Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2420/09.6TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
PERDA
PERSONALIDADE JURÍDICA
EXTINÇÃO
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 05/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º DO CIRE; 5º, 141º, 146º E 160º DO CSC
Sumário: I – Definindo o escopo do processo de insolvência, dispõe o artº 1º do CIRE ser este um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência).

II – As sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica e existem, como tais, desde a data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem (artº 5º do CSC), dissolvendo-se nos casos estabelecidos no artº 141º do CSC, designadamente por deliberação dos sócios (al. b) do nº 1 do artº 141º).

III – A sociedade dissolvida por deliberação dos sócios entra em imediata liquidação (artº 146º e ss CSC), finda a qual cabe aos liquidatários requerer o registo do encerramento desta (artº 160º, nº1, CSC).

IV – Embora já dissolvida, enquanto perdurar a liquidação a sociedade mantém a personalidade jurídica, que só finda com a sua extinção, o que ocorre com o registo de encerramento da liquidação (artºs 146º, nº 2, e 160º, nº 2, CSC).

V - Uma sociedade comercial dissolvida por acordo dos sócios não pode, depois de extinta, ou seja, depois de registado o encerramento da respectiva liquidação, ser objecto de processo de insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, "A....", pessoa colectiva n.° ...., com sede ....., veio requerer, ao abrigo do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante CIRE)[1], que fosse decretada a insolvência dolosa da sociedade “B....”, pessoa colectiva n.° ...., com sede ......

Sustentou, em síntese, que, sendo credora da Requerida, se verificava a previsão do artigo 20° n° 1 a) do CIRE, sendo que, não obstante a sociedade em causa ter sido declarada dissolvida e liquidada por deliberação dos sócios - o que foi levado ao registo -, só foi isso possível por haver sido declarado, também, que todas as dívidas da sociedade estavam liquidadas, o que era e é falso, pelo tal declaração é nula, nos termos do artigo 157° do CSC e 294° do CC, estendendo-se essa nulidade ao registo da dissolução e liquidação.

B) - C...., referindo ter sido sócio gerente da Requerida e ter recebido a citação a ela dirigida, veio declarar, para além do mais, que:

- Assumiu que pagaria qualquer débito da “ B....” desde que este estivesse em consonância com o valor acordado e desde que a Requerente lhe entregasse as pastas da contabilidade e os recibos de todas as quantias que lhe foram pagas;

- Não existem credores da empresa, nem qualquer acção ou execução em Tribunal contra ela, nem a empresa ficou credora de ninguém;

- Não existem quaisquer bens da empresa, sendo falso o que se diz quanto a stocks ou elaboração de facturas, sendo que a contabilidade da Requerida ficou na “ A....”;

- Inexistindo a empresa em causa - já que a mesma estava já dissolvida e “encerrada” como consta do documento junto pela Requerente - não pode ser declarada a sua insolvência.

Do documento de fls. 12, junto pela Requerente - certidão oriunda da Conservatória do Registo Comercial de Viseu - resulta estar registada, com a apresentação 7, datada de 29-05-2009, a dissolução e encerramento da liquidação da Requerida (inscrição 4) e que, pela mesma apresentação, foi efectuado o cancelamento da respectiva matrícula (inscrição 5).

C) - O Mmo. Juiz do Tribunal “a quo” considerando que o facto extintivo da personalidade jurídica da sociedade é a liquidação do seu património, tendo ocorrido e sido levada ao registo, “in casu”, a declaração do encerramento dessa liquidação, indeferiu a acção por falta de personalidade jurídica da Requerida, que absolveu da instância.

II - Deste despacho recorreu a Requerente, que, nas suas alegações de recurso - que veio a ser recebido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo -, apresentou as seguintes conclusões:

[……………………]

III - Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[2], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [3]).

Assim, a questão a solucionar é a de saber se foi correcta a decisão recorrida fundada no entendimento de que a Requerida carecia de personalidade judiciária, por estar já extinta.

IV - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir estão enunciados em I “supra”.

B) - Definindo o escopo do processo de insolvência, dispõe o art.º 1º do CIRE ser este um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência).

As sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica e existem, como tais, desde a data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem (artigo 5.º do CSC), dissolvendo-se nos casos estabelecidos no artigo 141.º do CSC, designadamente, por deliberação dos sócios (alínea b) do n.º 1 do referido artigo 141º).

A sociedade dissolvida por deliberação dos sócios, entra em imediata liquidação (art.ºs 146.º e ss.), finda a qual cabe aos liquidatários requerer o registo do encerramento desta (art.º 160º, nº 1, do CSC).

Embora já dissolvida, enquanto perdurar a liquidação, a sociedade mantém a personalidade jurídica, que só finda com a sua extinção, o que ocorre com o registo de encerramento da liquidação (artºs 146º nº 2 e 160º, nº 2, do CSC).

A circunstância de uma sociedade comercial estar já extinta, carecida, pois de personalidade jurídica e judiciária, obsta a que se requeira a sua insolvência[4], pois que sempre implicaria, ainda que não se esbarrasse, desde logo, com a falha desse pressuposto processual (insuprível), que se concluísse pela impossibilidade de atingir o escopo visado pelo processo, pelo que a declaração de insolvência se apresentaria, pela sua manifesta inviabilidade, como pretensão a desatender.

É isso, precisamente, que se passa no caso “sub judice”, pois que antes da instauração do processo já a sociedade Requerida estava extinta, registada que foi, com a apresentação 7, datada de 29-05-2009, a sua dissolução e encerramento da liquidação, bem como o cancelamento da respectiva matrícula.

A Requerente invoca na petição inicial (art.º 25º), em favor da possibilidade de ser declarada a insolvência da Requerida, identificando-o com o nº SJ20081106017402, Acórdão do STJ. Não atentou, porém, que esse arresto - trata-se do Acórdão de 11/06/2008 (Revista nº 08B1740) - versa situação diversa da presente, tendo relevado para o aí decidido, precisamente, a circunstância de não se considerar demonstrado que a sociedade em apreço já se encontrasse extinta.

Mas não é esse, como vimos, o caso da sociedade cuja insolvência aqui se requereu.
Pressupondo, o processo de insolvência a requerimento do credor da sociedade comercial devedora, que esta seja dotada de personalidade judiciária (excepcionado o caso previsto na alínea e) do nº 1, do art.º 2 do CIRE, que aqui é descabido) entende-se carecer de sentido que se requeira a insolvência de sociedade já extinta, ainda que, concomitantemente, se argua a nulidade da declaração efectuada pelos sócios, para efeitos de dissolução da sociedade, quanto à inexistência de passivo, até porque, desde logo, a actividade processual necessária à indagação da factualidade atinente a uma tal arguição, não se molda ao “iter” ou ao escopo do processo de insolvência.
Acresce que não se vê, que a declaração dos sócios, alegadamente desconforme com a realidade por eles conhecida, quanto à inexistência de dívidas, tenha o efeito defendido pela Requerente, desde logo porque a lei, prevendo a existência de passivo não acautelado, apenas estabelece a possibilidade de o credor responsabilizar os antigos sócios - representados na pessoa dos liquidatários - em acção contra eles proposta (art.º 163º, nºs 1 e 2, do CSC)[5] [6].
Diga-se, que também no caso de os liquidatários, com culpa, indicarem falsamente, nos documentos que se aludem nos art.ºs 157º e 158º, nº 1, do CSC, que os direitos de todos os credores da sociedade estão satisfeitos ou acautelados, estabelece a lei serem aqueles pessoalmente responsáveis, se a partilha se efectivar, para com os credores cujos direitos não tenham sido satisfeitos ou acautelados, embora ficando, se não tiverem agido com dolo, com direito de regresso contra os antigos sócios (art.º 158º, nº 1, do CSC).

A relevância da declaração, à data de dissolução, da inexistência de dívidas, surpreende-se na possibilidade de se proceder logo à partilha dos haveres sociais, pela forma prescrita no artigo 156.º (art.º 147º, nº 1, do CSC).

Extinta, a sociedade comercial, na sequência de deliberação dos sócios em dissolvê-la, não é essa extinção susceptível de ser posta em causa por credor da sociedade com base na falsidade da declaração, aquando da dissolução, de inexistência de passivo a essa data.

Sem referência a dados concretos (montante e vencimento, etc.), no articulado oferecido pelo antigo sócio gerente da Requerida, entende-se inexistir qualquer de confissão da dívida, tanto mais que os termos em que a matéria aí é referida mais sugerem um compromisso dele próprio ao pagamento daquilo que fosse apurado nas condições que indica. Discorda-se, pois, do afirmado na decisão recorrida quanto à existência de confissão de dívida.

Tendo os factos levados a registo sido a dissolução da sociedade e o encerramento da liquidação, entende-se incorrecto, também, afirmar, como se faz na decisão recorrida face ao que alegado foi pelo antigo sócio da Requerida, que: “…havendo dívidas e tendo sido registada a liquidação do património, ter-se-á que concluir que o facto levado a registo não é verdadeiro, havendo assim uma falsidade entre o conteúdo do documento - registo - e a realidade, facto esse que é sabido pelos sócios e por quem promoveu o registo.”.

Em todo caso e ao invés daquilo que a Apelante afirma nas suas alegações, em lugar algum da sentença se afirmou a existência de acto nulo.

O Tribunal “a quo” não infringiu, pois, na decisão impugnada, as normas cuja violação a Apelante lhe imputa.

Em síntese, dir-se-á, pois:

A sociedade comercial dissolvida por acordo dos sócios, não pode, depois de extinta, ou seja, depois de registado o encerramento da respectiva liquidação, ser objecto de processo de insolvência.

V - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.

Valor tributário: € 30.000,00 (art.º 301º do CIRE)


[1] Código este aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/03.
[2] Os preceitos que deste Código forem citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção introduzida pelo DL n.º 304/07, de 24/08.
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante forem citados sem referência de publicação.
[4] Cfr. em idêntico sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 07/12/2009 (Apelação nº 608/08.6TYVNG-A.P1 - 5ª Sec.), consultável em “http://www.trp.pt/jurisprudenciacivel/civel_608/08.6tyvng-a.p1.html”.
[5] Cfr. Acórdão do STJ de 26 Junho 2008, in Colectânea de Jurisprudência - STJ - nº 208 Tomo II/2008, págs. 138 e ss..
[6] Cfr., também, embora versando declaração dos sócios no sentido de inexistir activo a partilhar, o Acórdão da Relação do Porto de 26/05/2009 (Agravo nº 275-D/2000.P1 - 2ª Sec.), consultável em “http://www.trp.pt/jurisprudenciacivel/civel_275-d/2000.p1.html”.