Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
205/14.7GABBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: SANEAMENTO DO PROCESSO
Data do Acordão: 10/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CALDAS DA RAINHA – INST. LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 311.º, N.º 1, DO CPP
Sumário: I - O poder-dever de sanear os autos, incluindo o de conhecer de eventuais nulidades, apenas incide sobre a causa que lhe é apresentada, isto é sobre a acusação (ou acusações) que se lhe pede que julgue e não sobre quaisquer outras questões.

II - Admitir o contrário, isto é, ultrapassar-se aquele thema decidendum concreto, era desvirtuar e violar o estatuto do Ministério Público, incluindo aquele que processualmente lhe está deferido, o de exclusivo titular da acção penal.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

O Ministério Público, não se conformando com o despacho proferido pela Mma Juiz que não recebeu a acusação deduzida nos autos por alegada “nulidade insanável decorrente da falta de promoção do inquérito quanto aos crimes de dano qualificado e de condução perigosa”, vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:

1. O princípio do acusatório, com consagração constitucional nos artigos 32°, n.° 5, e 279° da Constituição da República Portuguesa e aforamento legal no artigo 263º do Código de Processo Penal, é um dos princípios estruturantes do direito processual penal português.

2. Como decorrência desse princípio a entidade que investiga e acusa não é nem pode ser a mesma que julga, tal como a entidade que julga não pode ser a mesma que controla a acusação em termos de indiciação.

3. Assim, o inquérito é dirigido pelo Ministério Público, o qual pode ser coadjuvado por órgãos de polícia criminal.

4. Uma vez encerrado o inquérito podem surgir três situações distintas: a intervenção hierárquica, a abertura de instrução ou a remessa para julgamento.

5. Em caso de arquivamento, pode o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público chamar a si o processo, oficiosamente ou a requerimento, e determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento (artigo 278° do Código de Processo Penal).

6. Em caso tanto de arquivamento como de acusação, pode ser requerida a abertura de instrução para comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286°, n.º 1, do Código de Processo Penal), competindo essa comprovação ao juiz de instrução criminal, enquanto titular da fase processual.

7.         Caso o despacho seja de acusação e não tenha existido instrução, o processo é remetido para julgamento, sendo o juiz de julgamento chamado a proferir despacho de recebimento ou rejeição da acusação, em ordem à posterior realização do julgamento e prolação de sentença.

8.         Cada uma destas situações tem os seus intervenientes próprios, com os seus poderes legalmente atribuídos e restringidos, conforme exigido pelo princípio do acusatório, enquanto "garantia essencial do julgamento independente e imparcial. "

9.         Por outro lado, é a acusação que delimita o objecto do processo sobre que vai incidir o julgamento e a sentença, sendo "condição e limite do julgamento, cabendo ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido.

10.       Pelo que caso venha a demonstrar-se que os factos não ocorreram conforme descrito na acusação mas subsista responsabilidade criminal há lugar ao regime da alteração substancial de factos, nos termos do artigo 359° do Código de Processo Penal.

11.       Tal só pode, contudo, suceder após a produção de prova, não sendo lícito ao juiz de julgamento antecipar esse juízo para o momento do despacho a que alude o artigo 311° do Código de Processo Penal e contornar as exigências do artigo 359° através da devolução dos autos ao Ministério Público com a "sugestão" da possível existência de outros crimes, imiscuindo-se na substância do inquérito e pretendendo exercer um controlo que está legalmente reservado para o imediato superior hierárquico do magistrado que encerrou o inquérito e para o juiz de instrução criminal e que há muito constitui “figura do passado” no que a si respeita. Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa anotada, volume 1, 45 edição revista, Coimbra Editora, página 522.

2 Idem. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/9/2007, relatado por Anselmo Lopes, acessível em www.dgsi.pt.

12.       Efectivamente, o juiz de julgamento não pode substituir-se ao Ministério Público nem instar a que este investigue ou se pronuncie sobre factualidade que não tenha levado à acusação, sob pena de violação do princípio do acusatório e do extravasamento das suas funções.

13.       Como bem referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/7/1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência n.º XX, tomo 4, página 287, "Não é admissível ao juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou simplesmente para reformular a acusação ".

14.       Por outro lado, a suposta nulidade invocada em fundamento do despacho recorrido não tem o alcance aí pretendido nem se verifica, pois "1 -A nulidade da “falta de promoção" nada tem a ver com o facto de o Ministério Público ter acusado bem ou mal, ter-se abstido de acusar bem ou mal, ter-se pronunciado, ou não, bem ou mal, sobre a prova recolhida no inquérito. II - Nulidade não é o Ministério Público não promover o processo, não se pronunciando sobre uma alegada infracção. Nulidade existira nesse caso, se o processo prosseguir, nessas circunstâncias, relativamente a esse crime. III - Por outras palavras, a nulidade de que falamos não pode ser cometida pelo Ministério Público, pois só é consumável por entidade que lhe seja distinta, designadamente o tribunal. "

15.       Pelo exposto, verificando-se que o Mmo. Juiz extravasou os poderes cognitivos que a lei lhe atribui, conhecendo de uma questão de que não podia tomar conhecimento, deve o despacho por si proferido ser declarado nulo nos termos conjugados dos artigos 3110 e 3790, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, e substituído por outro que receba a acusação e designe data para julgamento, desse modo sendo reposta a legalidade e feita Justiça.

A Sra Juiz manteve o despacho recorrido.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

É este o despacho recorrido:

Por intermédio do douto despacho de fls. 45-46, e com os fundamentos de facto que aqui se consideram reproduzidos, o Ministério Público deduziu acusação contra

 A... pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

            Em tal despacho, nenhuma referência é feita a qualquer outro tipo legal de crime, seja no sentido do arquivamento, seja no sentido da dedução de acusação.

Sucede que do auto de notícia de fls. 3-4 resulta, para além do mais, que no dia 17 de Junho de 2014, cerca das 23H40, o arguido terá partido um vidro da porta principal do Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana do Bombarral, o que, em nosso entendimento, é susceptível de integrar a prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, crime esse que tem natureza pública.

Por outro lado, do mesmo auto de notícia, conjugado com as participações de fls. 5 a 8, decorre que o arguido, para além de conduzir o veículo ali referido com uma taxa de alcoolemia de 2,33, com uma margem de erro de 0,30g/l, terá ainda sido interveniente em dois acidentes de viação (despistes), um dos quais ocorrido na passagem de nível da localidade de Paúl, tendo provocado danos em vedação e respectivo lancil e em sinal O7a – Baliza de posição.

Tal circunstancialismo, para além de ser susceptível de integrar a prática, pelo arguido, da subsunção típica atinente ao crime de condução sob o efeito do álcool pelo qual o Ministério Público deduziu acusação, é ainda susceptível, em nosso entender, de integrar a eventual prática de um crime de condução perigosa, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, o qual assume também natureza pública.

            Na defluência do exposto, e salvaguardando sempre o devido respeito por entendimento diverso, estamos perante dois crimes de natureza pública relativamente aos quais não houve qualquer pronúncia (no sentido do arquivamento ou da dedução de acusação) por parte do Ministério Público, o que, a nosso ver, traduz violação do dever de promoção da acção penal e, consequentemente, a nulidade insanável a que alude o artigo 119.º, alínea b), 1.ª parte, do Cód. Proc. Penal.

            Ora, nos termos do artigo 122.º do mesmo diploma, «as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem de aquelas puderem afectar» (n.º 1), sendo que «a declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição (...)» (n.º 2), devendo o juiz, ao declarar a nulidade, aproveitar «todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela» (n.º 3).

            Conforme fazem notar os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques (Código de Processo Penal anotado, I Volume, 2.ª edição, Editora Rei dos Livros, 2003, p. 643), alcança-se de tal preceito a «consagração do princípio da economia processual, restringindo-se até onde for possível as consequências da declaração de nulidade do acto».

            Importará, pois, nas palavras de João Conde Correia (Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais, “Studia Iuridica” n.º 44, Coimbra Editora, 1999, p. 190), «verificar, em concreto, se a renovação do acto é imprescindível», uma vez que «o desenvolvimento do processo pode ter demonstrado a sua total inutilidade ou, pelo menos, que o acto é dispensável».

            Nesta conformidade, temos que na situação dos autos se verifica que a apontada nulidade quanto à falta de promoção relativa ao crime de condução perigosa não pode autonomizar-se dos factos que, constantes da douta acusação de fls. 45-46, o Ministério Público enquadra na subsunção típica do artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal (condução de veículo em estado de embriaguez).

            Com efeito, da conjugação de toda a pertinente factualidade poderá vir a concluir-se que o arguido praticou, na verdade, o assinalado crime de condução perigosa, o qual, dependendo das circunstâncias concretas que se venham eventualmente a apurar em inquérito, pode estar para com o crime de condução em estado de embriaguez numa relação de concurso aparente ou, até, numa relação de concurso efectivo.

A tudo acresce poder configurar-se uma situação de conexão subjectiva, conforme decorre do artigo 24.º, alínea b), do Cód. Proc. Penal.

            O mesmo é dizer, pois, não ser processualmente viável aproveitar a eficácia da acusação deduzida, ordenando uma eventual separação de processos de molde a que, autonomamente, se procedesse a inquérito quanto aos mencionados crimes de dano qualificado e de condução perigosa.

*

            Em face de todo o exposto, e à luz do preceituado nos artigos 119.º, alínea b), e 122.º, ambos do Cód. Proc. Penal, julgo verificada a nulidade insanável decorrente da falta de promoção quanto aos crimes de dano qualificado e de condução perigosa e, em consequência, ordeno que, após trânsito do presente despacho, se devolvam os autos ao Ministério Público para os efeitos ali tidos por convenientes e, designadamente, para que seja eventualmente suprida a identificada nulidade.

            Notifique.

Dispõe o art. 311, nº1 do CPPenal, “Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”.

Foi através da aplicação deste normativo que surgiu o despacho criticado. Pronunciou-se sobre a existência duma nulidade.

No entanto, ao Sr Juiz está vedado sindicar o exercício ou não exercício da acção penal pelo MºPº.

Ora, é indiscutível que o poder-dever de sanear os autos, incluindo o de conhecer de eventuais nulidades, apenas incide sobre a causa que lhe é apresentada, isto é sobre a acusação (ou acusações) que se lhe pede que julgue e não sobre quaisquer outras questões.

Aliás, se bem se atentar, ver-se-á que o demais daquele normativo também apenas diz respeito à acusação, ou seja, o Juiz apenas sobre ela pode fazer incidir a sua atenção, nada mais lhe interessando do que a causa que vai julgar. Sistematicamente, o artº 311º insere-se no Livro VII, com a epígrafe “Do julgamento”, e refere-se aos actos preliminares daquele acto, que tem um determinado objecto, e sobre o qual, em exclusivo, se referem as nulidades e outras questões prévias ou incidentais, não sendo, pois, lícito que o Juiz alargue o saneamento para questões que a acusação não reclama.

Admitir o contrário, isto é, ultrapassar-se aquele thema decidendum concreto, era desvirtuar e violar o estatuto do Ministério Público, incluindo aquele que processualmente lhe está deferido, o de exclusivo titular da acção penal. São bem amplos os poderes do Juiz - citado artº 311º -, mas é ao Ministério Público que cabe decidir dos trâmites do inquérito e acusar ou arquivar conforme bem entender.

E, como é referido no ac.1362/07-2 da Rel Guimarães que temos vindo a citar de 17/9/2007, as únicas formas de controle da função - e é apenas dela que aqui se trata - do Ministério Público são a intervenção hierárquica e a abertura de instrução. O controle judicial foi figura no passado.

Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida, a substituir por outra que, nos termos do artº 311º, se pronuncie sobre a acusação deduzida.

Sem custas.

Coimbra, 21-10-2015

(Alice Santos - relatora)

(Abílio Ramalho - adjunto)