Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
232/13.1GBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE EXCONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
MORTE DE NASCITURO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DE TRANCOSO - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART. 24.º, N.º 1, DA CRP; ART. 496.º, N.º 2, DO CC; ART. 69.º, N.º 1, AL. A), DO CP; ART. 134.º, N.º 1, DO CE
Sumário: I – Desde que verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito (ou pelo risco), o dano decorrente da supressão da vida de nascituro é directa e autonomamente indemnizável.

II – Sendo o nascituro um ser humano em gestação, a quantificação do referido dano justifica, comparativamente com o atribuível a uma criança de relação, um menor valor.

III – Seguindo as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, estando em causa a perda da vida de um nascituro com cerca de 8 meses, para ressarcimento do dano considerado, é equitativa a indemnização, a cada um dos progenitores, de € 25.000,00.

IV - Perante um comportamento que, em simultâneo, configura contraordenação e um dos crimes previstos na al. a) do artigo 69.º do CP, esgotando a prática do ilícito penal o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base naquela norma, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                  

I - Relatório                                                                                                                        

No âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) registados sob o n.º 232/13.1GBTCS, da Comarca da Guarda – Trancoso – Instância Local – Secção de Competência genérica – J1, em 16/6/2016, foi proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte: 

4. DECISÃO

Assim, e pelo exposto, decide-se:

1. Absolver o arguido A.... da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº1 e 2, do Código Penal.

2. Condenar o arguido A... pela prática em autoria material de um crime p. e p. pelo art. 148.º, n.º 1 do Cód. Penal, perpetrado na pessoa da ofendida E... na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia global de 660,00€ (seiscentos e sessenta euros);

3. Condenar o arguido A... pela prática em autoria material de um crime p. e p. pelo art. 148.º, n.º 1 do Cód. Penal, perpetrado na pessoa da ofendida D... na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (eis euros), o que perfaz a quantia global de 480,00 (quatrocentos e oitenta euros);

4. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, condena-se o arguido A... na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros) o que perfaz a quantia global de 960 (novecentos e sessenta euros

5. Condenar A... na sanção acessória de inibição de condução de veículos a motor, prevista e punida nos termos do artigo 147º do Código da Estrada, pelo lapso temporal de 45 (quarenta e cinco).

6. Condenar o Arguido nas custas do processo, com 3 (três) UC´s de Taxa de Justiça14 - cfr. art. 8º do RCP e tabela III.

7. Mais se julga procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido contra o Arguido por C.H.E.D.V., EPE e em consequência condena-se o mesmo a pagar àquela Entidade a quantia de €748, 71 (setecentos e quarenta e oito euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros vincendos sobre a mesma desde a data da notificação para contestar o pedido cível até integral e efectivo pagamento.

8. Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por B... e C... em representação da sua filha menor, a ofendida D... contra G..... SA e em consequência condena-se a mesma a pagar à ofendida D... a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros), acrescidos de juros de mora à taxa de 4% desde a notificação para contestar o pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento.

9. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por E... e marido F.... contra G... SA e em consequência condena-se a mesma a pagar aos demandantes as quantias elencadas na fundamentação de direito, num total de 141.178,43 € (cento e quarenta e um mil cento e setenta e oito euros), acrescida do quantum indemnizatório relativo à perda do mencionado veículo cujo apuramento se relega para liquidação em execução de sentença, acrescidos de juros de mora à taxa de 4% desde a notificação para contestar o pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se a Demandada do demais peticionado.

10. Condenar, ainda, a Demandada e os Demandantes E... e F... e a Demandada Civil nas custas cíveis, atinentes ao pedido de indemnização por estes deduzido, na proporção do respectivo decaimento – cfr. art. 527º n.º2 do CPC – sendo ainda condenada a Demandada civil na totalidade das custas cíveis inerentes ao pedido de indemnização civil no que respeita ao pedido formulado pelos legais representantes da menor D... .

Proceda-se a depósito - art.º372º nº5 do C.P.P.

Boletim ao registo criminal - cfr. art. 374º, nº3, al. d), do CPP.

Comunique à ANSR e IMT.”

****

A demandada civil, não se conformando com a citada Decisão, veio, em 1/9/2016, interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1. Hoje, ao contrário do que sucedia na vigência do CPP de 1929, é obrigatória uma motivação da matéria de facto que não pode limitar-se a uma remissão para os meios de prova.

2. (…).

3. (…).

4. A fundamentação ou indicação dos motivos para dar como provada a matéria dos factos considerados provados nºs 4, 6, 22 a 26, 31, 33 a 46, 50 e 51 não assenta em prova produzida, não tendo sido feito um exame crítico das provas.

5. Na verdade, quanto aos factos 4 e 6, foi determinante, segundo a Meritíssima Juiz a quo, o depoimento da testemunha H... , o qual, por sinal, não assistiu ao acidente e, como tal, não pode corroborar, nessa qualidade, a versão do acidente trazida pela ofendida e demandante civil E... .

6. A referida testemunha limitou-se a apresentar conclusões suas (por ex., quando, sem ter visto, diz que foi o veículo conduzido pelo arguido que invadiu a faixa contrária por onde circulava o da demandante E... ) com base em pressupostos que não referiu, não constam da douta sentença, logo não sindicáveis pela meritíssima Juiz a quo.

7. O tribunal recorrido aceitou a conclusão da testemunha que esta diz ter tirado com base nas marcas deixadas no talude pelo veículo da E... , nas marcas deixadas nas guardas metálicas e nos danos que os veículos apresentavam, sem explicar ou por qualquer forma se poder perceber como é que tais marcas e danos permitem concluir que o embate entre as duas viaturas foi numa ou noutra faixa.

8. Isto para dizer que se a testemunha tivesse dito que chegou a outra conclusão, contrária àquela, o Tribunal também teria aceitado esta conclusão, porque ninguém compreendeu, nem pode compreender, porque a sentença é totalmente omissa a esse propósito, porque é que tais marcas impõem que o acidente tenha que ter ocorrido na faixa por onde circulava o veículo conduzido por E... .

9.O que o Tribunal fez foi aceitar as conclusões da testemunha sem compreender a relação causa-efeito, partindo do efeito para compreender a causa.

10. Portanto, com a fundamentação/motivação da matéria de facto constante da douta sentença para os factos 4 e 6, bem como 22, não podem estes ser considerados provados, por falta de fundamentação.

11. Por outro lado, fica sem qualquer justificação/fundamentação a resposta dada nos nºs 23, 24, 25 e 26, em virtude da sua íntima conexão com os referidos na conclusão anterior, também por ausência de prova.

12. Igualmente não foi feita prova da propriedade do veículo conduzido pela demandante E... (facto provado n.º 31), nem do seu estado antes do acidente (facto provado n.º 33), pois, para além de não terem sido inquiridas testemunhas sobre a propriedade do veículo, também não foi produzida qualquer outra prova, nomeadamente documental.

13. Também os factos nºs 40 a 46 devem ser considerados não provados, pois trata-se de matéria que, dada a sua natureza e se correspondesse à realidade, devia ter sido (e era muito fácil) provada por documentos, nomeadamente relatórios médicos, documentos comprovativos de pagamentos de tratamentos.

14. De igual modo, o mesmo vale para a matéria dos nºs 50 e 51, porquanto a demandante civil E... não requereu, nem foi submetida a a nenhuma perícia médico-legal que pudesse avaliar o “dano estético”, o “quantum doloris”.

15. Em suma: não se tendo provado qual dos intervenientes invadiu a faixa contrária, ou mesmo na hipótese de terem sido os dois, o caso tem de ser resolvido com base na responsabilidade pelo risco.

16. E sendo os veículos intervenientes do mesmo tipo ou categoria, forçoso é concluir que a responsabilidade de cada um deles é de 50%, em conformidade com o disposto no artigo 506.º, do C. C., o que significa que a demandada civil, ora recorrente, só é responsável pelo pagamento de metade das indemnizações que vierem a ser consideradas.

17. No entanto, a indemnização pela “perda do direito à vida do feto”, no montante de € 50.000,00, que foi atribuída, na proporção de metade para cada um, aos demandantes E... e marido F... , Não é devida.

18. E a indemnização de mais € 65.000,00 atribuída aos mesmos demandantes na proporção de € 40.000,00 para a E... e € 25.000,00 para o F... , a título de compensação pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte do feto é exagerada.

19. Quer o Supremo Tribunal de Justiça, quer o tribunal constitucional sempre decidiram que não há lugar a indemnização por perda do direito à vida de um feto, que faleceu antes de nascer, que, precisamente por se tratatr de um feto, trata-se de um nascimento sem vida.

20. Por outro lado, sendo indemnizáveis os danos não patrimoniais decorrentes da perda do feto, o certo é que inqualificavelmente exagerado o montante de € 40.000,00 que foi atribuído à demandante E... e € 25.000,00 ao demandante F... .

21. Na verdade, não se conhece jurisprudência do STJ que tenha fixado indemnização superior a € 35.000,00 (€ 17.500,00 para cada um dos progenitores), já próxima, aliás, do que é usual atribuir-se pela morte de um filho.

22. Independentemente do que se diz nas conclusões 19 e 20, o certo é que foi bem decidido na douta sentença que o arguido não cometeu o crime de homicídio por negligência de que vinha acusado, o que implica que, estando-se no âmbito de um processo penal, não podia ser pedida (e, consequentemente, não podia ser arbitrada), nenhuma indemnização pela perda do direito à vida do feto.

23. Na verdade, em processo penal, as indemnizações decorrem necessariamente do cometimento de um crime e, não sendo crime a morte do feto, não pode ser pedida indemnização pela perda do direito à vida do mesmo, porque, na realidade, o arguido não cometeu nenhum crime que pudesse ter originado tal perda do direito à vida.

24. O mesmo vale para a indemnização decidida no processo crime, mas a liquidar em execução de sentença, referente à alegada destruição do veículo conduzido pela demandante E... , pois, não se tendo provado quem é o proprietário, não pode ser reconhecido tal direito ao demandante F... , acrescendo o facto de, atualmente, já não existir o crime de dano involuntário.

25. Com efeito, o demandante F... não conseguiu fazer prova de que fosse ele o proprietário da viatura, pelo que carece de legitimidade para peticionar a indemnização referente aos danos daquela.

26. Da mesma forma que tal direito à indemnização não pode ser reconhecido a ninguém por não ter sido cometido nenhum crime (o dano involuntário há muito que não é qualificado como crime) nem contra o demandante F... , nem contra nenhuma das ofendidas, que lhe sirva de fundamento.

27. No que se refere aos danos não patrimoniais da demandante civil E... para “as dores físicas e morais”, o “pretium ou quantum doloris” no montante de € 15.000,00, acrescido de mais € 7.500,00 para o dano estético resultante das cicatrizes, são evidentemente montantes exageradíssimos.

28. Tal indeminização referida na conclusão anterior (€ 15.000,00 + € 7.500,00) é tanto mais exagerada quanto não inclui quaisquer danos não patrimoniais decorrentes da perda do feto, pelo que não tendo a demandante E... requerido a realização de nenhuma perícia médico-legal, como é usual e se impunha no caso, que avaliasse o “quantum doloris” e o dano estético, deve a mesma ser fixada, por equidade, no máximo de € 5.000,00.

29. Finalmente, em relação ao montante de € 5.000,00 que o Tribunal atribuiu como indemnização por danos não patrimoniais da menor D... , também a mesma, à semelhança da irmã E... , não foi submetida a perícia médico-legal para avaliação do “quantum doloris”, sendo que os danos que vêm descritos na douta sentença são de pouca gravidade (e alguns são próprios da irmã E... ) e não justificam indemnização superior a € 2.500,00.

30. Os juros, ao invés do que também foi decidido na douta sentença, não devem computar-se a partir da “citação”, mas antes da decisão proferida em primeira instância.

31. Não obstante a Meritíssima Juiz dizer que fez os cálculos com referência à data dos pedidos de indemnização civil, o que é certo é que, objetivamente, tal afirmação não faz grande sentido.

32. É que os pedidos foram apresentados em janeiro de 2016, tendo a notificação para contestar sido em fevereiro de 2016, no que se refere ao pedido da demandante E... , e em 26 de abril de 2016 (já decorria a audiência de julgamento) em relação ao de D... .

33. Daí que reportar-se o cálculo à data da douta sentença, por tão próxima, é, rigorosamente, a mesma coisa.

34. Por isso, não obstante parecer uma bizantinice, o certo é que, em bom rigor, a boa prática é o cálculo ser feito com referência à data da sentença e não como se diz nesta, com referência a outras datas de pouco tempo antes, menos de cinco meses (no da D... até só foi de dois meses).

35. É que não faz sentido sequer dar a entender que os montantes que constam da douta sentença seriam superiores se fossem calculados com referência à data da decisão, porque é nisso que radica o fundamento para os juros serem a partir da notificação para contestar.

36. Por isso, a decisão da meritíssima Juiz quanto á data a partir da qual são devidos os juros é ilegal: diz que fez o cálculo com referência à data da instauração dos pedidos, mas não fez.

37. Em consequência do exposto deve a douta sentença ser revogada e:

a) Decidir-se que a responsabilidade pela ocorrência do acidente pertence a ambos os condutores (arguido e demandante E... ) em partes iguais, fixando-se a responsabilidade da demandada no pagamento das indemnizações pelos danos dele decorrentes em 50% (cujos montantes devem ser reduzidos como se diz a seguir).

b) Reduzir-se os montantes indemnizatórios conforme se deixa exposto nas conclusões 21 (de € 65.000,00 para € 35.000,00), 29 (de € 5.000,00 para € 2.500,00) e que não são devidas as indemnizações arbitradas pela perda do direito à vida do feto (que foi fixada em € 50.00000), bem como a indemnização a liquidar em execução de sentença referente aos danos do veículo.

c) Foi violado o disposto, entre outras normas, no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e 205.º, n.º 1, da CRP, que impõem que a decisão da matéria de facto deve ser tal que intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, o que não foi feito; no artigo 15.º, do C. P. e 506.º, nºs 1 e 2, do C. C., na medida em que, não obstante o princípio da livre apreciação da prova, a mesma deve ser apreciada de acordo com as regras da experiência, sendo que no caso concreto não há elementos que permitam atribuir a culpa a penas a um dos intervenientes no acidente, impondo-se que, na dúvida, se considere igual a contribuição de cada um dos veículos e respetivos condutores; no artigo 66.º do C. C. na medida em que se ignorou na sentença que a personalidade se adquire no momento do nascimento completo e com vida; artigo 24.º, n.º 1, da CRP, ao confundir-se o direito à vida que é consagrado nesta disposição como reconhecendo também um direito subjetivo à vida do feto, quando, na realidade, tal direito só é reconhecido a pessoa.

****

Também o Ministério Público, em 5/9/2016, não se conformando com a citada Decisão, veio, em 1/9/2016, interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1. Tendo o arguido sido condenado pela prática, em autoria material, além do mais, de dois crimes de ofensas à integridade física negligente, p. e p. pelo artigo 148.º/1, do Código penal, deveria o mesmo ter sido, igualmente, condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. e p. pelo artigo 69.º/1, al. a), do Código Penal, e não na sanção acessória p. e p. pelo artigo 145.º, do Código da Estrada.

2. Na verdade, resulta dos factos dados como provados que os aludidos crimes foram cometidos pelo arguido no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário.

3. Assim, perante um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, o cometimento de ilícito criminal, esgotando a prática do crime a ilicitude da contraordenação, deve ser decretada a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. e p. pelo artigo 69/1, al. a), do Código Penal.

4. Ademias, à data dos factos ora em apreço, a Lei n.º 19/2013 já se achava em vigor, encontando-se a respetiva punição (a respeitante ao artigo 69.º/1, al. a) do Código Penal) patente do libelo acusatório.

5. Termos em que deverá a Douta sentença recorrida ser revogada na parte em que condenou o arguido na sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor, p. e p. nos termos do artigo 147.º, do Código da estrada, da qual deverá ser absolvido, devendo ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. e p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

****

Os dois recursos, em 7/972016, foram admitidos.

****

            Os demandantes civis, em 11/10/2016, responderam ao recurso interposto pela demandada civil, defendendo a sua improcedência e contra-alegando, em resumo, o seguinte:

1. O recurso deve ser rejeitado no que se refere à matéria de facto por incumprir com o estatuído no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, na medida em que a recorrente não indica as passagens concretas em que a impugnação se funda, mas limita-se a comentar resumidamente o depoimento de algumas testemunhas e a fazer transcrições da fundamentação da sentença.

            2. No entanto, respondendo à recorrente se conclui que esta não oferece prova que implique juízo distinto do vertido na douta sentença, este que foi obtido através de uma valoração criteriosa e prudente de uma exaustiva produção de prova que incluiu uma inspeção ao local.

            3. Não cabe ao tribunal de recurso reavaliar todo o universo de prova, mas indagar se o sentido da decisão em 1ª instância se adequa e está em consonância com aquele.

            4. A falta de impugnação pelo arguido da propriedade do veículo conduzido pela demandante E... não implica que não se possa, como se fez, provar essa mesma propriedade por outro meio, como o auto de notícia.

            5. As cicatrizes são danos estéticos que podem ter natureza patrimonial e não patrimonial.

            6. Perante a rejeição do recurso na parte atinente à matéria de facto, fica todo o recurso afetado por uma argumentação sem suporte.

            7. O arguido é o único responsável pelos danos causados, pelo que não há repartição de responsabilidade.

            8. Atualmente, a maioria da doutrina entende que o instituto da responsabilidade civil deve cobrir o dano da morte de um nadscituro, conferindo direito deindemnização às pesssoas indicadas no artigo 496.º, n.º 2 CC – aqui aos demandantes F... e E... -, e esta posição doutrinária tem tido acolhimento jurisprudencial.

            9. Provada a propriedade do veículo, é devida a correspondente indemnização pela sua destruição.

            10. As demais indemnizações são devidas e os seus montantes adequados.

****

            O Ministério Público, em 11/10/2016, respondeu ao recurso interposto pela demandada civil, defendendo a sua improcedência e contra-alegando, em resumo, o seguinte:

1. A recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão recorrida no que respeita à decisão sobre a matéria de facto constante dos pontos 4, 6, 22 a 26, 31, 33, 40 a 46, 50 e 51, no entanto, não impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois não indica os factos que, no seu entender, foram incorretamente julgados e as provas que impunham decisão diversa, nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP.

            2. Limita-se a recorrente a referir que tais factos não foram referidos ou confirmados por qualquer outra testemunha ou prova, baseando-se a douta decisão somente nas declarações da testemunha H.... , que considera inconclusivas, invocando falta de exame crítico da prova e falha na fundamentação.

            3. A recorrente limitou-se, assim, a tecer considerações sobre a valoração da prova, não indicando os factos que, no seu entender, deveriam ter sido dados como não provados e não indicou as passagens em que alicerça a sua discordância no que respeita aos factos dados como provados na decisão recorrida, devendo a matéria de facto considerada na decisão recorrida considerar-se como assente.

            4. Da motivação de recursdo ora apresentada resulta, salvo douta opinião, alguma confusão entre impugnação da decisão sobre a matéria de facto dada como provada e não provada e os vícios elencados no artigo 410.º, do CPP, que, apesar de não serem expressamente invocados, parecem resultar das considerações expendidas pela recorrente.

            5. Da leitura da motivação de recurso apresentada, perpassa a discordância relativamente à forma como o tribunal a quo valorou a prova, no entanto, atentando no elenco da factualidade considerad como provada na decisão recorrida, constatamos que a mesma se mostra lógica e consentânea, quer com a prova produzida, quer com as regras da experiência comum.

            6. À luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º, do CPP, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, otribunal é livre de formar a sua convicção.

            7. No caso vertente, a convicção do tribunal a quo é sustentada na prova documental junta aos autos, na prova testemunhal (mormente do Militar da GNR H... ) produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

            8. A conclusão a que o tribunal a quo chegou é lógica e objetivável, encontra-se fundamentada, não merecendo qualquer censura.

****

            O arguido, em 13/10/2016, respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público, defendendo a sua improcedência e contra-alegando, em resumo, o seguinte:

1. Salvo respeito por melhor opinião, a Douta Sentença não merece qualquer reparo no que à matéria obeto do recurso respeita pois que, in casu, para além do crime de ofensa à integridade física p+or negligência, foi, ainda, o arguido condenado pela prática das contraordenações supra identificadas, pelo que, com a sua conduta, o arguido violou uma regra estradal, a qual foi causal do crime de ofensa à integridade física por negligência.

            2. Assim, e mostrando-se preenchidos os dois tipos – crime e contraordenação - , verifica-se uma situação de concurso aparente entre as duas infrações.

            3. Ora, e conforme resulta da fundamentação da Sentença, nos termos do artigo 134.º, n.º 1, do CE, sob a epígrafe «Concurso de infrações» “se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação”.

            E que, no caso de concurso, as sanções aplicadas às contraordenações são sempre cumuladas materialmente – conforme dispõe o n.º 3 da referida norma.

****

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 9/11/2016, emitiu douto parecer, salientando o seguinte:

1) Assiste inteira razão ao recurso interposto pelo Ministério Público, “pois, consumidas as contraordenações pelo crime de ofensa à integridade física por negligência, o Tribunal a quo deveria ter condenado o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. e p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, como constava da acusação, e não na sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor, p. e p. pelo artigo 147.º, do Código da estrada, pois, à data dos factos, já estava em vigor a redação dada pela Lei n.º 19/2013, de 21/02, ao artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código penal, que entrou em vigora 23/03/2016.”

2) No que diz respeito ao recurso interposto pela demandada civil, ao mesmo deve ser negado provimento, visto que a recorrente “(…) não o faz de acordo com o disposto no artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, e no artigo 364.º, n.º 2, do CPP, inviabilizando a reapreciação desta matéria de facto que tem de considerar-se por firmada, já que, embora a recorrente invoque que a decisão incorreu nos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, sem os discriminar, o que é facto é que, nem do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, não vejo que se verifique qualquer dos vícios previstos nesta norma. Também examinando a douta decisão recorrida, não vejo que a mesma seja nula, por falta de exame crítico das provas e falta de fundamentação (…), como alega a recorrente.”

                                                           ****

Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, a demandada civil, em 24/11/2016, veio exercer o direito de resposta em que reiterou o alegado.

                                                           ****

 Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.

****

II - Decisão Recorrida:

(…).

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

Acusação e audiência.

1. No dia 30 de Dezembro de 2013, cerca das 17 horas, o arguido A... conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula (...) PN, marca BMW, pela Estrada Nacional n.º 226, localidade de Vale de Mouro, na área desta Instância Local de Trancoso, deslocando-se no sentido IP2/Trancoso.

2. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar pela supra referida Estrada Nacional n.º 226, mas no sentido Trancoso/IP2, circulava o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula (...) OG, marca Nissan, conduzido por E... , a qual à data se encontrava grávida de, 34 semanas e 3 dias.

3. No aludido veículo seguia também, como passageira, D... que ocupava o banco da frente ao lado da condutora.

4. Circulando na supracitada Estrada Nacional n.º 226, o arguido desfez uma ligeira curva para a sua esquerda perdendo momentaneamente o controlo do veículo que conduzia e invadindo a via de trânsito contrária, embatendo na frente do veículo conduzido por E... .

5. A colisão entre os veículos foi fronto-lateral oblíqua angular e ocorreu ao km 86,665 da EN 226 sobre a faixa esquerda de rodagem da Estrada Nacional 226 (sentido de marcha do veículo (...) PN, conduzido pelo arguido, ou seja, sentido da rotunda de acesso ao IP2/Trancoso).

6. De facto, o veículo (...) PN, tripulado pelo arguido, foi embater com a sua parte frontal na parte frontal esquerda do veículo ligeiro (...) OG, que circulava regularmente dentro da respectiva faixa direita de rodagem (sentido Trancoso/IP2).

7. Na sequência do embate, o veículo ligeiro de matrícula (...) PN rodou cerca de 90.º graus no sentido das guardas metálicas, indo embater nas mesmas com a parte lateral traseira direita do automóvel, tendo o veiculo ligeiro (...) OG ficado imobilizado na berma da faixa de rodagem por onde seguia.

8. Após o embate, o veículo ligeiro de matrícula (...) PN ficou imobilizado em posição transversal na faixa de rodagem da direita (sentido IP2/Trancoso), por onde seguia, com a frente voltada para a linha longitudinal que separava as duas faixas de rodagem.

9. Em consequência dessa colisão a condutora do veículo (...) OG, E... , sofreu fractura diafisária do úmero direito, tendo sido submetida a redução aberta; fractura proximal da tíbia direita; feridas por esmagamento na perna direita; parestesias no antebraço direito e ficou encarcerada dentro do veículo mais de uma hora.

10. Assim, sofreu E... , em consequência da supra descrita colisão, cicatriz longitudinal na face postero externa do braço com 16 cm de comprimento, com limitação dos movimentos no ombro e cotovelo e três cicatrizes na face antero externa no 1/3 superior da perna, sendo a maior com 2cm e a menor com 8mm.

11. As lesões sofridas por E... demandaram 281 dias para consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral (281 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (281 dias).

12. Em consequência da supra referida colisão, E... foi, ainda, submetida a cesariana, registando-se aquando do início de tal intervenção batimentos fetais, tendo nascido um nado morto de sexo masculino, ao qual foi, posteriormente, declarado o respectivo óbito.

13. Em consequência da aludida colisão a passageira do veículo, D... , sofreu traumatismo do punho direito e epifisiolise distal do rádio.

14. Em consequência dessa colisão o feto sofreu hemorragia multi-orgânica grave, particularmente no encéfalo com hematoma subdural extenso bilateral e hemorragia intra-ventricular, hemorragia pulmonar “maciça”, hemopericárdio e falência renal aguda, que foram causa adequada e necessária da sua morte.

15. A via onde ocorreu a colisão configura uma curva e tinha uma largura de 7 metros, encontrando-se dividida em duas faixas de rodagem (com sentidos de trânsito opostos), com 3,35 metros de largura a da direita e com 3,65 metros de largura a faixa da esquerda, separadas por uma linha longitudinal contínua, assinalada sobre o pavimento,

16. A via, possui uma inclinação de 4,2% e uma inclinação da elevação transversal de 7,3%.

17. O pavimento da estrada no local do acidente encontrava-se em bom estado de conservação.

18. Há data da prática dos factos, na via identificada em 1. a velocidade máxima permitida era de 90km/h.

19. O tempo estava chuvoso.

20. O piso apresentava-se molhado.

21. No momento temporal em que ocorre o acidente, já não chovia e era noite.

22. O arguido ao descrever a curva à esquerda perdeu, momentaneamente, o controlo do veículo que conduzia, invadindo a faixa de rodagem contrária, na qual circulava o veículo com a matrícula (...) OG, conduzido por E... , vindo a embater neste veículo.

23. O arguido apesar de poder e dever agir de forma a cumprir com as regras que se lhe impunham na condução automóvel, atenuando especialmente a velocidade ao circular em estrada que configura uma curva, e tendo chovido, não o fez, transpondo a linha continua delimitadora de sentidos de transito, invadindo a faixa contrária.

24. Ao conduzir do modo descrito, sabia o arguido que estava obrigado a adequar a velocidade que imprimia ao seu veículo de modo a que não houvesse perigo de colidir com nenhum veículo que circulasse na via em sentido contrário.

25. Não obstante, o arguido omitiu tais deveres de cuidado sabendo que podia causar o acidente de trânsito, como causou, mas não prevendo que da sua conduta resultaria acidente causador de lesões físicas ou a morte de terceiros, como podia e devia ter previsto.

26. O arguido agiu livremente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta, desrespeitadora das regras de transito, revelando imperícia na condução do veiculo automóvel, contrariamente ao que lhe era exigível que fizesse, dando causa às descritas lesões das vitimas E... e D... e que foram causa adequada da morte do feto.

Cond. Pessoais.

27. O arguido, é solteiro, trabalha por conta própria executando limpezas florestais, auferindo anualmente cerca de três a quatro mil euros e reside em casa dos pais.

28. O arguido não tem antecedentes criminais ou contra-ordenacionais.

29. O arguido é pessoa considerada no seu meio.

PIC

30. O arguido, proprietário do veículo de matrícula (...) PN, ao tempo do acidente, tinha a sua responsabilidade civil, decorrente de acidente de viação, transferida para a demandada Seguradora, através da apólice nº 0045.11.223121.

31. O demandante F... era, ao tempo do acidente, proprietário do veículo conduzido pela demandante E... .

32. Em consequência do acidente, o seu veículo automóvel de matrícula (...) OG sofreu grandes danos que tornaram inviável a sua reparação e o consequente abate.

33. A viatura encontrava-se em muito bom estado e era do final do ano de 1999.

34. As lesões sofridas, tratamentos e a intervenção cirúrgica a que foi submetida em consequência do acidente, mormente a redução aberta, a osteossíntese de úmero direito, com placa LCP 4,5 cm e isolamento do mesmo radical, 57 sessões de fisioterapia, a cesariana urgente, foram causa de grande sofrimento físico e psicológico, perdas de sono, transtornos, traumas psicológicos, impaciência e instabilidade.

35. Para tal foi obrigada a contratar uma empregada doméstica durantes três meses, cujos salários e prestações sociais lhe acarretaram um custo de 2 428.52€ (dois mil quatrocentos e vinte e oito euros e cinquenta e dois cêntimos).

36. Com viagens que efectuou ao Hospital da Guarda e à GNR, sempre em consequência do acidente, gastou a demandante a quantia de 243.08 € (duzentos e quarenta e três euros e oito cêntimos).

37. Em medicamentos que adquiriu para tratamentos das lesões sofridas e das dores que ainda hoje a afectam gastou a demandante a quantia de 278.75€ (duzentos e setenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos).

38. Em utensílios indispensáveis no período de doença, a saber, suporte imobilizador transpirável e arrastadeira, gastou a demandante a quantia de 28,08€ (vinte e oito euros e oito cêntimos).

39. A demandante, como também resulta dos autos, estava grávida de 34 semanas e 3 dias.

40. Os demandantes iniciaram em 2007 um tratamento de infertilidade no Serviço de Reprodução Humana do Centro Hospitalar de Coimbra.

41. Ao longo de quase sete anos, deslocaram-se dezenas de vezes àquele serviço para tratamentos, consultas e exames.

42. O grande desejo de ter um filho levou-os a fazer todos os esforços, disponibilizando tempo e recursos materiais para esse almejado fim.

43. Ao longo desse tempo a expectativa da demandante engravidar foi crescendo até que, em 2013, isso aconteceu.

44. Tal acontecimento veio trazer aos demandantes uma enorme felicidade que, assim, se viam compensados dos enormes sacrifícios morais e patrimoniais sofridos.

45. Quando, então, já grávida de quase oito meses, muito próximo de verem concretizado o sonho de terem um filho, o fatídico acidente transformou o sonho num horrível pesadelo.

46. Tal fatalidade trouxe à demandante uma profunda e angustiante tristeza, associada à perda da alegria de viver.

47. As despesas de funeral do feto importaram aos demandantes a quantia de 700,00€ (setecentos euros).

48. Durante três meses, recorreu aos serviços de uma empregada, também é certo que nos restantes meses, e foram mais seis, a demandante só com muito sacrifício e dor foi conseguindo fazer as tarefas domésticas indispensáveis.

49. Para além das cicatrizes mencionadas em 10. dos factos provados a E... ficou ainda com a cicatriz resultante da cesariana.

50. As referidas cicatrizes, particularmente a do braço direito, constituem um acentuado dano estético para a demandante na sua condição de mulher jovem, o que contribui para baixar a sua auto estima e o seu amor-próprio.

51. De tal forma que a demandante se sente condicionada na forma de vestir, evitando a roupa sem mangas por se sentir alvo das atenções de outras pessoas.

52. Em consequência das lesões sofridas pela D... e mencionadas no ponto 13. dos factos provados a menor andou com o braço engessado durante cerca de um mês.

53. A forma catastrófica como o acidente se deu, o terror de perder a irmã, o horror do encarceramento daquela no interior do veículo e os seus gritos de dor e lamento causaram na menor traumas que se manifestaram nos seus sonhos.

54. Acordava frequentemente sobressaltada com a visão do episódio do acidente

55. Necessitou de acompanhamento psicológico durante vários meses.

56. Teve dores e padecimentos diversos, quer físicos, quer psicológicos que perduraram vários meses.

57. Ainda hoje sente dores no pulso direito quando faz esforços ou sempre que escreve demoradamente.

58. A Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E é uma pessoa colectiva que presta cuidados de saúde.

59. Em consequência dos factos supra descritos em 9 a 11, 12, 13 e 14 dos factos provados, prestou a E... e D... diversos cuidados de saúde os quais ascenderam a 748,71€, sendo 662,80€ respeitantes ao custo da cesariana a que a E... foi submetida e 85,91€ atinentes ao episódio de urgência atinente à menor D... .

*

Não se provaram quaisquer outros enunciados de facto relevantes para a bondade da decisão e que tenham resultado em contrário daqueles que acima constam.

Com efeito, não se provou que:

Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 1 a 8 dos factos provados a visibilidade era boa.

O arguido circulava a uma velocidade superior a 90 km/h.

A viatura de matrícula (...) OG tinha um valor de mercado nunca inferior a 4 000.00€ (quatro mil euros).

O rendimento escolar da menor D... diminuiu em consequência do acidente.

*

Motivação da decisão de facto

(…).

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

(…).

Sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor

Prevê o artigo 147.º sob a epígrafe “Inibição de conduzir”

1 - A sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contraordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.

2 - A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contraordenações graves ou muito graves, respectivamente, e refere-se a todos os veículos a motor.

(…)

Sem pretender olvidar a ligação desta sanção acessória à culpa do agente, é deveras na prevenção da perigosidade que esta pena encontra a sua razão de ser.

Nesta linha de pensamento, uma pena deste tipo, ainda como efeito jurídico da condenação, deve perspectivar-se como desempenhando “uma função preventiva adjuvante da pena principal”, que não se esgota na intimidação da generalidade, mas se dirige também à perigosidade do delinquente.

Por seu turno, a medida da pena acessória resultará da ponderação das exigências de prevenção, nas quais se incluem a valoração das necessidades individuais e concretas de socialização e até, como vimos, necessidades de intimidação e de segurança individuais e ainda em função da culpa do agente que o facto praticado encerra.

Sendo certo que tais considerações preventivas terão sempre como limite inultrapassável a culpa do agente.

Posto isto, podemos igualmente concluir que, a determinação concreta da pena acessória obedece aos factores determinantes da graduação da pena principal, cujos critérios vêm plasmados no artigo 71.º do Código Penal, nos termos já expostos.

In casu, ponderando, por um lado, a inexistência de antecedentes criminais rodoviários, e, por outro, o grau de culpa do agente, atenta a modalidade de negligência de que revestiu a sua conduta e a elevada necessidade de intimidação da generalidade dos cidadãos considerando o panorama catastrófico que se vive ao nível da sinistralidade circulação rodoviária nacional.

Contudo, considerando que o arguido não tem a averbada a prática de qualquer contra-ordenação no seu registo individual de condutor, e atentas as reduzidas necessidades de prevenção especial que se fazem sentir no caso decide-se no que respeita a contra-ordenação muito grave, aplicar o disposto no art.º 140 do CE.

Assim, o Tribunal entende ser de aplicar a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 mês pela prática da contra-ordenação prevista no art.º 145 e de um mês pela prática da contra-ordenação prevista no art.º 146.º

No que concerne às sanções acessórias de proibição de condução de veículos a motor, aplicadas, cumpre dizer que de acordo com o artigo 77º, nº4 do Código Penal, a sanção acessória será de manter.

Contudo, decide-se proceder a igual operação de cúmulo jurídico das mesmas e em consequência, levando em consideração o que já foi dito em termos de pena única principal, decide-se aplicar a sanção acessória única de proibição de conduzir veículos com motor por um lapso temporal de quarenta e cinco dias, considerando a – Cfr. a propósito do cúmulo de penas acessórias cfr: Ac. da Rel. do Porto de 11/Nov./2006, in www.dgsi.pt, com o nº de documento RP200610110612894; Ac. da Rel. do Porto de 30/Out./2013, Proc. 387/12.2PTPRT.P1, Rel. Des. Dr. Donas Botto; e Ac. da Rel. do Porto de 03/Abr./2013, Proc. 151/11.6PTPRT.P1, Rel. Des. Dr. Ernesto Nascimento.

*

Da indemnização.

(…).

Desta feita, importa agora computar a indemnização a atribuir aos Demandantes.

Atendendo aos factos dados como provados e já escrutinados, conclui-se que os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual se encontram preenchidos, desde logo porque os danos infligidos às ofendidas/demandantes civis e ao demandante tiveram a sua origem na conduta criminosa, e, nesse sentido, ilícita e culposa nos termos supra aflorados, do arguido. Tais danos, de acordo com a prova produzida, assumem uma vertente patrimonial e não patrimonial. No âmbito dos danos patrimoniais serão de considerar os custos que os demandantes civis E... e F... tiveram de suportar com a contratação uma empregada doméstica durantes três meses, cujos salários e prestações sociais lhes acarretaram um custo de 2 428.52€ (dois mil quatrocentos e vinte e oito euros e cinquenta e dois cêntimos), com viagens que a demandante E... efectuou ao Hospital da Guarda e à GNR, sempre em consequência do acidente, gastou a demandante a quantia de 243.08 € (duzentos e quarenta e três euros e oito cêntimos), em medicamentos que adquiriu para tratamentos das lesões sofridas e das dores que ainda hoje a afectam gastou a demandante a quantia de 278.75€ (duzentos e setenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos), em utensílios indispensáveis no período de doença, a saber, suporte imobilizador transpirável e arrastadeira, gastou a demandante a quantia de 28,08€ (vinte e oito euros e oito cêntimos), 700€ (setecentos euros) cujo pagamento suportaram atinentes ao funeral do seu filho (o feto de mais de 34 semanas de que estava grávida a demandante E... e que nasceu morto em consequência do acidente conforme se infere da factualidade provada).

Ademais em consequência do acidente, o seu veículo automóvel de matrícula (...) OG propriedade de F... sofreu grandes danos que tornaram inviável a sua reparação e determinaram o consequente abate. Tal viatura encontrava-se em muito bom estado e era do final do ano de 1999. Contudo, não se apurou o seu valor venal e bem assim a quantia recebida pelos demandantes atinente ao respectivo salvado, pelo que o apuramento do quantum indemnizatório relativo à perda do mencionado veículo relega-se para liquidação em execução de sentença, uma vez que o seu valor e bem assim o valor do salvado serão perfeitamente quantificáveis não se impondo em consequência o recurso à equidade para fixação do quanto indemnizatório.

Assim pelo exposto fixa-se em 3.678, 43 € (três mil seiscentos e setenta e oito euros e quarenta e três euros) acrescida do valor que se vier a apurar em liquidação de sentença atinente ao veiculo ligeiro de passageiros de matrícula (...) OG, a quantia devida a título de danos patrimoniais devida aos demandantes E... e F... , acrescida do quantum indemnizatório relativo à perda do mencionado veículo cujo apuramento se para liquidação em execução de sentença.

No âmbito dos danos de natureza não patrimonial relevam as dores e os ferimentos sofridos pelas ofendidas/demandantes civis, em consequência da conduta ilícita do arguido, em especial:

Quanto à ofendida E... .

As dores físicas e morais, o pretium ou quantum doloris:

Sofreu E... , em consequência da supra descrita colisão, sofreu fractura diafisária do úmero direito, tendo sido submetida a redução aberta; fractura proximal da tíbia direita; feridas por esmagamento na perna direita; parestesias no antebraço direito.

Para as dores físicas é possível compreendê-las sobretudo através da extensão e gravidade das lesões e complexidade do seu tratamento clínico.

In casu, em consequência das lesões sofridas, a demandante foi submetida a tratamentos e a intervenção cirúrgica, mormente a redução aberta, a osteossíntese de úmero direito, com placa LCP 4,5 cm e isolamento do mesmo radical, 57 sessões de fisioterapia, a cesariana urgente, que foram causa de grande sofrimento físico e psicológico, perdas de sono, transtornos, traumas psicológicos, impaciência e instabilidade. Tais lesões sofridas por E... demandaram 281 dias para consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral (281 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (281 dias). Assim, julgamos adequado, fazendo jus da equidade, fixar a quantia de 15.000,00€ a título de indemnização.

Sequelas de lesões corporais: a este respeito apresentam-se já catalogadas na doutrina e na jurisprudência certas situações concretas ou sequelas de lesões corporais com reflexos não patrimoniais.

O prejuízo estético (pretium pulchritudinis) caracterizado por cicatrizes, deformações, dissimetria e mutilações, com diminuição da beleza física. Tem interesse lembrar a Resolução 75 do Conselho da Europa, relativa à reparação de danos resultante de lesões corporais e de morte, que refere expressamente o prejuízo estético. A indemnização para este dano varia conforme as circunstâncias, existindo uma tentativa de uniformização de critérios de avaliação que tendem a ser o mais objectivos possíveis, tendo-se em conta factores diversos como as características do agente causal, a extensão e localização da lesão (é sabido que as lesões localizadas no rosto são as menos aceites em termos psicológicos), o tratamento inicial, certos aspectos pessoais do lesado, como a idade, o sexo, a profissão, etc.

A demandante E... , em consequência das mesmas ficou com cicatriz longitudinal na face postero externa do braço com 16 cm de comprimento, com limitação dos movimentos no ombro e cotovelo e três cicatrizes na face antero externa no 1/3 superior da perna, sendo a maior com 2cm e a menor com 8mm. Para além das cicatrizes mencionadas em 10. dos factos provados a E... ficou ainda com a cicatriz resultante da cesariana. As referidas cicatrizes, particularmente a do braço direito, constituem um acentuado dano estético (16 cm) para a demandante na sua condição de mulher jovem, o que contribui para baixar a sua auto estima e o seu amor-próprio. A demandante sente-se condicionada na forma de vestir, evitando a roupa sem mangas por se sentir alvo das atenções de outras pessoas. Julgamos adequado, fazendo jus da equidade, fixar a quantia de 7.500€ a título de indemnização por este dano estético.

Também a dor moral, traduzida de maneira multiforme, pelas aflições, desgostos, angústias e inquietações carece de ser indemnizada.

Com efeito dúvidas não há quanto à dor, ao desconforto, à aflição, ao desgaste psicológico, a forte angústia, de que a demandante E... padeceu em consequência do acidente, que perdura até à data, bem como todos os incómodos e transtornos causados à ofendida e que ficaram demonstrados, cumprindo salientar o receio vivenciado pela demandante, de perder o seu filho, durante o período de encarceramento a que ficou sujeita dentro do veículo sinistrado, durante mais de uma hora.

Na certeza de que os demandantes padeceram com a morte do seu filho entendemos que deverão ser indemnizados a este título, visto que este é um dano que, pela sua gravidade, é merecedor da tutela do direito.

Em consequência da supra referida colisão, E... foi, ainda, submetida a cesariana, registando-se aquando do início de tal intervenção batimentos fetais, tendo nascido um nado morto de sexo masculino, ao qual foi, posteriormente, declarado o respectivo óbito.

Com efeito em consequência das lesões sofridas, em consequência da aludida colisão o feto sofreu hemorragia multi-orgânica grave, particularmente no encéfalo com hematoma subdural extenso bilateral e hemorragia intra-ventricular, hemorragia pulmonar “maciça”, hemopericárdio e falência renal aguda, que foram causa adequada e necessária da sua morte.

A demandante, estava grávida de 34 semanas e 3 dias.

Os demandantes E... e F... iniciaram em 2007 um tratamento de infertilidade no Serviço de Reprodução Humana do Centro Hospitalar de Coimbra. Ao longo de quase sete anos, deslocaram-se dezenas de vezes àquele serviço para tratamentos, consultas e exames. O grande desejo de ter um filho levou-os a fazer todos os esforços, disponibilizando tempo e recursos materiais para esse almejado fim. Ao longo desse tempo a expectativa da demandante engravidar foi crescendo até que, em 2013, isso aconteceu. Tal acontecimento veio trazer aos demandantes uma enorme felicidade que, assim, se viam compensados dos enormes sacrifícios morais e patrimoniais sofridos.

Quando, então, já grávida de quase oito meses, muito próximo de verem concretizado o sonho de terem um filho, o fatídico acidente transformou o sonho num horrível pesadelo. Tal fatalidade trouxe à demandante uma profunda e angustiante tristeza, associada à perda da alegria de viver, que duvidas não temos em afirmar perdurará toda vida.

A dor, o desconforto, a aflição, o desgaste psicológico, a forte angústia, que perdura até à data, bem como todos os incómodos e transtornos causados à ofendida e ao seu marido F... e que ficaram demonstrados, merecem pois ser indemnizados.

A título de indemnização pelo dano em apreço julgamos adequado fixar, fazendo jus da equidade, a quantia de 40.000,00€ à demandante E... e 25.000,00€ ao demandante F... .

*

Da perda do direito à vida do nascituro

Em consequência da supra referida colisão, E... foi, submetida a cesariana, registando-se aquando do início de tal intervenção batimentos fetais, tendo nascido um nado morto de sexo masculino, ao qual foi, posteriormente, declarado o respectivo óbito. A título de compensação pela perda do direito à vida do nascituro entendemos ser de fixar a quantia de € 25.000,00 a cada um dos demandantes E... e F... .

*

A menor D... sofreu traumatismo do punho direito e epifisiolise distal do rádio.

Acresce a dor, o desconforto, a aflição, o desgaste psicológico, a forte angústia, que perdura até à data, bem como todos os incómodos e transtornos causados à ofendida e que ficaram demonstrados. Com efeito em consequência das lesões sofridas a menor andou com o braço engessado durante cerca de um mês. A forma catastrófica como o acidente se deu, o terror de perder a irmã, o horror do encarceramento daquela no interior do veículo e os seus gritos de dor e lamento causaram na menor traumas que se manifestaram nos seus sonhos, acordava frequentemente sobressaltada com a visão do episódio do acidente, necessitou de acompanhamento psicológico durante vários meses, teve dores e padecimentos diversos, quer físicos, quer psicológicos que perduraram vários meses e ainda hoje sente dores no pulso direito quando faz esforços ou sempre que escreve demoradamente. Tais danos são, pela sua gravidade, merecedores de tutela do direito, nos termos do artigo 496.º n.º 1 do Código Civil. Assim, considerando as condições económicas do arguido/responsável civil e a gravidade dos danos provocados, num juízo de equidade a desenvolver nos termos do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, reputa-se adequado fixar uma compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela lesada D... em 5.000 (cinco mil) Euros.

*

Os Demandantes ainda peticionaram o pagamento de juros de mora, consistindo esta na não realização atempada da prestação devida e ainda possível, que “constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor”, por imposição do art. 804º do Código Civil.

Por se tratar de responsabilidade por facto ilícito e aquela prestação ser inicialmente ilíquida, o momento da sua constituição ocorre, pelo menos, desde a citação do devedor, de acordo com o disposto no art. 805.º, n.º 3, expressando-se no art. 806.º, n.º 1, ambos daquele Código, que “Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora”, ou seja, a determinação do prejuízo encontra-se prefixada, que em regra corresponde aos juros legais, salvo quando haja qualquer situação prevista no n.º 2, II parte deste último preceito – vide a propósito P- Lima - A. Varela, in “Código Civil – Anotado”, Vol. II (1981), p. 58.

Através do Ac. Uniformizador de Jurisprudência, n.º 4 de 2002/Jun./27, (DR I n.º 146, de 2002/Jun./27) foi estabelecido que “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação”.

Ora, no encontro da compensação não-patrimonial, apenas tivemos em atenção a data do acidente e o que desde então ocorreu até à propositura da ação, mormente pelo juízo de equidade a que recorremos.

Sendo assim e observando o estabelecido pelo Ac. Uniformizador de Jurisprudência, n.º 4 de 2002/Jun./27, uma vez que não foi feito qualquer cálculo de atualização, os juros moratórios legais incidirão sobre a totalidade da indemnização, inclusive sobre os danos não patrimoniais, de modo que a mesma possa manter na íntegra a compensação justa devida aos indemnizados.

De resto, este entendimento vem sendo ultimamente sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se depreende nos Ac. de 2003/Nov./11, em http://www.dgsi.pt, e de 2002/Jun./25, na CJ (S) II/120, tendo ambos feito expressamente referência ao citado Acórdão Uniformizador, destrinçando os casos que estavam em apreço num caso e noutro – neste último houve uma atualização da indemnização, em função das taxas de inflação, enquanto naqueles não houve – e ao decidirem que “Não tendo existido actualização das indemnizações, os juros de mora contam-se desde a citação”.

Sendo assim os juros são devidos desde a citação e à taxa legal, que a partir de 2003/Mai./01 é de 4 % – cfr. art. 806.º, n.º2; 559.º, n.º 1 do C. Civil; Port. n.º 291/03, de 08/Abr.

*

Deixa-se apenas uma última nota: nos termos do artigo 664º do Código de Processo Civil, o Julgador não se mostra adstrito à qualificação jurídica dada pelas partes aos danos sofridos e suas espécies. Sendo apenas de notar que poderá ser dada qualificação diversa aos mesmos e quantias diversas, desde que observado o princípio da não condenação para além do pedido formulado – cfr. art. 661º do Código de Processo Civil e Ac do STJ de 2000/Jul/01.

*

A legitimidade passiva da Demandada e a responsabilidade daí inerente deriva do contrato de seguro celebrado, nos termos do Decreto-Lei nº291/2007, de 21 de Agosto (art.º 15º).”

****

III – Cumpre apreciar e decidir:

De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».  

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões a conhecer são as seguintes:

A) Recurso da demandada:

1 - Saber se falta exame crítico da prova quanto aos pontos 4, 6, 22 a 26, 31, 33, 40 a 46, 50 e 51, da matéria de facto dada como provada.

2 – Saber se os factos referidos no número anterior estão incorretamente julgados.

3 – Saber se os valores atribuídos a título de indemnização devem ser mantidos.

B) Recurso do Ministério Público:

- Saber se o arguido deve ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículo com motor, p. p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, ou na sanção acessória p. p. pelo artigo 147.º, do Código da Estrada.

                                                           ****   

A) Recurso da demandada:

1 - Da falta exame crítico da prova quanto aos pontos 4, 6, 22 a 26, 31, 33, 40 a 46, 50 e 51, da matéria de facto dada como provada:

A recorrente alega:

“(…) Analisando, agora, os elementos que determinaram a convicção do Tribunal, não descortinamos, com o devido respeito, qual o processo logico-dedutivo, estribado nos pressupostos atrás enunciados e na prova produzida em julgamento, que permitiu dar como provada a matéria constante dos factos que atrás se deixam transcritos: 4, 6, 22 a 26, 31, 33, 40 a 46, 50 e 51.

Por conseguinte, há que analisar se a sentença recorrida padece de uma insuficiente fundamentação da matéria de facto, ao nível de uma falta de apreciação crítica da prova.

Por força do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

            E determina o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença: ao relatório, segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

            O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, portanto, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 14/6/2007, Processo n.º 1387/07, 5ª Secção.

            Antes da vigência da Lei n.º 59/98, de 15 de Agosto, entendia-se que o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador pormenorizasse o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, a acarretar nulidade da decisão, nos termos do artigo 379.º, do CPP – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/1/1997, C.J., Acs. do STJ, V, Tomo 1, pág. 172, e Ac. do S.T.J., de 27/1/1998, B.M.J. n.º 473, pág. 166.                                           Atualmente, face à nova redação do n.º 2, do artigo 374.º, do CPP, - aditamento à redação do preceito: exame crítico das provas – é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 7/7/1999, C.J., Acs. do S.T.J., VII, Tomo 2, pág. 246.

            Foi a referida Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que aditou a exigência do exame crítico das provas, sendo certo que a revisão de 2007 levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, nada alterou nesta matéria.

            Pois bem, o exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareça “quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”, conforme resulta do Ac. do S.T.J., de 1/3/2000, B.M.J. n.º 495, pág. 209.

            Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, tal exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo essencial que permita avaliar o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de base ao respetivo conteúdo.

            Sem receio de errar, podemos afirmar que a fundamentação decisória tem que deixar claro o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão, isto é, para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do julgador o exame crítico das provas que consiste na sua descrição e no respetivo juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório.

            Em resumo, “a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (de um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 31/10/2007, Processo n.º 3280/07, 3ª Secção.

                                                                       ****                                                                          Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, afigura-se-nos suficiente a fundamentação que a mesma contém, quanto ao processo de raciocínio levado a cabo pelo Tribunal, ou seja, pela motivação, é possível reconduzir racionalmente as razões probatórias que determinaram que o Tribunal a quo formasse a sua convicção.        

            Há que enfatizar que o exame crítico a que se refere a lei não tem que ser exaustivo, bastando que indique as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspetiva do tribunal, sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.

O que é crucial é que, através da leitura da sentença, seja compreensível por que razão o tribunal decidiu num sentido e não noutro.

Nisto se esgota a questão da nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas.

Vale isto por dizer que esta nulidade não ocorre quando forem incorretas ou passíveis de censura as conclusões a que o tribunal a quo chegou posto que, percebidas as razões do julgador, podem os sujeitos processuais, fazendo apelo ao registo da prova, argumentar para que o tribunal de recurso altere a matéria de facto fixada, nomeadamente por não ter atendido a determinada prova com relevo para quem interpõe recurso, sendo certo que aqui já nos encontramos em sede de impugnação da matéria de facto e não de nulidade da sentença.

No caso em apreço, a sentença recorrida contém os elementos necessários para captar a formação da convicção do tribunal.

Aliás, a extensa crítica que é feita pelo recorrente demonstra que percebeu tal processo. Apenas discorda dele, ao nível da valoração da prova.

Improcede, portanto, a invocada nulidade.   

****

2 – Dos factos incorretamente julgados. (pontos 4, 6, 22 a 26, 31, 33, 40 a 46, 50 e 51, da matéria de facto dada como provada):

A recorrente considera que os factos ora em causa devem ser considerados como não provados.

Assim deve ser, na sua perspetiva, por absoluta ausência de prova quanto aos mesmos.

Pois bem, o erro de julgamento, consagrado no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.                    

Como é consabido, uma vez que o recurso em que se impugne a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, do CPP:             «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:                                                                                                                              

a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;                

b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;                          

c)-As provas que devem ser renovadas».                                                                                                                                        ****                                                  

Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação.                                            

Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas:                   

- Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante;                                                                          

- Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou                                                                                              

- Situar objetivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas.                                                                              

Mas tal não basta.                                                                                                                

Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida.            Este é o cerne do dever de especificação.

                                                           ****

Acontece que a recorrente, em lado algum do seu recurso, especifica as “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, na medida em que não indica, como legalmente se lhe impunha, o concreto conteúdo das declarações e/ou depoimentos prestados em audiência de julgamento que, na sua ótica, imporiam decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo.

Pelo contrário, limita-se a, de um modo genérico, tecer considerações sobre a valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, manifestando o seu inconformismo.

Ao alegar o que consta da sua Motivação, em boa verdade, a recorrente está, simplesmente, a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos aquela adquiriu em julgamento, esquecendo-se da regra da livre apreciação da prova inserida no artigo 127.º, do C.P.P.

A recorrente limita-se, enfatize-se, a trazer aos autos a sua própria valoração da prova, afirmando que ela não existe quanto a certos factos, o que se mostra mais consentâneo com o momento das alegações orais em sede de julgamento de 1ª instância, não indicando algo que conduza, de um modo assertivo e irrefutável, a uma decisão diversa daquela que foi tomada pelo Tribunal a quo.

Não basta alegar que não há prova.

Há que indicar quais as passagens da gravação da audiência que levem a concluir nesse sentido.

Em sede de apreciação da prova pelo Tribunal Superior, um recorrente não lhe poderá opor a sua convicção e reclamar que por ela opte ou a sufrague, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova e esquecendo que, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.

Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respetiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.

Assim sendo, forçoso é concluir que não cumpre a recorrente o aludido ónus de especificação, quer na motivação da peça recursiva, quer em sede de conclusões.

Por via da apontada deficiência, está este Tribunal de Relação impossibilitado de, em sede de erro de julgamento, proceder à pretendida modificação.

E não se argumente que o caso justifica a prolação de despacho dirigido à recorrente no sentido de aperfeiçoar a motivação de recurso.

Como advertia o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 140/2004 de 10.3.2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt em relação à redação anterior do artigo 412.º, do CPP, “não está aqui em causa apenas uma certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, isto é, relativa à forma de exposição ou condensação de uma impugnação que é, quanto ao mais, apreensível pela motivação do recurso - falta, essa, para a qual a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correção dos vícios formais detetados, constitui exigência desproporcionada.

Antes a indicação exigida pela al. b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do art. 412.º do CPP - repete-se, das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos - é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.

Importa, aliás, recordar, por um lado, que da jurisprudência do T.C. não pode retirar-se (...) uma exigência constitucional de convite ao aperfeiçoamento sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjetivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado.

Ora, é manifestamente este o caso das exigências constantes do artigo 412.º, nºs 3, alínea b) e 4, do CPP, cujo cumprimento (incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada. Aliás, o modo de especificação por referência aos suportes técnicos é deixado em aberto pelo n.º 4 do art. 412.º do CPP, não tendo, porém, no presente caso, existido sequer qualquer esboço dessa referência”.

O despacho de aperfeiçoamento neste caso “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso” ainda parafraseando o mencionado acórdão.

Do que se extrai que o Tribunal Constitucional, colocado perante a questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 412º, nºs 3, alínea b) e 4 do Código de Processo Penal interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne a matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências, decidiu não julgar inconstitucional tal norma com o citado conteúdo interpretativo.

E foi, aliás, na senda dessa jurisprudência constitucional que a Lei nº 48/2007 introduziu disposição, nº 3 do artigo 417º, no sentido de consagrar expressamente a possibilidade de convite à correção da motivação de recurso, mas apenas se esta não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas no artigo 412º, nºs 2 a 5, já não sendo tal possível quando estão em causa vícios do corpo da motivação.

E tanto assim, que no nº 4 do mesmo preceito se menciona expressamente que o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.

Do exposto resulta que este Tribunal, em sede de erro de julgamento, está impedido de alterar a decisão recorrida no que respeita à matéria de facto por via da impugnação substancialmente viciada que a recorrente apresentou e que não é passível de convite à correção por parte deste Tribunal.

                                                           ****

Por sua vez, o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, estabelece que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:                              

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;                                           

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;                   

c) Erro notório na apreciação da prova.                                                                               

Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.                                                                                 

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova.                     

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.                               Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).      

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).                   

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).                                                                           

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Ora, não se vislumbra que a sentença recorrida padeça de um dos vícios acabados de enunciar.

A sentença recorrida apresenta um raciocínio lógico e racional na apreciação da prova, dela constando factos suficientes para fundamentar a decisão de direito, sendo manifesto que o tribunal investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão, assim como não apresenta qualquer contradição ou erro notório.

Note-se que a recorrente baseia a sua crítica, ao nível da matéria de facto, em elementos que passam pela valoração da prova que foi produzida (ou não, na sua perspetiva) em audiência de julgamento, e não propriamente no teor da decisão em si.

Devido a tal circunstância, só poderia haver alteração da matéria de facto pela via do artigo 412.º, do CPP, cujo formalismo legal, como já referido, não foi respeitado, com a consequência atrás mencionada.

****

3 – Dos valores atribuídos a título de indemnização:

A recorrente alega:

“(…).

Ora, de acordo com o que atrás alegou em A/Impugnação da matéria de facto, segue-se que não se apurou a responsabilidade subjetiva ou culpa de nenhum dos intervenientes, pelo que o caso tem que ser resolvido através do disposto no artigo 506.º, do CC, como também atrás se disse (e igual solução seria se se considerasse que ambos os intervenientes eram culpados em partes iguais), já que não existe nenhuma presunção de culpa de qualquer deles.

Ou seja, o caso tem que ser resolvido com base na responsabilidade pelo risco. E sendo os veículos do mesmo tipo ou categoria, forçoso é concluir que a responsabilidade de cada um deles é de 50%, já que a proporção em que o risco de cada contribui para o acidente é igual.

Isto significa que, pela indemnização dos danos que vierem a ser considerados, a ora recorrente só é responsável por metade.

No entanto, em relação a estes, os mesmos não se encontram corretamente valorizados na douta sentença, sendo os montantes atribuídos nalguns casos que se vão concretizar exagerados e noutros nem sequer devidos.

Na douta sentença, a indemnização dos danos da demandante E... (e marido F... , em algumas parcelas) foi assim calculada:

PATRIMONIAIS:

a) Custos ( E... e F... ) com a contratação de uma empregada: € 2 482,52.

b) Viagens diversas: € 243,08.

c) Medicamentos: € 278,75.

d) Utensílios indispensáveis no período de doença: € 28,08.

e) Funeral do feto: € 700,00

Somam os danos patrimoniais: € 3 678,43

NÃO PATRIMONIAIS:

a) “Dores físicas e morais”, o pretium ou quantum doloris: € 15 000,00.

b) Prejuízo estético (resultante das cicatrizes): € 7 500,00.

c) Outra vez a dor moral (traduzida de maneira multiforme, pelas aflições, desgostos, angústias, inquietações, incluindo a morte do feto): € 65 000,00 (sendo para E... € 40 000,00 e para F... € 25 000,00).

d) Da perda do direito à vida do feto: € 50 000,00 (sendo metade para E... e metade para F... ).

Somam os danos não patrimoniais: € 137 500,00.

Por sua vez, para a menor D... , o tribunal arbitrou a indemnização de € 5 000,00, a título de danos não patrimoniais.

Os danos patrimoniais, no valor de € 3 678,43, considerados na douta sentença e sofridos pelos demandantes E... e F... não são objeto de impugnação neste recurso.

Mas o mesmo não acontece em relação a todos os outros, que são todos danos não patrimoniais, os quais ou não são devidos ou estão exageradamente computados.” (nosso negrito).

                                                           ****

Liminarmente, há que deixar expresso que a matéria de facto dada como assente não permite concluir, como o pretende a recorrente, que o “caso tem que ser resolvido com base na responsabilidade pelo risco” 

Está bem definida a causa do acidente e essa aponta para a culpa exclusiva do arguido.

Avancemos.

Relembremos quais os valores indemnizatórios fixados na sentença recorrida:

1) Demandante E... :

            - Dores físicas e morais, o pretium ou quantum doloris - € 15 000,00.

- Dano estético - € 7 500,00.

2) Demandantes E... e F... :

- Dor moral, traduzida pelas aflições, desgostos, angústias e inquietações - € 40 000,00 ( E... ) e € 25 000,00 ( F... ).

- Perda do direito à vida do nascituro - € 25 000,00 (a cada um dos demandantes).

3) Demandante D... :

- Dor moral, traduzida pelo desconforto aflição, desgaste psicológico, angústia e inquietações - € 5 000,00.

                                                           ****

Vejamos, então, cada um dos valores colocados em causa pela recorrente.

Antes, disso, porém, impõem-se algumas considerações de ordem geral, no que tange às indemnizações a atribuir.

A propósito dos critérios que devem estar na base dos valores a atribuir por danos não patrimoniais, podemos ler no Acórdão do STJ, de 24/4/2013, processo n.º 118/06.3TBPMS.C1.S1, in www.dgsi.pt:

O valor da indemnização por tais danos, a qual, “sem embargo da função punitiva que, outrossim, reveste, tem por fim facultar ao lesado meios económicos que, de alguma sorte, o compensem da lesão sofrida, por tal via reparando, indiretamente, esses danos, por serem hábeis a proporcionar-lhe alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar a havido sofrimento moral” (cfr. acórdão deste Tribunal, de 17-01-08 – Proc.º n.º 07B4538 –, disponível in www.dgsi.pt), deve ter um alcance significativo, que não simbólico ou miserabilista, como, sem exceção, de há muito, sublinhado pelo STJ, à sua ressarcibilidade, como escrito por Adriano de Cupis, in “O DANO”, pág. 765, não havendo óbices jurídicos nem morais, a determinação indemnizatória devendo, sim, ser efetuada segundo um juízo de equidade (art.º 496.º n.º 3 do CC), que não é um qualquer exercício de discricionariedade, antes a procura da justiça do caso concreto, assente numa ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso, sem olvido do princípio da igualdade (art.º 13.º da C.R.P.), iluminador da uniformização de critérios, tendo, destarte, em atenção, para além dos padrões de indemnização normalmente adaptados na jurisprudência, maxime, do STJ, em casos similares, até em virtude do vazado no art.º 8.º n.º 3 do C.C., as flutuações do valor da moeda e as circunstâncias elencadas no art.º 494.º do CC, de modo não taxativo, frise-se, exceção feita à relativa à situação económica do lesado, em ordem a não ocorrer entorse ao já nomeado princípio constitucional, como sustentado em acórdão do STJ, de 22-10-2009 (Proc.º n.º 3138/06.7TBMTS.P1.S1), disponível in www.dgsi.pt.

A indemnização por danos não patrimoniais deve, ainda, englobar, de acordo com o defendido, entre outros, no acórdão do STJ, de 26-01-2012 (Proc.º n.º 220/2001.7.S1), disponível in www.dgsi.pt, “nomeadamente os prejuízos estéticos, os sociais, os derivados da não possibilidade de desenvolvimento de atividades agradáveis”, a gravidade do dano a que se refere o art.º 496.º n.º 1 do C.C. devendo medir-se “por um padrão objetivo … e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, na lição de Antunes Varela, in “Das Obrigações em geral”, 5.ª Edição, vol. I, pág. 566.”

Sobre esta matéria, convém, também, ter presente o Acórdão do TRC, de 5/3/2013, Processo n.º 2017/10.3TBTBU.C1, in www.dgsi.pt, no qual é referido que a jurisprudência do STJ “tem reiterado a afirmação de que o critério fundamental para a determinação judicial da indemnização por danos não patrimoniais é fixado pelo Código Civil e que os que são definidos pelas Portarias nºs 377/2008, de 26 de Maio, e 679/2009, de 25 de Junho, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial e, se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem aquele.” – Ver Acórdãos do STJ, de 07.07.09, 14.09.10, 01.06.11 e de 17.05.12, in www.dgsi.pt.

Por conseguinte, o valor a atribuir, no caso concreto, deve obedecer aos parâmetros enunciados.

De realçar, ainda, que, nesta matéria, ao invés de buscar exemplos que possam servir de comparação, entende-se mais significativo salientar que o Supremo Tribunal de Justiça vem acentuando que, estando em causa critério de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida (cfr. entre outros o Acórdão de 7.12.2011 proferido no processo 461/06.4GBVLG.P1.S1 publicado em www.dgsi.pt), como igualmente acentua, nunca é demais relembrar, que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica (cfr. entre outros o Acórdão proferido no processo 526/08.4TMS.P1.S1 de 8.6.2010).

****

1) Indemnização pela perda do direito à vida (morte do feto) e indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte do feto:

A recorrente considera que a primeira não é devida e que a segunda é exagerada.

Em síntese, adianta que a indemnização pela perda do direito à vida do feto não tem fundamento legal e está contra a jurisprudência do Tribunal Constitucional.

Para apoiar a sua posição, além do mais, faz apelo a um Acórdão do STJ, de 9/10/2008, in www.dgsi.pt, em que pode ser lido que “não há lugar à reparação por perda do direito à vida de um feto que faleceu em consequência de acidente de viação

Acrescenta que “por se tratar da morte de um feto, trata-se de um nascimento sem vida, Não ocorre, assim, lugar a indemnização por perda do direito à vida, o que se verifica é a existência de danos não patrimoniais dos demandantes civis.

Mais refere que tais danos não devem ser fixados em quantia superior a € 35 000,00 (€ 17 500,00, para cada um dos demandantes), chamando a atenção para o Acórdão do STJ, de 3/12/2009, processo 73/99.7TAVIS.S1, in www.dgsi.pt.

Conclui, nesta parte, que a posição que foi seguida na sentença recorrida “não tem apoio na lei, nem na jurisprudência (com exceção de um único acórdão – o que vem citado na douta sentença, que se desconhece se transitou ou foi objeto de recurso para o STJ).

A recorrente traz, também, aos autos a seguinte argumentação:

“(…) o arguido não cometeu nenhum crime de homicídio por negligência, como vinha acusado. E não cometeu, não por falta de provas quanto à sua autoria, mas pura e simplesmente porque aquilo de que era acusado, neste particular, morte do feto, não é crime. Não que o arguido, segundo a douta sentença, não tenha cometido os atos, mas só que tais atos não são crime. Por isso, não se vê também por aqui como é que é possível haver uma indemnização pela perda do direito à vida se não houve homicídio (mesmo por negligência) nenhum. Considerou-se que o arguido não atentou contra a vida de ninguém ( se não tinha que ser condenado por isso mesmo). O arguido não matou ninguém, nomeadamente, não cometeu o crime previsto e punido pelo artigo 137.º, do C. Penal. Por isso, não faz sentido, por um lado, considerar-se isto mesmo e, por outro lado, reconhecer, como se faz na douta sentença, que houve uma violação do direito à vida, reconhecendo-se o direito a uma indemnização pela perda do direito à vida do feto. Sendo assim, não faz sentido, em processo penal, vir pedir-se ou reconhecer-se o direito a uma indemnização pela perda do direito à vida quando não se cometeu nenhum crime relacionado com tal perda do direito à vida. Assim, além de tal condenação no pagamento de tal indemnização nem ser possível no âmbito do processo penal, a mesma representa uma verdadeira contradição, porque, na realidade, o arguido não cometeu nenhum crime que tivesse originado tal perda do direito à vida.

                                                           ****

A questão de saber se a perda do direito à vida pelo nascituro é indemnizável é algo que não obtém consenso na jurisprudência e na doutrina, como resulta da própria sentença recorrida.

Sobre a proteção jurídica que a lei deve conceder ao nascituro, e, consequentemente, quanto aos seus direitos, remetemos para as considerações de ordem doutrinária que são descritas no Acórdão do STJ, de 3/4/2014, Processo 436/07.6TBVRL – 2ª Secção, relatado pelo Exmo. Conselheiro Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt, de onde resulta, a nosso ver, que a questão que agora concentra a nossa atenção está longe de vir a ser considerada pacífica a curto prazo, designadamente, pela constante evolução dos conceitos que dizem respeito à vida e à pessoa.

A sentença recorrida adere à posição seguida por este TRC, no Acórdão de 29/1/2013, Processo 475/04.9TBANS.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Sílvia Pires, in www.dgsi.pt., o qual, pela sua pertinência, passamos a citar:

Da perda do direito à vida do nascituro:

No acidente de viação em julgamento nos presentes autos faleceu I… que estava grávida de cinco meses, tendo o feto também perecido.

O Autor pediu que lhe fosse paga uma indemnização pelo dano da morte do feto.

A sentença recorrida reconheceu que este dano era indemnizável, tendo con­denado o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 25.000.

O Recorrente discorda que este dano seja indemnizável.

A jurisprudência tem-se pronunciado nesse sentido.

Entende-se que é impossível reconhecer ao feto um direito à vida suscetível de ser indemnizado, uma vez que ele pereceu antes de ter nascido e, portanto, antes de adquirir a qualidade de pessoa jurídica, não podendo, assim, ser titular de qualquer direito.

No Acórdão do S.T.J. de 21 de Setembro de 2006 escreveu-se:

“Os recorrentes questionam o tribunal sobre o direito à vida consagrado no art. 24.º, n.º 1 da Constituição. Todavia, o direito à vida, como direito fundamental da pessoa, radica na personalidade e esta «adquire-se no momento do nascimento com­pleto e com vida» (art. 66.º, n.º 1 do CC). Pode rotular-se esta conceção de «pré-cien­tífica» ou «pré-ecográfica»,…mas o que é certo é que a lei vigente não define um direito autónomo à vida do feto.”

Estas dificuldades lembram os primórdios da já longínqua discussão sobre a indemnização do dano de morte das pessoas nascidas em que se questionava como era possível alguém adquirir um direito de indemnização pela perda da vida quando esse dano ocorria no preciso momento em que o seu titular perdia a capacidade para adquirir direitos.

Mas agora as dificuldades são acrescidas, uma vez que o nascituro não só cessa a sua existência com o ato danoso, como perante o nosso sistema jurídico não chegou a ter sequer a qualidade de pessoa jurídica.

Na verdade, o artigo 66º do C. Civil, sob a epígrafe “Começo da per­sonali­dade”, dispõe:

1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.

2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nasci­mento.

No direito civil a personalidade jurídica traduz a aptidão para se ser sujeito autónomo de relações jurídicas, com a inerente capacidade de ser titular de direitos e encontrar-se vinculado a deveres.

A fixação do momento da aquisição da personalidade jurídica no acto de nas­cimento com a consequente exclusão dos nascituros da condição de pessoa jurí­dica, já remonta ao direito romano sendo essa também a solução de toda a nossa tradição jurídica, a qual veio a obter consagração no artigo 6º do Código de Seabra.

O artigo 66º do C. Civil atual, resultante de anteprojeto apresentado por Manuel de Andrade, manteve-se nesta linha de pensamento, enunciando que a personali­dade se adquire no momento do nascimento (n.º 1) e vincando que os direitos que a lei reconheça aos nascituros dependem sempre do seu nascimento (n.º 2).

É esta também a solução dos sistemas jurídicos que nos são próximos.

A interpretação do artigo 66º do C. Civil, negando a qualidade de sujeito de direitos ao nascituro concebido, corresponde à leitura maioritária efetuada pela doutrina e pela jurisprudência, registando-se as opiniões divergentes daqueles que, apesar do dis­posto no artigo 66º, n.º 1 do Código Civil, entendem que o sis­tema jurídico acaba por reconhecer personalidade jurídica aos nascituros concebidos, ou uma personalidade jurí­dica parcial ou fracionária, ou ainda que retroa­gem a personali­dade jurídica do nas­cituro concebido ao momento da constitui­ção do direito em causa.

A opção pelo momento do nascimento, como marco certo e objetivamente determinável a partir do qual se inicia a personalidade jurídica da pes­soa, foi justificada por Antunes Varela com os seguintes argumentos:

“a) por virtude da notoriedade e do fácil reconhecimento do facto do nas­ci­mento, em contraste com o secretismo natural e social da conceção do embrião;

b) embora a vida do homem comece, de facto, com a sua conceção, a for­ma­ção da pessoa, no fenómeno continuado e progressivo do desenvolvimento psico-somático do organismo humano, quanto às propriedades fundamentais do ser humano (a consciência, a vontade, a razão) está sempre mais próximo do nascimento do indiví­duo do que da fecunda­ção do óvulo no seio materno;

c) olhando ainda ao fenómeno psico-somático do desenvolvimento do ser humano, compreende-se perfeitamente que seja o nascimento, como momento culmi­nante da autonomização fisiológica do filho perante o organismo da mãe, o marco cra­vado na lei para o reconhecimento da personalidade do filho”[10].

Rita Lobo Xavier acentua ainda a falta de autonomia biológica e social do nas­cituro concebido, como razão preponderante para o Direito Civil, enquanto disci­plina positiva da convivência humana elaborada numa perspetiva de autono­mia da pes­soa no desenvolvimento da sua personalidade, não sentir necessidade de lhe atribuir personali­dade jurídica.

Se de iure constituendo é discutível se esta é a melhor opção para o direito civil, no plano do direito constituído não parece possível deixar de seguir a tese domi­nante, segundo a qual o Código Civil vigente recusou o reconhecimento de personali­dade jurídica aos nascituros.

Contudo, esta posição não impede necessariamente que o instituto da respon­sabilidade civil cubra o dano da morte de um nascituro.

Tal como sucede noutras situações, a responsabilidade civil, visando a satisfa­ção de finalidades preventivas e punitivas, que impeçam e sancionem a lesão de um bem jurídico, face à inexistência de um sujeito jurídico lesado, não deixa de poder atribuir um direito de indemnização pela lesão desse bem jurídico a determinadas pessoas, tendo em conta, designadamente, a relação que têm com o bem ofendido.

Tendo sido violado um dever geral de respeito pelo bem jurídico vida, não subjetivado, uma violação de tal dever pode ser reconduzida à norma de proteção do artigo 483º, n.º 1 do Código Civil, numa leitura ampla do conceito de interesses alheios, fundamentando a obrigação de ressarcimento do dano provocado pelo comportamento lesivo.

E a redação dos n.º 2 e 3 do art.º 496º do C. Civil, permite incluir na sua previsão a morte do ser humano já concebido que ainda não nasceu.

O conceito de vítima, pelo seu afastamento relativamente à pessoa titular de direitos, possibilita, sem qualquer esforço interpretativo, abranger os nascituros já concebidos, pelo que a morte destes, em resultado de ato ilícito imputável a terceiros, confere o direito à indemniza­ção pela sua morte, do qual são titulares, as pessoas indicadas no n.º 2 do art.º 496º do C. Civil, ou seja, em primeiro lugar, os pais ou outros ascendentes[14].

Ora, sendo certo que em dimensões menos exigentes da vida intrauterina, o instituto da responsabilidade civil não tem deixado de intervir, tutelando, por exem­plo, a integridade física do feto, ao reconhecer um direito de indemnização por ofensas corpo­rais, não seria compreensível, relativamente ao lesante, que sobre este recaísse a obrigação de indemnizar quando o seu comportamento causasse lesões físicas ao feto, e já não se constituísse essa obrigação quando o resultado fosse a morte, só por­que, nesta situação, o titular do direito ofendido não tinha chegado a existir como pessoa jurídica.

Além disso, o não reconhecimento deste direito de indemnização colocaria a nossa ordem jurídica numa situação de défice de proteção do bem jurídico vida, na dimensão da vida intrauterina, enquanto bem jurídico cuja tutela é um imperativo constitucional, como já tem sido acentuado, o que feriria de inconstitucionalidade qualquer interpretação em contrário.

Assim, adotando o entendimento da decisão recorrida, deve ser atribuído ao Autor, pai presumido - art.º 1826º, n.º 1 do C. Civil - do feto que pereceu na sequência do acidente em causa nos presentes autos, uma indemnização correspondente à perda desta vida intrauterina, nos termos do art.º 496º, n.º 2 do C. Civil.

Esta indemnização é independente da indemnização atribuída pelo desgosto sofrido pelo Autor com o perecimento do feto, uma vez que respeita a um dano diferente, o dano da morte do nascituro concebido.

Tendo em consideração a finalidade preventiva-punitiva desta indemnização e que o feto tinha 5 meses de gestação, entende-se por justificado o pagamento de um valor indemnizatório de € 10.000,00, devendo, assim, ser reduzido o montante atribuído pela sentença recorrida.

A orientação expressa neste acórdão vai ao encontro do voto de vencido assinado pelo Exmo. Conselheiro Santos Bernardino que consta do Acórdão do STJ, de 9/10/2008, Processo 07B4692, relatado pelo Exmo. Conselheiro Bettencourt de Faria, in www.dgsi.pt., à qual, salvo o devido respeito pela posição maioritária, aderimos.

Com a devida vénia, pela sua importância, passamos a citar o referido voto.

“Reclama, antes de mais, a autora/recorrente indemnização pela perda do direito à vida do seu filho, nado-morto em consequência das lesões sofridas no ventre materno, produzidas pelo acidente.

Direito que a Relação lhe negou, fundada no disposto no art. 66º do Código Civil (CC): a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida, e os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento; “e uma vez que o filho da autora estava já morto no seu ventre, não beneficia de qualquer direito próprio, nomeadamente indemnizatório”.

A questão, convenhamos, não é de fácil solução.

A solução adotada pela Relação é a defendida por uma parte significativa da doutrina portuguesa – que integra nomes como MOTA PINTO, CASTRO MENDES, P. LIMA/A. VARELA, DIAS MARQUES, CARVALHO FERNANDES e EWALD HÖRSTER – que, sensível ao teor literal do art. 66º, nega a personalidade jurídica ao nascituro.

Apenas quando venha a nascer com vida pode adquirir direitos, v.g., os direitos atribuídos, antes do nascimento, por herança ou doação.

Não deixa, porém, de assinalar-se que alguns desses autores admitem, fora dos casos expressamente previstos, em que a lei – designadamente o CC, em matéria de doações ou sucessões, ou de perfilhação – reconhece direitos aos nascituros, que estes possam ser indemnizados, após o nascimento, por danos físicos ou psíquicos sofridos no ventre materno, exercendo o respetivo direito por intermédio dos seus representantes.

Esta posição doutrinária, denegatória da personalidade jurídica do nascituro, começa, porém, a ser posta em causa por uma igualmente forte corrente doutrinal, que defende, com maior ou menor ênfase, a personalidade jurídica do nascituro já concebido. Nomes como LEITE DE CAMPOS, OLIVEIRA ASCENSÃO, MENEZES CORDEIRO, PAULO OTERO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS surgem como arautos deste novo entendimento.

Particularmente impressiva é a posição deste último Professor, que, de adepto da construção tradicional acima referida, surge agora como convicto defensor da tese de que a personalidade tem início na conceção.

Para PAIS DE VASCONCELOS, é com a conceção que se inicia a vida humana, de que o nascimento é apenas mais uma etapa. Tendo vida e substância humana desde a conceção, o nascituro tem a qualidade de pessoa humana. A personalidade é uma qualidade – é a qualidade de ser pessoa. Não é algo que possa ser atribuído ou recusado pelo Direito, é um dado extrajurídico que se impõe ao Direito, que este se limita a respeitar ou a constatar, algo que se situa fora do alcance do poder de conformação social do legislador.

O nascituro é um ser humano vivo, com toda a dignidade própria da pessoa humana. A proteção jurídica que a lei lhe confere não é apenas objetiva – o nascituro não é objeto do direito, não é uma coisa especialmente protegida. Como pessoa humana viva, é pessoa jurídica: o Direito não pode deixar de lhe reconhecer a qualidade de pessoa humana viva, o mesmo é dizer, a personalidade jurídica.

É inegável, pois, a personalidade jurídica do nascituro desde a sua conceção.

O art. 66º do CC deve, segundo este autor, ser entendido como referido à capacidade de gozo e não propriamente à personalidade jurídica.

Não obstante tudo quanto vem referido, PAIS DE VASCONCELOS acaba por concluir que o nascituro, se não chegar a nascer com vida, é havido pela lei – pelo n.º 2 do mencionado art. 66º – como não tendo chegado a existir. Os direitos de personalidade de que era titular, enquanto pessoa pré-nascida – o direito a viver, o direito à integridade física e outros – extinguem-se com a extinção da personalidade.

Não deixa, porém, de reconhecer, noutro lugar, que a solução da desconsideração da vida de quem morreu antes do nascimento pode ser contestada no domínio dos princípios.

O Prof. MENEZES CORDEIRO, por seu turno, conclui também pela existência do direito à vida do nascituro, afirmando mesmo que o reconhecimento desse direito é praticamente pacífico.

O art. 24º da Constituição constitui, para este autor, a base jurídico-positiva do aludido direito. “As razões últimas que justificam o direito à vida do nascituro são precisamente as que depõem a favor do direito à vida das pessoas em geral”.

E acrescenta que, reconhecido, civilmente, este direito, não oferece dúvidas extrapolar o direito do nascituro à integridade física e moral, sendo indemnizáveis os danos causados ao próprio nascituro (5).

O atentado à integridade do nascituro é, assim, um ato civilmente ilícito.

Se dele resulta lesão não letal, o próprio nascituro tem direito a ser indemnizado, após o nascimento – direito que, resultando da lesão uma deficiência permanente, deverá abranger os alimentos necessários, devidamente reforçados, ao longo da vida.

E se da lesão resultar a morte do nascituro?

Antes do nascimento – diz M. Cordeiro – o nascituro tem uma capacidade de gozo limitada ao direito à vida. A sua morte dará lugar a direitos à indemnização por danos morais, funcionando o art. 496º do CC. Além disso, todos os danos patrimoniais provocados aos pais do nascituro deverão ser ressarcidos. Quanto ao nascituro em si: o direito à indemnização do próprio não se constitui.

A questão que nos ocupa pode, porém, ser enfocada de uma outra perspetiva -(nosso negrito).

Trata-se de saber – não se o nascituro tem ou não personalidade jurídica, se é sujeito de direitos – mas se, e em que medida, ele é, na sua personalidade física e moral, objeto de proteção jurídica.

Ora, a este respeito, logo o n.º 1 do art. 24º da Constituição consagra a inviolabilidade da vida humana.

E não parece haver dúvidas que existe vida humana no nascituro concebido: biologicamente, ele é um ser humano. A ciência contemporânea afirma que a criança concebida é um ser humano, capaz de sensações e sentimentos, um ser que, embora funcionalmente dependa da mãe, é dotado de uma estrutura autónoma.

A vida humana inicia-se com a conceção: “(d)aí em diante, o nascituro desenvolve-se de um modo progressivo e ininterrupto, sem patamares nítidos. O nascimento é apenas mais um facto relevante na vida da pessoa. Não há grande diferença entre a véspera do nascimento e o dia seguinte”.

O preceito constitucional citado não distingue a vida humana extrauterina da uterina, pelo que deverá considerar-se a vida do nascituro – o ser do nascituro, na linguagem de CAPELO DE SOUSA – como um bem juridicamente protegido, a nível das garantias constitucionais.

Mas não só a nível constitucional colhe proteção o bem jurídico «vida» do nascituro.

A norma constitucional indicada tem também eficácia civil, no âmbito das relações entre os particulares, atenta a força jurídica que o n.º 1 do art. 18º do diploma constitucional confere aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (entre os quais se conta o direito à vida), direitos estes que (n.º 2 do mesmo preceito) a lei só pode restringir nos casos expressamente previstos na Constituição, e apenas na medida do necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

A tutela da personalidade física e moral do nascituro, particularmente vincada no domínio penal – onde se preveem e sancionam crimes contra a vida intrauterina e se faz uma enunciação taxativa e restritiva das condições e situações interruptivas da gravidez que excluem a ilicitude do aborto – não deixa de marcar presença no CC, quer concretizada em disposições esparsas (v.g., no art. 1878º/1 – que integra no conteúdo do poder paternal dos pais a representação do nascituro; no art. 1826º/1 – presunção de paternidade relativamente ao filho concebido na constância do matrimónio; nos arts. 1854º e 1855º – perfilhação de nascituro), quer em termos genéricos, no art. 70º, cujo n.º 1 – A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita (...) à sua personalidade física ou moral – não pode deixar de entender-se, até pela sua expressão literal (na sua referência a «indivíduos» e à «personalidade física ou moral»), como abrangendo os nascituros concebidos.

E não vale argumentar em contrário com o disposto no n.º 2 do art. 66º do CC – designadamente com o facto de aí se prever que os direitos que a lei reconhece aos nascituros estão dependentes do seu nascimento.

Como refere R. CAPELO DE SOUSA, na sua obra já citada, que aqui vimos seguindo de perto, se é a própria lei que aí admite reconhecer direitos – sujeitos embora a condição legal – aos próprios nascituros, “isso até justifica a conceção de uma qualquer parcial personificação jurídica dos nascituros, sobretudo se concebidos”.

De todo o modo, o que o art. 66º prevê é o começo da personalidade jurídica plena; e, como acima deixámos dito, na esteira do mesmo autor, não é da questão da personalidade do nascituro – da titularidade subjetiva dos direitos que respeitam à tutela dos interesses do nascituro – que agora curamos, “mas apenas de saber se a nossa lei previu a tutela, como bem jurídico, da personalidade física e moral do nascituro” [aí incluído o seu direito à vida], questão a que, face aos normativos acima citados, considerados na unidade do sistema jurídico, parece dever responder-se afirmativamente.

Na verdade, mesmo que se aceite que, face ao art. 66º já citado, o nascituro concebido não tem personalidade jurídica plena, ele é, para efeitos do art. 70º, um ser humano, que, mesmo antes de nascer e após a conformação dos diversos órgãos, “tem movimentos, ouve, vê, sente, dorme e sonha”, é “uma criança em gestação”, que tem direito ao respeito e ao desenvolvimento geral da sua personalidade física e moral e, consequentemente, a não ser ofendido ou ameaçado na sua vida e na sua saúde – só sendo possível uma proteção jurídica eficaz e completa dessa personalidade do concebido através da tutela geral conferida por este último preceito, reputando a vida intrauterina como um bem jurídico autónomo.

E assim, de acordo com o n.º 2 do mesmo art. 70º, as ofensas ou as simples ameaças de ofensa à personalidade física ou moral do nascituro podem ser combatidas através do pedido das providências adequadas às circunstâncias do caso, formulado em procedimento especial previsto nos arts. 1474º e 1475º do CPC; e podem gerar, nos termos da 1ª parte do mesmo preceito, responsabilidade civil, desde que delas tenham resultado danos na personalidade do nascituro e se verifiquem os demais pressupostos, dando lugar, em tais casos, a obrigações de indemnização. Desde logo, “é tutelável a vida do nascituro concebido, sendo ilícito e indemnizável o aniquilamento da sua vida, fora dos casos admitidos taxativamente de interrupção de gravidez fundada em justa e tempestiva indicação legal” (10).

A morte do nascituro confere, pois, direito de indemnização, desde que verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito (ou pelo risco) – (nosso negrito).

Está em causa a indemnização por um dano não patrimonial, sendo aplicável o disposto no art. 496º do CC.

Por isso, no caso em apreço, a autora recorrente tem direito a reclamar indemnização, não apenas pelo dano não patrimonial consubstanciado no desgosto, angústia e tristeza que sofreu pela perda do filho – indemnização que, aliás, lhe foi concedida e que, mais adiante, voltaremos a examinar – mas também pelo dano da supressão da vida daquele.

O que está aqui em causa – reafirma-se mais uma vez – é, não a questão da titularidade subjetiva dos direitos respeitantes à tutela do nascituro, não, pois, a aplicação do n.º 2 do art. 66º do CC, mas a tutela do bem jurídico da vida intrauterina; e este bem jurídico é claramente distinto dos bens jurídicos da afetividade e da espiritualidade dos pais para com os seus filhos concebidos e do inerente sofrimento moral e psíquico pela lesão destes bens.

O n.º 2 do art. 496º do CC, na sua referência inicial («Por morte da vítima»), inclui, não só na letra, sim também no seu espírito, a morte do ser humano concebido.

Por isso, este dano – o dano da supressão da vida do filho nascituro da autora recorrente – é um dano direta e autonomamente indemnizável. Só por esta via o ordenamento jurídico assume totalmente a jurisdicionalização do mais importante dos bens jurídicos, o bem «vida».

A assim não ser entendido – e a ter-se por certo que naquele n.º 2 (e no subsequente n.º 3), o legislador apenas previu a morte do ser humano nascido e com vida – estaríamos perante uma lacuna da lei, um caso omisso: a ausência de regulamentação jurídica para a situação de ofensa, ilícita e culposa ou objetiva, do bem jurídico da vida intrauterina.

É o que sustenta CAPELO DE SOUSA, no comentário, discordante, que faz ao acórdão deste Supremo Tribunal, de 25.05.85, que, numa situação de facto em tudo idêntica à que é objeto dos presentes autos, entendeu não ser devida aos pais indemnização pela supressão da vida do feto.

E então, “por integração (art. 10º CC), aplicar-se-iam a essa hipótese os n.ºs 2 e 3 do art. 496º CC, por no caso omisso procederem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. Com efeito, não pode ter-se como irrelevante, em termos de responsabilidade civil, uma ofensa, ilícita e culposa ou baseada no risco, do bem jurídico da vida intrauterina; o direito à respetiva indemnização deverá caber às pessoas referidas no n.º 2 do art. 496º, também elas numa proximidade afetiva maior com o concebido; o montante da indemnização deverá ser fixado equitativamente e devem ser compensados não só a supressão da vida intrauterina sofrida pelo concebido mas também os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares referidos no n.º 2 do art. 496º CC, na sua esfera pessoal”.

Por qualquer uma das duas vias consideradas, a indemnização do dano não patrimonial da supressão da vida do nascituro – no caso, do filho nascituro da autora – sempre terá lugar.

Seria, ademais, estranho e contraditório que fossem indemnizáveis os danos à integridade física do concebido, quando este venha a nascer com vida – o que a generalidade da doutrina e a mais recente jurisprudência vêm afirmando sem reservas – e não o fosse o dano da sua morte, “pois então seria premiado o assassino mais eficaz que causasse a morte do concebido, face ao agressor que tão só lhe produzisse danos corporais.”

Se, por força da gravidade das lesões, o concebido morre no ventre materno, não há lugar a indemnização; se, por lesões menos graves, resiste â morte, e vem a nascer com vida, morrendo uma hora (ou mesmo uns minutos!) depois, em consequência das lesões sofridas antes do nascimento, já haverá lugar a indemnização – (nosso negrito).

Só por puro preconceito se pode justificar esta diferença de tratamento.

O art. 66º do CC, já o dissemos, não é – não deve ser – para aqui chamado.

De todo o modo, a interpretação que de tal normativo foi feita no acórdão recorrido – e a que já se fez expressa referência – negando a tutela jurídica da vida do nascituro, é inconstitucional, porque violadora do disposto no art. 24º da Constituição, pelo que sempre seria de rejeitar.

No direito português – escreve DIOGO LEITE DE CAMPOS – “o direito à vida («naturalmente» desde a conceção) está consagrado na Constituição da República, no número 1 do artigo 24º”.

E outro autor acrescenta:

“O artigo 66º padece de demasiadas anomalias para dele se retirar, em definitivo, um comando sobre o início da personalidade. Prudente será deixar a questão em aberto, bastando-nos o artigo 24º da Constituição sobre a inviolabilidade da vida humana”.

Há mesmo quem defenda que o n.º 1 do art. 66º foi revogado pelo artigo 24º/1 da Constituição (16) – norma que, como se sabe, lhe é temporalmente posterior.

“As normas contidas na maioria das legislações que vinculam o início da personalidade ao nascimento, estão, portanto, naturalmente gastas e ultrapassadas”.

“O artigo 66º do Código Civil, para ser compatível com a Constituição, com as coordenadas axiológicas do sistema e com a natureza das coisas, tem de ser interpretado como referido, não à personalidade jurídica, cuja existência, início e termo são extra e supra legais, mas antes à capacidade jurídica, como fazia o seu antecessor artigo 6º do Código Civil de 1867 e o § 1 do BGB”.

De tudo decorre – repete-se – a existência, no caso vertente, do direito da recorrente a ser indemnizada pelo dano da supressão da vida do nascituro seu filho, direito que flui do disposto no n.º 2 do art. 496º do CC, como também já se deixou assinalado.”

Face ao exposto, e sempre salvo o devido respeito pela posição contrária, defendida pela recorrente, entendemos que a indemnização pela perda do direito à vida (morte do feto) é devida.

O tribunal a quo fixou a quantia de € 25 000,00, a cada um dos demandantes.

Conforme Acórdão do STJ, de 18/6/2015, Processo 2567/09.9TBABF.E1.S1 – 7º secção, relatado pela Exma. Conselheira Fernanda Isabel Pereira, in www.dgsi.pt, “Vem-se consolidando na jurisprudência o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, deve situar-se, com algumas oscilações, entre os € 50.000,00 e € 80.000,00.”

Ora, há que ter em atenção que a vida humana intrauterina é uma vida em gestação, dependente, até ao termo desta, do organismo da mãe.

Fazendo ainda apelo ao mencionado voto de vencido, “se biologicamente o nascituro é um ser humano, uma criança em formação, sociologicamente parece ainda não o ser em medida igual à de um ente já formado, a uma criança já em vida de relação, o que justificará uma diferente valoração do direito à vida de um e de outro ser.

Assim sendo, considera-se, para o caso em apreço, que as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida justificam a fixação da indemnização em € 25.000,00, a cada um dos demandantes.

Não merece, pois, reparo, nesta parte, a sentença recorrida.

E não se argumente que não há lugar a indemnização por não ter ficado provado o crime de homicídio negligente.

 O artigo 377.º, do CPP, estabelece a autonomia do pedido cível enxertado na ação penal, no que tange à sua procedência, o qual não depende, em absoluto, da procedência da acusação penal, muito embora a causa de pedir possa assentar nos mesmos factos em que assenta a responsabilidade criminal.

Conforme Assento 7/99 (DR, n.º 179, I Série-A, de 3 de agosto de 1999, não pode concluir-se do artigo 129.º, do Código Penal, que a reparação civil arbitrada em processo penal é um efeito da condenação, mas sim que este normativo apenas remete para o artigo 483.º, do Código Civil, sendo certo que a respetiva responsabilidade civil refere-se tão-somente àquela que emerge da violação do direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, com dolo ou mera culpa e da qual resultem danos, ficando, portanto, excluída a responsabilidade contratual (artigo 483.º, do Código Civil).

Assim sendo, e no pressuposto que existe o direito a uma indemnização pela perda do direito à vida intrauterina (morte do feto) – orientação que seguimos, como já ficou expresso -, independentemente da absolvição havida quanto ao crime de homicídio negligente, por estarmos situados noutro patamar, o do pedido cível, nada obsta à condenação ora em causa.

                                                           ****

Quanto ao valor dos danos não patrimoniais dos demandantes civis, em sede de dor moral, traduzida pelas aflições, desgostos, angústias e inquietações, fixados em € 40 000,00 ( E... ) e € 25 000,00 ( F... ), defende a recorrente, como já vimos, que não devem ser fixados em quantia superior a € 35 000,00 (€ 17 500,00, para cada um).

Ainda que a nossa sociedade esteja cada vez mais virada para o consumo e para o avanço tecnológico e seja um espaço em que a Família vai cada vez mais perdendo a importância que tinha no passado, entendemos que, em termos de comportamento padrão, a regra é existir sempre uma relação afetiva entre pais e filhos que não pode ser banalizada.

A morte de um filho representa sempre uma enorme perda.

No caso em apreço, os demandantes, ao longo de quase sete anos, manifestaram o desejo de ter um filho, o que, após muito esforço, se materializou em 2013, com a gravidez de E... .

Ora, os factos descritos nos autos, segundo as regras normais da convivência social e do bom senso, tiveram e têm grande impacto na sua vida.

Como se refere no acórdão do STJ de 23-04-2008, processo n.º 303/08 - 3.ª, “Certo é que a indemnização por danos não patrimoniais deverá constituir uma efetiva e adequada compensação, tendo em vista o quantum doloris causado, oferecendo ao lesado uma justa contrapartida que contrabalance o mal sofrido, pelo que não pode assumir feição meramente simbólica” – cfr., entre outros, os acórdãos de 28-06-2007, 25-10-2007, 18-12-2007, 17-01-2008 e 29-01-2008, proferidos nos processos n.ºs 1543/07 - 2.ª, 3026/07 - 2.ª, 3715/07 - 7.ª, 4538/07 - 2.ª, 4492/07 - 1.ª; e de 21-05-2008, processo n.º 1616/08 - 3.ª; de 25-09-2008, processo n.º 2860/08-3ª; de 22-10-2008, processo n.º 3265/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 3373/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 3380/08-5ª “o juiz deve procurar um justo grau de compensação, sendo fundamental, pois, a determinação do mal efetivamente sofrido por cada lesado, as suas dores e o seu sofrimento psicológico”; de 25-02-2009, processo n.º 3459/08-3ª.

Não vemos razões para considerar, no caso concreto, excessivas as indemnizações arbitradas a cada um dos demandantes, face ao circunstancialismo específico da vida do casal que tanto fez para ter um filho.

Concordamos com as razões expressas na sentença para a obtenção daqueles montantes, nomeadamente, quando aí se refere o grau de sofrimento de E... e marido.

 Deste modo, o montante encontrado em 1ª instância é de manter.

****

2) Indemnização (a liquidar em execução de sentença) referente à destruição do veículo:

A recorrente defende que não é devida no âmbito do processo penal.

Para tanto, expõe o seguinte:

Como se acabou de dizer, não constituindo a conduta crime, não é admissível, em processo penal, pedir uma indemnização causada pela mesma. Isto para dizer que, como já se disse na impugnação da matéria de facto, o n.º 30 dos factos provados deve ser considerado não provado.

Decorre daqui que o demandante F... carece de legitimidade para fazer o respetivo pedido de indemnização civil.

Acresce que também não pode ser reconhecida a indemnização a quem se mostrar com direito a ela (a quem se vier a provar que é o proprietário do veículo), pois não existindo, atualmente, o crime de dano involuntário (os danos causados no veículo foram involuntários), não podia o direito a nenhuma indemnização ser reconhecido a terceiros, se a tivessem vindo pedir alegando ser proprietários, precisamente por não ter havido nenhum crime que sirva de fundamento à indemnização.

                                                           ****

No artigo 71.º, do CPP, está consagrado o princípio da adesão obrigatória da ação civil ao processo penal, segundo o qual o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com a prática do ilícito criminal, deve ser exercido no processo penal respetivo.

No caso concreto, os factos que geram a responsabilidade civil do arguido, transferida para a seguradora nos termos legais, em toda a sua extensão, foram por aquele produzidos ao volante do seu veículo.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente, quando este afirma que não existe crime que sirva de fundamento à indemnização.

Com efeito, os danos invocados (patrimoniais e não patrimoniais) resultam da condução negligente de veículo por parte do arguido que deu origem a um crime de ofensas corporais por negligência.

A responsabilidade do acidente cabe, por inteiro, ao arguido

Logo, à seguradora demandada cabe ressarcir os danos causados a terceiros, tendo em conta a existência do respetivo contrato de seguro de responsabilidade civil, sendo inócuo não haver o crime de dano involuntário.

A seguradora demandada é responsável pelo pagamento dos danos casados ao dono do veículo automóvel de matrícula (...) OG, cuja propriedade está dada por assente, a fixar nos termos do artigo 82.º, n.º 1, do CPP.

Não merece assim a decisão a censura que lhe faz a recorrente.

****

3) Indemnização atribuída A E... , no montante de € 22 500,00 (€ 7 500,00, pelas cicatrizes, e € 15 000,00, por mais “dores físicas e morais”):

A recorrente entende que a indemnização “é um exagero fora do vulgar, ou seja, inqualificável.

E acrescenta:

Na verdade, não se estão aqui a considerar quaisquer danos não patrimoniais decorrentes da perda do feto.

Aliás, a Meritíssima Juiz a quo distingue que € 7 500,00 são para o prejuízo estético resultante das cicatrizes e € 15 000,00 são para as ditas «dores morais e físicas» (excluído tudo o que tenha a ver com a perda do feto).

A demandante não requereu a realização de nenhuma perícia médico-legal que lhe quantificasse, como é usual, o «quantum doloris», por um lado, ou o dano estético, por outro. A demandante não ficou com nenhuma incapacidade permanente ou défice ou afetação permanente na sua integridade física e psíquica.

Assim, afigura-se à recorrente que o montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais referidos (repete-se que, além desta, há outra parcela no montante de € 40 000,00, para danos não patrimoniais da mesma demandante civil, E... ) é exageradíssimo, devendo ser computados em importância não superior a € 5 000,00.

                                                           ****

Face às considerações de ordem genérica que atrás foram mencionadas, não descortinamos qualquer motivo para reduzir os valores em causa.

Por um lado, se é certo que não há uma quantificação decorrente de uma perícia médico-legal, não é menos verdade que os respetivos danos estéticos existem e estão descritos na matéria de facto dada como assente.

Tal quantificação seria sempre uma mera indicação de referência, a apreciar em termos de equidade, pelo que a sua falta não impede que o julgador arbitre um valor indemnizatório.

A aparência física está relacionada com a expressão individual dos sujeitos, a sua relação consigo mesmo e com o ambiente social, o que contende com sentimentos de autoestima, em tempos em que é socialmente exigida boa aparência.

Ora, segundo as regras da normalidade, ninguém lida bem com cicatrizes no corpo e tal não deve ser desvalorizado no momento de fixar uma indemnização.

Por outro lado, quando estão em causa “dores físicas e morais”, o montante fixado na sentença recorrida, face ao que conta dos factos provados n.ºs 11 e 34, revela-se adequado, já que não afronta manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida.

****

4) Indemnização de € 5 000,00 arbitrada à menor D... :

A recorrente considera que a ofendida, para lá dos traumas provocados pelo terror de perder a irmã e pela circunstância de a ver sofrer, teve apenas um mero traumatismo do pulso, sem sequelas, motivo pelo qual os seus danos não patrimoniais não devem ser quantificados em valor superior a € 2 500,00.

Como todos sabemos, o dano não patrimonial consiste num prejuízo que atinge bens imateriais, insuscetível de avaliação pecuniária, é irreparável mas suscetível de ser compensado por um equivalente monetário, residindo a dificuldade em encontrá-lo, por apelo, sempre imperfeito, ao que o dinheiro pode propiciar e que constitua um lenitivo no sentido de encontrar um equilíbrio entre a dor psicológica e física e o que o dinheiro em substituição pode propiciar.

No encontro desse ponto de equilíbrio reside o exercício da equidade, critério para o qual lei aponta.

Ora, não deve ser esquecido que D... , para além de ter andado com o braço direito engessado durante cerca de um mês, sofreu e sofre de acordo com aquilo que consta dos factos provados n.ºs 52 a 57, o que não é de somenos.

Logo, o montante de € 5 000,00 também não afronta manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida.

****

5) Momento a partir do qual devem ser contados os juros:

Ainda em sede de valores a atribuir em sede de indemnização pelos danos não patrimoniais, a recorrente suscita uma última questão.

Para a recorrente, os juros, ao contrário do que foi decidido na sentença recorrida, não devem computar-se a partir da “citação” (no nosso caso, notificação), mas da decisão proferida em primeira instância.

                                                           ****

Será que a sentença recorrida, ao decidir que todas as verbas indemnizatórias vencem juros moratórios, à taxa legal, desde a citação, viola a doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) nº4/2002, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 9/5/2002, publicado no DR I-A Série, nº146, de 27/6/2002?:

Nele pode ser lido o seguinte:

«Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do nº2 do artigo 566º do Cód. Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805, nº3 (interpretado restritivamente) e 806º, nº1, também do Cód. Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação.».

Salvo o devido respeito por entendimento contrário, entendemos que não.

 “Só se a sentença ou decisão que fixe a indemnização atualizar o respetivo valor a momento posterior à data da citação, nomeadamente à data da prolação dessa decisão (ao abrigo do disposto no nº 2 do art.º 566.º do Código Civil) é que, de acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ no acórdão de 09.5.2002, publicado no D.R., I-A, de 27.6.2002, os juros de mora devidos se vencerão a partir da decisão atualizadora e não a partir da citação. Sendo certo que não existe fundamento legal para se presumir que os tribunais proferem sentenças atualizadas face aos pedidos formulados (neste sentido, v.g., STJ, acórdão de 04.12.2007, processo 07A3836).” – ver Acórdão do TRL, de 21/3/2012, Processo n.º 4129/06.3TBSXL.L2-2.

Podemos ler no Acórdão do STJ, de 13/1/2005, Processo 04B3378, in www.dgsi.pt:

Na interpretação deste acórdão uniformizador tem vindo a ser entendido no Supremo que:

--embora não seja exigível, para se concluir ter havido a atualização em causa, que se faça menção expressa nesse sentido, é, no entanto, necessário que transpareça do teor da decisão que a indemnização foi atualizada, designadamente e, por exemplo, com a alusão aos fenómenos da taxa da inflação ou da desvalorização ou correção monetárias, ou ao tempo transcorrido desde a propositura da ação;

--se a atualização não transparecer do teor da decisão, os juros moratórios deverão ser contabilizados desde a citação, sem que se distinga, para tal efeito, entre danos não patrimoniais e as demais diversas categorias de danos indemnizáveis em dinheiro e suscetíveis, portanto, de cálculo atualizado constante do n.º 2, do artigo 566.º, do Código Civil. - (cfr. sumários dos acórdãos de 31/3/2004 e de 6/5/2004 proferidos, respetivamente, nas revistas nºs 683/04 e 1217/04, da 2ª secção e publicados nos Sumários de Acórdãos deste Tribunal, nºs79, página 59 e 81, página 14, também respetivamente).

Na mesma esteira, entendemos, ainda, por bem citar o Acórdão deste TRC, de 5/5/2009, Processo 2945/06.5TBVIS.C1, in www.dgsi.pt:

“(…)

Como é sabido, o acórdão do STJ nº 4/2002 (de 9/5/2002, publicado no DR Iª S-A, de 27/6/2002) que veio uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado nos termos do nº 2 do artº 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3 (interpretado restritivamente), e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação”.

Acórdão esse que colocou, assim, e desde logo, termo a uma longa polémica sobre o saber como interpretar e conjugar a 2ª parte do nº 3 do artº 805 do Código Civil (após a redação que lhe foi introduzida pelo DL nº 262/83 de 16/6) com o artº 566, nº 2, desse mesmo diploma, e nomeadamente sobre o saber se, num caso de responsabilidade por factos ilícitos ou por risco, o juiz podia arbitrar uma indemnização em dinheiro, atualizada nos termos do prescrito naquele último normativo, e ao mesmo tempo condenar ainda, em regime de cumulação, o responsável pelos juros de mora a serem contabilizados desde a data da sua citação para a ação.

A partir de então ficou claro, com tal doutrina, que a regra, contida na 2ª parte do citado nº 3 do artº 805, de que os juros de mora são devidos desde a data da citação do responsável, deixa de funcionar se o montante indemnizatório atribuído for entretanto objeto de uma atualização, ou seja, de um cálculo atualizado, pois, nesse caso, os juros moratórios só passarão a vencer-se, isto é, a ser devidos e a poder ser contabilizados, a partir da data da prolação da decisão atualizadora de tal montante indemnizatório.

Portanto, a regra é de que, no caso de responsabilidade por factos ilícitos ou por risco, os juros moratórios se vencem desde a data da citação do responsável, e a exceção é de que assim não será quando a indemnização atribuída tiver sido entretanto objeto de cálculo atualizado (à luz do nº 2 do citado artº 566), porque nessa altura tais juros só passarão a vencer-se e a poder ser contabilizados a partir da data em que foi proferida a decisão atualizadora.

E como assim é, e dado que estamos no domínio de matéria de exceção, torna-se necessário (para que tal exceção funcione) que do texto da decisão resulte clara e expressamente que tal atualização da indemnização tenha sido feita (ex professo), sendo de pôr de lado o recurso a quaisquer critérios de supostas atualizações implícitas ou presumidas, tal como dominantemente vem também entendendo o nosso mais alto tribunal.

Mas aquele acórdão uniformizador de jurisprudência abriu também caminho para pôr termo a mais uma vexata quaestio, quando, no ponto 4.7 da sua fundamentação, afirmou que “nesta problemática, não há que distinguir entre danos não patrimoniais e danos patrimoniais....., uma vez que todos são indemnizáveis em dinheiro e suscetíveis, portanto, do cálculo, atualizado constante do nº 2 do artº 566º”. (sublinhado nosso).

Entendimento esse que depois se refletiu a final na elaboração da sobredita norma ou jurisprudência interpretativa já que se limitou a falar de “indemnização pecuniária”, sem qualquer cuidado de distinguir o tipo ou natureza de danos de que a mesma emerge.”

Ora, ao lermos a decisão ora em crise, resulta, de modo expresso, que o Tribunal a quo não procedeu a qualquer cálculo de atualização relativamente aos valores indicados pelos demandantes.

Sendo assim, os juros de mora, no caso concreto, deverão ser contabilizados -- sobre todas as parcelas indemnizatórias, sem distinção entre as relativas aos danos não patrimoniais e as relativas às demais espécies de danos - desde a notificação da demandada para os contestar.

Não merece, pois, reparo o decidido.

****

B) Recurso do Ministério Público:

- Da condenação em pena acessória de proibição de conduzir veículo com motor, p. p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, ou na sanção acessória p. p. pelo artigo 147.º, do Código da Estrada:

Relembre-se que ao arguido foi imputada a prática, em autoria material, na forma consumada, de:

            - dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º/1 do Código Penal, e com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. p. pelo artigo 69.º/1, al. a) do Código Penal;

            - um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º/1 do Código Penal, e com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. p. pelo artigo 69.º/1, al. a) do Código Penal;

- de uma contra-ordenação grave por velocidade excessiva nos casos em que a velocidade deva ser especialmente moderada, p. p. pelos artigos 24.º/1 e 3 e 25.º/ 1, alíneas h) e n.º 2, conjugados com o artigo 145.º/1, al. e) do Código da Estrada;

- de uma contra-ordenação muito grave por transposição de linha longitudinal contínua delimitadora de sentidos de trânsito p. p. pelo artigo 146.º, al. o) do Código da Estrada.

O recorrente defende que deveria ter sido aplicada ao arguido a pena acessória prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, de acordo com a acusação que consta dos autos e não a sanção acessória cominada no Código da Estrada, como o Tribunal a quo entendeu por bem aplicar

A lei admite a aplicação de penas acessórias – artigos 65.º e seguintes do Código Penal.

Neste âmbito e na parte que aqui interessa, o artigo 69.º, na redação atual, no seu n.º 1, alínea a), decorrente da entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, e vigente à data dos factos a que se reportam os presentes autos (ocorridos em 30 de dezembro de 2013), estabelece que é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º.

Como bem refere o Ministério Público no seu recurso, “na versão anterior à supra mencionada Lei n.º 19/2013, o Código Penal não previa a aplicação da pena acessória nos casos de homicídio negligente ou ofensas a integridade física negligentes cometidos no exercício da condução de veículo motorizado, atenta a modificação restritiva do artigo 69.º/1, al. a), do Código Penal, efetuada pela Lei n.º 77/2001, de 13/07, ao invés do que acontecia em face da redação anterior do preceito.

Tal pena acessória não se confunde com a sanção acessória que visa sancionar, acessoriamente, a prática de contraordenações graves e muito graves, nos termos enunciados no Código da Estrada.

Não está em discussão que o comportamento do arguido configura a prática das contraordenações descritas nos autos (velocidade excessiva nos casos em que a velocidade deva ser especialmente moderada e transposição de linha longitudinal contínua delimitadora de sentidos de trânsito).

Tal prática é sancionada com coima e com sanção acessória, nos termos previstos no Código da Estrada, sendo certo que este, no seu artigo 134.º, n.º 1, sob a epígrafe “concurso de infrações”, estabelece que, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação.

Todavia, a disposição do n.º 1 do artigo 134.º do Código da Estrada não pode interpretar-se no sentido de permitir uma dupla sanção.

Na verdade, há situações, como a que está agora em causa, em que o mesmo facto constitui simultaneamente crime e contraordenação, por violação de regras de condução e normas que definem o respetivo quadro legal.

Ora, perante um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo de qualquer um dos crimes antes referidos, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artigo 69.º do Código Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da(s) sanção(ões) acessória(s) de inibição de conduzir prevista(s) no Código da Estrada se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta.

Logo, deve o arguido ser condenado na respetiva pena acessória em vez de sofrer a mencionada sanção acessória.

Aqui chegados, importa reter que a proibição de conduzir veículos motorizados, enquanto pena acessória, deve ser determinada de acordo com o critério enunciado no artigo 71.º do Código Penal, ou seja, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo por base “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.

Há que dar relevo à prevenção especial, de forma a consciencializar para o futuro o arguido.

Convém frisar que a aplicação da pena acessória não tem de ser proporcional à pena principal, uma vez que os objetivos de política criminal são, também eles, distintos.

O fim da pena acessória dirige-se especificamente à recuperação do comportamento estradal do condutor transviado, pelo que não tem de existir uma correspondência matemática e proporcional entre as penas, consideradas as respetivas molduras abstratas (vide Ac Relação do Porto de 20.05.1995, CJ, T4, pág. 229).

Assim sendo, face a tudo o que consta da sentença recorrida, nomeadamente a inserção social do arguido e o tempo já decorrido sobre a prática dos factos, entendemos como adequada a pena acessória de quatro meses de proibição de conduzir.

****

IV. Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

1) Em negar provimento ao recurso interposto pela demandada civil, indo esta condenada nas custas.

2) Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se, em consequência,a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido na sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor, p. e p. nos termos do artigo 147.º, do Código da estrada, da qual vai absolvido, indo A... condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. e p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, pelo período de quatro meses

Sem custas.

                                                                       ****
(Texto processado e integralmente revisto pelo signatário – artigo 94.º,n.º 2, do CPP)

****

Coimbra, 8 de Março de 2017

(José Eduardo Martins – relator)

(Maria José Nogueira – adjunta)