo 33.º da contestação).

Com todo o respeito, da factualidade apurada não resulta que as partes se tenham obrigado a celebrar no futuro um qualquer contrato - artigo 410.º, n.º 1 do Código Civil – nem que se tenham ficado por meras negociações contratuais. Com a feitura do documento junto com a petição inicial, sob o n.º 2, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido - constando, no mesmo, além do mais, «data de início do contrato – 27-08-2014», «o objeto do presente contrato é o fornecimento de energia elétrica pela C… Comercial ao Cliente», «a título de contrapartida pelo fornecimento de energia elétrica efetuado pela  C… Comercial, o Cliente obriga-se a pagar um preço», «potência contratada: 6,9 KVA» -, extinguiu-se a vontade negocial, ficando a composição dos interesses definida em termos contratuais, sem necessidade de as partes terem de voltar a acordar em nova convenção para dirimir aquela composição de interesses.

O acordo ajustado entre as partes tornou-se imediatamente vinculativo e perfeito no exato momento em que as partes acordaram entre si, no âmbito da sua liberdade contratual e com as suas especificidades próprias. Desde logo, a existência de um outro contrato de fornecimento, com outra comercializadora (C… Serviço Universal) - Uma vez que já existia um contrato de fornecimento associado ao CPE:PT…, relativo ao local de consumo sito na Estrada Nacional  … (portanto, a residência dos autores, referida em 1), foi necessário iniciar o processo de mudança de comercializador, que se mantém em vigor até as partes “levarem a bom porto” os procedimentos de mudança de comercializador - o fornecimento de energia eléctrica é um serviço essencial.

Neste particular, o que nos dizem os autos?

À data do pedido de celebração do contrato (agosto de 2014), a C… Distribuição-Energia, S.A. geria o processo de mudança de comercializador no sistema elétrico nacional, tendo gerido o processo dos autores.  Após o pedido de celebração do contrato, a ré inseriu essa informação no Portal de Gestão de Mudança de Comercializadores. Após tal inserção, a ré recebeu a indicação de que seria necessário o agendamento, com o autor, de visita ao local de consumo, agendamento este que se mostrava essencial à conclusão, com sucesso, do processo de mudança de comercializador. Nunca foi possível estabelecer contacto com o autor para fazer este agendamento, tendo sido feitas doze tentativas de contacto com o autor para o n.º de telefone …. – número de contacto indicado no contrato –, todas sem sucesso.

Esta impossibilidade no agendamento gerou uma recusa no Portal e, consequentemente, a mudança de comercializador não foi autorizada pela C… Distribuição-Energia, S.A., motivo pelo qual a ré nunca forneceu energia para o local de consumo do autor. Após a primeira recusa – por impossibilidade de agendamento de uma ida ao local de consumo – foram submetidos mais 3 pedidos, mais concretamente em 04-09-2014, 12-09-2014 e 22-09-2014 sendo que todos eles foram objetados pela C… Distribuição-Energia, S.A. com base no mesmo fundamento, ou seja, não agendamento da visita ao local no prazo previsto. Os autores nunca reportaram à ré os factos descritos na petição inicial.

A C… Distribuição – Energia, S.A., após verificar a falta de acesso aos equipamentos, deu ordem de interrupção do fornecimento de energia elétrica na casa dos autores no dia 08-01-2015 e até ao dia 05-02-2015.

Os danos provocados, nos bens dos autores, pela falta de energia eléctrica, que esteve interrompida por ordem do distribuidor (C… Distribuição – Energia, S.A), devem ser imputados ao incumprimento contratual por parte da ré?

O senhor juiz da 1.ª instância assim o entendeu.

(…) Alegam os autores que a ré procedeu ao corte do fornecimento de energia elétrica no dia 03-01-2014, de forma ilícita, injustificada e sem dar conhecimento ou avisar os autores (artigo 10.º da petição inicial); que, com tal comportamento, a ré violou com culpa o contrato celebrado com os autores.

Mais alegam que tal corte, ao levar ao desligamento das bombas elétricas que impediam que as águas pluviais entrassem na cave, acabou por dar origem à inundação da mesma, numa altura aproximada de 60 centímetros, o que levou à destruição de vários bens existentes nessa cave. Nesse contexto, invocam os danos resultantes da avaria dos bens; as despesas no contexto da deslocação, suas e do seu genro, de França para…; as despesas com a retirada das águas da sua cave, levada a cabo pelos bombeiros; por fim, invocam, ainda, sofrimento emocional.

Vejamos (…)

Provou-se que a ré se obrigou a fornecer energia elétrica aos autores; que não chegou a cumprir tal obrigação, nos moldes acima explicados. Portanto, verifica-se, objetivamente, o não cumprimento da obrigação. Assim, estão verificados os dois primeiros pressupostos da responsabilidade civil contratual, quais sejam, o facto voluntário do lesante e a ilicitude.

Quanto ao facto voluntário, estamos perante uma omissão de uma pessoa coletiva: a omissão no fornecimento de energia elétrica. Quanto à ilicitude, a mesma consiste no facto de não ter sido cumprida a obrigação assumida pela ré de proceder ao dito fornecimento de energia elétrica.

Porém, face à factualidade provada, é possível dizer que a ré agiu com culpa?

De acordo com o artigo 799.º/1 do Código Civil, presume-se que sim. Ou seja, na ausência de prova de factos que permitam ao tribunal, através da operação de subsunção, concluir pela verificação jurídica de culpa, o tribunal deverá decidir pela existência de culpa, malgrado a ausência de factos para tal (artigo 8.º/1 do Código Civil).

Porém, caso se provem factos que permitam concluir pela ausência de culpa, tal significa que a presunção se mostra ilidida (artigo 350.º/2 do Código Civil). Ora, no presente caso, o tribunal entende que a factualidade provada não é bastante para ilidir a presunção de culpa que recai sobre a ré.

(…) “ É certo que é ré não teve sequer possibilidade de cumprir a sua obrigação, uma vez que o OLMC não autorizou a mudança de comercializador. Porém, importa perceber a quem deve ser imputada a não autorização da mudança de comercializador por parte do OLMC e, portanto, a culpa no não início da execução do contrato.

Numa visão mais superficial das coisas, concluir-se-ia que a culpa seria dos próprios autores, uma vez que estes forneceram como meio de serem contactados o número de telefone da sua habitação em…, para onde contrataram o fornecimento de energia elétrica, sabendo que não estariam em casa grande parte do ano, uma vez que residem em França. Portanto, a sua incontactabilidade ser-lhes-ia imputável e, consequentemente, a não leitura do contador, com a subsequente não autorização da mudança de comercializador, seria culpa sua. Porém, entrando com maior profundidade na questão, impõe-se concluir que a culpa é, afinal, da ré. Com efeito, estamos perante uma grande empresa e um pequeno consumidor. A grande empresa tem o dever de ter o perfeito conhecimento do processo de mudança de comercializador; por conseguinte, sabia ou devia saber, da necessidade da leitura do contador como pressuposto da autorização, por parte do OLMC, da mudança de comercializador. Assim, devia, no mínimo, ter informado os autores de que a impossibilidade de leitura do contador poderia, em última hipótese, levar à não autorização da mudança de comercializador e ao consequente corte de fornecimento de energia elétrica. As regras da boa fé, num sentido objetivo, exigiam tal comportamento por parte da ré (artigo 762.º/2 do Código Civil).

Recorrendo a ré à celebração de contratos através de cláusulas contratuais gerais, deveria colocar tal informação, atenta a sua importância (já que está em causa um facto que poderá levar à não execução do contrato), nas condições gerais do contrato e comunicá-la de modo adequado e efetivo aos consumidores.

Porém, não alegou que tivesse procedido a inserção de tal informação no contrato, em forma de cláusula, sendo que, de acordo com o artigo 5.º/3 do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, caber-lhe-ia a si alegar e provar a comunicação adequada e efetiva de tal informação. Não o fez.

Efetivamente, a eventual gravidade (ao nível da causação de danos) das consequências da interrupção de fornecimento de energia elétrica não se compadece com a atuação ligeira levada a cabo pela ré. Exigia-se mais.

Assim, o tribunal conclui que não se mostra ilidida a presunção de culpa que sobre a ré recai. Portanto, a ré, com o comportamento devido, segundo as regras da boa fé, teria garantido a contactabilidade dos autores, a leitura do contador, e, consequentemente, a normal execução do contrato com o devido fornecimento de energia elétrica”.

               Será assim?

A mudança de comercializador no âmbito do fornecimento de energia elétrica obedece a um procedimento determinado - atualmente regulado pelo Decreto-Lei n.º 38/2017, de 31 de março, e pela Diretiva da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) n.º 15/2018, de 10 de dezembro -, que  à data dos factos, era determinado pelo Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, pela Diretiva da ERSE 8/2012, de 21 de junho - que remetia, no entanto, no seu n.º 1, no que se refere a procedimentos e prazos de mudança de comercializador de eletricidade para vigorar em Portugal Continental, para o site www.erse.pt., procedimentos esses que já não se encontram disponíveis em tal site - , e, ainda, pelo Regulamento de Relações Comerciais do Setor Elétrico, elaborado pela ERSE.

O artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 172/2006 definia que o operador logístico de mudança de comercializador é a entidade que tem atribuições no âmbito da gestão da mudança de comercializador de electricidade, cabendo-lhe, nomeadamente, a gestão dos equipamentos de medida e a recolha de informação local ou a distância» (n.º 1); que “o operador logístico de mudança de comercializador deve ser independente nos planos jurídico, organizativo e da tomada de decisões relativamente a entidades que exerçam actividades no âmbito do SEN e estar dotado dos recursos, das competências e da estrutura organizativa adequados ao seu funcionamento como fornecedor dos serviços associados à gestão da mudança de comercializador” (n.º 2); que “as funções, as condições e os procedimentos aplicáveis ao exercício da actividade de operador logístico de mudança de comercializador, bem como a data da sua entrada em funcionamento, são estabelecidos em legislação complementar” (n.º 3); que “o operador logístico de mudança de comercializador fica sujeito à regulação da ERSE, sendo a sua remuneração fixada nos termos do Regulamento de Relações Comerciais e no Regulamento Tarifário” (n.º 4).

Seguindo o raciocínio do senhor juiz da 1.ª instância:

“Por sua vez, o Regulamento de Relações Comerciais do Setor Elétrico (RRC), elaborado pela ERSE, estabelecia nos artigos 143.º a 146.º as regras relativas à «mudança de comercializador».

Referia o artigo 143.º, do RRC, sob a epígrafe «princípios gerais» que «a mudança do comercializador está isenta de encargos para os clientes, devendo ocorrer num prazo máximo de 3 semanas contadas a partir da data do pedido de mudança» (n.º 1); que «a mudança de comercializador de energia elétrica deve considerar os procedimentos necessários para o efeito, a aprovar pela ERSE, nos termos previstos no Artigo 145.º» (n.º 2); que «a mudança de comercializador pressupõe a representação do cliente pelo novo comercializador que pretende passar a fornecer a instalação do cliente junto da entidade encarregue da gestão do processo de mudança de comercializador, mediante autorização expressa do cliente para o efeito» (n.º 3); que «sem prejuízo do prazo máximo referido no n.º 1, pode ser indicada uma data para a mudança de comercializador de preferência do cliente e do comercializador que pretende passar a fornecer a instalação do cliente, nos termos a definir nos procedimentos de mudança de comercializador previstos no Artigo 145.º» (n.º 5); que «na sequência de mudança de comercializador e sem prejuízo do disposto no Artigo 146.º, o cliente deve receber do comercializador cessante uma única fatura contendo o acerto final de contas no prazo máximo de 6 semanas após a efetivação da mudança» (n.º 6); que «o não pagamento pelo cliente da fatura prevista no número anterior, quando emitida por um comercializador de último recurso - esta entidade é o operador logístico de mudança de comercializador, que, de acordo com o artigo 3.º/2-y) do RRC, é a «entidade responsável pela gestão do processo de mudança de comercializador, cabendo-lhe, nomeadamente a gestão dos equipamentos de medição e a sua leitura, local ou remota, nos termos da legislação aplicável»-, habilita este a solicitar, num prazo máximo de 60 dias após a efetivação da mudança, a interrupção de fornecimento da instalação em causa, desde que a fatura não tenha sido objeto de contestação pelo cliente» (n.º 7)

 De acordo com o artigo 13.º/2 do RRC «até à data de entrada em funcionamento do operador logístico de mudança de comercializador, nos termos de legislação específica, as atribuições daquele operador são desenvolvidas pelas seguintes entidades: (a) a gestão do processo de mudança de comercializador é desenvolvida pelo operador da rede de distribuição em MT e AT; (b) as atividades de gestão e leitura dos equipamentos de medição são desenvolvidas pelos operadores das redes, relativamente aos equipamentos de medição das instalações ligadas às suas redes» (…) Determinava, por fim, o artigo 146.º do RRC, sob a epígrafe «faturação na mudança de comercializador, que «no âmbito da mudança de comercializador, os comercializadores podem acordar integrar o mecanismo de apresentação da fatura contendo o acerto final de contas através do novo comercializador da instalação consumidora» (n.º 1), que o «o mecanismo de apresentação da fatura de acerto final de contas previsto no presente artigo deverá ser operacionalizado pelo operador da rede de distribuição em MT e AT, de acordo com regras específicas a aprovar pela ERSE na sequência de proposta conjunta dos comercializadores e do operador da rede de distribuição em MT e AT» (n.º 2).

Ora, à luz das normas acabadas de citar e dos factos provados resulta claro o que sucedeu no caso concreto:

Manifestando os autores vontade de subscrever as cláusulas contratuais gerais previamente elaboradas pela ré e respondendo esta com o envio do documento n.º 2, existe, por um lado, imediatamente uma relação jurídica contratual entre os autores e a ré, atestada por tal documento, com as obrigações e direitos aí plasmados, como já se referiu.

Por outro lado, do comportamento dos autores depreende-se, indubitavelmente, que os mesmos pretendem cessar o contrato com a anterior comercializadora, que seria a C… Serviço Universal. Portanto, com o contrato celebrado entre as partes, a ré passa a ter poderes de representação do cliente junto da entidade encarregue da gestão do processo de mudança de comercializador, que, no caso, era a C… Distribuição-Energia, S.A.. Efetivamente, é esta a única interpretação plausível do comportamento dos autores, porquanto sabiam que, para contratar um novo comercializador, necessariamente o contrato com o anterior teria de cessar.

Foi nesse contexto que a ré inseriu a informação fornecida pelos autores no Portal de Gestão de Mudança de Comercializadores (ponto 32 dos factos provados).

Ora, no âmbito dessa mudança, que tem como operador logístico a C… Distribuição-Energia, S.A., importava efetuar a leitura do contador dos autores para que se pudesse proceder à emissão da última fatura do comercializador cessante, com o acerto final de contas. Só após tal procedimento poderia operar-se a mudança de comercializador. Efetivamente, se tal não fosse feito, não seria possível cindir com perfeição os valores que seriam devidos ao comercializador cessante e os valores que passariam a ser devidos ao novo comercializador, gerando um imbróglio nas contas.

Efetivamente, sem a leitura do contador não se conseguiria determinar numericamente o momento de início do fornecimento pelo novo comercializador, de molde a, por referência a tal momento, se saber o que deveria ser pago ao anterior comercializador”.

No caso concreto, uma vez que o contador estava dentro da habitação dos autores, o operador logístico de mudança de comercializador (OLMC), no âmbito das suas atribuições, exigiu que se procedesse ao agendamento de visita ao local de consumo, para se proceder à leitura do contador (ponto 34 dos factos provados) (…)”

Uma vez que não possível proceder a tal agendamento, já que os autores nunca atenderam o telefone que indicaram como meio de contacto, não obstante terem sido contactados 12 vezes, o OLMC não autorizou a mudança de comercializador. E, por esta razão, conforme resultou provado, a ré nunca chegou a fornecer energia elétrica para o local, não tendo, por conseguinte, emitido quaisquer faturas.

Diz ainda a 1.ª instância: (…) na verdade, a lei impõe ao operador e comercializador da electricidade (não interessando se esses serviços estão reunidos numa ou mais empresas) encargos apertados em relação ao utente/consumidor, precisamente em atenção à necessidade social dos bens essenciais em causa e às condições do mercado dos operadores desse”.

De facto, cabe aos comercializadores, aos comercializadores de último recurso e, sempre que se justifique, aos operadores das redes de distribuição, informar os consumidores de forma completa, clara e adequada sobre as condições em que o serviço é prestado  (o negrito é nosso), devendo assegurar a proteção dos consumidores, designadamente quanto à prestação do serviço, ao direito de informação, à qualidade do serviço prestado, às tarifas e preços, à repressão de cláusulas abusivas e à resolução de conflitos, nos termos da legislação aplicável – agora , o artigo 8.º do Regulamento n.º 1129/2020, que aprova o Regulamento das Relações Comerciais dos Setores Elétrico e do Gás e revoga o Regulamento n.º 561/2014, de 22 de Dezembro, e o Regulamento n.º 416/2016, de 29 de Abril.

Por isso, deveria a recorrente ter informado os autores de que a impossibilidade de leitura do contador poderia, em última hipótese, levar à não autorização da mudança de comercializador e ao consequente corte de fornecimento de energia elétrica?

A ré entende que não.

“Em primeiro lugar imputar responsabilidade à Recorrente pelo facto de os Recorridos terem facultado um número de contacto que sabiam ser incontactável é no mínimo inaceitável. Na verdade, e ainda que os Recorridos não soubessem para que efeitos lhes estava a ser solicitado um contacto, o mínimo que se lhes exigia era que tivessem facultado um contacto que soubessem que iriam ser atendido por alguém ou recusavam-se a fazê-lo. Sempre seria mais honesto.

Se o Tribunal exige o mínimo à Recorrente tem de exigir na mesma medida aos Recorridos, sob pena de haver uma evidente beneficiação dos Recorridos. A conduta dos Recorridos é no mínimo censurável e questionável e não pode, de forma nenhuma beneficiá-los e isentá-los de toda a responsabilidade que têm.

A Boa fé não é nem pode nem pode ser uma rua de sentido único como defende o Tribunal “a quo”, devendo impor-se a ambas as partes e em igual medida, por forma a ser preservado o equilíbrio e igualdade entre partes (…) Pendendo a balança da justiça para o prato dos Recorridos pelo simples facto de a recorrente ser uma grande empresa (…) De acordo com toda a prova produzida a objecção do processo de mudança de comercializador é da total responsabilidade dos Recorridos que ao não atenderem nenhuma das 12 chamas efetuadas impossibilitando o contacto e a retirada da leitura para efeitos da emissão da última factura com o comercializador cessante.

E, com esse comportamento, levaram à objecção da mudança de comercializador.

Aqui chegados mal andou o Tribunal a quo ao imputar esta responsabilidade à Recorrente. Há aqui um indiscutível culpa do lesado nos termos do 570.º do CC hipótese esta levantada pelo Tribunal: “concluir-se-ia que a culpa seria dos próprios autores, uma vez que estes forneceram como meio de serem contactados o número de telefone da sua habitação em …, para onde contrataram o fornecimento de energia elétrica, sabendo que não estariam em casa grande parte do ano, uma vez que residem em França. Portanto, a sua incontactabilidade ser-lhes-ia imputável e, consequentemente, a não leitura do contador, com a subsequente não autorização da mudança de comercializador, seria culpa sua. Estaríamos, portanto, perante um caso de culpa do lesado, nos termos do artigo 570.º  do Código Civil”.

Ora foi exatamente isto que aconteceu! Desculpabilizar o comportamento dos Recorridos é totalmente inaceitável! A incontactabilidade dos Recorridos só a eles pode ser imputável porque foram eles e não terceiros que facultaram o n.º de telefone fixo de uma casa que sabiam de antemão que não iriam estar! E repetimos que não há justificação para isto! Sendo que é este o comportamento que leva a que o processo de mudança de comercializador seja objectado. Motivo pelo qual não poderá ser a Recorrente responsabilizada pela referida objecção. E apesar de o corte não ser uma causa directa da objecção, como (mal) defende o Tribunal a quo, a verdade é que poderia tê-lo evitado.

E dizemos “poderia” uma vez o corte não foi uma causa directa da objecção do processo de mudança de comercialização, que não tem como consequência – como (mal) defende o Tribunal a quo – o corte de fornecimento de energia (…)”.

Como todos sabemos, à luz dos ditames da boa-fé na realização da prestação, o devedor não pode quedar-se por uma observância literal ou formal do clausulado, se a obrigação tiver – como é o caso - natureza contratual. Mais do que o respeito farisaico da fórmula na qual a obrigação ficou definida, interessa a “satisfação da necessidade - do credor- a que a obrigação se encontra adstrita. Por isso ele - o devedor - se deve ater, não só à letra, mas principalmente ao espírito da relação obrigacional - Antunes Varela. “Direito das Obrigações”, II volume, 4ª edição, pág. 12 -, nunca perdendo de vista que o cumprimento compreende não só a própria actividade retratada na prestação, mas ainda todos os comportamentos acessórios necessários à efectiva prossecução dos interesses do credor – “quando se acorde um certo dever de prestar, o sistema exige que - sendo a obrigação séria, válida e eficaz- o respectivo efeito seja, efectivamente, procurado e alcançado pelos envolvidos. O Direito não se compadece com meras execuções formais ou com “cumprimentos” feitos em termos de inutilidade para o credor”; in  A. MENEZES CORDEIRO, “ Tratado de Direito Civil - II – Direito das Obrigações ”, Tomo I, 2009, pág. 482.

No caso dos autos, temos por assente, que aquando da celebração do contrato com a ora ré/recorrente, os autores eram emigrantes em França, onde residiam habitualmente. Por outro lado, o contrato foi celebrado com a “intermediação” de D…, agente da C…e quando os autores se encontravam de férias em …- os autores, na qualidade de proponentes, limitaram-se a subscrever um contrato já modulado pela ré, que, após darem os seus dados, lhes foi enviado posteriormente.

Mais, após o pedido de celebração do contrato a ré inseriu essa informação no Portal de Gestão de Mudança de Comercializadores, recebendo a indicação de que seria necessário o agendamento, com o autor, de visita ao local de consumo, agendamento este que se mostrava essencial à conclusão, com sucesso, do processo de mudança de comercializador.

Ora, sabendo-se que os autores eram emigrantes em França, onde residiam habitualmente e que o contacto era um número fixo da rede nacional, exigia-se aos serviços da ora recorrente um pouco mais. Até poderiam estar provadas mais do que doze tentativas para o número …, que o resultado seria o mesmo. Falta de contacto com o autor para fazer um agendamento, essencial para a boa execução do contrato celebrado. Exigia-se mais dos serviços da ré, até porque o contrato foi mediado por um agente da C…de uma pequena vila, que facilmente poderia fornecer a melhor forma de agendamento para a necessária visita ao local de consumo. Agendamento este que se mostrava essencial à conclusão, com sucesso, do processo de mudança de comercializador e que os autores desconheciam.

Como escreve a 1.ª instância:

“Estaríamos, portanto, perante um caso de culpa do lesado, nos termos do artigo 570.º do Código Civil.

Porém, entrando com maior profundidade na questão, impõe-se concluir que a culpa é, afinal, da ré. Com efeito, estamos perante uma grande empresa e um pequeno consumidor. A grande empresa tem o dever de ter o perfeito conhecimento do processo de mudança de comercializador; por conseguinte, sabia ou devia saber, da necessidade da leitura do contador como pressuposto da autorização, por parte do OLMC, da mudança de comercializador. Assim, devia, no mínimo, ter informado os autores de que a impossibilidade de leitura do contador poderia, em última hipótese, levar à não autorização da mudança de comercializador e ao consequente corte de fornecimento de energia elétrica. As regras da boa fé, num sentido objetivo, exigiam tal comportamento por parte da ré (artigo 762.º/2 do Código Civil).

Recorrendo a ré à celebração de contratos através de cláusulas contratuais gerais, deveria colocar tal informação, atenta a sua importância (já que está em causa um facto que poderá levar à não execução do contrato), nas condições gerais do contrato e comunicá-la de modo adequado e efetivo aos consumidores. Porém, não alegou que tivesse procedido a inserção de tal informação no contrato, em forma de cláusula, sendo que, de acordo com o artigo 5.º/3 do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, caber-lhe-ia a si alegar e provar a comunicação adequada e efetiva de tal informação. Não o fez. Efetivamente, a eventual gravidade (ao nível da causação de danos) das consequências da interrupção de fornecimento de energia elétrica não se compadece com a atuação ligeira levada a cabo pela ré. Exigia-se mais”.

Em conclusão, o prestador do serviço não informou, de forma clara e conveniente, a outra parte das condições em que o serviço é fornecido, não lhe prestando todos os esclarecimentos que se justificavam, de acordo com as circunstâncias. E o ónus de alegação e prova cabia à ré - perante a presunção de culpa fixada no n.º 1 do art.º 799.º, se quiser ilidir tal presunção, tem o devedor de provar que agiu de forma diligente, que desenvolveu esforços para realizar a prestação devida, que foi cauteloso e usou do devido zelo em face das circunstâncias concretas do caso, tal como faria uma pessoa normalmente diligente, ou, pelo menos, que não foi negligente.

Tratando-se de um bem essencial - a energia eléctrica - cuja distribuição constitui serviço público, são exigíveis maiores cautelas ao fornecedor, a fim de serem assegurados os direitos do consumidor, como seja o direito à informação para o consumo, consagrado no artº 3º, al. d), do Dec. Lei nº 24/96, de 31.07 e no artº 4.º, nº 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.

Improcedem, pois, as conclusões da ré recorrente, improcedendo o recurso.

(…)

3.Decisão

Assim, na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Genérico da Vila Nova de Foz Côa.

As custas ficam a cargo da recorrente.

Coimbra, 13 de Abril de 2021

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(António Freitas Neto- 1.º adjunto)

(Paulo Brandão – 2.º adjunto)