Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117/09. 6TAVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
NÃO ENTREGA DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 69º,Nº1 AL. A), 353º CP
Sumário: Tendo o arguido sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do artigo 69º, n.º 1, al. a) do CP e, não tendo entregue nas autoridades competentes o título de condução, incorre num crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

O Ministério Público veio interpor recurso da decisão, de fls. 71/73, que rejeitou a acusação deduzida contra o arguido R... pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º, n.º 1, al. b) do Código Penal.

A razão da sua discordância encontra‑se expressa nas conclusões da motivação do recurso onde refere que:

1- Nos presentes autos, o Ministério Público acusou o arguido R... pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

2- A decisão recorrida rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público, por entender que não está prevista qualquer cominação legal de punição da não entrega da carta de condução como crime de desobediência, pelo que, tendo sido efectuada tal cominação, a mesma não é legítima.

3- Contudo, a nosso ver, não restam dúvidas de que se mostram preenchidos todos os pressupostos acima transcritos, maxime, o da legalidade (material e formal) da ordem dirigida ao arguido.

4- É certo que de acordo com o preceituado pelo artigo 500º, n.º 3 do Código de Processo Penal "se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução ".

5- Todavia, a circunstância de não estar prevista, no citado artigo 500º do Código de Processo Penal outra consequência para a não entrega da carta de condução, não pode conduzir à conclusão a que se chegou na decisão recorrida, ou seja, a de que uma ordem, dada por um Juiz de Direito no exercício das suas funções, a um arguido que é condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, no sentido de o mesmo entregar a respectiva carta de condução, sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência, não é legítima.

6- Tal ordem de entrega da carta de condução é em si mesmo legítima, dado que não ofende qualquer direito inalienável do condenado e visa, apenas, garantir o efectivo cumprimento de uma pena acessória.

7- Por outro lado, no artigo 160º, n.º s 3 e 4 do Código da Estrada está prevista a punição da não entrega da carta de condução, por parte do condenado em proibição ou inibição de conduzir, a par da apreensão de tal título.

8- Ora, se tal consequência está prevista para a sanção da inibição de conduzir, não faz sentido considerar ilegítima uma ordem, dada por um Juiz de Direito no exercício de funções, de entrega de carta de condução, com a cominação da prática de um crime de desobediência, já que tal entendimento não leva em devida conta a unidade do sistema jurídico.

9- A unidade do sistema jurídico e a ideia de proporcionalidade impõem que as consequências previstas para assegurar o cumprimento de uma sanção sejam menos gravosas do que as previstas para assegurar o cumprimento de uma pena, já que estas não podem ser inferiores àquelas que a própria lei comina para uma idêntica infracção, de natureza contra-ordenacional e de menor gravidade.

10- A decisão recorrida violou, assim, o preceituado no artigo 311.º do Código de Processo Penal e o artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

11- Assim, deverá o tribunal de recurso revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público nos presentes autos.


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O arguido não respondeu.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

É do seguinte teor o despacho recorrido:

(…)

I. Pelo presente processo, entende o Ministério Público estar suficientemente indiciada a prática, pelo arguido, de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, atenta a seguinte factualidade:

«O arguido foi condenado por sentença de 10 de Setembro de 2008, transitada em julgado, proferida a 01 de Outubro de 2008, proferida nos autos de processo comum singular n.º 312/08.5GBVNO que correram termos no 2.º Juízo deste tribunal, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 75 dias de multa, a taxa diária de € 5,00, num total de €375,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de três meses.

O arguido foi então notificado de que deveria entregar a sua carta de condução na secretaria deste tribunal ou no posto policial da área da sua residência, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado daquela decisão, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.

De tal obrigação ficou o arguido bem ciente, pois foi devidamente notificado teor daquela sentença.

No entanto, o arguido não entregou a sua carta de condução neste tribunal ou na entidade policial competente no prazo que lhe tinha sido estabelecido.

Arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que tinha que entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias, sabendo quais as consequências da sua não entrega e querendo não a entregar.

Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.»

II. Pois bem, atentemos na factualidade indiciada e nos elementos do tipo legal de crime imputado ao arguido.

Preceitua o artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal que «quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou // b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.»

Maia Gonçalves anota acerca deste normativo o seguinte: «Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência.

A amplitude deste crime voltou a ser ponderada pela CRCP, na 35.ª sessão. Para boa compreensão da amplitude actual da previsão aqui estabelecida, destacamos as seguintes passagens da discussão na CRCP “.... Para o Senhor Conselheiro Sousa e Brito torna-se no entanto necessário restringir o âmbito de aplicação do artigo, pois é excessivo proteger desta forma toda a ordem. Justifica-se plenamente uma restrição àquelas ordens protegidas directamente por disposição legal que preveja essa pena. Por outro lado entende que o mandato, por exemplo, deveria ter lugar com a cominação da pena. O Sr. Dr. Costa Andrade, concordando no plano dos princípios com o Sr. Conselheiro Sousa e Brito, frisou o facto de se operar uma alteração muito profunda, a ponto de desarmar a Administração Pública. O mesmo tipo de considerações teceu o Professor Figueiredo Dias (a solução da exigência da norma legal seria a melhor), mas há que ter consciência da Administração Pública que temos. A Comissão acordou na seguinte solução, de molde a afastar o arbítrio neste domínio e numa tentativa de clarificar o alcance da norma para o aplicador (texto actual) ”.

Ficou, portanto, clarificado que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do n.º 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número.» (cfr. Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª Ed., pág. 1045).

Por sua vez e incidindo, agora, no preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir, pena em que o arguido foi condenado por sentença transitada em julgado, constata-se que o mesmo não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Com efeito, estabelece o artigo 500.º do Código de Processo Penal que «2. No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo. // 3. Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.»

Também sobre a questão da entrega do título de condução preceitua o n.º 3 do artigo 69.º, do Código Penal que «No prazo de 10 dias contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.»

Da leitura e análise dos dois normativos vindos de referir em último lugar resulta não existir, por conseguinte, qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência – um dos elementos do tipo objectivo do ilícito da desobediência.

Por sua vez, no que concerne ao preenchimento do tipo através da simples “cominação funcional” (assim designada por contraposição à “cominação legal”), importará ponderar se as condutas arguidas de desobediência merecem ou não tutela penal, tendo em vista o carácter fragmentário e de última ratio da intervenção penal.

Como é assinalado por Cristina Líbano Monteiro, que aqui seguimos de perto, «(…) a al. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal.» (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, Tomo III, pág. 354).

Para a não entrega voluntária da carta de condução – entrega essa que decorre da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – o legislador prevê como consequência a determinação da sua apreensão, e tão só!

Desta feita, entendemos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega contraria o sentido da norma da aplicação e execução da pena acessória de proibição de veículos com motor.

No sentido do vindo de sustentar, pode consultar-se o Ac. Relação de Coimbra, de 22 de Outubro de 2008, onde se lê que “Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.// Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência. // Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. (artigo 9.º Código Civil). // Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente.» (cfr. Processo 43/08.6TAALB.C1, disponível em www.dgsi.pt).

No mesmo sentido, e com desenvolvida argumentação, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Dezembro de 2008, processo 1932/2008-9 (www.dgsi.pt), em que se salienta, além do mais: «(…) criando a lei mecanismos para quando, ultrapassada a fase “declarativa” da decisão sem que o agente cumpra voluntariamente, se passe a uma fase executiva da mesma, reagindo-se ao comportamento omissivo (no caso a não entrega da carta) com emprego de meios coercivos (determinando-se a concretização oficiosa da sua apreensão, fase para a qual se mostra indiferente a adopção de um comportamento colaborante por parte do arguido), e considerando que, entregue ou não a carta, se este conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.º do CP (o que reduz, repete-se, a entrega da carta a um mero meio de permitir um mais fácil e melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir), a cominação da prática de crime de desobediência para a não entrega no momento em que surge nos caso dos autos carece de legitimidade.»

Concluímos, portanto e no seguimento do todo vindo de expor, não haver lugar, no caso, à cominação do crime de desobediência, pelo que tendo existido a mesma, apenas podemos tê-la como não legítima e, por via disso, não poderemos tê-la em consideração para efeitos de ver como verificados, pelo menos, indiciariamente, todos elementos (objectivos) necessários à prossecução penal do arguido pela potencial prática de um crime de desobediência.

Destarte, impõe-se então extrair as necessárias consequências, que, claro está, passam por rejeitar a acusação pública deduzida, por manifestamente infundada e à luz do disposto pelo art.º 311º, nº 2, al. a), e n.º3, al. d), do Código de Processo Penal.

III. Decisão:

Termos em que, face ao exposto, rejeita-se a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra o arguido R... de fls. 60 e 61, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2, al. a), e nº 3, al. d), do Código de Processo Penal.

Sem custas, por não serem devidas.

Notifique.


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APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada e a decidir, consiste em saber se tendo o arguido sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do artigo 69º, n.º 1, al. a) do CP e, não tendo entregue nas autoridades competentes o título de condução, incorre num crime de desobediência ou no crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP (como salienta o Exmº PGA no seu parecer).


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Sustenta o recorrente que “a ordem é substancialmente legítima, já que surge na sequência e no âmbito do exercício dos poderes para um tal efeito discricionariamente reconhecidos ao  Mmº Juiz que a proferiu; não ofende qualquer direito inalienável do condenado e visa, apenas, garantir o efectivo cumprimento de uma pena acessória”. Acrescenta ainda que da leitura dos n.ºs 3 e 4 do artigo 160º do Código da Estrada “decorre que o legislador prevê a punição da não entrega da carta de condução, por parte do condenado em proibição ou inibição de conduzir, a par da apreensão de tal título”, pelo que, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e a ideia de proporcionalidade, as consequências previstas para assegurar o cumprimento de uma sanção não sejam mais gravosas do que as previstas para assegurar o cumprimento de uma pena, já que estas não podem ser inferiores àquelas que a própria lei comina para uma idêntica infracção, de natureza contra-ordenacional e de menor gravidade.

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No caso vertente, o despacho recorrido parte do pressuposto que inexiste disposição legal que expressamente comine como desobediência, a não entrega voluntária do título de condução, após condenação em pena acessória de proibição de conduzir.

Esse, porém, não é o nosso entendimento.

Conforme o estatuído no artigo 348º, n.º 1 do CP, para a verificação do crime de desobediência torna-se necessária a existência de uma disposição legal que expressamente comine a punição de desobediência [al. a)] ou, na ausência de disposição legal, uma ordem substancial e formalmente legítima, emanada de autoridade competente [al. b)].

Como refere Cristina Líbano Monteiro ([1]) “Em definitivo: a al. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal.”.

A pena acessória de proibição de conduzir traduz-se numa verdadeira pena; pressupõe a prática de um crime e a aplicação de uma pena principal ([2]).

O texto do artigo 69º do CP é resultante da revisão do Código levado a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março. Com efeito, este diploma introduziu no Código Penal a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, matéria anteriormente privativa do Código da Estrada e de leis extravagantes.

A propósito, transcrevemos o que consta no preâmbulo do DL n.º 48/95: «No capítulo relativo às penas acessórias e efeitos das penas há que assinalar a inovação da consagração expressa no texto do Código Penal da proibição de conduzir. Por outro lado, e agora no âmbito das medidas de segurança não privativas da liberdade, passa a regular-se autonomamente tanto a cassação da licença de condução de veículo automóvel como a interdição da concessão da licença.».

Entretanto, mediante autorização legislativa (Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto), ficou o Governo autorizado a estabelecer «a punição como crime de desobediência da não entrega da carta ou licença de condução à entidade competente pelo condutor proibido ou inibido de conduzir ou a quem tenha sido decretada a cassação daquele título» (art. 3º, al. c)).

Em função desta autorização, o legislador que em 1998 procedeu à revisão do CE, passou a cominar como desobediência, a não entrega voluntária da carta ou licença de condução à entidade competente, para cumprimento da proibição de conduzir.

Assim, passou a estabelecer o artigo 167º do CE revisto pelo DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro ([3]):

«1. As cartas ou licenças de condução devem ser apreendidas para cumprimento da cassação da carta ou licença, proibição ou inibição de conduzir.

2. A entidade competente deve ainda determinar a apreensão das cartas e licenças de condução quando: a), b); c).

3. Nos casos previstos nos números anteriores, o condutor é notificado para, no prazo de 20 dias, entregar a carta ou licença de condução à entidade competente, sob pena de desobediência.

4. Sem prejuízo da punição por desobediência, se o condutor não proceder à entrega da carta ou licença de condução nos termos do número anterior, pode a entidade competente determinar a sua apreensão, através da autoridade de fiscalização do trânsito e seus agentes.»

Ou seja, tal como já acontecia no âmbito do direito contra-ordenacional (com a cominação legal de desobediência quanto ao dever de entrega do título de condução para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir - art. 161º, n.ºs 1 e 3 do CE/94), com a revisão do CE/98, passou a existir uma disposição legal a prever a cominação de desobediência simples, agora quanto ao dever de entrega do título de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir.

Com efeito, entendemos que é assim que deve ser interpretado o citado artigo 167º do CE quando se refere, a par da cassação da carta ou licença e da inibição de conduzir, à proibição de conduzir. Não se compreenderia que a mesma conduta não fosse punida como desobediência estando em causa uma reacção do foro criminal, em princípio mais grave que a do foro contra-ordenacional, assim se procurando uma coerência do sistema jurídico-penal.

Como escreveu Manuel de Andrade ([4]) “Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva” ... “O legislador é plenamente livre para investigar a melhor regulamentação a estatuir, ao passo que o intérprete tem de mover-se sempre no quadro do texto e do sistema e sem perder de vista outros dados – e em especial as sugestões do texto – que, não sendo de todo irrefragáveis, podem ser altamente persuasivos”.

Ou ainda, como se deixou consignado no Parecer n.º 92/81 da Procuradoria-Geral da República, de 8-10-2001 (BMJ 315, 33-40) “é das mais elementares regras da hermenêutica dever o intérprete esforçar-se por situar a norma interpretanda num quadro lógico com as demais disposições legais, nomeadamente as que respeitem a institutos e figuras afins ou paralelos”.

Ora, muito embora ao artigo 69º do CP tenha sido dada nova redacção pela Lei 77/2001, de 13 de Julho, pretendendo-se reduzir os índices de sinistralidade, pelo aumento da «segurança rodoviária, adoptando medidas ajustadas à realidade social, à situação das infra-estruturas e à evolução do comportamento dos intervenientes no sistema de trânsito, em especial os condutores» (Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 69/VIII, que esteve na origem desta alteração legislativa, in Diário da Assembleia da República, II Série A, de 21-4-2001, pág. 1708), com as revisões do Código da Estrada de 2001 (DL n.º 265-A/2001, de 28 Set.) e 2005 (Lei n.º 44/2005, de 23 Fev.) manteve-se a aludida incriminação (artigos 166º, n.º 4 e 160º, n.º 3), dando-se um sinal de que tal matéria pertence ao «direito estradal».

Como sabemos, o crime de desobediência tem natureza subsidiária (cfr. Ac. Rel. Lx., de 5-12-2007, in www.dgsi.pt), pelo que a autoridade ou o funcionário só podem fazer a cominação prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 348º do CP, quando o comportamento não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra ([5]).

Em consequência, e na esteira do que vimos afirmando, existia preceito a sancionar como crime de desobediência a não entrega do título de condução, em face da pena acessória imposta.

Por outro lado, e contrariamente ao mencionado no despacho recorrido, aqui o não cumprimento quanto à entrega voluntária do título de condução, não seria apenas a sua apreensão (art. 500º, n.º 3 do CPP), já que nos termos do n.º 3 do artigo 160º do CE pode a entidade competente proceder à apreensão do título de condução, através da autoridade de fiscalização e seus agentes, havendo, contudo, lugar a punição por crime de desobediência. Aliás, essa será a razão por que na redacção introduzida ao art. 69º do CP, pela Lei n.º 77/2001, no n.º 4 do preceito passou a constar que “a secretaria do tribunal participa ao Ministério Público as situações de incumprimento da entrega do título de condução”, afigurando-se-nos que tal participação tinha em vista o exercício da acção penal quanto ao crime de desobediência.

Todavia, com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 Set., ao Código Penal, a situação de não entrega do título de condução, após a imposição da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, integra o crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP.

Com efeito, passou a constar do referido preceito a violação de imposições (…) a título de pena acessória.

Na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 98/X ([6]), que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, diploma que alterou o Código Penal pode ler-se que «O ilícito criminal de violação de proibições ou interdições é alargado. Entre as condutas típicas inclui-se agora também a violação de imposições, pelo que o tipo de crime englobará o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo.»

Como salienta Cristina Líbano Monteiro ([7]) a propósito dos artigos 349 a 354º do CP “estes preceitos emprestam a certas decisões do foro criminal a força coactiva prática de que careciam. Quando o tribunal condena, constitui o condenado numa situação de sujeição, que se traduz na maioria dos casos em deveres a observar”.

Por conseguinte, tendo em conta a data dos factos, deve a acusação deduzida contra o arguido ser recebida mas, sendo diversa a qualificação jurídica, dado que a conduta do arguido integra agora a previsão do artigo 353º do CP, deve ainda ordenar-se no despacho que designa dia para julgamento a comunicação a que alude o artigo 358º do CPP.

Procede, assim o recurso, mas com a apontada alteração da qualificação jurídica.


*****

III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, ordenando-se a sua substituição por outro que determine o recebimento da acusação pela prática de um crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP (com observação do disposto nos n.ºs 1 e 3 do art. 358º do CPP).

Sem tributação.


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                                                                         Coimbra,


[1] - in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 354.
[2] - Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 10ª edição, 1996, pág. 268.
[3] - Nos termos do artigo 5º deste DL n.º 2/98:
          “1- Quando o tribunal condenar em proibição de conduzir veículo a motor ou em qualquer sanção por contra-ordenação grave ou muito grave, determinar a cassação da carta ou licença de condução ou a interdição de obtenção dos referidos títulos, comunica a decisão à Direcção-Geral de Viação, para efeitos de registo e controlo da execução da pena, medida de segurança ou sanção aplicada.
          2- Para os mesmos efeitos e quando a condenação for em proibição ou inibição de conduzir efectivas ou for determinada a cassação do título de condução, o tribunal ordena ao condenado que, no prazo que lhe fixar, não superior a 20 dias, proceda à entrega daquele título no serviço regional da Direcção-Geral de Viação da área da sua residência.
          3- A Direcção-Geral de Viação deve informar o tribunal da data de entrega da carta ou licença de condução.
          4- Na falta de entrega da carta ou licença de condução nos termos do n.º 2, e sem prejuízo da punição por desobediência, a Direcção-geral de Viação deve proceder à apreensão daquele título, recorrendo, se necessário e para o efeito, às autoridades policiais e comunicando o facto ao tribunal. (sublinhado nosso)
          5- (…).
[4] - in Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, 1963, págs. 26 e 102.
[5] - neste sentido, Lopes da Mota, in Crimes contra a autoridade pública – Jornadas de Direito Criminal-Revisão do Código Penal, Vol. II, CEJ, 1998, pág. 437.
[6] - Diário da Assembleia da República, II série-A, n.º 10, de 18-10-2006.
[7] - in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 360.