Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1932/19.8T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
DEVER DE REAPRECIAÇÃO PELA RELAÇÃO
FACTOS NÃO DECIDIDOS
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 662.º, N.ºS 1 A 3, E 607.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O dever de reapreciação, pela Relação, da prova produzida, sindicando a decisão de facto, só existe em relação aos factos objeto de pronúncia pelo tribunal recorrido.

II – Se o tribunal de 1.ª instância não se pronunciou sobre uma determinada questão de facto, cuja resposta seja indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão é a da anulação da decisão recorrida, seguida da repetição do julgamento sobre tal questão.

III – Esta é a solução que resulta da conjugação das als. c) do n.º 2 e c) do n.º 3 do art. 662.º do CPCiv., só assim não sendo se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada (plenamente) por documentos ou por confissão reduzida a escrito.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1932/19.8T8FIG-C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Rua ..., ... ..., ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum contra MC...Lda com sede na Rua ..., em ..., ..., e BB, residente na Rua ..., em ..., ..., pedindo:
a) Se decretasse a resolução do contrato de arrendamento referente ao prédio identificado no artigo 1º da petição inicial;
b) Se condenasse a ré MC...Lda a despejar imediatamente o imóvel supra-referido, entregando-o livre e desocupado ao autor;
c) Se condenassem solidariamente os réus no pagamento das rendas vencidas e de indemnização por mora prevista na lei global de €1.524,98, (mil quinhentos e vinte e quatro euros e noventa e oito cêntimos euros) e das rendas vincendas na pendência da acção até efectiva entrega do imóvel. 

Para o efeito alegou em síntese
· Que deu de arrendamento à primeira ré, em 1 de Julho de 2014, um imóvel sito em Estrada ..., ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...84;
· Que a ré não pagou as rendas vencidas em Março, Abril, Maio e Junho de 2019, pelo que, em 18 de Junho de 2019, comunicou-lhe a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de tais rendas;
· Que depois da comunicação da resolução a ré procedeu aos seguintes pagamentos: a) em 24.06.19 depositou a quantia de € 508,33; b) em 11.07.19 depositou a quantia de € 508,33; c) em 14.08.19 depositou a quantia de €508,33; d) em 09.09.19 depositou a quantia de €1.524,99; e) em 15.10.19 depositou a quantia de € 508,33; f) em 11.11.19 depositou a quantia de €508,33; g) em 10.12.19 depositou a quantia de € 508,33;
· Que o segundo réu constituiu-se fiador da 1.ª ré, assumindo solidariamente com ela a obrigação de fiel cumprimento de todas as suas cláusulas, designadamente o pagamento de todas as quantias fixadas a título de rendas.

Os réus contestaram, pedindo:
a) Se declarasse que a ré nada deve ao autor, a título de rendas vencidas, e se absolvesse a ré do pedido;
b) Se declarasse que caducou o direito de resolução do contrato com o pagamento da indemnização de € 304,99;
c) Se notificasse o autor para emitir e entregar à ré todos os recibos de Julho de 2019 até Janeiro de 2020.

Para o efeito alegaram:
· Que na data da comunicação da resolução apenas estavam em dívidas as rendas vencidas em Abril, Maio e Junho pois a renda em Março havia sido paga em 15 de Maio de 2019;
· Que no dia 24/06/2019 efectuou o pagamento da renda vencida em Abril de 2019, em Julho de 2019 pagou a renda vencida em Maio e em Agosto pagou a renda vencida em Junho e que, em 9 de Setembro de 2019, pagou as rendas referentes aos meses de Julho, Agosto e Setembro;
· Que não efectuou o pagamento da indemnização de 20% porque desconhecia tal mecanismo legal e porque o senhorio na carta que lhe enviou a resolver o contrato não a alertou para esse facto;
· Que as rendas vencidas em Outubro, Novembro e Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020 foram pagas;
· Que o valor devido a título de indemnização pelo não pagamento das rendas de Abril, Maio e Junho é de € 304,99, que a ré deposita, o que faz caducar o direito de pedir a resolução do contrato.

Na audiência prévia realizada em 2 de Julho de 2021, as partes declararam que os réus procederam à entrega do locado. Em consequência, a Meritíssima juíza do tribunal a quo considerou que se verificava inutilidade parcial da lide e declarou, nessa parte, extinta a instância.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência foi proferida sentença que decidiu:
1. Declarar resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre as partes;
2. Declarar a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de condenação no pagamento das rendas vencidas até à data da propositura da acção;
3. Condenar os réus no pagamento das demais rendas vencidas até à entrega do locado.

Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo:
1. A substituição da sentença por decisão que absolvesse os absolvesse de todos os pedidos ou à anulação mesmo oficiosa da decisão nos termos e para os efeitos do n.º 2 alínea c) do artigo 662.º do C.P.C;
2. Se assim se não entendesse, a anulação da sentença por omissão de pronúncia, tudo com as legais consequências.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram em síntese os seguintes:
1. Deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto provada aditando-se aos factos provados (como facto O)) que “Todas as rendas se encontram pagas, mesmo os meses que se venceram depois da resolução do contrato pelo senhorio até à entrega efectiva do locado” e como facto P) que “o Senhorio não emitiu 2 recibos de duas rendas pagas em 09.09.2019, tendo ficado sempre 2 recibos em atraso, pelo que, se encontram por emitir 2 recibos, correspondentes aos últimos pagamentos Maio e Junho de 2021, e encontra-se por emitir o recibo de 304,99€ pagos no dia 31.01.2020, “a título de compensação atraso de pagamento de rendas””;
2. Se assim se não entender nada obstará a que o tribunal da Relação proceda à anulação mesma oficiosa da decisão proferida pela 1.ª instância nos termos e para os efeitos da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC;
3. Caso assim se não entenda invocam a nulidade da sentença por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Não houve resposta ao recurso.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

A primeira questão suscitada pelo recurso é uma questão de facto e consiste em saber se é de aditar à matéria assente os factos indicados pelos recorrentes.

A segunda - que pressupõe resposta afirmativa à primeira - é a de saber se, aditados tais factos, é de substituir a decisão recorrida por outra que absolva os réus de todos os pedidos.

A terceira – que pressupõe resposta negativa à primeira – é a de saber se a decisão proferida em 1.ª instância é de anular ao abrigo da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC.

A quarta – que pressupõe resposta negativa à questão anterior – é a de saber se a sentença enferma da causa de nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.


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Objecto do recurso:

Antes de entramos na resolução das questões enunciadas, importa precisar o objecto do recurso. A precisão impõe-se pelo seguinte.

A sentença compreende as seguintes decisões desfavoráveis aos recorrentes:
· A que declarou resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre as partes;
· A que os condenou no pagamento das rendas vencidas após a propositura da acção até à entrega do locado.

No requerimento com que interpuseram o recurso, os mesmos não o restringiram a nenhuma das decisões pelo que, de acordo com o n.º 3 do artigo 635.º do CPC, era de entender que o recurso abrangeu tudo o que na parte dispositiva a sentença era desfavorável aos recorrentes.

Sucede que as conclusões – como de resto o corpo da alegação – visam exclusivamente o segmento da sentença que condenou os recorrentes a pagar as rendas vencidas depois da propositura da acção até à entrega do locado.

Considerando esta restrição e o n.º 4 do artigo 635.º do CPC, segundo o qual “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, precisa-se que o objecto do recurso é constituído exclusivamente pelo segmento da sentença que condenou os recorrentes a pagar as rendas vencidas depois da propositura da acção até à entrega do locado.

Está em causa a condenação no pagamento das rendas vencidas desde Janeiro de 2020 até 30 de Junho de 2021. Com efeito, tendo a acção sido proposta em 19-12-2019, a primeira renda que se venceu depois de tal data foi a de Janeiro de 2020. E foi esta a primeira renda a vencer-se porque, nos termos do contrato de arrendamento junto com a petição, as partes acordaram que a renda vencia-se no 1.º dia útil do mês a que dissesse respeito. Quanto à última renda a considerar ser a de Junho de 2021, atendeu-se aos seguintes elementos do processo. Na audiência prévia realizada em 2-07-2021, as partes declararam que o imóvel já havia sido entregue ao autor. Em consequência o tribunal a quo julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente, na parte em que era pedida a condenação da ré a despejar imediatamente o imóvel dado de arrendamento e a entregá-lo livre e desocupado ao autor. Apesar de não constar da acta da audiência prévia a data em que tal entrega foi feita, ouvimos as declarações dos mandatários em tal diligência e, se bem as interpretámos, tal entrega ocorreu no dia 30 de Junho de 2021.


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Modificação da decisão de facto

Anulação da decisão proferida em 1.ª instância

Precisado o objecto do recurso, estava naturalmente indicado passar à resolução da questão de saber se era de aditar à matéria assente os seguintes factos:
· Que todas as rendas se encontram pagas, mesmo os meses que se se venceram depois da resolução do contrato do senhorio até á entrega efectiva do locado;
· Que o senhorio não emitiu 2 recibos de duas rendas pagas em 9-09-2019, tendo ficado sempre 2 recibos em atraso pelo que encontram-se por emitir 2 recibos, correspondentes aos últimos pagamentos de Maio e Junho de 2021, e encontra-se por emitir o recibo de € 304,99 pagos no dia 31-01-2020, a título de compensação atraso de pagamento de rendas.

Não cabe, no entanto, a este tribunal reapreciar a prova produzida e julgar tais factos provados ou não provados.

Vejamos. Resulta do n.º 1 do artigo 662.º do CPC combinado com a parte final da alínea c) do n.º 2 do mesmo preceito que o dever de a Relação reapreciar a prova produzida, formar a sua convicção e julgar provados ou não provados os pontos de facto indicados pelo recorrente só existe em relação aos factos sobre os quais se tenha pronunciado o tribunal a quo.

Na verdade, só em relação a esta pronúncia é que tem sentido dizer, como faz o n.º 1 do artigo 662.º, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Depõe a favor desta interpretação o artigo 640.º do CPC, relativos aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, ao impor ao recorrente o ónus de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Se o tribunal de 1.ª instância omitir a pronúncia sobre uma determinada questão de facto e se a resposta a ela for indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão será a anulação da decisão proferida em 1.ª instância, seguida da repetição do julgamento sobre tal questão. É a solução que resulta da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, na parte em que dispõe que a Relação deve mesmo oficiosamente anular a decisão proferida em 1.ª instância, quando considere indispensável a matéria de facto, combinada com a alínea c) do n.º 3 do mesmo diploma.

Só assim não será se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada por documentos ou por confissão reduzida a escrito. Nestas hipóteses, cabe ao tribunal da Relação tomar em consideração tais factos, sem necessidade de anulação do julgamento. É o que resulta da 2.ª parte do n.º 4 do artigo 607.º do CPC – aplicável ao acórdão da Relação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC. Precise-se que quando o n.º 4 do artigo 607.º fala em factos provados por documentos quer dizer factos provados plenamente por documentos.

No caso, o caminho a seguir é a anulação da decisão recorrida. Com efeito:
· O tribunal a quo, com excepção do pagamento da renda vencida em Janeiro de 2020 [alínea M) dos factos julgados provados], não se pronunciou sobre o pagamento das rendas vencidas após a propositura da acção até à entrega do imóvel arrendado ao autor;
· A resposta a esta questão era essencial para a decisão do pedido de condenação dos réus no pagamento de tais rendas;
· O pagamento das rendas vencidas depois de Fevereiro de 2020 até 30 de Junho de 2021, não está provado por acordo das partes, não está provado plenamente por documentos nem está provado por confissão reduzida a escrito.

Segue-se do exposto que há fundamento para anular a decisão recorrida, a fim se se proceder a julgamento sobre a questão de saber se a ré pagou as vencidas depois de Fevereiro de 2020 até 30 de Junho de 2021.

Observe-se que fora do julgamento ficará a questão da emissão dos recibos. Na verdade, a resposta a tal questão é irrelevante para a decisão sobre a questão do pagamento das rendas.  

Com a anulação da decisão recorrida, fica prejudicado o conhecimento da questão de saber se a sentença era nula por omissão de pronúncia.


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Decisão:

Anula-se a decisão proferida em 1.ª instância que condenou os réus a pagarem ao autor as rendas vencidas na pendência da acção até à entrega do local arrendado e determina-se a repetição do julgamento sobre a questão de saber se a ré pagou as vencidas depois de Fevereiro de 2020 até 30 de Junho de 2021.  


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de o recorrido ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas respectivas custas.

Coimbra, 10 de Maio de 2022