Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3390/11.6TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: COMPROPRIEDADE
USO
COISA COMUM
OBRAS
OPOSIÇÃO
Data do Acordão: 06/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 985º, 1406º E 1407º DO C.C.
Sumário: I – O uso da coisa comum – a que se reporta o citado art. 1406º do C.C. - e que é facultado a qualquer um dos comproprietários (desde que a não empregue para fim diferente daquele a que se destina e desde que não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito) corresponde apenas à utilização directa da coisa e ao aproveitamento imediato das suas aptidões naturais e não abrange a realização de quaisquer obras, ainda que de conservação ou em benefício do prédio.

II – Ressalvando os actos ou obras urgentes que se destinem a evitar um dano iminente, e de acordo com o disposto nos arts. 1407º e 985º do C.C., qualquer um dos comproprietários tem o direito de se opor às obras que outro pretenda realizar e, uma vez manifestada essa oposição, caberá à maioria dos consortes – ou ao tribunal, quando não seja possível formar maioria – decidir se tais obras devem ou não ser realizadas.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., residente na Rua (...) , Viseu, instaurou a presente acção contra B..., residente na Rua (...) , Viseu, alegando, em suma, que: por força de inventário subsequente ao respectivo divórcio, Autora e Réu, são comproprietários, em comum e partes iguais, de um prédio misto, denominado “ X (...) ”, sito em w (...) , freguesia de y (...) ; no dia 28/09/2011, o Réu iniciou a realização de obras na parte rústica do prédio comum, consistentes na abertura de uma passagem no muro de suporte do quintal contíguo à via pública, abertura essa que se destinou a dividir de facto o prédio e que privou a Autora de entrar na habitação pelo local habitual e impediu a sua passagem pela anterior entrada no prédio, retirando o portão que aí existia e cimentando o espaço por onde se entrava para o prédio urbano, tudo sem a sua autorização e contra a sua vontade. Mais alega que a realização de tais obras não se justificava, nem era necessária ou urgente, e desvalorizou o prédio, alterando a sua estética, enquadramento e destino económico, privando-a do uso do imóvel.

Com estes fundamentos pede que o Réu seja condenado a:

- reconhecer que as obras ( nova abertura, retirada do portão, feitura de um muro de blocos e cimento no lugar do portão) que está a levar a cabo o foram sem o consentimento e contra a vontade da autora, comproprietária;

- reconhecer que em resultado dessas obras, o quintal envolvente da habitação da “ X (...) ” sofreu danos graves e de difícil reparação, no muro de suporte, na estética urbana, com a deslocação de terras, perda das árvores fruteiras e arbustos, etc...e ,consequentemente, obrigado a indemnizar , na devida proporção, a autora , em quantia a liquidar em execução de sentença.

- a retirar o muro que colocou no lugar do portão de entrada e recolocar, ali, o portão que lá se encontrava

- a recompor o muro de suporte e vedação, tapando a abertura que abriu para fazer o “novo acesso” à habitação, deixando-o no estado de solidez, traça e pintura em que se achava antes das obras.

O Réu contestou, dizendo que se limitou a abrir um acesso directo da parte principal do prédio à via pública, na direcção da porta principal da casa de habitação, dotado de uma escada, assim beneficiando e valorizando o prédio, obras essas que não pode concluir por intervenção da Autora e do filho do casal. Alega ter actuado como proprietário e em benefício do imóvel, sem o dividir e apenas para melhorar a sua acessibilidade. Negando que a Autora se encontre privada do prédio e alegando não ter alterado o uso do imóvel, conclui pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador e foi elaborada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o Réu:

I. a reconhecer que as obras (nova abertura, retirada do portão, ligação das duas partes do muro pré-existente) que estava levar a cabo o foram sem o consentimento e contra a vontade da autora A (...) , comproprietária;

II. a retirar a parte do muro que colocou no lugar do portão pedonal de entrada, referido no ponto 5.6. dos factos provados, e a aí recolocar o portão que lá se encontrava antes das obras;

III. a recompor o muro de suporte e vedação, tapando a abertura que abriu para fazer o novo acesso à habitação, deixando-o no estado de solidez, traça e pintura em que se encontrava antes das obras.

No mais, o Réu foi absolvido do pedido.

Inconformado com essa decisão, o Réu veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1.º O réu, ao abrir para o prédio comum dele e de sua ex-mulher um acesso direto à rua pública, limitou-se a usar um bem comum.

2.º E a facilitar esse uso do bem comum, quer ao próprio recorrente, quer à recorrida.

3.º No âmbito do artigo 1406ºdo Código Civil

4.º Mas ainda que se pudesse considerar tal ato como de administração, e patenteando-se um desentendimento entre os comproprietários, esta situação deveria ser dirimida pelo Tribunal de harmonia com os juízos de equidade.

5.º Como determina o artigo 1407º n.º 2 com remissão para os artigo 985, ambos do Código Civil.

6.º E para que o Tribunal decida sobre esta questão, não tem que se instaurar uma ação própria, devendo julgar, a título incidental, que, em termos de equidade deverá declarar-se que o ato praticado pelo réu, em benefício do prédio e sem prejuízo opara qualquer dos comproprietários, é legítimo.

7.º Não se entendendo assim, deverá concluir-se que a autora não defende qualquer interesse legítimo

8.º Constituindo os presentes autos uma expressão do ódio que tem para com o autor e o desenvolvimento dos litígios que existiram entre o casal.

9.º Enquadrando-se tal situação no disposto no artigo 334º do Código Civil,.

10.º A decisão recorrida violou assim o disposto nos artigos supra mencionados; pelo que,

11.º Pelo que deve a sentença, na parte que julgou a ação procedente, ser revogada e deste modo a sentença improceder na totalidade.

A Autora apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1ª- O acto do recorrente, traduzido na feitura das obras de alteração dos acessos ao prédio comum, não é um acto de administração e nem ele é sequer o cabeça de casal;

2ª- No regime da compropriedade, as obras exigiam a anuência da consorte

3ª- O recorrente pretendeu, com as obras, como se alcança das fotos juntas, outro objectivo que não a satisfação de qualquer necessidade normal do prédio comum, um objectivo próprio, particular, à custa daquele (bem comum)

4ª- A reacção da recorrida, autora, é legitima e no exercicio da defesa do seu direito;

5ª- Das obras resultou grave desvalorização do imóvel comum ( X (...) );

6ª- A d. sentença limitou-se a fazer cumprir uma disposição legal substantiva.

Conclui pela improcedência do recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se a obra iniciada pelo Apelante pode ser qualificada como mero uso da coisa comum que, sendo enquadrável no art. 1406º do C.C., é um acto consentido a qualquer um dos comproprietários ainda que sem o consentimento e contra a vontade do outro;

• Caso se entenda que essa obra corresponde a um acto de administração, saber se o Tribunal pode ou não decidir sobre a sua realização, ao abrigo do disposto no art. 1407º, nº 2, do C.C., dada a circunstância de não ser possível formar a maioria legal dos consortes que, para o efeito, era exigida;

• Saber se, ao exigir a reposição da situação que existia antes dessa obra, a Autora actua ou não com abuso de direito.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. Existe um prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 96/ (...) , na freguesia do y (...) , denominado “X (...) ”, constituído por casa de habitação, com R/C, 1º andar e quintal com videiras, árvores de fruto e dependências anexas, com a área de 4422 m2, atravessado pela estrada, a confrontar de norte com (...) , do nascente com (...) e outro, do sul com (...) e outro, e do poente com herdeiros do (...) – alínea A) dos Factos Assentes.

2. A autora e o réu são comproprietários do prédio identificado no ponto anterior – alínea B) dos Factos Assentes.

3. A autora instaurou contra o réu o procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova, o qual se mostra apenso a estes autos – alínea C) dos Factos Assentes.

4. A autora mantém alguns haveres na “ X (...) ”, necessitando de aí se deslocar com alguma regularidade, o que faz – resposta aos pontos 2º e 3º da Base Instrutória.

5. Em data que em concreto não foi possível apurar, mas situada em Setembro de 2011, o réu iniciou obras na parte rústica da “ X (...) ”, consistentes na abertura do muro de suporte do quintal, contíguo à rua (...) , encerrando a entrada então existente no prédio referido no ponto 1., consistindo esta na entrada pelo portão da Rua (...) – resposta aos pontos 4º, 5º, 6º e 7º da Base Instrutória.

6. A entrada referida no ponto anterior fazia-se, após o portão da Rua (...) , num percurso, cuja dimensão não foi possível apurar, que atravessava o prédio contíguo ao referido no ponto 1., flectindo para a direita, entrando depois noutro portão, este pedonal, após o que se entra em casa – resposta aos pontos 8º, 9º, 10º e 11º da Base Instrutória.

7. Foi inicialmente “colado” um veículo à frente do portão para impedir a passagem de qualquer pessoa – resposta aos pontos 12º e 13º da Base Instrutória.

8. Foi encerrado o portão pedonal referido no ponto 6. mediante a ligação das duas partes do muro pré-existente – resposta ao ponto 14º da Base Instrutória.

9. Por força do descrito no ponto anterior, a autora ficou privada de aceder à casa sita na “ X (...) ” pelo acesso referido no ponto 6. – resposta ao ponto 17º da Base Instrutória.

10. Em parte do quintal é efectuado pelo réu o depósito de paletes – resposta ao ponto 16º da Base Instrutória.

11. A casa de habitação e o quintal mencionados no ponto 1. são atravessados junto da testada norte pela Rua (...) – resposta ao ponto 18º da Base Instrutória.

12. A norte desta rua fica uma pequena parcela de terreno, ficando o restante a sul – resposta ao ponto 19º da Base Instrutória.

13. É na parte sul que se localiza a habitação e a quase totalidade do quintal – resposta ao ponto 20º da Base Instrutória.

14. O terreno a norte da Rua (...) tem uma área muito pequena e serve apenas de parque de estacionamento – resposta ao ponto 21º da Base Instrutória.

15. O autor iniciou a abertura de um acesso directo deste prédio à referida rua, na direcção da porta principal da casa de habitação – resposta aos pontos 22º e 23º da Base Instrutória.

16. No quintal existia, desde há longos anos, um corredor ladeado de videiras nesse sentido – resposta ao ponto 24º da Base Instrutória.

17. O réu iniciou a construção de uma escada que, saindo da rua, permitisse o acesso a esse corredor e à casa – resposta ao ponto 25º da Base Instrutória.

18. A autora e o filho do casal, quando o réu iniciava tais obras, opuseram-se à continuação das mesmas – resposta ao ponto 26º da Base Instrutória.

19. O réu actuou visando edificar um acesso ao prédio – resposta ao ponto 27º da Base Instrutória.

20. Como a autora se opôs, o réu não terminou as obras – resposta ao ponto 29º da Base Instrutória.


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IV.

Apreciemos, pois, as questões colocadas no recurso.

É indiscutível – como resulta da matéria de facto – que Autora e Réu são comproprietários do prédio supra identificado e denominado por “ x (...) ”.

É igualmente indiscutível que o Réu iniciou a realização de uma obra no identificado prédio sem o consentimento e contra a vontade da Autora e, portanto, nada obsta à procedência do primeiro pedido, sendo certo que o Apelante nada diz relativamente a essa matéria.

A discordância do Apelante relativamente à sentença recorrida prende-se apenas com os demais pedidos que foram julgados procedentes e que, em termos gerais, se reconduzem à reposição da situação que existia antes do início das obras.

E, para justificar a sua discordância, começa por alegar que, ao contrário do que se considerou na sentença recorrida, a obra que efectuou não corresponde a um acto de administração, mas um simples uso do bem comum, enquadrável no disposto no art. 1406º do Código Civil[1] que, como tal, é consentido a ambos os comproprietários.

Parece-nos claro que não é assim.

De facto, o uso da coisa comum – a que se reporta o citado art. 1406º - e que é facultado a qualquer dos comproprietários (desde que a não empregue para fim diferente daquele a que se destina e desde que não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito) não abrange, evidentemente, a realização de quaisquer obras (ainda que de conservação ou em benefício do prédio). Como resulta claramente da expressão ali utilizada – “…servir-se dela…” – aquele uso corresponde apenas à utilização directa da coisa e ao aproveitamento imediato das suas aptidões naturais e, não abrangendo, sequer, a sua fruição, ou seja, a sua utilização como instrumento de produção[2], muito menos poderá englobar a realização de obras que – como aqui acontecia – alteram a sua configuração e o modo como era utilizado, no que toca, designadamente, ao respectivo acesso.

Assim, e conforme se considerou na sentença recorrida, a situação dos autos não cai no âmbito de previsão do art. 1406º, ficando sob a alçada do art. 1407º.

Reportando-se à administração da coisa comum, o art. 1407º determina ser aplicável aos comproprietários o disposto no art. 985º, mais preceituando que, para que exista a maioria dos consortes exigida por lei, é necessário que eles representem, pelo menos, metade do valor total das quotas.

Da conjugação dessas disposições, decorre que, apesar de todos os consortes terem, em princípio, igual poder para administrar, qualquer um dos consortes tem o direito de se opor ao acto que outro pretenda realizar, cabendo à maioria decidir sobre o mérito da oposição (art. 985º, nº 1 e 2), sendo que esta maioria terá que corresponder, pelo menos, a metade do valor total das quotas.

Assim, porque a Autora e Réu têm igual poder para administrar a coisa comum e não estando em causa um acto urgente de administração destinado a evitar um dano iminente (caso em que, de acordo com o disposto no art. 985º, nº 5, poderia ser licitamente praticado por qualquer um dos administradores), a Autora poderia legitimamente opor-se ao acto que o Réu pretendia realizar.

E, porque são iguais as quotas da Autora e do Réu, a situação apenas poderia ser resolvida nos termos do art. 1407º, nº 2, onde se dispõe que, não sendo possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade.

Considerou, porém, a decisão recorrida que tal decisão (a que alude o art. 1407º, nº 2) não poderia ser proferida na presente acção, já que, como aí referiu, “…não é essa a causa de pedir, nem o pedido, e o suprimento da deliberação da maioria legal dos comproprietários constituir processo especial, regulado no artigo 1427º do Código de Processo Civil”.

Sustenta, porém, o Apelante – e essa é a segunda questão colocada no recurso – que nada obstava a que tal decisão fosse proferida nos autos, já existiam todos os elementos para, segundo juízos de equidade, declarar que o acto praticado pelo Réu/Apelante é legítimo por ter sido praticado em benefício do prédio e sem prejuízo para os respectivos proprietários.

Ora, sendo certo que – como se referiu na sentença recorrida – não é esse o pedido e a causa de pedir da presente acção, a verdade é que, com os elementos que temos disponíveis, nem sequer existiriam elementos para, em equidade, decidir que o acto em causa é legítimo por beneficiar o prédio e não prejudicar a Autora.

Como resulta da matéria de facto provada, o acesso ao prédio em questão era feito por um portão da Rua (...) , passando depois pelo prédio contíguo (prédio que, ao que decorre dos autos, pertencerá ao Apelante, embora também pareça decorrer das certidões juntas aos autos que este prédio não possuía qualquer área descoberta) e entrando depois noutro portão, este pedonal, que dá acesso à casa.

Com a obra realizada, o Réu alterou completamente essa situação, já que, tendo encerrado o portão pedonal (mediante a ligação das duas partes do muro pré-existente), encerrou e eliminou aquele que era o acesso ao prédio. Por outro lado, abriu um novo acesso ao prédio, efectuando uma abertura no muro de suporte do quintal, contíguo à rua (...) e aí iniciando a construção de uma escada que, saindo da rua, dá acesso directo à casa e à respectiva porta principal.

Ora, sendo discutível o benefício que tal situação possa trazer ao prédio aqui em questão, já que o acesso directo à rua (que resultaria da obra feita pelo Apelante), ao invés do acesso lateral que existia anteriormente, poderá implicar alguma perda de privacidade e uma maior exposição da casa, além de poder, eventualmente, implicar algum prejuízo estético, parece-nos também que essa situação poderá implicar efectivo prejuízo, designadamente, pelo facto de perder um acesso que é feito por um prédio contíguo e relativamente ao qual não sabemos se corresponderá ou não a um efectivo direito – eventualmente servidão de passagem – a favor do prédio.

Aliás, se fosse assim tão evidente o benefício que tal situação poderia trazer ao prédio, provavelmente, a substituição do acesso à casa já teria sido efectuada em momento anterior.

O que resulta claramente dos autos é que a obra em causa beneficiaria o Apelante, na medida em que libertaria e desoneraria o prédio contíguo (que, aparentemente, será de sua propriedade, embora a Apelada questione, nas suas alegações, os respectivos limites, dizendo que não abrange o espaço por onde era feito o acesso), mas, ao contrário do que pretende o Apelante, nada nos permite afirmar que essa situação não implique qualquer prejuízo para o prédio em causa nos autos e que apenas o beneficie.

Assim sendo, nada permitiria concluir que o acto praticado pelo Apelante relativamente ao prédio comum e contra a vontade da outra consorte (a Autora) é um acto legítimo que, como tal, se possa e deva manter.

Sustenta ainda o Apelante – e essa é a terceira questão suscitada no recurso – que, ainda que se entenda que a Autora tem o direito de exigir a reposição da situação no estado anterior, o exercício desse direito sempre seria abusivo, já que a Autora não defende qualquer interesse legítimo, sendo que o exercício desse direito corresponde a uma mera expressão do ódio que tem para com o Apelante.

Na perspectiva do Apelante, estaríamos, pois, perante uma situação enquadrável no art. 334º do C.C.

Dispõe a norma citada que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Tal como referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 297, “o abuso de direito pressupõe logicamente a existência de um direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes” e, continuam os mesmos autores, “a nota típica do abuso de direito reside…na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.

A boa fé, enquanto princípio normativo e enquanto princípio geral de direito – subjacente ao conceito de abuso de direito –, significa que “…as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” – cfr. Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, 1983, pág. 55.

Na perspectiva do Apelante, a Autora/Apelada, ao exercer o direito – direito que, aliás, já lhe reconhecemos – de exigir a reposição do prédio à situação anterior, estaria a exorbitar do fim próprio desse direito e a exceder os limites impostos pela boa fé, já que, não possuindo qualquer interesse legítimo que possa ser defendido com o exercício desse direito, apenas se move pelo ódio e azedume que sente relativamente ao Apelante.

Mas, como decorre do que dissemos supra, não nos parece que se possa afirmar que a Apelada não tem qualquer interesse legítimo a defender.

De facto, enquanto comproprietária do prédio em questão, tem o direito de obstar à realização de quaisquer obras para as quais entenda não dar o seu assentimento, designadamente, quando essas obras determinam uma efectiva alteração da configuração do prédio e do modo como era efectuado o respectivo acesso (como aqui acontecia).

A este propósito, diz o Recorrente que a recorrida não tem qualquer interesse em entrar por uma abertura lateral (como acontecia) e que, com a realização da obra, o prédio ficaria com uma escadaria directa para a rua, ficando, por isso, mais acessível e valorizado.

Mas essa é a perspectiva do Apelante, o que não significa que a Autora não possa ter, legitimamente, perspectiva diferente. E, eventualmente, não terá sido essa a perspectiva dos proprietários quando conceberam e efectuaram o acesso nesses termos.

Ainda que o acesso anterior seja menos funcional – como considera o Apelante – a Autora não poderá ter um interesse legítimo em manter a traça e a configuração originais do prédio? E não poderá ter interesse em manter um acesso que, por ser lateral, proporciona uma maior privacidade e menor exposição da casa? Parece-nos que sim e, portanto, de modo algum, poderemos afirmar – como pretende o Apelante – que a Autora não pretende defender um qualquer interesse legítimo.

Mais alega o Apelante que, a manter-se a decisão, a Apelante ficará fortemente prejudicada, porquanto, deixando de ter o acesso que o Apelante estava a efectuar, também ficaria sem o acesso anterior porque o Recorrente, mesmo cumprindo a sentença, não está vinculado a deixá-la passar pelo seu terreno.

Bom, mas isso é que o Apelante afirma, porque, de facto, nada nos permite afirmar que não esteja vinculado a deixar passar a Autora naquele prédio. De facto, mesmo admitindo que a passagem por aquele local é feita através de um prédio do Apelante, isso poderá corresponder ao exercício de uma servidão de passagem (eventualmente constituída por destinação de pai de família, já que, aparentemente, os prédios terão pertencido ao mesmo dono) que, como tal, terá que ser respeitada até que ocorra qualquer facto que determine a sua extinção.

 

Ainda para sustentar o abuso de direito e para evidenciar a falta de interesse legítimo da Autora na presente acção, alega o Apelante que se encontra pendente acção de divisão da coisa comum e, sendo manifesto que o prédio é indivisível, as decisões possíveis são as seguintes:

- ou o prédio é adjudicado ao recorrente e neste caso a recorrida não tem qualquer interesse na acção;

- ou é adjudicado à recorrida e só neste caso é que poderia congeminar interesses invisíveis na procedência da acção;

- ou o prédio é adquirido por terceiro e aí ao terceiro é que competia dirimir esta questão, se questão houvesse.

Não vislumbramos, todavia, qual o interesse destes factos (que, aliás, nunca haviam sido invocados nos autos) para a questão que estamos a apreciar.

Com efeito, a presente acção tem que ser apreciada e decidida em face da situação que se verifica no momento e não em função de factos que ainda não ocorreram.

É certo que se o prédio lhe vier a ser adjudicado, o Apelante – ficando com o direito de propriedade exclusivo, poderá efectuar as obras em causa (desde que, evidentemente, não interfira com direitos de terceiro), tal como é certo que, se o prédio vier a ser adquirido por terceiro, este terá toda a legitimidade para concordar (ou não) com as referidas obras.

Mas, neste momento, o prédio pertence, em compropriedade, à Autora e Réu e, portanto, a Autora, como comproprietária, tem o direito de se opor à realização daquelas obras sem que isso configure qualquer abuso de direito. É evidente que esse direito/interesse da Autora desaparecerá se o prédio vier a ser adjudicado ao Apelante, mas tal apenas se verificará com essa adjudicação e, portanto, é a partir desse momento que o Apelante poderá realizar aquelas obras, se assim o entender.

Não pode é executá-las agora porque, por ora, não é o proprietário exclusivo do prédio e a sua consorte opõe-se (legitimamente) à sua realização.

Além do mais, se é certo que o prédio pode vir a ser adjudicado ao Apelante, a verdade é que também poderá vir a ser adjudicado à Apelada e, portanto, esta terá todo o interesse em reagir, neste momento, de forma a garantir e defender o seu actual direito de compropriedade, bem como o possível e eventual direito de propriedade exclusivo que venha a adquirir por força da divisão da coisa comum.

Não nos merece, pois, qualquer censura a decisão recorrida, que, como tal, se confirma integralmente.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O uso da coisa comum – a que se reporta o citado art. 1406º do C.C. - e que é facultado a qualquer um dos comproprietários (desde que a não empregue para fim diferente daquele a que se destina e desde que não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito) corresponde apenas à utilização directa da coisa e ao aproveitamento imediato das suas aptidões naturais e não abrange a realização de quaisquer obras, ainda que de conservação ou em benefício do prédio.

II – Ressalvando os actos ou obras urgentes que se destinem a evitar um dano iminente, e de acordo com o disposto nos arts. 1407º e 985º do C.C., qualquer um dos comproprietários tem o direito de se opor às obras que outro pretenda realizar e, uma vez manifestada essa oposição, caberá à maioria dos consortes – ou ao tribunal, quando não seja possível formar maioria – decidir se tais obras devem ou não ser realizadas.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, revista e actualizada (reimpressão), pág. 356.