Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | PROCESSO ESPECIAL DE SUSPENSÃO DE TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS NATUREZA CAUTELAR CONTRADITÓRIO DO REQUERIDO | ||
Data do Acordão: | 04/26/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 1055.º, N.º 2, E 366.º, N.º 1, AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
Sumário: | O preceito do n.º 2 do art. 1055.º do CPCiv. deve ser interpretado no sentido de que a decisão (“imediata”) sobre o pedido de suspensão de titulares de órgãos sociais não é precedida da audição do requerido, ou seja, não é aplicável à decisão a regra do n.º 1 do art. 366.º do CPCiv.. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 568/22.0T8ACB
Acordam na 1.ª Secção cível do tribunal da Relação de Coimbra
AA, residente na Praça ..., ..., requereu, através do processo especial previsto no artigo 1055.º do CPC, que BB fosse suspenso, a título antecipatório e com natureza urgente e cautelar e destituído das funções de gerente da sociedade A... Lda Mais requereu que a suspensão fosse decretada sem a audiência prévia do requerido. Para o efeito, invocando a sua qualidade de sócia e gerente da sociedade A... Lda, imputou, em síntese, ao requerido uma multiplicidade de actos que, no seu entender, configuravam violação grave dos deveres dele, enquanto gerente da mencionada sociedade, e alegou que havia um sério risco de que ele persistir na prática de actos de infidelidade em relação à sociedade e aos seus sócios, locupletando-se pessoalmente, e através de diversos expedientes, com rendimentos da sociedade. O Meritíssimo juiz do tribunal a quo indeferiu o pedido da requerente no sentido de o requerido não ser ouvido antes da decisão sobre o pedido de suspensão. Justificou a decisão dizendo em síntese: Rematou a decisão dizendo que a requerente não alegou no seu requerimento inicial factos idóneos e suficientemente legitimadores para justificar a preterição daquela regra basilar e que não estava satisfeita a exigência da parte final do n.º 1 do art.º 366.º do CPC, e consequentemente não se vislumbrava que a audição do requerido trouxesse o alegado risco sério para o fim ou eficácia da presente providência. A requerente não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse o despacho proferido, ordenando-se que se passasse de imediato à produção unilateral da prova indiciária da justa causa de destituição e bem assim do “periculum in mora”, proferindo- se posteriormente decisão em conformidade. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: O requerido não foi citado para os termos do recurso e da acção. * A questão suscitada pelo recurso é a de saber se, ao indeferir o pedido da requerente no sentido de ser proferida decisão sobre a suspensão do requerido das funções de gerente da sociedade A... Lda sem a audiência prévia do requerido, a decisão recorrida violou os artigos 366.º e 1055.º do CPC. * Como se vê pela exposição efectuada, na origem do recurso está a divergência da recorrente quanto ao entendimento afirmado no despacho recorrido de que a suspensão do cargo de gerente através do procedimento previsto no artigo 1055.º do CPC, sendo uma medida de natureza cautelar, está sujeita à regra dos procedimentos cautelares enunciada no n.º 1 do artigo 366.º do CPC, segundo a qual o tribunal ouve o requerido, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência. A recorrente contrapõe que o o n.º 2 do artigo 1055.º do CPC, ao dispor que o juiz decide imediatamente o pedido, afasta a aplicação de tal regra. No seu entender, em face da singularidade de tal procedimento “especialíssimo”, ou o requerente fundamenta com todo o rigor e diligência o seu pedido cautelar e provisório de suspensão, hipótese em que (caso se mostre necessário) se passa de imediato à produção unilateral da prova indiciária da justa causa de destituição e bem assim do “periculum in mora”, após o que, sem contraditório, é proferida decisão (susceptível de recurso ou de oposição, em alternativa), ou o requerente não suporta (ou em termos de alegação ou de prova indiciária) suficientemente o pedido cautelar e a decisão, também imediata e sem contraditório, é de indeferimento. Antes de tomarmos posição sobre a questão, importa dizer que os tribunais e a doutrina têm-lhe dado respostas divergentes. Afirmaram a interpretação sustentada pela recorrente, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, proferidos respectivamente em 5-04-2011 (recurso n.º 0130120) e 12/05/2008, (recurso n.º 0850755), o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-11-2018, no processo n.º 4039/17.9T8LRA-A.C1 (no qual o ora relator interveio como 2.º adjunto) e acórdão da mesma Relação proferido em 28-01-2020, no processo n.º 5868/19.4T8CBR-A.C1 todos publicados em www.dgsi.pt. Sustentaram a interpretação afirmada na decisão recorrida, o acórdão do tribunal da Relação do Porto proferido em 26-10-2017, no processo n.º 2894/16.9T8STS-A, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 23-03-2017, no processo n.º 837/16.9T8OLH.E1, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 10-01-2022, no processo n.º 6159/21.6T8VNG.P1, todos publicados em www.dgsi.pt. Na doutrina, a título de exemplo, Joaquim Taveira da Fonseca, afirma que a regra do n.º 1 do artigo 366.º do CPC é aplicável à decisão do pedido de suspensão [Suspensão e destituição dos membros dos órgãos de administração das sociedades por quotas e anónimas, Direito das Sociedades em Revista, Separata]. Em sentido contrário pronunciaram-se João Labareda (notas dobre os processos destinados ao Exercício de direitos sociais- Revista de Direito e Justiça, ano 1999, Tomo I), Coutinho de Abreu, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume VI, Almedina, página 388, e Solange Fernanda Moreira de Jesus, no estudo “O Processo Especial de Destituição e Suspensão dos Gerentes Problemas Suscitados pelo n.º 2 do artigo 1484.º-B CPC”, IDET/Miscelâneas/N.º 7, página 194. No entender deste tribunal, o n.º 2 do artigo 1055.º do CPC deve ser interpretado no sentido de que a decisão sobre o pedido de suspensão não é precedida da audição do requerido, ou seja, não é aplicável à decisão a regra do n.º 1 do artigo 366.º do CPC. Em primeiro lugar, cabe sem esforço na letra do preceito a interpretação do n.º 2 do artigo 1055.º do CPC no sentido de que a decisão do pedido de suspensão é tomada sem prévia audiência do requerido. Com efeito, ao dispor sobre o processo de decisão, que “o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão, após a realização das diligências necessárias”, o preceito aponta no sentido de que entre o pedido e a decisão interpõe-se apenas a realização das diligências necessárias à decisão. Em segundo lugar, sabe-se, através do preâmbulo do Decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – diploma que, realizando uma adaptação entre o Código de Processo Civil e o Código das Sociedades Comerciais, criou os processos especiais relativos ao exercício de direitos sociais, entre os quais processo previsto no artigo 1055.º - que o legislador quis que os processos especiais que criou relativos ao exercício de direitos sociais fossem “procedimentos expeditos para realizar interesses societários”. Ora, se o legislador quis que o processo de destituição de titular de órgão social fosse expedito, certamente que mais expedito quis que fosse o processo de suspensão. Sucede que, como se pôs em evidência no acórdão proferido por esta Relação em 28-01-2020, no processo n.º 5868/19.4T8CBR-A.C1, se o pedido de suspensão fosse decidido com a prévia audiência do requerido, sairia frustrada a celeridade de tal procedimento. Na verdade – e passamos a citar o que se escreveu em tal acórdão - “…, a entender-se que a decisão de suspensão do cargo teria que ser precedida de audiência do requerido e porque nenhuma razão existiria para que os termos do processo com vista à destituição ficassem suspensos até à decisão a proferir sobre a suspensão, tal significaria que a notificação do requerido para se pronunciar sobre o pedido de suspensão seria efectuada em simultâneo com a notificação para deduzir oposição ao pedido de destituição (nenhuma razão encontramos para que fosse de outro modo); porque o prazo para essa oposição seria idêntico (dez dias), porque a lei não prevê outros articulados e porque a prova a produzir sobre o pedido de suspensão e sobre o pedido de destituição será, por via de regra, a mesma (correspondendo à prova indicada nos articulados sem prejuízo de outras que o juiz entenda necessárias), tal significaria, na prática e pelo menos na maioria das situações, que, quando o juiz estivesse em condições de apreciar o pedido de suspensão também já estariam reunidas as condições necessárias para apreciar o pedido de destituição e, portanto, já não teria qualquer utilidade a decisão referente à suspensão do cargo. Poderão existir, naturalmente, situações em que a decisão definitiva (referente à destituição) exige uma investigação mais alargada e morosa relativamente àquela que é necessária para a decisão provisória (referente à suspensão) mas essa não será a regra”. Em terceiro lugar, depõe a favor da interpretação do n.º 2 do artigo 1055.º no sentido acima exposto, o seguinte elemento de ordem sistemática. No âmbito dos processos previstos no Código de Processo Civil relativos ao exercício dos direitos sociais, o previsto no artigo 1055.º do CPC não é o único que compreende no seu seio a adopção de medidas cautelares. Também prevê a aplicação de tais medidas o processo de inquérito judicial. Com efeito, o artigo 1050.º diz que, durante a realização do inquérito, o tribunal pode ordenar as medidas cautelares que considere convenientes para garantia dos interesses da sociedade, dos sócios ou dos credores sociais, sempre que se indicie e existência de irregularidades ou a prática de quaisquer actos susceptíveis de entravar a investigação em curso. O preceito termina, mandando aplicar, com as necessárias adaptações, à decisão do tribunal sobre as medidas cautelares o preceituado quanto às providências cautelares. Seguindo, na interpretação do n.º 2 do artigo 1055.º, a directriz traçada no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil segundo a qual na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos os adequados, é de presumir, tendo em conta o antecedente do artigo 1050.º que, caso o legislador quisesse que à decisão sobre o pedido de suspensão fossem aplicáveis, com as devidas adaptações, o preceituado quanto às providências cautelares tê-lo -ia dito como fez no artigo 1050.º. Se o não disse, é de presumir que foi outra a sua opção. Pelo exposto, interpretamos o n.º 2 do artigo 1055.º do CPC no sentido de que a decisão sobre o pedido de suspensão não é precedida da audiência do requerido. Estamos, pois, perante um dos casos excepcionais tidos em vista pelo n.º 2 do artigo 3.º do CPC em que a lei permite que se tomem medidas contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. Por último deve dizer-se que a interpretação exposta deve ter-se como conforme à Constituição da República Portuguesa. Com efeito, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 131/02, proferido em 14 de Março de 2002 [publicado no DR II série de 4/05/2002), declarou que não era inconstitucional o artigo 1484.º-B, n.º 2 do CPC de 1961, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 329-A/95, der 12 de Dezembro [artigo que corresponde sem qualquer alteração ao artigo 1055.º do CPC em vigor], interpretado no sentido de que a decisão sobre o pedido de suspensão não era precedida da audiência do requerido. Assim, ao indeferir o pedido da requerente no sentido de não ouvir o requerido antes da decisão sobre o pedido de suspensão, o tribunal violou o n.º 2 do artigo 1055.º do CPC. * Decisão: Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que o tribunal a quo decida o pedido de suspensão após a realização das diligências necessárias, mas sem audição do requerido. * Responsabilidade quanto a custas: Apesar de o recurso ter sido julgado procedente, cabe à recorrente suportar as respectivas custas. Na verdade, uma vez que a propositura da acção ainda não produziu efeitos em relação ao requerido, não é aplicável ao caso o critério da parte vencida no recurso (1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC, combinada com o n.º 2 do mesmo preceito). Resta, assim, aplicar na definição da responsabilidade quanto a custas, o critério de que, não havendo parte vencida, as custas são pagas pela parte que do processo tirou proveito (2.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC) e, no caso, essa parte é a recorrente. Coimbra, 26-04-2022
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