Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
343/14.6TBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
ESCRITURA PÚBLICA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
CONFISSÃO DE DÍVIDA
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 703 Nº1 B) CPC, 352, 358, 371, 372, 376 CC
Sumário: 1.- A escritura pública constituiu título executivo enquanto documento autêntico que importa o reconhecimento de uma obrigação, nos termos previstos no artigo 703º, nº1, al. b) do CPC.

2.- O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas, ou seja, quanto ao facto de terem sido feitas determinadas declarações, mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes, pelo que a inveracidade destas não acarreta a falsidade do documento, não afetando a sua força probatória.

3.O Código Civil limita-se a definir a força probatória dos documentos autênticos, na parte em que têm força de prova plena, sendo omisso quanto ao seu valor na parte restante.

3. Na parte não abrangida pela força probatória plena, a força probatória dos documentos autênticos não poderá ficar aquém da atribuída pelos nºs. 1 e 2, do artigo 376º, do CC, aos documentos particulares cuja autoria se mostre reconhecida: de prova plena quanto às declarações (de ciência ou de vontade) atribuídas ao seu autor; de prova plena dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão.

4. Na parte em que contenham uma declaração confessória – enquanto reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária (artigo 352º CC), esta considera-se provada nos termos aplicáveis aos documentos autênticos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (nº2 do artigo 358º).

5. Incorporando a escritura exequenda uma declaração confessória de dívida, para afastar a sua exequibilidade não basta a prova de que nenhuma quantia foi mutuada, sendo necessária ainda a invocação e prova de qualquer causa de falta ou vício de vontade que afete tal declaração confessória.

Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Por apenso à execução comum que contra si é movida por M (…), V (…), M (…), R (…), F (…), vieram os executados N (…), Lda. e M (…), deduzir os presentes embargos de executado, defendendo a extinção da execução.

Com os seguintes fundamentos, que assim se sintetizam:

 a execução tem por base um suposto contrato de mútuo e fiança formalizado por escritura pública, outorgada no dia 24.06.2009;

não é verdade que tenham emprestado qualquer quantia à executada N (...) , Lda., nem sequer aí é referida a entrega de qualquer valor em dinheiro, não correspondendo à verdade as declarações nele apostas;

o que se passou foi que, em 24.02.1995, os exequentes firmaram um contrato-promessa de compra e venda, onde de comprometeram a vender à C (…) duas parcelas de terreno para construção, pelo preço de 55.000.000$00, sendo a título de sinal 3.500.000$00, e mais 6.500.000$00 e 45.000.000$00, através de dação em pagamento de apartamentos e espaços de estacionamento;

não cumprindo com o convencionado, os exequentes, por escritura de 16.01.2004, declararam ceder a R (…) e mulher, o prédio urbano denominado lote nº 14, tendo estes declarado ceder aos exequentes, pelo valor de 285.000,00 €, as frações C, D, G e H, do apartamento a construir no terreno;

foram os mesmos R (…) e mulher, quem, mais tarde, declararam vender à executada N (…), Lda., as frações A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, quando, afinal, pela permuta já haviam cedido parte das frações aos exequentes, assumindo a executada N (...) o compromisso de transmitir as frações C, D, G, e H, aos aqui exequentes;

mais impugnam a reprodução mecânica, o seu conteúdo e forma probatória dos documentos juntos pelos exequentes, quanto aos factos que com eles se pretendem demonstrar,  à exceção das declarações prestadas perante o notário, por falsas, porquanto não houve mútuo;

mais arguem a falsidade dos mesmos documental no confronto do atestado, o que, na realidade, não se verificou.

Os exequentes apresentam contestação defendendo a improcedência dos embargos e reduzindo o valor líquido da obrigação exequenda para o valor de 130.000,00 €, acrescida de juros legais desde 2 de julho de 2013,

alegando, em síntese:

posteriormente ao referido contrato-promessa, a C.G.M. e o executado M (...) mudaram de estratégia e decidiram ceder a sua posição contratual a favor de R (...) ;

o mencionado executado M (…) contactou então com as exequentes M (...) e R (...)   e solicitou-lhes a necessária colaboração no sentido  de serem estas a celebrar diretamente um novo contrato de permuta com o R (…), circunscrevendo a obrigação de cedência das frações autónomas e apartamentos ao designado lote 14;

as exequentes acabaram por ceder sob a condição de este e o então sócio da C.G.M., M (…), assumirem a qualidade de fiadores, sendo então celebrado o Contrato de Permuta e Fiança de 16 de janeiro de 2004;

contudo, entrando o R (…) e a esposa em colapso financeiro em 2008, o M (…) acordou transferir para a sua esfera jurídica e gestionária a construção do edifício, acordando assumir a responsabilidade decorrente da obrigação que subsistia para com os exequentes.

Foi proferido saneador/sentença a julgar totalmente improcedentes os presentes embargos de executado, determinando o prosseguimento da execução e tendo-se consideração a redução feita para a quantia de € 130.000,00 em sede de contestação.


*

Não se conformando com tal decisão os embargantes dela interpuseram recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

1ª- A execução aos quais os presentes autos de oposição de embargos de executados fundamenta-se, numa escritura pública de contrato de mútuo com fiança pessoal;

2ª- A escritura pública constitui o título executivo da presente ação executiva e, pressupõe o incumprimento do aí estatuído para poder ser cobrado coercivamente;

3ª- Sendo, esse título executivo a base e, limite da ação executiva;

4ª- Qualquer vício ou discrepância do teor do titulo dado à execução que, não configure sentença judicial pode ser invocado em sede de oposição;

5ª-Resulta da matéria de facto dada como assente pelo Tribunal a quo, não ter sido efetuado pelas Exequentes/embargadas a entrega de qualquer quantia pecuniária aos Executados;

6ª- O Tribunal a quo, com base nos factos alegados pelas partes e, pelos documentos juntos constatou a divergência entre as declarações prestadas e, a realidade histórico factual;

7ª- Não podendo aquela escritura pública configurar um título executivo de obrigações que, efetivamente não foram constituídas tout court como se, encontram, aí, discriminadas;

8ª- O contrato de mútuo é um contrato de natureza real e, pressupõe na sua génese a entrega de uma quantia e, posterior reembolso da mesma, nos termos do art.º 1142º do CC.

9ª- Falecendo, o pressuposto essencial de entrega de, uma quantia monetária não existe qualquer contrato de mútuo, isto é, o contrato constante no título dado à execução pelas exequentes é nulo, ou seja, inexigível, nos termos do art.º 280º do CC.

10ª- Não sendo inexigível o contrato de mútuo não poderá ser a fiança prestada na referida escritura.

11ª- Dado que, os vícios e, ou inexigibilidade da obrigação principal estendem-se, à fiança, nos termos do art.º 63º do CC.

12ª- Pelo que, o Tribunal a quo, deveria ter julgado procedentes os embargos deduzidos e, declarado a extinção da execução para pagamento de quantia certa com base na nulidade do contrato de mútuo com fiança.

13ª- Constituem fundamento do presente recurso os preceitos legais, previstos nos legais previstos nos arts. 280º; 342º; 632º; 1142º todos do Código Civil e, art.º 644º do CPC.

Termos em que,

deve a sentença recorrida ser revogada e, ser determinada a extinção da execução para pagamento de quantia certa por inexigibilidade do título dado à execução.


*

Os exequentes/embargados apresentaram contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 675º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, a questão a decidir é uma só:
1. Se a prova de que não foi feita qualquer entrega de dinheiro por conta do alegado mútuo afeta a exequibilidade da escritura pública exequenda.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
São os seguintes, os factos tidos em consideração pelo tribunal a quo, e que não foram objeto de impugnação por qualquer das partes:
 1. Por “CONTRATO DE MÚTUO E FIANÇA”, titulado por escritura-pública outorgada no mesmo dia 24 de Julho de 2009 através do citado 2º. Cartório Notarial de Coimbra, e aí constante de folhas 24 a folhas 26, verso, do livro de notas para escrituras diversas número 151-A, a Executada/N (…), Ldª., confessou-se devedora da mencionada importância de Trezentos Mil euros e assumiu a obrigação de a pagar aos Exequentes em três prestações, sem juros, vencendo-se as duas primeiras no valor de Sessenta Mil euros, cada, uma no dia 11 do mês de Agosto de 2009, e a outra no primeiro dia útil do mês de Julho do ano de 2011, e a terceira prestação no valor de Cento e Oitenta Mil euros no primeiro dia útil do mês de Julho de 2013.
2. M (…), assumiu a qualidade de fiador e principal pagador e garantiu solidariamente o reembolso do capital mutuado aos Exequentes nos termos e condições constantes dos números que antecedem (cfr. requerimento executivo e doc. de fls. 22 e ss. da execução)
3. Tal declaração resultou do acordo entre as partes e adveio de um acordo anterior por força do qual as exequentes cederam dois lotes de terreno para construção e ainda não tinham recebido a totalidade do preço (admitido pelas partes).
*
 O juiz a quo, considerando que a divergência entre o declarado pelas partes e a vontade real configura a existência de um negócio indireto válido – com a escritura as partes pretenderam formalizar o acerto de contas que existia entre elas, fruto da cedência de terreno e da falta de pagamento do preço correspondente, para tanto tendo utilizado a figura do mútuo e da fiança –, e que tal desconformidade não afeta a validade ou existência do título executivo, veio a julgar os embargos improcedentes.
Insurgem-se os embargantes contra o decidido, com a seguinte fundamentação, que aqui se sintetiza:
- dando-se como assente a divergência entre as declarações prestadas e a realidade histórico-factual, a escritura pública não pode constituir título executivo de obrigações que não foram constituídas nos termos aí previstos:
- sendo um contrato de natureza real, o mútuo pressupõe a entrega de uma quantia, na ausência do qual o contrato é nulo, ou seja, inexigível;
- os vícios e inexigibilidade do mútuo estendem-se à fiança.

A questão a decidir no presente recurso passa por determinar se a circunstância de se dar como provada a inexistência do mútuo (por confissão do próprio exequente que, no requerimento inicial, alega que, ao contrário do declarado na escritura, a obrigação que aí se reconhece resultou, não de um qualquer empréstimo, mas de um acerto de contas entre as partes), afeta a exequibilidade da escritura exequenda através da qual os executados se confessaram devedores de determinas quantias aos exequentes e se obrigam ao respetivo pagamento em prestações.

Desde já se adianta que a resposta a dar a tal questão é necessariamente negativa, pelas razões que passamos a expor.

Os exequentes apresentam como título executivo uma escritura-pública outorgada no dia 24 de Julho de 2009, denominada pelas partes de “Contrato de Mútuo e Fiança”, na qual declaram:

Cláusula primeira: Os primeiros outorgantes celebraram com a representada do segundo outorgante um contrato de mútuo no âmbito do qual aqueles emprestaram a esta a quantia de em dinheiro de trezentos mil euros”, e

Clausula Segunda: “A referida sociedade confessa-se devedora da mencionada importância de Trezentos Mil euros e obriga-se a pagá-la aos 1ºs. outorgantes em três prestações, sem juros, vencendo-se (…).

Tal escritura pública constituiu título executivo enquanto documento autêntico que importa a reconhecimento de uma obrigação, nos termos previstos no artigo 703º, nº1, al. b) do NCPC.

O artigo 371º, ao definir a força probatória material dos documentos autênticos, distingue três categorias de factos[1]:

a) A primeira é a dos factos que o documento refere como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo. Estes factos não só se têm por verdadeiros, como se encontram cobertos pela força probatória plena do documento autêntico. A parte que pretender impugná-los terá de provar o contrário (não lhe aproveitando a simples contraprova – artigo 347º CC), o que só lhe será permitido arguindo a falsidade do documento (artigo 372º, nº1, do CC).

b) A segunda é a dos factos atestados com base nas perceções da entidade documentadora. Embora cobertos pela força probatória plena, esta só vai até onde alcançam as perceções daquela entidade. Na parte em que gozam de tal força probatória, hão de ter-se por plenamente provados, até prova do contrário, feita mediante o incidente de falsidade.

O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas – ou seja, quanto ao facto de terem sido feitas determinadas declarações; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes.

Estes factos – do foro interno dos outorgantes ou exteriores, por não ocorridos no ato da escritura, não sendo objeto de perceção por parte do funcionário documentador – podem ser impugnados por qualquer das partes, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estarem cobertos pela força probatória plena deste.[2]    

c) A terceira categoria de factos é a dos meros juízos pessoais (simples apreciações) do documentador – ex., no testamento, o notário declara que o testador se encontra na posse das suas faculdades mentais –, que não se encontram apoiadas pela força probatória plena do documento porque transcendem a área das perceções do documentador. Tais declarações encontram-se sujeitas à livre apreciação do julgador.

E é apenas esta força probatória plena, nos exatos limites acima referidos quanto aos factos referidos nas alíneas a) e b), que se impõe, quer aos sujeitos do ato jurídico, quer aos seus herdeiros ou representantes, quer a terceiros[3].

A força probatória dos documentos autênticos pode ser ilidida por nulidade ou por falsidade: por nulidade, quando não forem observados, na feitura do documento, os requisitos exigidos por lei sob pena de nulidade (formalidades, legitimidade do oficial público, competência deste); por falsidade, quando no documento o oficial público tenha declarado como tendo-se produzido, no ato da sua celebração alguma coisa que na realidade se não passou ou quando o próprio documento for suposto ou o for alguma das pessoas nele mencionadas como partes ou testemunhas ou for viciado o seu contexto, data ou assinatura[4] (nº2 do artigo 372º CC).

E, enquanto não for ilidida a sua força probatória, por falsidade, o documento autêntico é eficaz[5].

Daqui se retira que, quando os embargantes alegam que, ao contrário do declarado pelas partes e feito constar da escritura, não é verdade que os primeiros outorgantes tenham emprestado à embargante N (…), Lda., qualquer quantia em dinheiro, concretamente aqueles 300.000,00 €, tal impugnação nada tem a ver com uma eventual falsidade do documento, não contendendo com a sua força probatória.

Em conformidade com o acima exposto, a veracidade das declarações efetuadas pelas partes e exaradas na escritura nem sequer se encontra coberta ou abrangida pela força probatória plena do documento – quanto às declarações atribuídas às partes, o documento autêntico apenas prova plenamente que as mesmas foram feitas –, podendo ser impugnadas, nos termos gerais, as declarações documentadas, sem que o impugnante careça de arguir a falsidade do documento[6].

A discrepância entre a vontade real e a declarada integrará antes ou um vício na formação da vontade ou uma simulação[7].

Vejamos, assim, como poderão os embargantes, outorgantes na escritura pública que constitui o título exequendo, impugnar a veracidade das declarações apostas na mesma e que lhes são imputadas.

O Código Civil limita-se a definir a força probatória dos documentos autênticos, na parte em que têm força de prova plena, sendo omisso quanto ao seu valor na parte restante.

Assim, a doutrina vem entendendo que, na parte não abrangida pela força probatória plena, a força probatória dos documentos autênticos não poderá ficar aquém da atribuída pelos ns. 1 e 2, do artigo 376º, do CC, aos documentos particulares cuja autoria se mostre reconhecida[8]:

- de prova plena quanto às declarações (de ciência ou de vontade) atribuídas ao seu autor;

- de prova plena dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão.

Na parte em que contenham uma declaração confessória – enquanto reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária (artigo 352º CC) –, esta considera-se provada nos termos aplicáveis aos documentos autênticos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (nº2 do artigo 358º)[9].

No caso em apreço, temos duas declarações distintas: uma, através da qual os 1ºs. e os 2ºs. outorgantes declaram terem celebrado um contrato de mútuo, no âmbito do qual emprestaram à 2ª outorgante e aqui executada, N (…), Lda., a quantia de 300.000,00 €, e uma outra, pela qual esta se confessa devedora de tal importância aos aqui exequentes, comprometendo-se a pagá-la em três prestações.

E apesar da denominação atribuída pelas partes (“Contrato de Mútuo e Fiança”), do respetivo teor resulta que ele não incorpora qualquer declaração de vontade tendente à celebração de um contrato de mútuo – através das declarações apostas na escritura as partes não celebram um contrato de mútuo, referindo-se, tão só, a um negócio anterior celebrado entre os 1ºs. outorgantes e a aqui executada, servindo a referência a tal contrato como uma mera indicação da causa do reconhecimento da dívida a que se reporta a cláusula seguinte. Ou seja, na parte em que declaram ter celebrado um contrato de mútuo e na parte em que a aqui executada se confessa devedora da quantia mutuada, encontramo-nos perante meras declarações de ciência (já será declaração negocial aquela pela qual o 2º executado assume a qualidade de fiador e principal pagador de tal quantia).

Em relação à primeira, são os próprios exequentes a reconhecerem, no requerimento executivo inicial, que a existência da dívida que aí se confessa tem outra causa que não um contrato de empréstimo, resultando antes de um acerto de contas efetuado entre ambas.

De qualquer modo, permanece de pé a declaração dos exequentes, pela qual os executados se confessam devedores da quantia de 300.000,00 €, comprometendo-se a pagá-la em prestações, nas condições aí previstas.

E esta é nitidamente uma declaração confessória com a eficácia que lhe é atribuída pelo nº2 do artigo 358º do CC – tendo sido efetuada perante a parte contrária, encontra-se dotada de força probatória plena contra o confitente[10].

E que tal confissão ocorreu – no sentido de que a declaração confessória foi proferida pela 1ª executada – tem de ter-se por plenamente provado, por constar de documento autêntico (facto este que consta do ponto 1 dos factos dados como provados na sentença recorrida).

Mas a força probatória da confissão vai ainda mais além: não podendo o confitente em princípio invalidar a confissão, o adversário não carece de fazer outra prova do facto confessado e, ficando o juiz vinculado à confissão, tem de considerar verdadeiro o facto confessado[11].

José Alberto dos Reis atribui o seguinte significado ao princípio de que a confissão constituiu prova plena contra o confitente: “O facto sobre que versa a confissão considera-se provado plenamente; passa à categoria de facto sobre o qual não é admissível qualquer dúvida, isto é, de facto indestrutivelmente adquirido. Daí derivam os seguintes efeitos: a) quanto ao confitente – que ele não pode ser admitido, em princípio, a combater e destruir a sua própria confissão; b) quanto à parte contrária – que ela não precisa de produzir qualquer outra prova em relação ao facto confessado; c) quanto ao juiz – que tem necessariamente de admitir na sentença, como verdadeiro, o facto referido”[12].

Tal declaração confessória, porque inserta num documento autêntico só poderá ser impugnada pelo confitente por via da falsidade (questionando-se o facto de a mesma ter sido proferida) ou pela prova da falta ou vícios de vontade (questionando-se a sua veracidade) nº1 do artigo 359º[13].

A lei não permite ao confitente impugnar a confissão mediante a simples alegação de não ser verdadeiro o facto confessado, tendo, pelo contrário, que alegar a falta ou vícios de vontade, nomeadamente qualquer erro essencial[14].

Do regime contido no nº1 do artigo 359º do CC, respeitante à nulidade ou anulabilidade da confissão, resulta que para impugnar a força probatória da confissão (judicial ou extrajudicial), não basta ao confitente demonstrar que o facto confessado não corresponde à verdade, tendo de alegar o erro ou outra causa de falta (incapacidade acidental, simulação, reserva mental) ou vício de vontade (erro, dolo ou coação)[15].

Esta impugnação não se pode basear na simples desconformidade entre o que é afirmado e a realidade: caso o comprador tenha declarado ter recebido o preço, não bastará provar que tal pagamento não teve lugar, sendo também necessária a prova de que o confitente estava em erro quanto à verificação desse facto ou que emitiu tal declaração sob coação[16].

No caso em apreço, da escritura exequenda consta uma declaração confessória de dívida emitida pela 1ª executada, divida de que o aqui 2º executado se assume fiador.

Assim sendo, não lhes basta provar que nunca foi celebrado qualquer contrato de mútuo e que nenhuma quantia foi emprestada. Para impugnar eficazmente aquela declaração confessória, teriam, ainda, que alegar e provar que a 1ª executada se encontrava em erro perante tal circunstância, para afastar a força probatória da confissão de dívida nela contida[17].

Incorporando o título uma confissão de dívida, teriam de deitar por terra a própria confissão, através da invocação de algum vício de vontade que importasse a sua nulidade.

Ora, os embargantes não só não alegam que a 1ª executada estivesse em erro quando declara confessar-se devedora da quantia em causa, como no requerimento inicial de embargos, pelo qual deduzem oposição à execução, são completamente omissos quanto às razões que a levaram a declarar-se devedora de tal quantia às aqui exequentes (sendo absolutamente irrelevante tudo quanto é por si alegado nos artigos 22 a 29 do requerimento inicial de embargos, uma vez que de tais factos não resulta, sequer, porque motivo a 1ª executada se considerou devedora de tal quantia às exequentes).

Não se mostrando de algum modo afetada a confissão de dívida constante da escritura pública que constituiu o título executivo, e importando esta o reconhecimento da obrigação que aqui se pretende executar, o título em apreço mantém a sua exequibilidade.

A apelação é de julgar improcedente.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pelos Apelantes.

                                                                            Coimbra, 20 de abril de 2016

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. A força probatória do documento autêntico não abarca a materialidade das declarações emitidas pelas partes, pelo que a inveracidade destas não acarreta a falsidade do documento, não afetando a sua força probatória.

2. Incorporando a escritura exequenda uma declaração confessória de dívida, para afastar a sua exequibilidade não basta a prova de que nenhuma quantia foi mutuada, sendo necessária ainda a invocação e prova de qualquer causa de falta ou vício de vontade que afete tal declaração confessória.


[1] Cfr., neste sentido, Antunes Varela, que aqui seguimos de perto, “Manual de processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 520 a 523.
[2] José Lebre de Freitas dá, entre outros, os seguintes exemplos, do âmbito da força probatória plena de um documento autêntico:
- Quando um notário atesta, em escritura publica que em certa data se deslocaram ao seu cartório os senhores A e B, de cuja identidade se certificou pelos bilhetes de identidade que exibiram, que o senhor A declarou, perante ele, ter entregue determinada quantia ao senhor B, que este declarou ter recebido tal quantia, e comprometer-se a restituí-la dentro de um ano, ficam provadas a presença dos outorgantes, a data em que o fizeram, a produção das declarações que lhe são imputadas; mas já não fica provada, pelo documento enquanto tal, a entrega da quantia nela referida nem que o nome e os demais elementos de identificação dos outorgantes sejam efetivamente os que constam dos bilhetes de identidade apresentados.
- Pago o preço de uma compra e venda perante um notário, que o faz constar em escritura pública por ele celebrada, este facto é abrangido pela força probatória do documento, mas, se as partes se limitaram a declarar que o preço foi pago, apenas as declarações se consideram provadas. - “A Falsidade no direito probatório”, Almedina 1984, págs. 36 e 37.
[3] Neste sentido, José Alberto dos Reis, segundo o qual a razão de ser da força probatória vale igualmente para as partes e para terceiros, não podendo os terceiros, do mesmo modo que as partes, contestar a veracidade dos factos atestados pelo oficial público, enquanto não arguirem de falso o documento – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 382 e 383.
[4] Adriano Vaz Serra, “Provas (Direito Probatório Material)”, BMJ nº111, Dezembro 1961, pág. 108.
[5] Adriano Vaz Serra, (Provas (…), BMJ nº 111, pág. 116.
[6] Neste sentido, Adriano Vaz Serra, “Provas (…)”, BMJ nº 111, págs. 131 e 136.
[7] Segundo Lebre de Freitas, quando, perante um negócio jurídico, se põe o problema de saber se certa declaração negocial constante do documento que o formaliza – e abrangida pela força probatória – foi realmente feita, a questão é de falsidade; mas quando se formula a questão de saber se essa declaração, que foi de facto emitida, corresponde a uma vontade negocial real do declarante e se, não correspondendo, entre este e o declaratário foi feito um acordo no sentido de a declaração ser feita em prejuízo de terceiro, o problema é de simulação “A A Falsidade no Direito Probatório”, Almedina 1984, págs. 40 e 41, nota (74).
[8] Entre outros, José Lebre de Freitas, “A Falsidade no Direito Probatório”, Almedina 1984, pág. 38.
 [9] Dispõe o nº2 do artigo 358º, do CC, “a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.
[10] Segundo Adriano Vaz Serra, o motivo por que a confissão faz prova contra o confitente está em que, segundo uma regra de experiência, quem reconhece a verdade de um facto em si desfavorável é porque sabe ele ser verdadeiro – “Provas (Direito Probatório Material), BMJ nº 110, pág. 211.
[11] Neste sentido, Adriano Vaz Serra, BMJ nº 111, pág. 17.
[12] “Código de Processo Civil Anotado” IV Vol., Coimbra Editora, pág. 96.
[13] Segundo José Lebre de Freitas, a confissão constitui um meio de prova pleníssima no sentido de não admitir prova em contrário e de a sua impugnação só pode ser efetuada pela invocação da falta ou vícios de vontade – “A Confissão no direito probatório”, págs. 249 e 744 e 745.
[14] Fernando Pereira Rodrigues, “A prova em Direito Civil”, Coimbra Editora, pág. 43.
[15] Rita Barbosa Cruz, “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Coordenação de Luís Carvalho Fernandes e João Brandão Proença, Universidade Católica Editora, pág. 838; ou, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, a lei não permite ao confitente impugnar a confissão mediante a simples alegação de não ser verdadeiro o facto confessado: para tanto há de alegar o erro ou outro vício de que haja sido vitima.
[16] Neste sentido, José Lebre de Freitas, “A Falsidade no direito probatório”, pág. 40, nota 70.
[17] Em igual sentido se pronuncia, entre outros, o Acórdão do STJ de 31.05.2011, relatado por Salazar Casanova, disponível in www.dgsi.pt.