Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
279/07.7TBCLB-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ALIMENTOS
FILIAÇÃO
MAIORIDADE
CESSAÇÃO DOS ALIMENTOS
IRRAZOABILIDADE
Data do Acordão: 05/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - C.BEIRA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1880, 1905, 2013 CC
Sumário: I – Cabe ao progenitor vinculado à prestação alimentícia fixada no âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais durante a menoridade requerer a sua cessação, tendo o ónus de alegar e provar que o processo de educação ou formação profissional do filho foi concluído antes de este perfazer os 25 anos ou foi voluntariamente interrompido por este ou, ainda, a irrazoabilidade da exigência da prestação alimentícia.

II – Isto porque o art. 1880º do C.Civil mantém a obrigação dos progenitores assegurarem as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação do seu filho maior pelo período necessário a que o mesmo complete a sua formação profissional, na medida em que tal se revele razoável.

III – O art. 2013º, nº 1, al. c) do mesmo C.Civil que prevê, hoje, como causa de cessação da obrigação alimentar a violação grave dos deveres do alimentando para com o obrigado não é aplicável, automaticamente, a estes casos.

IV – As regras gerais dos contratos sinalagmáticos não são aplicáveis às relações familiares em causa, não sendo legítimo que qualquer um deles alegue uma conduta do outro para se desonerar do cumprimento das obrigações a que se encontra adstrito, pela chamada “compensação de culpas”.

V – Não é qualquer situação de menosprezo [pelo credor de alimentos relativamente ao obrigado a alimentos] de valores como o do respeito, a estima, a consideração e a solidariedade familiar, justificam ou autorizam que se declare/conclua pela desobrigação de prestação de alimentos.

VI – Sempre sempre seria necessária a verificação de uma situação de desrespeito grave dos ditos valores, fruto de uma vontade intencional, como, vg., uma ofensa gratuita do dever de respeito, uma falta clamorosa do dever de assistência na doença, uma ausência ou desinteresse ostensivos numa situação de infortúnio.

VII – Assim, o facto da filha e progenitor não se relacionaram, sem que esteja sequer determinado que tal situação é exclusivamente imputável à filha, não permite concluir que há uma falta de respeito da parte desta para com o seu progenitor e não torna, só por si, desrazoável a manutenção de tal obrigação por parte deste último.

Decisão Texto Integral:   







          Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                                          *

1 – RELATÓRIO

Por apenso aos autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais com o n.º 279/07.7TBCLB, ao abrigo do disposto no art. 989.º, n.º 2 do n.C.P.Civil, intentou A (…), a presente ação de cessação da prestação de alimentos devida à filha, contra  (…), sua ex-mulher e progenitora da sua filha e A (…) , sua filha maior de idade, peticionando a cessação da mencionada prestação em benefício desta sua filha, devendo os respetivos efeitos retroagir à data da maioridade desta, ou seja, a 29.04.2018.

Alega, para tanto, que, em 22.07.2008, foi regulado, por acordo, o exercício das responsabilidades parentais em relação à sua filha A (…) acordo esse sujeito a diversas alterações (cfr. apensos A, D e E), sendo que o valor da prestação de alimentos que se encontra obrigado a pagar, em benefício da sua filha, se cifra em 102,00€ (cento e dois euros), sem prejuízo do recurso apresentado pelo requerente, no qual pugnou pela respectiva redução (cfr. apensos E e F), sendo que, no dia 29.04.2018, a sua filha atingiu a maioridade.

Mais alega que se encontram preenchidos os requisitos para a cessação da prestação de alimentos que se encontra obrigado a pagar, porquanto a irrazoabilidade da exigência do cumprimento dessa prestação emerge do plano das relações pessoais entre ele (Autor) e a sua filha, do aproveitamento escolar da mesma e das suas (do Autor) condições socio-económicas.

Com efeito, em síntese, alega o Autor que, não obstante as insistências, a filha nunca se dignou atender ou, sequer, retribuir os telefonemas que lhe dirigiu, que a relação entre ambos foi-se deteriorando paulatinamente, motivado, exclusivamente, pelo afastamento incompreensível da filha, que inexiste qualquer convívio salutar entre ambos desde o mês de Junho de 2016, por vontade unilateral da filha, que, quando se cruzam, casualmente, na rua, a filha ignora-o, não o cumprimenta ou, sequer, lhe dirige a palavra, que inexistiu qualquer acontecimento grave que possa ter gerado o distanciamento entre ambos e que existe uma violação grave do dever de respeito por parte da sua filha para com ele (Autor) que integra causa de cessação da obrigação de prestar alimentos por manifesta indignidade.

Mais refere o Autor que, caso a filha tivesse efectuado um percurso escolar imaculado, ou seja, sem reprovações, estaria a concluir o 12.º ano, sendo que a mesma já reprovou por duas vezes e que, se não tiver aproveitamento escolar este ano, isso sempre constituirá fundamento de cessação da prestação de alimentos em apreço.

Por fim, alega o Autor que, não obstante o acordo firmado no âmbito do apenso A, em 04.05.2015, a sua situação socioeconómica se alterou substancialmente desde então, que, à época da materialização do acordo em apreço, o Autor anuiu que o valor da prestação de alimentos se fixasse em 100,00€ (cem euros), na medida em que o seu agregado familiar era apenas constituído por si, pela sua companheira e por um filho desta, encontrando-se aqueles dois primeiros a trabalhar, sendo que, hodiernamente, o seu agregado familiar é composto por mais um elemento, atento o nascimento do filho comum do casal, de nome M (…), em 02.02.2016, que, desde Abril de 2016, tem apresentado (o Autor) atestados médicos, perante a sua entidade patronal, dado o seu défice de estado de saúde que o impossibilita de trabalhar, bem como de prestar horas extras após o horário laboral, o que se reflecte na economia mensal do seu agregado familiar, que, desde Março de 2018, aufere 225,03€ de vencimento mensal, atentos os descontos e penhoras incidentes sobre o mesmo, que é com o rendimento mensal auferido pelo seu agregado familiar no valor total de 705,03€ que fazem face ao pagamento mensal das despesas com a renda da habitação (120,00€), consumos de água, gás e electricidade (70,00€), aquisição de fraldas, papas e creche do menor M (...) (120,00€), alimentação do seu agregado familiar (150,00€), aquisição de vestuário, calçado e produtos de higiene para os elementos do seu agregado familiar (50,00€), prestação respeitante ao empréstimo efectuado para aquisição do veículo automóvel, imposto de circulação, combustível e seguro (150,00€) e sua medicação (50,00€), que se não fosse o auxílio de amigos e o cultivo de produtos hortícolas, por certo que o seu agregado familiar, se encontraria em sérias dificuldades de subsistência, pelo que a sua situação socioeconómica é, igualmente, reveladora da irrazoabilidade em exigir-lhe o cumprimento de uma prestação de alimentos.

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As Rés contestaram alegando, em suma, que o Autor não tem razão, não podendo, atenta a factualidade invocada, ser declarada a cessação da prestação dos alimentos devidos à Ré filha, porquanto as relações pessoais entre o Autor e a Ré filha não podem ser invocadas para aferir da razoabilidade, ou não, da exigência do cumprimento da obrigação de alimentos, nos termos do disposto nos arts. 1880.º e 1905.º do Código Civil (doravante designado C.Civil), sendo certo que, ao longo do tempo, a relação entre pai e filha tem vindo a deteriorar-se, mas que, ao contrário do que afirma o Autor, tal situação não se deve a uma conduta unilateral da Ré filha, não sendo verdade que inexistiu acontecimento grave que possa ter gerado esse distanciamento, tendo existido vários motivos para isso, nomeadamente, o facto de o Autor ter saído de casa sem dizer nada à Ré filha, de o Autor falar mal da Ré progenitora e de ter refeito a vida com uma companheira com a qual a Ré filha não se sente à vontade e com a qual surgiram vários conflitos, não mais conseguindo, pai e filha, gerir, em conjunto, a relação entre eles, sendo certo que a Ré filha nunca violou o dever de respeito para com o pai, nunca atentando contra a vida do mesmo, nem o maltratando física ou verbalmente, não bastando, para desonerar o progenitor da obrigação de prestar alimentos, o facto de filha e pai não se relacionarem, nem sendo uma violação grave do dever de respeito a filha não falar com o pai.

Referem também as Rés que as duas reprovações da Ré filha ocorreram, a primeira, aquando do divórcio e a segunda, aquando da efectiva separação dos progenitores, demonstrando-se a influência que a separação dos pais teve no (des)equilíbrio emocional e psicológico da Ré filha, mas que, no ano lectivo 2017/2018, a mesma obteve aproveitamento escolar, tendo transitado de ano.

Alegam ainda as Rés, em suma, que a redução do vencimento do Autor advém das penhoras que incidem sobre o mesmo, por reiterado incumprimento do pagamento das suas obrigações, sendo que as mesmas são temporárias, que, considerando o rendimento total do agregado familiar do Autor, não é irrazoável que se exija que este continue a pagar a pensão de alimentos à Ré filha e que, no âmbito dos apensos E e F, o Autor pugnou pela redução da pensão de alimentos, tendo havido decisão no sentido de fixar em 75,00€ o montante devido a este título.

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Realizou-se audiência de discussão e julgamento, observando-se o formalismo legal, como das respectivas atas consta, sendo certo que se tentou, no início da audiência de julgamento, a conciliação/acordo das partes, o que não se logrou.

                                                           *

Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados (e não provados), relativamente aos quais se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que face aos factos apurados importava concluir que não cessava a obrigação, a cargo do Autor, de prestar alimentos à sua filha A (...) , antes era razoável e justo que o Autor continuasse a contribuir para o sustento e formação da dita Ré A (...) , sua filha, termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«VI – DECISÃO:

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, decido:

- Julgar improcedente a presente acção e, em consequência, absolver as Rés C (…) e A (…) do pedido e condenar o Autor A (…) nas custas do processo.

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Registe e notifique.»

                                                           *

É com esta decisão que o Autor não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

(…)

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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído, sendo que nesse mesmo despacho sustentou a não verificação da arguida nulidade da sentença.

                                                           *

Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- nulidade do erro sobre a forma do processo [art. 193º do n.C.P.Civil]?;

- impugnação da matéria de facto [quanto aos pontos de facto “provados” sob “25.”, “26.”, “50.” e “56.” (relativamente aos quais propõe uma redacção diversa), quanto aos pontos de facto dados como “provados” sob “27.” e “28.”, e o “não provado sob “9.” (por não consubstanciarem factos mas, tão só, matéria de índole conclusiva, pelo que sempre deveriam ser expurgados dos respetivos elencos), e quanto aos pontos da facto dados como “não provados” sob  “4.”, “5.”, “6.” e “8.” (relativamente aos quais sustenta que devem ser dados como “provados”, embora com redacção em função do que melhor foi sustentado supra em relação aos correlacionados factos dados por “provados” com proposta de redacção diversa)]?;

- erro de decisão [ao concluir-se pela improcedência da pretensão do Autor, designadamente por não se considerar verificado o requisito da irrazoabilidade da exigência da obrigação da prestação de alimentos (cf. art. 1905º, nº2, do C.Civil)]?

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado como “provado” pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação poderá ter um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.

Tendo presente esta circunstância, foi consignado o seguinte em termos de factos “provados” pelo tribunal a quo:

«Com interesse e relevância para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:

1. No dia 29.04.2018, a Ré A (…) perfez 18 (dezoito) anos de idade.

2. O exercício das responsabilidades parentais, relativamente à então menor de idade A (…), no que concerne ao regime de convívios com o Autor, foi sendo, consecutiva e sucessivamente, restringido.

3. Em 04.05.2015, era permitido ao progenitor passar os fins-de-semana, de 15 em 15 dias, com a Ré A (…), entre as 10h de Sábado e as 19h30 de Domingo.

4. Em 18.11.2015, era permitido ao progenitor passar um Sábado ou Domingo com a Ré A (…), consoante a mesma actuasse ou não com a banda filarmónica, de 15 em 15 dias, entre as 11h e as 16h.

5. Em 23.02.2017, era permitido ao progenitor estar com a Ré A (…) uma vez por mês, num dia e hora a combinar entre ambos.

6. Estas alterações ao regime de convívios foram efectuadas sempre de acordo com a vontade manifestada pela Ré A (…)

7. Na última conferência de pais (realizada em 23.02.2017), a Ré A(…) alertou o pai para o facto de não apreciar que o mesmo a visitasse junto da instituição escolar que frequenta, sendo que o Autor aí se deslocava, com frequência, para ver a sua filha, considerando que era o único meio que tinha para a contactar, até porque a mesma tinha deixado de atender os telefonemas que lhe dirigia.

8. Desde então, o Autor respeitou a vontade daquela, deixando de se deslocar até à mencionada instituição escolar.

9. Imediatamente após a última alteração ao exercício das responsabilidades parentais realizada em 23.02.2017, o Autor contactou, por diversas vezes, a Ré A (…), com vista a procederem ao agendamento de uma “visita”.

10. Não obstante as insistências, a Ré A(…) não atendeu o telefone ao pai, nem retribuiu os telefonemas que lhe foram dirigidos.

11. O Autor enviou à Ré A (…) diversas mensagens via telefone, vulgo “sms” e através do “Messenger”, aplicação informática de mensagens instantâneas, sem nunca ter recebido resposta através do “Messenger”.

12. O Autor ficou a aguardar que a sua filha A (…) o contactasse.

13. O que sucedeu em Dezembro de 2017, quando o Autor se encontrava a trabalhar junto do cemitério de (...) .

14. Em conversa com o progenitor, a Ré A (…) transmitiu-lhe que, em Abril de 2018, faria 18 (dezoito) anos de idade e que já seria livre para o visitar quando quisesse.

15. Ficou combinado entre ambos que o Autor a contactaria, telefonicamente, de modo a conversarem.

16. Em cumprimento com o combinado, o Autor contactou a filha, deparando-se com o telemóvel da mesma desligado.

17. O Autor ainda voltou a contactar a filha através do “Messenger”.

18. A relação entre o Autor e a Ré A (...) foi-se deteriorando paulatinamente.

19. A Ré A (…) nunca contactou telefonicamente o Autor, nem na altura do aniversário do mesmo ou noutras festividades.

20. Caso a Ré A (…) tivesse efectuado um percurso escolar imaculado, ou seja, sem reprovações, estaria, neste momento, a concluir o 12.º ano.

21. A Ré A (…) já reprovou por duas vezes, sendo uma ainda na escola primária e a outra no 8.º ano de escolaridade, com quatro negativas.

22. Em 04.05.2015, o agregado familiar do Autor era constituído por si, pela sua companheira e por um filho desta, encontrando-se aqueles dois primeiros a trabalhar.

23. Hodiernamente, o agregado familiar do Autor é composto por mais um elemento, atento o nascimento do filho comum do casal em 02.02.2016, o M (…)

24. As incapacidades temporárias do Autor de exercer a sua actividade profissional, tanto por motivo de “doença natural”, como por “assistência a familiar”, reflectiram-se na economia mensal do seu agregado familiar.

25. A circunstância da relação entre o Autor e a Ré A (…) se ter vindo a deteriorar paulatinamente não se deve a uma conduta unilateral da última.

26. Existiram vários motivos para que a relação dos dois se tivesse vindo a deteriorar, nomeadamente, o facto de o Autor ter saído de casa sem dizer nada à Ré A (…)  de “falar mal” da Ré progenitora e de, posteriormente, ter refeito a vida com uma companheira com a qual a Ré A (…) não se sente à vontade e com a qual surgiram conflitos.

27. Desde então, não mais conseguiram o Autor e a Ré A(…) gerir, em conjunto, a relação entre eles, de forma a que tais conflitos e mágoas fossem ultrapassados.

28. Tal situação tem-se protelado no tempo, com a anuência das duas partes.

29. O Autor aceitou todas as alterações ao regime de “convívios” mencionadas nos pontos 3 a 5.

30. A Ré A(…) nunca atentou contra a vida do pai, nem maltratou física ou verbalmente o pai.

31. As duas reprovações da Ré A(…) ocorreram, a primeira, aquando do divórcio dos progenitores e a segunda, aquando da efectiva separação destes.

32. A separação dos pais teve influência no (des)equilíbrio emocional e psicológico da Ré A (…)

33. A Ré A (…) no ano lectivo 2017/2018, obteve aproveitamento escolar, tendo transitado de ano.

Resultou ainda provado da prova documental junta:

34. A Ré A (…) nasceu no dia 29 de Abril de 2000.

35. A Ré A (…)  é filha do Autor e da Ré C (…).

36. Por sentença de 22.07.2008, já transitada em julgado, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais, relativamente à então menor de idade A (…), ficando, entre o mais, o Autor obrigado a pagar a quantia de 100,00€, até ao dia oito de cada mês e a entregar à progenitora, quantia essa actualizada, automaticamente, no dia um de Janeiro de cada ano, à taxa de 4%, a título de alimentos devidos à Ré A (...) .

37. Por sentença homologatória de 04.05.2015, já transitada em julgado, foi alterado o exercício das responsabilidades parentais, relativamente à então menor de idade A (…) ficando estabelecido o seguinte:

“2.º - As responsabilidades parentais referentes às questões de particular importância para a vida da menor A (…) serão exercidas em comum pelos progenitores, sem prejuízo do disposto na parte final do artigo 1906.º n.º 1 do Código Civil.

3.º - A menor A (…)ficará a residir com a mãe C (…), competindo-lhe a si o exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente da filha, com quem ela reside habitualmente, sem prejuízo da intervenção do progenitor, durante o período de tempo em que a (então) Menor esteja consigo, devendo este, ao exercer as suas responsabilidades, não contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pela progenitora.

4.º - A Menor passará os fins-de-semana com o pai, de quinze em quinze dias, devendo para tanto o pai ir buscá-la a casa da mãe às 10h de sábado, entregando-a no Domingo, em casa da mãe, até às 19h30 horas.

5.º - O pai fica obrigado a contribuir, mensalmente, a título de pensão de alimentos devida à Menor A (…)  com a quantia de 100,00 € (cem euros), quantia sujeita a actualização anual resultante da aplicação da taxa de inflação publicada pelo INE e referente ao ano civil anterior.

6.º - A prestação de alimentos será paga, através de transferência bancária, para a conta titulada pela progenitora com o NIB: (…), até ao dia 23 do mês a que disser respeito, com início no corrente mês.

7.º - As despesas médicas, medicamentosas e escolares serão suportadas em partes iguais por ambos os progenitores, mediante apresentação dos respectivos documentos comprovativos.

8.º - No que concerne às prestações alimentares vencidas, encontram-se por pagar as prestações relativas aos meses de Janeiro a Abril de 2015, no montante global de 400,00 € (quatrocentos euros), quantia que o requerido se compromete a pagar no prazo de 24 meses, mediante transferência bancária, para a conta titulada pela progenitora com o NIB: 0033 0000 4533 7306 0770 5.”

38. Por sentença homologatória de 23.02.2017, já transitada em julgado, foi alterada a cláusula 4.ª acima mencionada, ficando estabelecido o seguinte:

“1) A jovem A (…) estará com o pai uma vez por mês, num dia e hora a combinar entre ambos.”

39. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.05.2018, já transitado em julgado, reduziu-se a prestação de alimentos fixada em benefício da Ré A(…) para o montante mensal de 75,00€ (setenta e cinco euros), a partir da data da formulação, pelo Autor, do pedido de alteração (ou seja, a partir de 01.06.2017).

40. De 31.01.2017 a 17.04.2017, de 03.08.2017 a 31.10.2017, de 27.12.2017 a 04.02.2018, de 07.03.2018 a 17.04.2018 e de 03.05.2018 a 13.06.2018, o Autor esteve incapacitado, temporariamente, de exercer a sua actividade profissional por motivo de “doença natural.”

41. No dia 17.04.2017, a Junta Médica da ADSE deliberou, por unanimidade, que o Autor estava impossibilitado de regressar ao serviço.

42. No dia 29.05.2017, a Junta Médica da ADSE deliberou, por unanimidade, que o Autor estava impossibilitado de regressar ao serviço.

43. De 24.02.2018 a 05.03.2018, o Autor esteve incapacitado, temporariamente, de exercer a sua actividade profissional por motivo de “assistência a filho menor de dez anos”, mais concretamente ao seu filho M(…)que exigia cuidados inadiáveis.

44. De 18.04.2018 a 02.05.2018, o Autor esteve incapacitado, temporariamente, de exercer a sua actividade profissional por motivo de “assistência a familiares”, mais concretamente à sua companheira que exigia cuidados inadiáveis.

45. Nos meses de Março, Abril e Maio de 2018, o Autor auferiu 225,03€ (duzentos e vinte cinco euros e três cêntimos) líquidos de vencimento mensal, atentos os descontos judiciais incidentes sobre o mesmo.

46. O agregado familiar do Autor reside em casa arrendada pela qual paga 120,00€ mensais de renda.

47. No mês de Abril 2018, o agregado familiar do Autor teve consumos de água no montante de 12,50€.

48. No mês de Abril 2018, o agregado familiar do Autor teve consumos de electricidade no montante de 36,22€.

49. A Ré A (…), no ano lectivo 2017/2018, encontrava-se a frequentar o 10.º ano de escolaridade, do Curso de Línguas e Humanidades, no Agrupamento de Escolas de (...) , tendo transitado para o 11.º ano.

Resultou ainda provado da prova produzida em audiência de julgamento:

50. Desde Dezembro de 2017 que inexiste convívio salutar entre o Autor e a Ré A (...) .

51. O agregado familiar do Autor despende 60,00€ com a creche do menor M (…).

52. O Autor despende cerca de 50,00€ mensais em medicação.

53. O filho da companheira do Autor tem 16 anos, recebendo aquela uma pensão de alimentos no valor de 100,00€ (cem euros) em relação ao mesmo. 54. A companheira do Autor encontra-se a frequentar uma formação profissional que lhe garante o acesso a uma bolsa de cerca de 428,00€ por mês, acrescidos de subsídio de alimentação.

55. A companheira e o Autor cultivam produtos hortícolas.

56. A Ré A(…) respondeu, pelo menos uma vez, às mensagens que o Autor lhe enviava via telefone, vulgo “sms”.»

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            Sendo consignado o seguinte em termos de factos “não provados”:

«1. O exercício das responsabilidades parentais, relativamente à então menor de idade A (…), mencionado no ponto 36 dos factos provados, foi regulado por acordo.

2. Sendo que o sobredito acordo já foi sujeito a diversas alterações, vigorando, actualmente, o seguinte (Cfr. Apensos A, D e E):

“As responsabilidades parentais referentes às questões de particular importância para a vida da Menor, A (…), serão exercidas em comum pelos progenitores, sem prejuízo do disposto na parte final do artigo 1906.º n.º 1, do Código Civil;

A Menor A (…) ficará a residir com a mãe C (…), competindo-lhe a si o exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente da filha, com quem ela reside habitualmente, sem prejuízo da intervenção do progenitor, durante o período de tempo em que a Menor esteja consigo, devendo este, ao exercer as suas responsabilidades, não contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pela progenitora;

A jovem A (…) estará com o pai uma vez por mês, num dia e hora a combinar entre ambos.

O pai fica obrigado a contribuir, mensalmente, a título de pensão de alimentos devida à Menor A (…), com a quantia de 100,00 € (cem euros), quantia sujeita a actualização anual resultante da aplicação da taxa de inflação publicada pelo INE e referente ao ano civil anterior;

A prestação de alimentos será paga, através de transferência bancária, para a conta titulada pela progenitora com o NIB: (…), até ao dia 23 do mês a que disser respeito, com início no corrente mês;

As despesas médicas, medicamentosas e escolares serão suportadas em partes iguais por ambos os progenitores, mediante apresentação dos respectivos documentos comprovativos.”

3. Por força das sucessivas actualizações, o valor da prestação de alimentos cifra-se, actualmente, em 102,00€ (cento e dois euros).

4. A Ré A (…) nunca respondeu às mensagens, vulgo “sms”, mencionadas no ponto 11 dos factos provados.

5. A relação entre o Autor e a Ré A (…) deteriorou-se, exclusivamente, pelo afastamento incompreensível desta.

6. Inexistiu qualquer convívio salutar entre o Autor e a Ré A (…), desde o mês de Junho de 2016, por vontade unilateral da última.

7. À excepção do episódio ocorrido em Dezembro de 2017, quando se cruzam, casualmente, na rua, a Ré A (…) ignora o seu progenitor, não o cumprimenta ou, sequer, lhe dirige a palavra, situação que não se alterou ao atingir a maioridade.

8. Inexistiu qualquer acontecimento grave que possa ter gerado o distanciamento da Ré A (...) em relação ao Autor.

9. A Ré A (…) violou gravemente o dever de respeito para com o seu pai.

10. O Autor desconhece a área pela qual a Ré A (…) optou, bem como a profissão que pretende desempenhar no futuro.

11. A informação escolar encontra-se vedada ao Autor.

12. Foi devido à circunstância descrita no facto provado 22 que o Autor anuiu, em 04.05.2015, a que o valor da prestação de alimentos se fixasse em 100,00€ (cem euros).

13. Desde o mês de Abril de 2016, o Autor tem apresentado frequentes atestados médicos perante a sua entidade patronal, dado o seu défice de estado de saúde que o impossibilita de trabalhar, bem como de prestar horas extras após o horário laboral.

14. Nos meses de Fevereiro e Abril de 2018, o Autor apresentou, por duas vezes, atestados médicos para prestar assistência inadiável quer ao seu filho M (…), quer à sua companheira.

15. Desde o mês de Março de 2018, o Autor aufere 225,03€ (duzentos e vinte cinco euros e três cêntimos) de vencimento mensal, atentos os descontos e penhoras incidentes sobre o mesmo.

16. Os descontos e penhoras acima mencionados determinaram o arrendamento de uma casa com uma renda de valor inferior e condições de habitabilidade manifestamente inferiores.

17. Não fosse o facto da companheira do Autor se encontrar, actualmente, a frequentar uma formação profissional que lhe garante o acesso a uma bolsa de cerca de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros) por mês, o Autor não teria meios, sequer, para subsistir.

18. É com o rendimento mensal auferido pelo agregado familiar do Autor, no valor total de 705,03€ (setecentos e cinco euros e três cêntimos), que fazem face ao pagamento mensal das seguintes despesas:

. consumos de água, gás e electricidade: 70,00€;

. aquisição de fraldas, papas e creche do menor M (…) 120,00€;

. alimentação do agregado familiar: 150,00€;

. aquisição de vestuário, calçado e produtos de higiene para os elementos do agregado familiar: 50,00€;

. prestação respeitante ao empréstimo efectuado para aquisição do veículo automóvel, imposto de circulação, combustível e seguro: 150,00€.

19. Não fosse o auxílio de amigos e o cultivo de produtos hortícolas, por certo que o Autor, bem como o seu agregado familiar, se encontraria em sérias dificuldades de subsistência.

20. Em nada influencia, quanto à remuneração auferida, o facto de o Autor estar de baixa ou a prestar assistência ao filho.»

                                                                       *

            3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na alegada nulidade do erro sobre a forma do processo [art. 193º do n.C.P.Civil].

 Ora, tendo sido arguida uma nulidade do processo [art. 193º do n.C.P.Civil], e invocando o A. ora recorrente que essa mesma questão já tinha sido suscitada pela contraparte nos autos, mais concretamente como “questão prévia” no articulado de contestação [designadamente por não ter sido designada data para a Conferência a que alude o art. 46º do RGPTC e/ou o art. 936º do n.C.P.Civil], questão essa que foi objeto de despacho datado de 15.10.2018, através do qual não foi deferido o requerido, antes se decidiu manter a marcha processual em curso, tendo em conta os articulados das partes e a instrução de que os autos careciam face à matéria que se apresentava como controvertida, o que teve lugar através de audiência de julgamento, desde logo, salvo o devido respeito, se conclui pela sem razão do A./recorrente.

É que – e bem! – enquanto nulidade processual, foi a mesma suscitada na 1ª instância, por se aplicar obviamente aqui o princípio geral  de que “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”, donde ter que ser essa alegada nulidade sempre suscitada primeiramente junto do tribunal de 1ª instância, na medida em que, face a uma nulidade processual o interessado tem que contra ela reclamar, e a reclamação é apresentada e julgada no "tribunal perante o qual a nulidade ocorreu, ou o tribunal a que a causa estava afecta no momento em que a nulidade se cometeu"[2].

Sucede que estava em causa uma nulidade – a do erro na forma de processo – que tem um particular regime e consequências.

Na verdade, como flui do nº1 do já citado art. 193º do n.C.P.Civil, a consequência da verificação dessa nulidade é a de que se aproveitem os actos que possam ser aproveitados, praticando-se os «estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.»

De referir que a reclamação do A./recorrente se centra enfaticamente em não ter sido designada data para a Conferência a que alude o art. 46º do RGPTC e/ou o art. 936º do n.C.P.Civil, sendo certo que esta não se teria realizado.

Contudo, resulta dos autos que se tentou, no início da audiência de julgamento, a conciliação/acordo das partes, o que não se logrou.

Pelo que, na medida em que, salvo o devido respeito, a dita Conferência teria como objectivo uma tal finalidade – a da obtenção do acordo na Conferência – o que é certo e inequívoco é que este não foi alcançado, apesar de se ter intentado um tal objectivo nos autos, e de as partes terem tido oportunidade para o efeito.

Face a isto entendemos que, s.m.j., a nulidade em causa se tem que ter como sanada (cf. art. 196º do mesmo n.C.P.Civil), porquanto estava em causa uma formalidade instrumental, a qual, ainda que noutros termos e momento processual, não deixou de ser observada, sendo certo que, no demais, tiveram lugar “os termos do processo comum declarativo”, designadamente, com a realização da audiência de julgamento e a produção de prova, o que estava previsto em qualquer dos regimes processuais alternativamente em causa, segundo o A./recorrente[3], a saber, o art. 936º, nº 3 do n.C.P.Civil e/ou o art. 47º do RGPTC.

Termos em que, sem necessidade maiores considerações, improcede este primeiro fundamento da arguição de nulidade.

                                                                       *

3.3 – O A./recorrente deduz igualmente impugnação da matéria de facto [quanto aos pontos de facto “provados” sob “25.”, “26.”, “50.” e “56.” (relativamente aos quais propõe uma redacção diversa), quanto aos pontos de facto dados como “provados” sob “27.” e “28.”, e o “não provado sob “9.” (por não consubstanciarem factos mas, tão só, matéria de índole conclusiva, pelo que sempre deveriam ser expurgados dos respetivos elencos), e quanto aos pontos da facto dados como “não provados” sob  “4.”, “5.”, “6.” e “8.” (relativamente aos quais sustenta que devem ser dados como “provados”, embora com redacção em função do que melhor foi sustentado supra em relação aos correlacionados factos dados por “provados” com proposta de redacção diversa)].

Apreciemos com o necessário pormenor e detalhe cada um dos pontos de facto questionados.

(…)

«9. A Ré A (...) violou gravemente o dever de respeito para com o seu pai.»

Na verdade, este facto encerra um juízo claramente conclusivo (conclusão sobre matéria de facto, senão mesmo de direito), donde devia ter sido face a esse fundamento e à luz do critério que determina a exclusão sem mais do alegado com tal característica, que devia ter sido expurgado do elenco em que foi consignado, pelo que, suprindo uma tal incorrecção, se determina agora que o seja.

Nestes termos mais restritos procedendo a impugnação neste particular.

(…)

Assim sendo, sem necessidade de maiores considerações, no parcial acolhimento da reclamação apresentada quanto a este ponto de facto, operando a reapreciação da prova feita, procede-se à retificação da redacção do mesmo, o qual passa a figurar com o seguinte teor:

«50. Desde Dezembro de 2017 que inexiste contato pessoal entre o Autor e a Ré A (...) .»

(…)

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O enquadramento e decisão que importa operar na situação vertente reporta-se nuclearmente ao invocado erro de decisão [ao concluir-se pela improcedência da pretensão do Autor, designadamente por não se considerar verificado o requisito da irrazoabilidade da exigência da obrigação da prestação de alimentos (cf. art. 1905º, nº2, do C.Civil)].

Atentemos na concreta e precisa linha de argumentação do A./recorrente, a saber:

«Por o recorrente entender ser irrazoável exigir-lhe a manutenção do pagamento da prestação de alimentos apresentou a acção especial de cessação de alimentos, fundamentada no plano das relações pessoais entre este e a sua filha, no respectivo aproveitamento escolar, bem como nas condições sócio-económicas daquele.

Da prova materializada em sede da respectiva audiência de discussão e julgamento, entende o recorrente que não logrou demonstrar quer a falta de aproveitamento escolar da recorrida quer a ausência de condições sócio-económicas daquele a fim de determinar a cessação da prestação de alimentos.

Assim, o presente recurso cinge-se às relações pessoais (in)existentes entre o recorrente e a sua filha, aqui recorrida, designadamente a total ausência de contacto entre ambos, motivado exclusivamente por culpa grave desta última.»

Sendo certo que quanto a esse particular, o A./recorrente aduz que «o comportamento da recorrida A (...) revelam, sem quaisquer dúvidas, uma violação grave de respeito relativamente ao seu pai, aqui recorrente, atentatória da sua personalidade moral, que ofende a sua dignidade pessoal, o respeito e a consideração que lhe são devidos pela sua filha.

Sendo o comportamento adoptado pela recorrida A (...) censurável, na justa medida em que encara o seu progenitor, única e exclusivamente, como uma fonte de rendimento, como sujeito de deveres, desprezando ou ignorando outros valores, como o de respeito pela personalidade moral, a estima, a consideração e a solidariedade familiar.»

Termos em que conclui no sentido de que «Ao adotar os comportamentos espelhados nos presentes autos, consciente, voluntário, e sem qualquer justificação aceitável, considerando que, a nosso ver, não resultam dos autos quaisquer elementos justificativos, a recorrida A (…) violou gravemente o dever de respeito devido ao recorrente, com o conteúdo acima referido, sendo tal conduta censurável do ponto de vista ético-jurídico, fundamentando a cessação da obrigação alimentar deste.»

Será assim?

Mais concretamente, será que a materialidade apurada permite concluir por uma culpa grave, e exclusiva, da recorrida A (…) na inexistência de relações pessoais com o progenitor ora A./recorrente (traduzida numa total ausência de contacto entre ambos)?

 É certo que ao factos apurados apontam no sentido de uma quase inexistência de relações pessoais entre a recorrida A (...) e o progenitor ora A./recorrente.

Mormente, porque não havendo contactos pessoais entre ambos de Dezembro de 2017 em diante, também não se apura que exista outro género ou nível de relações/contactos entre ambos!

Contudo, quanto a nós, não resulta de todo que se possa dizer que tal é motivado exclusivamente e/ou por uma culpa grave da recorrida A (…).

Atente-se que do ponto de facto “provado” sob “26.” se infere expressamente que «Existiram vários motivos para que a relação dos dois se tivesse vindo a deteriorar, nomeadamente, o facto de o Autor ter saído de casa sem dizer nada à Ré A (…) de “falar mal” da Ré progenitora e de, posteriormente, ter refeito a vida com uma companheira com a qual a Ré A (…)não se sente à vontade e com a qual surgiram conflitos».

Acrescendo que igualmente resulta apurado que «Desde então, não mais conseguiram o Autor e a Ré A (...) gerir, em conjunto, a relação entre eles, de forma a que tais conflitos e mágoas fossem ultrapassados» e bem assim que «Tal situação tem-se protelado no tempo, com a anuência das duas partes» [cf. factos “provados” sob “27.” e “28.”, respetivamente].

Neste conspecto, não está de todo apurada uma culpa grave, e exclusiva, da recorrida A (...) na inexistência de relações pessoais com o progenitor ora A./recorrente, antes pelo contrário!

O facto das partes não se relacionaram, sem que esteja sequer determinado que tal situação é imputável à requerida A (…) [ou que da parte desta não exista motivo para ter concorrido para a verificação de uma tal situação], conduz-nos a que não é possível concluir que há uma falta de respeito da parte da dita para com o seu progenitor e não torna, só por si, desrazoável a manutenção da obrigação em referência por parte do ora A./recorrente.

Senão vejamos.

Importa para este efeito ter presente o entendimento segundo o qual «O artº 2013 al. c) do C.Civil não se aplica aos casos da obrigação de alimentos a filhos maiores, já que quanto a estas situações antes regula especificamente o mencionado artº 1880 do C.Civil, que recorre à ideia de razoabilidade de forma a avaliar a manutenção ou não da obrigação de sustento, segurança, saúde e educação do filho maior por parte do progenitor.»[4]

A cláusula de razoabilidade a que alude o art. 1880º do C.Civil[5] remete e faz apelo a um conceito de razoabilidade para determinar a obrigatoriedade da prestação de alimentos por parte dos progenitores aos filhos maiores que não tenham completado a sua formação académica[6].

Na verdade, a manutenção da obrigação dos progenitores em contribuírem para o sustento e educação dos filhos para além da menoridade, advém do facto de ser comum que os mesmos ainda não tenham completado a sua formação académica ou profissional aos 18 anos, não tendo por isso autonomia económica e financeira.

Esta incapacidade do filho maior para assegurar o seu próprio sustento é que está na base da norma em questão, sendo que a manutenção da obrigação dos progenitores fica limitada ao tempo necessário a que o mesmo complete a sua formação profissional e é pautada por um critério de razoabilidade que tem se ser aferido em face de cada situação em concreto.

Dito de outra forma: «A densificação da cláusula de razoabilidade constante do art. 1880.º do CC implica e suscita, caso a caso, ponderações e reflexões relativas a diversos fatores como as possibilidades económicas do jovem maior, a dimensão dos recursos dos progenitores, a duração e dificuldade relativa dos estudos que o filho maior pretenda prosseguir ou/e a observância e respeito dos deveres do filho para com o progenitor obrigado.»[7]

Mas será que quanto a quanto a este último particular – o da “observância e respeito dos deveres do filho para com o progenitor obrigado”! – qualquer situação de menosprezo [pelo credor de alimentos relativamente ao obrigado a alimentos] de valores como o do respeito, a estima, a consideração e a solidariedade familiar, justificam ou autorizam que se declare/conclua pela desobrigação de prestação de alimentos?

Cremos bem que não, pois que, em nosso entender sempre seria necessária a verificação de uma situação de desrespeito grave dos ditos valores, fruto de uma vontade intencional, como, vg., uma ofensa gratuita do dever de respeito, uma falta clamorosa do dever de assistência na doença, uma ausência ou desinteresse ostensivos numa situação de infortúnio,…

A este propósito já foi doutamente sublinhado o seguinte:

«Desta forma, cabe indagar se o critério de razoabilidade abrange a possibilidade de o devedor alimentar invocar, para se desobrigar, desentendimentos ou conflitos com os filhos normais entre diferentes gerações ou um corte de relações por iniciativa dos filhos[205].

Na opinião de Maria Clara SOTTOMAYOR[206], aquando da atribuição de alimentos, não se devem considerar situação de mérito ou desmérito, na medida em que os alimentos não são equiparáveis a uma recompensa ou sanção.

Acontece, por vezes, que as violações entre pais e filhos dos deveres plasmados no art.º 1874.º são recíprocas, colocando-se a questão se a obrigação de prestar alimentos cessa pela exceção de reciprocidade das ofensas.

Apesar de F. M. Pereira COELHO e Guilherme de OLIVEIRA[207] empregarem esta expressão referindo-se às situações de divórcio a verdade é que as regras gerais dos contratos sinalagmáticos não são aplicáveis às relações familiares em causa, não sendo legítimo que qualquer um deles alegue uma conduta do outro para se desonerar do cumprimento das obrigações a que se encontra adstrito, pela chamada «compensação de culpas». A existência de injúrias e ofensas mútuas só pode revelar um estado profundo de desentendimento, não podendo nenhum deles invocar uma conduta desonrosa ou indigna do outro se ele próprio teve uma conduta desonrosa ou indigna.

Assim, só cessará o direito a alimentos ao filho maior se por culpa grave houver um comportamento deste que se traduza na prática intencional do facto invocado como fundamento para o pedido de alimentos ou a invenção intencional de condições propícias a esse facto[208].

A prática de qualquer outro ato pelo filho maior, mesmo que a provocação ao progenitor ofensor, não lhe retira o direito de peticionar alimentos com base nas faltas do progenitor, embora deva ser tido em consideração na apreciação a gravidade dessas faltas em conformidade com o princípio da razoabilidade[209].

[205] Cfr. Maria Clara SOTTOMAYOR, ob. cit., p. 336.

[206] Idem.

Entendimento semelhante tinha Maria de Nazareth Lobato GUIMARÃES, ob. cit., p. 210.

[207] Cfr. F. M. Pereira COELHO e Guilherme de OLIVEIRA, ob. cit., pp. 655-656.

[208] Ibidem, p. 657.

[209] Cfr. F. M. Pereira COELHO e Guilherme de OLIVEIRA, ob. cit., p. 657.»[8]

Ora, no caso vertente, apurado que está ter a Recorrida A (…) 18 anos de idade, sendo estudante, não tendo ainda completado a sua formação académica, nem dispondo de rendimentos próprios, pode por isso pedir aos seus progenitores que continuem a sustentá-la, pelo período de tempo normalmente necessário a que complete a sua formação, de acordo com a previsão dos artos 1797º e 1880º do C.Civil, sendo razoável que estes a prestem, designadamente o A./recorrente, atenta a sua situação económica e financeira apurada nos autos, e em face da avaliação que foi oportunamente efetuada a propósito da questão do valor da prestação de alimentos.

De referir, ademais, que subscrevemos plenamente o aduzido quanto a este particular na sentença recorrida, a saber:

«Resta-nos, então, apurar se o Autor, como exigido pelo art. 1905.º, n.º 2 do CC, fez prova da “irrazoabilidade da exigência” do cumprimento da obrigação de assegurar parte das despesas com a continuação da formação da sua filha A (…)

Para tanto, invocou o Autor o plano da relação pessoal existente com a sua filha, alegando, como vimos, que, não obstante as insistências, a filha nunca se dignou atender ou, sequer, retribuir os telefonemas que lhe dirigiu, que a relação entre ambos foi-se deteriorando paulatina e exclusivamente pelo afastamento incompreensível da filha, que inexiste qualquer convívio salutar entre ambos desde o mês de Junho de 2016, por vontade unilateral da filha, que, quando se cruzam, casualmente, na rua, a filha ignora-o, não o cumprimenta ou, sequer, lhe dirige a palavra, que inexistiu qualquer acontecimento grave que possa ter gerado o distanciamento entre ambos e que existe uma violação grave do dever de respeito por parte da sua filha para com ele (Autor) que integra causa de cessação da obrigação de prestar alimentos por manifesta indignidade.

Ora, antes de mais, como vimos, de tudo o que alegou a este propósito e que acabamos de reproduzir, apenas logrou o Autor demonstrar que a filha nunca atendeu ou retribuiu os telefonemas que lhe dirigiu, tendo, como vimos aquando da motivação de facto, o próprio Autor assegurado ao Tribunal que a filha nunca o deixou de cumprimentar e de lhe dirigir a palavra quando se cruzam na rua.

Tendo, isso sim, resultado provado que a relação entre o Autor e a Ré A (...) se tem vindo a deteriorar paulatinamente, que existiram, como não poderia deixar de ser, vários motivos para isso e que tal situação tem-se protelado no tempo, com a anuência das duas partes.

Também já dissemos que foi “claro como a água” o sofrimento da A(…) devido ao distanciamento existente entre ela e o Autor, que, pelo contrário, não se denotou no Autor qualquer preocupação com a filha, que a A (…) explicou ao Tribunal que não atende o telefone ao pai porque sempre que o fazia “ele só falava dos processos em Tribunal em vez de perguntar por ela”, sendo certo que, também como já mencionamos, estamos no apenso J e que o exercício das responsabilidades parentais foi regulado por sentença proferida em 22.07.2008 (quando a Ré A(…) tinha oito anos de idade) e que as relações constroem-se a dois, sendo que a natureza das coisas conduz a que não seja a filha que tenha a responsabilidade exclusiva de construir a relação com o pai mas sim, ao contrário, que cabe, primordialmente, ao pai, mais velho e em princípio mais maduro e sensato, construir uma relação com a filha, filha essa que, em princípio, estará menos preparada para enfrentar os problemas advindos da separação dos pais.

Resultou também provado que a Ré A(…) nunca atentou contra a vida do pai, nem maltratou física ou verbalmente o pai, o que poderia preencher o conceito de “indignidade” alegado pelo Autor.

Com efeito, a primitiva versão do art. 2013.º, n.º 1, al. c) prescrevia que a obrigação cessava quando se verificasse algum dos factos que legitimam a deserdação, factos esses que são (como o eram na altura) a condenação por algum crime doloso a que corresponda pena superior a seis meses de prisão contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão ou do seu cônjuge ou de algum descendente, ascendente, adoptante ou adoptado ou a condenação por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mencionadas pessoas (cfr. art. 2166.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CC).

Note-se que o art. 2013.º, n.º 1, al. c) do CC que prevê, hoje, como causa de cessação da obrigação alimentar a violação grave dos deveres do alimentando para com o obrigado não é aplicável, automaticamente, ao caso sub judice, como afirmou o TRC, em Ac. de 21.04.2015, proc. n.º 1503/13.2TBLRA.C1, in www.dgsi.pt, uma vez que, como se tem aflorado, o caso concreto que decidimos (cessação da obrigação alimentar de um filho maior de idade que ainda não completou a sua formação profissional) tem normas específicas (os arts. 1879.º, 1880.º e 1905.º, n.º 2 do CC), sendo certo que “lex specialis derrogat lex generalis”. Neste sentido, cfr. REMÉDIO MARQUES, op. cit., p. 311.»

O que tudo serve para dizer que – tal como sublinhado na sentença recorrida! – o A./recorrente tem condições económicas para acomodar no seu orçamento familiar uma prestação de alimentos à sua filha A (…) (aqui recorrida), no montante “modesto” de € 75,00 mensais, sem que isso ponha em causa um mínimo necessário a uma vida condigna do seu próprio agregado familiar.

Sendo certo que o facto das partes não se relacionaram, sem que esteja sequer determinado que tal situação é exclusivamente imputável à dita recorrida A (…) não permite concluir que há uma falta de respeito da parte desta para com o seu progenitor e não torna, só por si, desrazoável a manutenção de tal obrigação por parte do Autor ora recorrente.

Conclui-se por isso que, em face da situação de necessidade da recorrida A (…), bem como das possibilidades do A./recorrente, é razoável e justo que este continue a contribuir para o sustento e educação daquela, pelo valor fixado anteriormente, que se tem como o adequado, atento tudo o precedentemente exposto.

Assim, por nada haver que censurar ao sentido da decisão recorrida, importa declarar, sem mais improcedente o recurso.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Cabe ao progenitor vinculado à prestação alimentícia fixada no âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais durante a menoridade requerer a sua cessação, tendo o ónus de alegar e provar que o processo de educação ou formação profissional do filho foi concluído antes de este perfazer os 25 anos ou foi voluntariamente interrompido por este ou, ainda, a irrazoabilidade da exigência da prestação alimentícia.

II – Isto porque o art. 1880º do C.Civil mantém a obrigação dos progenitores assegurarem as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação do seu filho maior pelo período necessário a que o mesmo complete a sua formação profissional, na medida em que tal se revele razoável.

III – O art. 2013º, nº 1, al. c) do mesmo C.Civil que prevê, hoje, como causa de cessação da obrigação alimentar a violação grave dos deveres do alimentando para com o obrigado não é aplicável, automaticamente, a estes casos.

IV – As regras gerais dos contratos sinalagmáticos não são aplicáveis às relações familiares em causa, não sendo legítimo que qualquer um deles alegue uma conduta do outro para se desonerar do cumprimento das obrigações a que se encontra adstrito, pela chamada “compensação de culpas”.

V – Não é qualquer situação de menosprezo [pelo credor de alimentos relativamente ao obrigado a alimentos] de valores como o do respeito, a estima, a consideração e a solidariedade familiar, justificam ou autorizam que se declare/conclua pela desobrigação de prestação de alimentos.

VI – Sempre sempre seria necessária a verificação de uma situação de desrespeito grave dos ditos valores, fruto de uma vontade intencional, como, vg., uma ofensa gratuita do dever de respeito, uma falta clamorosa do dever de assistência na doença, uma ausência ou desinteresse ostensivos numa situação de infortúnio.

VII – Assim, o facto da filha e progenitor não se relacionaram, sem que esteja sequer determinado que tal situação é exclusivamente imputável à filha, não permite concluir que há uma falta de respeito da parte desta para com o seu progenitor e não torna, só por si, desrazoável a manutenção de tal obrigação por parte deste último.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, decide-se, a final, julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.

            Custas em ambas as instâncias pelo A./recorrente.

                                                                       *

  Coimbra, 21 de Maio de 2019  

                                              

   Luís Filipe Cravo ( Relator )

  Fernando Monteiro

        António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
 
[2] A este propósito, veja-se o “Comentário ao Código de Processo Civil”, do Prof. Alberto dos Reis, Volume 2º-reimpresssão, Coimbra Editora 1945,  pags. 507-513, e, inter alia, o Ac. da Rel. de Coimbra de  03-07-2012, no proc. nº 268/11.7T2AND.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc
[3] De referir que quanto à determinação do regime processual aplicável não existe entendimento uniforme na doutrina e jurisprudência, como se pode concluir pelo constante do recente acórdão deste mesmo T.Rel. de Coimbra de 22.01.2019, proferido no proc. nº 16/03.5TBSPS-E.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc. 
[4] Assim no acórdão do T. Rel. de Coimbra de 21.04.2015, proferido no proc. nº 1503/13.2TBLRA.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[5] No qual se estabelece, sob a epígrafe de “despesas com os filhos maiores ou emancipados”, que: «Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento, pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.» (sublinhado nosso)
[6] Atente-se que o art. 1880º é uma exceção ao art. 1877º, ambos do C.Civil, no que concerne a um dos aspetos das responsabilidades parentais: a obrigação de alimentos, enquanto obrigação de os pais proverem ao sustento dos seus filhos, durante a formação profissional e académica destes (cf., neste sentido, MARIA CLARA SOTTOMAYOR, in “Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio”, 5º Edição Revista, Aumentada e Actualizada, Coimbra, Almedina, 2011, a págs. 335-336.
[7] Citámos o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 19.12.2017, proferido no proc. nº 1156/15.3T8CTB.C2, igualmente acessível em www.dsgi.pt/jtrc, aliás, citado decisivamente na sentença recorrida.
[8] Assim por DIANA GOMES RODRIGUES MANO inA Obrigação de Alimentos a Filhos Maiores e o Princípio da Razoabilidade”- Tese de Mestrado em Direito das Crianças, da Família e das Sucessões - Universidade do Minho – outubro de 2016, a págs. 51.