Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12679/19.5YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
FORNECIMENTO DE ÁGUA
CONSUMO
PAGAMENTO
JURISDIÇÃO COMUM
Data do Acordão: 10/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - CINFÃES - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.211, 212 CRP, 1, 4, 49 ETAF , 64, 96, 99 CPC, LEI Nº 23/96 DE 26/7
Sumário: Os tribunais competentes para o conhecimento das acções propostas pelas entidades que fornecem água e serviços de saneamento aos utentes, tendo por objecto a condenação destes no pagamento dos valores devidos por tais fornecimentos, são os tribunais comuns.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 12679/19.P5YIPRT

Litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais

Competência

Sumário:

Os tribunais competentes para o conhecimento das acções propostas pelas entidades que fornecem água e serviços de saneamento aos utentes, tendo por objecto a condenação destes no pagamento dos valores devidos por tais fornecimentos, são os tribunais comuns.

Acordam na 1.ª Secção Cível do tribunal da Relação de Coimbra

      A (…) SA, com sede na Rua(…), instaurou, em 11-02-2019, procedimento especial de injunção, requerendo a notificação do requerido, O (…), com domicílio (…), para pagar a quantia de € 214,21, a seguir discriminada:
1. Capital: 80,53 euros;
2. Juros de mora de € 2,64, à taxa de 4,00% desde 26-05-2017;
3. Outras quantias: 54,54;
4. Taxa de justiça: 76,50.

Segundo o requerimento de injunção, o capital em dívida provinha do fornecimento ao requerido de água par consumo e do saneamento de águas residuais.

Deduzida oposição, o processo foi distribuído ao juízo de competência genérica de Cinfães, do tribunal judicial da comarca de Viseu, onde passou a seguir os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias.

Após a realização da audiência – onde o capital pedido foi reduzido - foi proferida, em 16 de Março de 2020, sentença que decidiu declarar o juízo de competência genérica de Cinfães, do tribunal judicial da comarca de Viseu, incompetente em razão da matéria para o julgamento da acção e, em consequência, absolver o réu da instância.

A sentença justificou a decisão dizendo, em síntese, que “pretendendo a requerente, com o requerimento injuntivo, enquanto sociedade concessionária e fornecedora de serviços públicos essenciais de água e saneamento, cobrar a um utente tarifa relativa aos serviços que alega ter prestado, afigura-se-nos – no mesmo sentido da jurisprudência maioritária – que a matéria em causa nestes autos se insere no âmbito dos litígios cuja apreciação compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais, mais concretamente, aos Tribunais Tributários, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, alínea d), e 49.º, n.º 1, alínea c), do ETAF”.

A autora não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse a decisão recorrida e se julgasse materialmente competente o Juízo Local Cível de Cinfães.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A recorrente assume a exploração e a gestão do sistema de águas da região do Noroeste, em resultado da celebração de um contrato de parceria entre o Estado Português (Administração Central) e os Municípios de Amarante, Arouca, Baião, Celorico de Basto, Cinfães, Fafe, Santo Tirso e Trofa.
2. A exploração e a gestão do sistema em baixa são realizados em exclusividade pela recorrente em regime de parceria, nos termos da na alínea c), do n.º 2 do Decreto-Lei n.º 90/2009, de 9 de Abril e do Contrato de Parceria e do Contrato de Gestão.
3. Os Municípios supramencionados delegaram no Estado, as respectivas competências municipais relativas à gestão e exploração dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de água residuais urbanas aos utilizadores finais.
4. O Município de (…) outorgou o contrato de parceria pública com a recorrente para a exploração e gestão dos serviços de água, que compreende a distribuição de água para o consumo humano público e a recolha de águas residuais urbanas aos utilizadores finais, nos termos da Clausula 1.ª, n.º 1, e Cláusula 5.ª, n.º 1, ambas do Contrato de Gestão e da Cláusula 1.ª, n.º 1 do Contrato de Parceria, na qualidade de entidade gestora parceria e não na qualidade de concessionária.
5.  O recorrido outorgou com o Município de (…) um contrato de fornecimento de água.
6. Ao abrigo deste contrato a recorrente prestou os serviços de fornecimento de água no domicílio do Recorrido, que os aceitou e nunca os recusou.
7. O contrato de prestação de serviços de fornecimento de água e recolha de águas residuais rege-se pela Lei n.º 23/96 Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
8. O contrato de fornecimento de água é um contrato de consumo regulado no âmbito do direito privado, de uma relação de consumo, que não se celebra em substituição de qualquer ato administrativo.
9. A presente ação que tem por objeto a simples cobrança de divida civil, por uma empresa privada, regulada pelas regras do direito privado, no pagamento de valores constantes de facturas, acrescido de juros.
10.Tem, assim, a acção por base uma relação jurídica de direito privado, que se consubstancia numa situação de incumprimento das obrigações contratualmente assumidas pelo recorrido.
11.Obrigações que, tendo natureza civil, regem-se pelas normas dos contratos civis, estando em causa a apreciação de pressupostos da responsabilidade e do incumprimento e mora contratuais nos termos da lei civil artigo 762.º e seguintes, artigo 806 do código civil.
12.Pelo que, não se aplica o artigo 4.º, n.º 1, alínea d) do ETAF.
13.A alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º, do supramencionado diploma, apenas atribui competência à jurisdição administrativa para apreciar litígios sobre a interpretação, validade e execução de contratos objecto passível de acto administrativo, contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público.
14.A sujeição à jurisdição civil em face do incumprimento contratual é similar à que resulta da falta de pagamentos de uma factura de electricidade ou de uma factura emitida por operadora de telemóveis ou de comunicações electrónicas Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
15.Assim sendo, aplica-se a alínea e) do artigo 4.º do ETAF, sendo a competência para a apreciação e julgamento de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva dos tribunais comuns.
16.As tarifas são fixadas no âmbito dos poderes da Comissão de Parceria de fiscalização, direcção, autorização, aprovação e suspensão dos actos da Entidade Gestora de Parceria, ora recorrente.
17.Á pari, os pedidos de aprovação das tarifas são submetidos para pronúncia da entidade reguladora ERSAR.
18.A recorrente não fixa tarifas aos particulares, porque estas são aprovadas pela Comissão de Parceria, com a pronúncia da ERSAR, na qualidade de entidade gestora da Parceria, no exercício do direito privado
19.Estabelece o n.º 1 do artigo 211.º, da Constituição da República Portuguesa, que “os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria cível e criminal que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
20.E por sua vez, o n.º 3 do seu artigo 212.º, que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recurso contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativos e fiscais.
21.Dispõe o artigo 64.º, do Código de Processo Civil que são dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem
22.Foram, assim, violados os artigos 64.º, 96.º, 97.º n.º 2, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º n.º 2, 1.ª parte, 577.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, os artigos 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da Constituição Portuguesa, bem como, principalmente, o artigo 1.º, n.º 1 e alínea e), n.º 4 do artigo 4.º, do ETAF.


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Questões suscitadas pelo recurso:

Saber se, ao julgar incompetente em razão da matéria, o juízo de competência genérica de Cinfães, do tribunal judicial da comarca de Viseu, a decisão recorrida violou as disposições legais indicadas pela recorrente.


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Factos relevantes para a decisão do recurso, além dos antecedentes processuais da decisão recorrida narrados no relatório deste acórdão:
1. A A (…), S.A. é uma sociedade anonima, prestadora de serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais, constituída pelo Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio, alterado pelo Decreto-lei n.º 72/2016, de 4 de Novembro.
2. Assume a exploração e gestão do sistema de águas da região do Noroeste, em resultado da celebração de um contrato de Parceria entre o Estado e um conjunto de 8 Municípios, nomeadamente Amarante, Arouca, Baião, Celorico de Basto, Cinfães, Fafe, Santo Tirso e Trofa.
3. O Município de (…) outorgou contrato de parceria pública com a recorrente para a exploração e gestão dos serviços de água, que compreende a distribuição de água para o consumo humano público e a recolha de águas residuais urbanas aos utilizadores finais.

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Descritos os factos, passemos à resolução das questões suscitadas pelo recurso.

A questão resolvida pela decisão recorrida – saber qual o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento das acções propostas pelas entidades que fornecem água e serviços de saneamento aos utentes, tendo por objecto a condenação destes no pagamento dos valores devidos por tais fornecimentos – tem obtido respostas divergentes na jurisprudência.

Como se refere na decisão recorrida, a esmagadora maioria das decisões do tribunal de Conflitos é no sentido de que a competência para o conhecimento de tais acções cabe aos tribunais da jurisdição administrativa, mais concretamente aos tribunais tributários. Citam-se, a titulo de exemplo, os seguintes acórdãos todos publicados em www.dgsi.pt:
1. Acórdão de 5-11-2013, processo 039/13;
2. Acórdão de 18-12-2013, processo n.º 053/13;
3. Acórdão de 13-02-2014, processo 41/13;
4. Acórdão de 19-06-2014, processo 022/14;
5. Acórdão de 30-10-2014, processo 047/14;
6. Acórdão de 29-01-2015, processo 026/14.

O Tribunal de Conflitos afastou-se do sentido da jurisprudência acima indicada apenas no acórdão n.º 044/13, de 21 de Janeiro de 2014, também publicado em www.dgsi.pt, julgando que a competência para o conhecimento de tais acções cabia aos tribunais comuns. També de se afastaram de tal entendimento o acórdão do tribunal da Relação do Porto citado pela recorrente nas suas alegações [acórdão proferido em 10-12-2019, no processo n.º 135772/18.18.0YUPRT] e o acórdão do tribunal da Relação der Lisboa proferido em 10-10-2019, no processo n.º 124980/18.4YIPRT].

A resposta à questão foi, no entanto, clarificada com a Lei n.º 114/2019, de 12-09-2019. Com efeito, esta Lei aditou ao n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais e Fiscais [ETAF], aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, a alínea e) com a seguinte redacção: “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva”.

A exposição de motivos da proposta de lei que deu origem à Lei n.º 114/2019 [Proposta de Lei n.º 167/XIII], justificou a alteração e explicou-a nos seguintes termos: “Cumpre realçar também as alterações propostas para o âmbito da jurisdição e da competência dos tribunais administrativos e fiscais. A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26 de Julho) resulta claramente que a matéria atinente á prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária, concomitantemente fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo”.

Resulta do exposto que a competência para o conhecimento das acções emergentes das relações de consumo, cujo objecto seja a prestação dos serviços públicos essenciais a que se refere o n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, cabe aos tribunais comuns.

Visto que “constitui jurisprudência pacífica que a competência em razão da matéria se fixa em função dos termos em que o autor propõe a acção, atendendo ao direito que o mesmo se arroga e pretende ver judicialmente reconhecido, devendo, por isso, a questão da competência ser decidida em conformidade com o pedido deduzido e com a causa de pedir em que o mesmo se funda” (acórdão do STJ de 26-03-2019, proferido no processo n.º 2468/15.1T8CHV-AG, publicado em dgsi.pt.) e que, no caso, a autora radica o pedido numa relação de consumo típica, concretamente no fornecimento de água para o consumo do requerido [alínea a), do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho], é de concluir que tal litigio cai na previsão da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF.

E é de concluir também no sentido de que o tribunal a quo é o competente para o conhecimento da acção, apesar das seguintes regras e factos:
1. Da regra de que a competência do tribunal fixa-se no momento em que a acção se propõe [n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto];
2. Da regra de que são irrelevantes as modificações de direito que ocorram posteriormente ao momento em que a acção foi proposta [1.ª parte do n.º 2 do artigo 38.º acima indicado];
3. Do facto de, no momento em que a presente acção foi proposta [11-02-2019], a alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF ainda não se encontrar em vigor [entrou em vigor em 12-11-2019 – artigo 6.º da Lei n.º 114/2019].

E é de concluir no sentido exposto apesar das regras e factos acima indicados porque a regra de que são irrelevantes as modificações de direito que ocorram posteriormente ao momento em que a acção foi proposta comporta duas excepções e uma delas é aplicável ao caso.

Com efeito, segundo o n.º 2 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a regra de que as modificações legais em matéria de competência, que ocorram posteriormente ao momento em que a acção são proposta são irrelevantes, comporta duas excepções:
1. A primeira, atribuindo relevância à modificação legal, é a de esta suprimir o órgão a que a causa estava afecta. Nesta hipótese, o tribunal que tinha competência no momento em que a acção foi proposta deixa de a ter e o processo deve ser remetido para o tribunal que segundo a nova lei é o competente;
2. A segunda, é a de ser atribuída ao órgão a que a causa estava afecta [órgão que era incompetente no momento em que a acção foi proposta] a competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa. Nesta hipótese, a nova lei sobre competência aplica-se às acções futuras e às pendentes.  

Ora ainda que se entendesse que, quando a presente acção foi proposta, os tribunais comuns não eram competentes em razão da matéria para o conhecimento dela, era de considerar que tal competência lhe foi atribuída pela alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF. E visto que, quando tal norma entrou em vigor, a presente acção ainda estava pendente [pendente e sem decisão sobre a questão da competência], o tribunal a quo passou a ter competência para o conhecimento da acção.

Daí que, pese embora o respeito que nos merece, ao julgar incompetente o tribunal a quo para conhecer da acção, a decisão recorrida errou na determinação da norma aplicável – pois não aplicou na determinação da competência a alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF – e violou os artigos 1.º, 4.º, n.º 1, alínea d), e 49.º, n.º 1 alínea c), todos do ETAF, pois aplicou tais normas ao caso sem que estivessem verificados os respectivos pressupostos, e violou também artigos 64.º, 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 2, e 577.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, pois baseou-se neles para afirmar a incompetência absoluta do tribunal e a absolvição do réu da instância, quando não estavam verificados os pressupostos da sua aplicação.

Em consequência, impõe-se a revogação da decisão e a substituição dela por decisão que julgue o tribunal a quo competente em razão da matéria para o conhecimento da presente acção.

Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência:
1. Revoga-se a decisão recorrida;
2. Substitui-se a decisão por outra a julgar o tribunal a quo competente em razão da matéria para o conhecimento da acção.


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Responsabilidade quanto a custas:

Visto o n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo artigo e o facto de o recorrido ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas custas do recurso, restritas a custas de parte.

Coimbra, 19 de Outubro de 2020

Emídio Santos ( Relator)

Catarina Gonçalves

Maria João Areias