Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5705/14.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO COMPLEXO
CONTRATO DE ABERTURA DE CONTA
EXTRATO DE CONTA CORRENTE
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Data do Acordão: 11/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 10, 703 CPC, LEI Nº 41/2013 DE 26/6
Sumário: 1. O título executivo complexo formado por um contrato de abertura de conta de depósito à ordem e um extrato do qual resulta a existência de um saldo devedor, só se mostrará formado ou devidamente constituído com a emissão deste extrato.

2. Se o extrato demostrativo do saldo devedor for emitido em data posterior a 1 de setembro de 2013, encontrar-se-á sujeito ao regime previsto no 703º do Novo CPC, sem que se suscite a questão da aplicação de tal norma a títulos executivos constituídos em data anterior à sua entrada em vigor.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Instaurada pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…), CRL, a presente execução com processo ordinário contra J (…) e A (…),

apresentando como título executivo um contrato de abertura de conta de depósito à ordem, acompanhado do extrato da conta em questão, com a alegação de que o artigo 703º, do CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho, deve ser afastado, por violador dos subprincípios constitucionais de seguração e de proteção da confiança, consagrados no artigo 2º da CRP,

pelo juiz a quo foi proferido despacho a indeferir liminarmente a execução por falta de título, com fundamento em que, com a entrada em vigor do NCPC os documentos particulares perdem a sua exequibilidade, pelo que, não cabendo o título apresentado em qualquer uma das categorias previstas nas alíneas b) e d) previstas no artigo 703º do CPC, o mesmo não pode valer como título executivo.

Inconformada com tal decisão, a exequente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1. O recorrente circunscreve o presente recurso ao despacho que indeferiu liminarmente o requerimento executivo, mais concretamente à apreciação da inconstitucionalidade material das normas dos artigos 703º do Código de Processo Civil e 6º, nº 3 da Lei nº 41/2013 de 26-06, na interpretação de que aquele artigo 703º do CPC se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, c) do CPC de 1961;

2. A alteração legislativa em questão tem como consequência que um credor munido de documento particular, legalmente dotado de exequibilidade no momento da sua constituição, veja subsequentemente eliminada a natureza de título executivo do referido documento, frustrando o seu direito (anteriormente reconhecido) de, com base nesse título, poder aceder, imediatamente, em caso de incumprimento por parte do devedor, à ação executiva.

3. O parâmetro constitucional em causa é o já invocado no próprio requerimento executivo pela Exequente, ora Recorrente, ou seja, o princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP;

4. Nesse sentido, foi proferido, no dia 03 de Dezembro de 2014, o Acórdão 847/2014 do Tribunal Constitucional, no âmbito do Processo n.º 537/14, o qual julgou inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de julho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961;

5. Conclui-se no supra referido Acórdão “que a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de julho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem uma disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição.”;

6. "A abertura de crédito visa a disponibilidade do dinheiro, sendo um contrato que fica perfeito com o acordo das partes, sem necessidade de qualquer entrega monetária. O contrato de abertura de crédito titulado por documento particular, assinado pelo devedor, sendo as obrigações pecuniárias determináveis nos termos da liquidação do exequente, através da junção do extrato de conta corrente, constitui título executivo”, à semelhança do decidido no Ac. STJ de 15.05.2001 (proc. 01A1113, dgsi.pt);

7. Devendo, assim, o contrato de abertura de conta de depósito à ordem, acompanhado do extrato da conta em questão ser admitido como título executivo bastante, afastando a aplicação do artigo 703.º do NCPC, aprovado pela Lei 41/2013 e 26 de Junho, na parte em que elimina os documentos particulares constitutivos de obrigações do elenco de títulos executivos, dado que o mesmo é violador dos sub-princípios constitucionais de segurança e proteção da confiança, consagrados no artigo 2.º da CRP.

Conclui pela revogação do despacho recorrido e pelo prosseguimento da ação executiva.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se o documento particular em questão pode, ou não, ser reconhecido como título executivo numa ação executiva instaurada ao abrigo do Novo CPC.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A presente execução deu entrada em tribunal em data posterior à entrada em vigor do Novo CPC (1 de setembro de 2013), aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, tendo por base um contrato de abertura de conta de depósito à ordem datado de 03.01.2006 e o respetivo extrato de conta corrente, datado de 12 de Setembro de 2014.

Com a Reforma de 2013, o legislador deixou de reconhecer força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor e que importem a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação, eliminando-os do elenco dos títulos executivos enumerados taxativamente no artigo 703º do Novo CPC[1].

Quanto à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra é a da aplicação imediata da nova lei. De modo a evitar a retroatividade da lei, o legislador consagrou uma norma transitória – nº3 do artigo 6º, da Lei nº 41/2013 –, ressalvando da regra da sua aplicação imediata às execuções pendentes, entre outras, as alterações introduzidas relativamente aos títulos executivos, determinando a sua aplicabilidade unicamente às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, ou seja, 1 de Setembro de 2013.

Quanto às execuções instauradas a partir de 1 de Setembro de 2013, só poderão ter por base os documentos referidos nas diversas alíneas do artigo 703º do Novo CPC.

Com a aplicação da lei nova, os documentos particulares constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor anteriormente a 1 de Setembro de 2013 – que até essa data e pela lei vigente à data da sua constituição gozavam de força executiva –, perderiam a sua exequibilidade, o que deu azo a acesa discussão acerca da constitucionalidade de tal solução.

Proferido que foi o Acórdão do Tribunal Constitucional nº408/2015, de 12 de maio de 2015, publicado no DR, 1ª Série de 23 de setembro de 2015 (embora com dois votos de vencidos, que “declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição)», tal questão ficou resolvida de modo vinculativo.

Contudo, em nosso entender, a doutrina exarada no referido Acórdão não será aplicável à situação em apreço.

Com efeito, tal acórdão e toda a discussão à volta da constitucionalidade da aplicabilidade do artigo 703º a documentos particulares emitidos em data anterior à encontrada em vigor do NCPC, só faz sentido se nos encontramos perante um título executivo exarado em data anterior à entrada em vigor do NCPC.

No caso em apreço, encontramo-nos perante um título complexo, necessariamente formado:

a) pelo contrato de abertura de conta de depósito à ordem datado de 03.01.2006, em conjugação

b) com o extrato de conta corrente, datado de 12 de Setembro de 2014, do qual resulta que, em tal data, a referida conta apresentava um saldo devedor no montante de 1. 087,64 €.

Toda a execução tem por base um título, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objetivos e subjetivos (artigo 10º, nº 5 do NovoCPC).

O contrato de depósito bancário (ou contrato de depósito bancário de disponibilidades monetárias[2]), é um contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária ao banco, o qual dela poderá livremente dispor, obrigando-se a restituí-la, mediante solicitação e de acordo com as condições estabelecidas[3].

É assim considerado como um contrato unilateral, uma vez que dele só resultam obrigações para o banco, consistentes na restituição da quantia depositada e, às vezes, no pagamento de juros, à qual não se opõe qualquer obrigação do depositante[4].

Contudo, a par desta configuração básica, podem surgir igualmente obrigações para o depositante em virtude de obrigações acessórias resultantes da prestação de um conjunto de serviços, e não em virtude do contrato de depósito propriamente dito[5].

Tal contrato pressupõe a abertura de uma “conta” bancária, através da qual se realiza a demonstração de movimentos de valores que emergem das relações de um cliente – o respetivo titular – com o seu banco.

O contrato bancário inclui sempre uma cláusula, expressa ou implícita, por força dos usos, segundo a qual uma das partes (o banco) se obriga a inscrever em conta corrente os créditos e os débitos provenientes dos futuros negócios que venha a realizar com o seu cliente, de tal modo que só o saldo é exigível (artigo 346º, nº 4 do Código Comercial).

Isto para dizer que um contrato de abertura de conta de depósito não constituirá nunca, só por si, título executivo contra o depositante. A obrigação deste só surgirá, mais tarde, e na eventualidade de o depositante vir a fazer algum levantamento ou a movimentar determinada quantia para além do saldo existente, o banco venha a autorizar o pagamento a “descoberto”[6]; só, então, e nesse caso, ocorrerá um adiantamento de quantias por parte do banco e a constituição de uma dívida por parte do titular da conta.

Assim, a aceitar-se a exequibilidade de um título formado por um contrato de abertura de conta e de um extrato da conta que apresente um saldo devedor[7], encontrar-nos-emos necessariamente perante um título executivo complexo – quando a obrigação exequenda exija vários documentos para a sua verificação/demonstração, documentos esses que, podendo ser de natureza diversa, se complementam entre si e nos seus conteúdos e levam à demonstração do crédito/obrigação exequendo.

No caso em apreço, e citando o acórdão do STJ de 05.05.2011[8], a complementaridade entre os documentos é tão flagrante quanto se percebe que cada um deles só por si não tem força executiva e a sua ausência faz indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos aparentam assegurar eficácia a todo complexo documental como título executivo.

Assim sendo, antes da emissão do segundo documento não podemos falar na existência de título executivo, sendo que do contrato de abertura de conta não resulta por si só a constituição de qualquer obrigação para o depositante – a obrigação exequenda só se constituiu com as sucessivas autorizações de pagamento a descoberto efetuadas pelo banco e que vieram a dar origem ao saldo devedor existente à data de 12 de setembro de 2014, que aqui se pretende executar.

Como tal, tendo em conta a data em que o título se completou e formou – o extrato de conta encontra-se datado de 12 de setembro de 2014, reportando os movimentos da conta entre 01 de janeiro e 12 de setembro de 2014 –, considera-se que o mesmo é de constituição posterior à entrada em vigor do NCPC, encontrando-se prejudicada a questão da inconstitucionalidade derivada da eliminação de exequibilidade de um documento que tivesse sido dotado de força executiva e que a tivesse perdido por força da entrada em vigor da nova lei.

A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, e, embora por razões não inteiramente coincidentes, confirma-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo apelante/exequente.                          

                                                                            Coimbra, 13 de novembro de 2015

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. O título executivo complexo formado por um contrato de abertura de conta de depósito à ordem e um extrato do qual resulta a existência de um saldo devedor, só se mostrará formado ou devidamente constituído com a emissão deste extrato.
2. Se o extrato demostrativo do saldo devedor for emitido em data posterior a 1 de setembro de 2013, encontrar-se-á sujeito ao regime previsto no 703º do Novo CPC, sem que se suscite a questão da aplicação de tal norma a títulos executivos constituídos em data anterior à sua entrada em vigor.


[1] De entre os documentos particulares assinados pelo devedor, apenas os títulos de crédito constituem atualmente títulos executivos, ainda que meros quirógrafos da obrigação.
[2] O contrato de depósito de disponibilidades monetárias é o contrato pelo qual se produz a transferência de propriedade de dinheiro para o banco com a possibilidade dele dispor para as suas operações de crédito de acordo com os limites estabelecidos pelas regras de liquidez e solvabilidade.
[3] Paula Ponces Camanho, “Do Contrato de Depósito Bancário”, Almedina, 1998, pág. 93.
[4] Paula Ponces Camanho, obra citada, pág. 117.
[5] Segundo Paula Ponces Camanho, a considerar-se tal contrato como bilateral, tratar-se-ia não de um contrato bilateral por natureza ou sinalagmático, mas de um contrato bilateral imperfeito, pois inicialmente só há obrigações para uma das partes (banco), podendo vir a nascer obrigações para o outro contraente (depositante) - obra citada, págs. 119 e 120.
[6] Ao abrigo da cláusula nº6 das Condições Gerais do Contrato de Depósito”, segundo a qual “Se uma conta não se encontrar aprovisionada com saldo suficiente para que nela seja lançado a débito qualquer transação, a Caixa fica autorizada a debitar o montante em causa, acrescido dos respetivos juros e impostos, em qualquer outra conta de depósito existente na Caixa com titularidade idêntica.
Caso não haja provisão suficiente em nenhuma outra conta de depósito do cliente, e se a Caixa decidir autorizar o pagamento, o descoberto vence juros à taxa mais alta praticada pela Caixa em operações de crédito ativas, acrescida da sobretaxa (…), respondendo os titulares da conta, solidariamente, pelo seu pagamento.
[7] Cfr., Se entendermos que as razões para o seu reconhecimento são semelhantes às que presidem ao reconhecimento do contrato de abertura de crédito bancário e do extrato de conta como título executivo. Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. TRC de 10.12.2012, relatado por “O instrumento particular constitutivo de um contrato de abertura de crédito bancário, desde que contenha as assinaturas dos devedores e seja apoiado por prova complementar, emitida em conformidade com as cláusulas nele firmadas e ateste as quantias efetivamente disponibilizadas, constitui título executivo de natureza compósita ou complexa; e viabiliza ao creditante, no caso do seu incumprimento, a instauração imediata da ação executiva (artigo 46º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil)”,
[8] Acórdão relatado por Gregório Silva Jesus, disponível in www.dgsi.pt.