Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
546/21.7T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
PAGAMENTO DO PREÇO
SIMULAÇÃO QUANTO AO PREÇO
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 240.º, 241.º E 406.º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Se num contrato-promessa de compra e venda se anui que o preço a pagar pelo terreno é de 195mil euros, acrescido de um lote futuramente a destacar e a entregar pelo comprador ao vendedor, este conspecto não consubstancia um contrato autónomo de permuta de bem futuro, mas antes constitui ainda o pagamento do preço total, em espécie, e atinente ao mesmo e único contrato de compra e venda.

II - Havendo simulação apenas quanto ao preço na escritura definitiva, para fuga aos impostos, e tendo a escritura sido outorgada na forma legal, inexiste nulidade do negócio dissimulado naquele conspecto, devendo ele ser cumprido nos seus precisos termos anuídos, inclusive com pagamento da parte do preço em espécie.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM  OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA  RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA e BB, instauraram  contra I..., Lda, todos com os sinais dos autos,  ação declarativa, de condenação,  com processo comum.

Pediram que o tribunal:

a) declare a nulidade relativa, por simulação do preço, do contrato de compra e venda;

b) reconheça o direito dos autores à parcela a desanexar ao prédio rústico supra identificado, designadamente:

c) condene a ré a dar em pagamento aos autores dos 5.000m2 rústicos do prédio supra identificado;

d) ou, subsidiariamente, condene a ré no pagamento aos autores da quantia de 72.540,00€, correspondente ao valor comercial dos 5.000m2 rústicos do prédio supra identificado, localizado no concelho ..., naquela concreta localização – e que ultrapassado o prazo de 60 dias conferido à ré para cumprimento da aludida obrigação, sem que este se exonere, efetuando a prestação que, por opção sua, vier a ser designada, se entende caber deixar-se a cargo dos autores essa mesma escolha, tudo correspondente ao remanescente em dívida do preço relativo ao preço do  negócio dissimulado.

Para tanto, alegaram, em síntese:

CC, já falecido, era marido da autora e pai do autor e que são eles os seus únicos herdeiros.

O falecido, em data anterior a .../.../2007, mas inferior a 1 ano relativamente a tal data, celebrou com a ré um contrato promessa de compra e venda, nos termos do qual aquele prometeu vender a esta, que lhe prometeu comprar, o prédio rústico, melhor identificado nos autos, pelo preço global de 195.000,00€, tendo convencionado à data da celebração de tal contrato que a ré tinha entregado ao falecido a quantia de 115.000,00€, tendo ficado ainda convencionado que em data ulterior lhe pagaria a quantia de 60.000,00€ e que em setembro de 2007 lhe entregaria o remanescente do preço acordado, no valor de 20.000,00€.

Para além daqueles valores, nas cláusulas 4ª e 5ª de tal acordo convencionaram que a ora ré se vinculava ainda a dar em pagamento lotes de terreno para construção, já urbanizados, a saírem do mencionado prédio, e no mínimo com a área de 2.000m2 no seu total, sendo escolhidos por sorteio, ou, subsidiariamente, caso assim não fosse possível até ao ano de 2017, por não aprovação do respetivo projeto de loteamento, em vez dos lotes, 5.0002 desse mesmo prédio, também por sorteio no que se refere à localização.

No dia .../.../2007, entre o falecido e a ré foi outorgada uma escritura pública de compra e venda do referido prédio, pelo referido preço de 195.000,00€, encontrando-se já liquidada a quantia de 175.000,00€, tendo a ré pago posteriormente os restantes 20.000,00€, mas que em tal escritura ficou a constar como preço apenas o valor de 115.000,00€ e que, contrariamente ao também acordado, não ficaram a constar as demais obrigações resultantes para a ré do referido contrato promessa (entrega dos lotes de terreno).

O declarado na escritura de compra e venda não espelha a vontade das partes, mas que as partes quiseram celebrar tal contrato nos termos acordados no contrato promessa, não tendo a ré entregado aos autores os lotes de terreno que se comprometeu entregar, não tendo sequer efetuado o loteamento do terreno em causa, sendo que um lote de terreno para construção com a área de 5.000m2, naquela concreta localização, tem o valor de, pelo menos, 72.540,00€.

A ré contestou.

Alegou:

O contrato promessa e o contrato de compra e venda foram ambos outorgados no dia .../.../2007, havendo manifesto lapso na data aposta naquele contrato como sendo o dia 27/05/2007 (artigo 10º), e que o preço acordado entre as partes é o declarado na escritura de compra e venda celebrada, ou seja, apenas o valor de 115.000,00€ (artigo 5º), sendo estranhos ao contrato promessa os valores de 60 mil e de 20 mil euros (artigo 11º).

O falecido solicitou ao representante da ré, por diversas vezes, empréstimos para cobrir despesas e quantias em dívida, que este lhe emprestou (artigo 16º e 17º); que a cláusula 3ª do contrato promessa não está correta, porque o comprador teve que adiantar essas importâncias a pedido do vendedor, que tinha várias dívidas e o terreno hipotecado ao ... (artigo 23º); que o representante da ré pagou quantias bem mais avultadas da responsabilidade do falecido (artigo 25º)

Ficou registado sobre o prédio em causa, pelo período de 10 anos e a contar de 04/05/2005, o ónus de não fracionamento (artigo 7º) e que o loteamento não foi efetuado porque não houve alargamento do PDM para o terreno em causa e porque o vendedor teria já um projeto de loteamento que não entregou, pelo que não se pode ali construir (artigos 28º e 30º).

Contraditoriamente, com o antes afirmado, alegou nos artigos 32º e ss. e 51º que, não sendo possível o loteamento e a entrega de lotes, “ambos acordaram na posterior hipótese havida”, pelo que restava a cedência dos 5.000m2 de terreno, mas que tal cedência, estando em causa um terreno de cultura e pastagem, consubstanciava um destaque ilegal, de onde resulta que a obrigação de cedência de tais 5.000m2 cessou por motivos estranhos às partes, tendo deixado de existir, até porque o prejuízo sofrido com os autores, a existir, seria um prejuízo insignificante.

Os autores instauraram a presente ação deduzindo pretensão em termos idênticos aos que tinham feito no processo n.º 719/19...., pedindo a condenação dos autores como litigantes de má fé e a apensação de tal processo.

Pediu:

A improcedência da ação.

O tribunal proferiu despacho pré-saneador, tendo convidado os autores a clarificar e aperfeiçoar a petição inicial.

Os autores juntaram aos autos cópia da escritura de compra e venda, clarificando que a causa de pedir se centra no contrato de compra e venda e que o alegado a propósito do contrato de promessa é apenas como princípio de prova da simulação, tendo sustentado a simulação do preço na escritura pública, com intenção de prejudicar a fazenda nacional, pelos impostos não pagos.

Mais os autores juntaram comprovativos de pagamentos efetuados pela ré e seu representante, que não foram impugnados pela ré.

A ré suscitou a existência de caso julgado relativamente à anterior ação, exceção que o tribunal julgou extemporânea, sem prejuízo de o tribunal poder vir a conhecer oficiosamente da mesma, se os autos fornecessem elementos para o efeito.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

I - Indeferir a invocada exceção de caso julgado pela ré;

II - julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Declarar a nulidade relativa, por simulação do preço, do contrato de compra e venda celebrado entre as partes;

b) Julgar improcedente o demais peticionado pelos autores, absolvendo a ré de tais pedidos;

c) Condenar a ré como litigante de má fé, na multa processual no valor de 10 (dez) UC.

Condenar as partes nas custas do processo e na proporção do decaimento, que se fixou em 50% para cada parte …

3.

Inconformados recorreram os autores.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

 a) O tribunal recorrido declarou a nulidade relativa, por simulação, do preço reportado ao contrato de compra e venda celebrado entre as partes, sem que, todavia, reconhecesse o direito dos autores à parcela de terreno a desanexar que haviam peticionado conjuntamente.

b) Sucede, porém, que o tribunal, não obstante ter dado por provado os pontos vertidos em 1., 4., 5., 13., 15., 16., 18., 19. e 22. da matéria factual, não assacou qualquer responsabilidade à ré nesse sentido, sendo certo que, entendem os autores, impõem tais factos decisão manifestamente diversa da proferida.

c) A entrega dos lotes ou, subsidiariamente, da parcela de terreno, integra uma modalidade de pagamento indissociável ao contrato de compra e venda (negócio dissimulado), modalidade de pagamento essa que resulta de forma expressa e inequívoca do contrato-promessa de compra e venda celebrado pelas partes e validamente reconhecido como tal quer por estas quer pelo tribunal recorrido.

d) Por maioria de razão, não poderá dar-se para um efeito por válido o negócio dissimulado relativamente ao preço monetário a entregar pela venda (que o tribunal não se inibe de considerar parcial) e, em simultâneo, nada decretar relativamente à nulidade face ao objeto não se encontrar totalmente abrangido no contrato celebrado (como entende) e, como reiteram os autores, por não ter sido integralmente pago o que terá sido acordado.

e) Beneficiando, assim, na compra, a ré de um preço muito abaixo do valor de mercado que seria devido aos autores.

f) Ainda que assim se não entenda, o tribunal recorrido entendeu que o preço, ou seja, a tranche em dinheiro efetivamente liquidada, não englobou a transmissão de todo o prédio, não obstante, é certo, não assaca qualquer consequência dessa mesma constatação que resulta, nomeadamente, da matéria factual dada por provada.

g) Na verdade, reconhece o tribunal recorrido que a obrigação de pagamento da ré apenas seria suscetível de se extinguir integralmente com o cumprimento do contratado, ou seja, liquidação da importância monetária a par da entrega dos lotes ou, subsidiariamente, da parcela de terreno, o que não se verificou até à presente data, encontrando-se em incumprimento por maioria de razão.

h) Pelo que erra manifestamente o tribunal recorrido ao desconsiderar a unidade de negócios jurídicos que eventualmente poderiam coexistir por referência ao único documento autenticado que reflete a verdadeira vontade das partes: o contrato-promessa de compra e venda (nomeadamente, fator essencial como princípio de prova).

i) Errando ao absolver a ré do demais peticionado.

j) É que, sendo uno o negócio jurídico a celebrar entre as partes em decorrência do contrato-promessa de compra e venda, então, no entender do tribunal recorrido, deveria considerar-se integralmente nulo, por simulação o negócio de compra e venda e, ao invés, considerar-se que tal contratualização assentaria antes, em exclusivo, em eventual contrato de permuta com pagamento do remanescente do valor a atribuir aos lotes ou parcela de terreno em valor monetário.

k) Atento o sobredito, o enquadramento fáctico e jurídico espelhado na sentença recorrida proferida pelo tribunal a quo sempre impõe a condenação integral da ré nos pedidos deduzidos pelos autores.

Em face do exposto, o Tribunal recorrido na sentença proferida violou o disposto nos artigos 414º, 607º, nº 4, 615º, n.º 1, al. c) todos do CPC a par dos artigos 238º, n.º 2, 240º, 242º, n.º 1, 289º, 351º, 392º, 394º, n.º 2, 874º, 879º e 883º todos do Código Civil, devendo, por isso, ser revogada e, numa boa aplicação do Direito, ser a recorrida condenada integralmente no peticionado.

Nestes termos, com o Douto suprimento do Tribunal, se defende que o presente Recurso de Apelação deve ser provido e, em consequência, deverá revogar-se a sentença recorrida na parte em que julga improcedentes os demais pedidos deduzidos pelos autores e ser substituída por outra que condene integralmente a recorrida nos pedidos contra ela formulados, com todas as devidas e legais consequências.

Contra alegou a ré, pugnando pela manutenção do decidido com as seguintes asserções finais:

-- Correu termos pelo Tribunal Judicial da comarca ... a ação com processo comum nº 719/19.... que foi julgada improcedente por não provada, conforme sentença  de 1 de outubro de 2019, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de  17.02.2020, ambos transitados em julgado (ação e acórdão da Relação de Coimbra).

 2ª -- Está também pendente neste mesmo Tribunal Judicial da Comarca ..., a ação de processo comum nº .../21.

-- Ambas as ações  (a pendente e  a  que  a  precedeu)  têm  os  mesmos sujeitos processuais sujeitos bem como iguais causas de pedir e também iguais pedidos.

-- Estamos perante uma exceção perentória de caso julgado -- arts.576º e 579º do CPC  -- de julgado material - exceção perentória essa do conhecimento oficioso e que como consequência a absolvição do pedido na presente ação nº 546/21.....

5ª -- A Ré - I..., Lda, na ação de processo comum supra identificada que lhes movem os Autores BB e AA, vem esclarecer o seguinte: A Ré  contestou os facto 56º e 58º do seu articulado: Correu termos no Tr5ibunal Judicial da comarca ..., Juízo Central Cível e Criminal ... - Juiz1, processo 719/19.....

-- Por sentença proferida, a ação foi julgada improcedente, tendo havido recuso da sentença por Acórdão da Relação, transitados em julgado                                    

7ª -- Confira-se, deste modo,, uma exceção processual de  litispendência  e  caso julgado. Arts. 579º e 580º do CPC.

-- Quer a presente ação  nº 546/21.... que está pendente quer a ação a  nº 719/19.... têm os mesmos sujeitos processuais, as mesmas causas de pedir e  os mesmos pedidos  processuais,  pelo  que estamos perante uma excessão perentória - caso julgado material - arts. 576º e 579º do CPC -- excessão perentória essa com conhecimento oficioso e que tem como consequência a absolvição do pedido nesta ação.

-- No ,mencionado caso julgado material, expressa a lei que. transitados em julgado, os despachos, as sentenças e os acórdãos, a decisão sobre a relação material tem a força obrigatória nos casos limites fixados pelos artigos 497º e 498º do CPC, abrangendo todas as possíveis qualificações do objeto apreciado.

10ª -- O caso julgado material tem a força obrigatória no processo e fora dele impedindo que o mesmo  ou outro Tribunal ou qualquer outra autoridade possa definir em termos diferentes o direito concreto.

11ª -- Naquilo  que se refere aos valores de 60.000,00€ e de 20.000,00€ não corresponde a facto real algum concreto e nada há que se possa dar como simulado nem com base alguma que defina esses valores.

 12ª -- Naquilo em que o objeto da segunda  ação seja idêntico da decisão da primeira ação, o caso julgado opera pela via de exceção (de caso julgado) impedindo o Tribunal de proferir nova decisão.

13ª-- Independentemente do caso julgado material que se verifica, os  Autores  fundamentam o litígio com base no contrato de compra e venda nulo por simulação (relativa) do preço declarado, celebrado por escritura pública.

14ª -- Não corresponde à realidade o alegado quanto à pretensa simulação (relativa) nem se conclui que haja simulação do preço; - estamos perante uma situação de caso julgado material e que só por si se sobrepõe a uma pretensa simulação sem efeito algum.

4.
Sendo que, por via de regra - artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção, o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Procedência do pedido de condenação da ré a reconheçer o direito dos autores à parcela dos 5.000m2 rústicos a desanexar do prédio rústico, ou, subsidiariamente, condenação da ré no pagamento aos autores da quantia de 72.540,00€.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos que urge considerar.

1. Entre CC (primeiro outorgante) e a ré (segunda outorgante), representada pelo seu gerente, DD, foi formalizado um escrito particular, que ambos assinaram, datado de “27 de maio de 2007”, nos termos do qual aquele prometeu vender a esta, que prometeu comprar-lhe, o prédio rústico, composto por terra de cultura e pastagem, sito ao ..., na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...57 (que corresponde ao atual artigo 4664) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...00;

2. Na cláusula 2ª de tal escrito consignaram: “A título de sinal e como princípio de pagamento, o primeiro recebeu nesta data do segundo a quantia de cento e quinze mil euros, sendo este o preço que ficará a constar da escritura de compra e venda”;

3. Na cláusula 3ª de tal escrito consignaram: “O segundo, em nome da sua representada, obriga-se a pagar ao primeiro, no acto da escritura, mais a quantia de sessenta mil euros e ainda mais vinte mil euros no mês de Setembro do corrente ano de 2007”;

4. Na cláusula 4ª de tal escrito consignaram: “Para além destes valores em dinheiro, o segundo obriga-se ainda a dar em pagamento ao segundo lotes de terreno para construção, já urbanizados, a saírem do prédio objeto do contrato e no mínimo com a área de dois mil metros quadrados no seu total, sendo escolhidos por sorteio”;

5. Na cláusula 5ª de tal escrito consignaram: “Para a hipótese de, até ao ano de 2017, não ser possível essa entrega dos lotes por não ter sido aprovado o respetivo loteamento do imóvel, então o segundo terá de dar ao primeiro, em vez dos lotes, cinco mil metros quadrados, rústicos, desse mesmo prédio, também por sorteio no que se refere à sua localização no prédio”;

6. Na cláusula 6ª de tal escrito consignaram: “A escritura será outorgada no dia 4 de Maio próximo, pelas 15 horas no Cartório Notarial ...”;

7. Na cláusula 7ª de tal escrito consignaram: “No mais regem as disposições legais aplicáveis”;

8. Na cláusula 8ª de tal escrito consignaram: “Independentemente do demais previsto na lei, o presente contrato pode ser sempre objeto de execução específica”;

9. Mediante escritura pública de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial ..., no dia 4 de maio de 2007, onde compareceram como primeiros outorgantes CC e esposa, AA, e como segunda outorgante a ora ré I..., Lda, representada pelo seu gerente DD, os primeiros outorgantes declararam que pelo preço de 115.000,00€, que já receberam da segunda outorgante, vendem a esta o prédio rústico sito em ..., na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...57 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...00, tendo a segunda outorgante declarado que aceita o contrato nos termos exarados;

10. O denominado pelas partes como contrato promessa de compra e venda foi celebrado em data anterior a 04.05.2007 e em tempo inferior a um ano relativamente a tal data;

11. Entretanto, faleceu CC, respetivamente pai e cônjuge dos autores;

12. A ré entregou ao falecido CC, no âmbito dos referidos contratos, a quantia de 195.000,00€;

13. A ré vinculou-se, no referido contrato promessa, a obter as licenças e demais documentação relevante e necessária para que o loteamento fosse aprovado;

14. O montante que consta da escritura de compra e venda como preço (115 mil euros) havia sido previamente pago, a título de sinal, aquando da celebração do denominado contrato-promessa de compra e venda;

15. Em maio de 2017 não havia sido efetuado ainda o loteamento do terreno objeto do contrato, situação que se mantém atualmente;

16. Os autores, a 23.07.2018, remeteram carta registada à ré, assinalando o incumprimento do contrato pela ré, tendo-a interpelado para o cumprimento do contrato-promessa ou, em alternativa, proceder à avaliação da parcela de 5.000m2 de terreno;

17. A ré não respondeu aos autores;

18. Ao contrário do declarado na escritura pública, o preço monetário global acordado entre as partes na decorrência da aludida compra e venda do prédio em causa é de 195.000,00€ e não de apenas 115.000,00€;

19. Mais se tendo obrigado a ré a dar em pagamento lotes de terreno para construção, já urbanizados, até ao ano de 2017;

20. À data da celebração do contrato-promessa de compra e venda, o principal objetivo do negócio, para ambas as partes, prendia-se com o loteamento do prédio para posterior construção;

21. As partes, com a celebração do contrato-promessa de compra e venda, pretenderam estipular todas as condições relativas à compra e venda e não apenas assegurar a celebração da escritura de compra e venda;

22. A ré reconhece que a entrega dos lotes não foi possível até ao ano de 2017 por não ter sido aprovado o respetivo loteamento do imóvel objeto de compra e venda, entendendo, por consequência, não haver lugar à cedência de lote algum;

23. As partes, ao mencionarem na escritura pública de compra e venda o preço de 115.000,00€, ao invés do preço efetivamente acordado entre as partes (de 195.000,00), fizeram-no com o intuito de enganar o estado relativamente aos impostos devidos, liquidando valores inferiores de impostos;

24. O terreno do prédio em causa tem natureza rústica, sendo composto por terra de cultura e pastagem, com fruteiras e videiras;

25. O prédio em causa encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...06, constando como titular inscrito do direito de propriedade, pela ap. ... de 06/05/2004, CC, casado com AA, sob o regime de comunhão de adquiridos, constando, ainda, registado, sob a ap. ... de 04/07/2005, o ónus de não fracionamento pelo período de 10 anos, nos termos do artigo 6º/6 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12.

6.

Apreciando.

6.1.

Liminarmente.

A ré contra alegou pugnando, essencialmente, que existe caso julgado, exceção dilatória que implica a absolvição da instância e o não conhecimento de mérito na presente ação.

Certo é que a 1ª instância conheceu desta temática pronunciando-se no sentido da inexistência de tal exceção.

Porém, a ré não recorreu, adrede, e inequivocamente, como devia, independente ou, sequer, subordinadamente  – artºs  637º e 633º do CPC.

Limitando-se, como aludido, a expor tal temática apenas em sede de contra alegações.

Mas tal não basta, exigindo-se, ex vi dos princípios da substanciação, do dispositivo e da auto responsabilidade das partes, uma tomada de posição, formal,  expressa e inequívoca, no sentido do recurso.

E mesmo que assim não fosse ou não se entenda, esta pretensão sempre estaria votada ao insucesso.

E pelas razões vertidas na sentença, a saber:

«…não obstante as partes serem as mesmas em ambos os processos e alguns dos pedidos serem os mesmos, as causas de pedir são diversas, sendo diverso o pedido principal formulado em ambos os processos – que se prende, na primeira ação, com a declaração de incumprimento do contrato promessa de compra e venda e efeitos daí resultantes e, na segunda ação, com a declaração da nulidade do contrato de compra e venda, por simulação, e efeitos daí resultantes.

No que concerne à causa de pedir, analisando a referida documentação, verifica-se que o que estava em causa na anterior ação era a celebração entre as partes de um contrato promessa de compra e venda e o seu incumprimento pela ré.»

E assim é.

Estamos perante causas petendi diversas, o que é o bastante para afastar tal exceção.

6.2.

O Sr. Juiz decidiu com base no seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«…as partes simularam o contrato de compra e venda, tendo dissimulado um outro contrato de compra e venda em que o mesmo prédio foi vendido pelo preço de 195.000,00€ e ainda com a obrigação da ré de entregar ao falecido (agora na pessoa dos seus herdeiros) lotes de terreno urbanizados ou um lote de terreno rústico com a área de 5.000m2 – temos, assim, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada.

Fizeram-no previamente acordados com a intenção de enganar a fazenda nacional, liquidando/pagando impostos inferiores aos que seriam devidos – temos, assim, o acordo simulatório com intenção de enganar terceiros.

Sendo nulo o negócio simulado, questiona-se se é válido e em que termos é válido o negócio dissimulado. A este respeito, pese embora a existência de entendimentos divergentes, tem vindo a ser entendido de forma dominante pela jurisprudência que a validade do negócio dissimulado não é afetada pela invalidade do negócio simulado, desde que tenha sido observada a forma legalmente exigida para a validade do negócio dissimulado.

Ainda assim…importa ter em consideração que existe um outro negócio dissimulado (e encoberto) cujo alcance tem que ser perfeitamente entendido, a fim de aferir se as exigências de forma se encontram satisfeitas.

Na verdade, as partes, para além da compra e venda do prédio pelo preço real (dissimulado) de 195.000,00€, emitiram, ainda, outras declarações negociais, de onde resulta que aquele preço não englobou a transmissão de todo o prédio, já que parte desse mesmo prédio foi objeto de (contrato) de permuta/troca por bens futuros, tendo o transmitente transmitido o direito de propriedade sobre essa parte do prédio contra a entrega de lotes de terreno pelo adquirente, seja lotes de terreno urbanizados com a área total de 2.000m2, seja um lote de terreno rústico com 5.000m.

Uma coisa é a existência de negócio simulado quanto ao preço, por detrás do qual existe um negócio dissimulado, em que o preço real é superior ao declarado. Coisa diversa é a existência, ainda, de um outro negócio dissimulado (contrato de permuta ou troca) que não se encontra minimamente refletido na escritura pública outorgada, para daí se extrair a conclusão que o formalismo da compra e venda (escritura pública) se estende à permuta ou troca.

Efetivamente, uma coisa é a intervenção notarial num ato de compra e venda de um imóvel, coisa diversa será a intervenção notarial num ato de permuta ou troca de bens futuros.

 …se poder suscitar a indeterminabilidade do objeto negocial (que pode gerar a nulidade do negócio – cfr. artigo 280º do Código Civil).

De tal clausulado, verifica-se, antes de mais nada, que as partes não especificaram qual a área do prédio (relativamente à sua área total) ou a parte do prédio (delimitando-o) que foi dada em troca de lotes de terreno.

Como podem considerar-se cumpridas as exigências de forma se não sabemos:

a) a área dos lotes e/ou quantos lotes urbanizados têm que ser entregues (não existe referência a qualquer projeto/alvará de loteamento); b) como se pode fazer a entrega de 5.000m2 de terreno (por sorteio?), quando o prédio tem natureza rústica e sobre o mesmo prédio incide o ónus de não fracionamento (tal como ficou provado na anterior sentença).

Assim, pese embora a validade do concreto contrato de compra e venda dissimulado, entendemos que as exigências de forma não se mostram minimamente acauteladas relativamente ao concreto contrato de permuta dissimulado e, consequentemente, que o negócio dissimulado, nesta parte é nulo…»

Dilucidemos.

Estabelece o artigo 240.º do CC:

(Simulação)

1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.

2. O negócio simulado é nulo.

E prescreve o artº 241º:

(Simulação relativa)

1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.

2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.

Temos assim que:

« Na simulação absoluta as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum: na simulação relativa, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na realidade querem um outro negócio de tipo ou conteúdo diverso.

A venda de imóveis simulando um preço inferior ao preço real para prejudicar a Fazenda Nacional ou simulando um preço superior ao real para prejudicar um preferente constitui simulação relativa.»- Ac. do STJ de  25-03-2004, Revista n.º 539/04.

Ou, noutra perspetiva ou nuance:

«Na simulação relativa, existem dois negócios jurídicos, já que é declarada a celebração de um dado negócio jurídico (o negócio simulado), muito embora, na realidade, as partes tenham celebrado um outro negócio jurídico, de tipo, natureza, objeto ou conteúdo jurídico diverso, ou concluído com sujeitos diversos (o negócio dissimulado).» - Ac. RE de  30.06.2016, p. 8112/08.... in dgsi.pt.

Quanto à (in) validade e (in)eficácia do negócio dissimulado vigora a regra de que, desvendada a simulação, abstrai-se do negócio simulado (nulo) e atende-se ao negócio real, dissimulado ou oculto, ficando este sujeito ao regime que lhe é próprio como se tivesse sido celebrado às claras, e, assim, produzindo os seus efeitos.

Esta regra tem uma exceção: se o negócio dissimulado tiver natureza formal, ele só é válido se no negócio aparente ou simulado, sob o manto do qual aquele estava escondido, tiverem sido observados os requisitos de forma impostos ao negócio dissimulado.

Se esta forma legal não estiver cumprida o  próprio negócio  dissimulado é nulo.

Descendo ao caso decidendo.

A simulação traduziu-se apenas no conteúdo do contrato, rectius quanto ao preço da compra e venda.

Efetivamente, e versus o firmado no contrato promessa, no contrato definitivo, objeto imediato daquele, ficou a constar um preço inferior para se enganar o fisco e se pagarem menos impostos.

Assim, e ao contrário do entendido pela 1ª instância, a alusão no contrato promessa à entrega ao vendedor, para além das quantias pecuniárias, de lotes urbanizados no terreno rústico vendido, ou, na impossibilidade da sua urbanização, de uma sua parcela de  5000m2, não consubstancia uma permuta ou troca que constitua um diverso e adicional contrato por reporte ao contrato de compra e venda.

Antes tal entrega, como claramente ressuma dos factos dados como provados atinentes ao teor do contrato promessa, se reporta e resume a uma simples parcela – ainda que em espécie – do preço global fixado para a compra.

Ou seja, este preço não se ateve apenas  ao valor pecuniário/monetário total de 195 mil euros, mas outrossim englobou tal entrega.

Destarte soçobra a argumentação vertida na sentença de que a não alusão, na escritura definitiva, à referida entrega, constitui postergação de requisito de forma que, assim, fulmina de nulo aquele contrato de troca, permuta ou escambo.

Reitera-se: tal alusão era desnecessária pois que as partes não quiseram firmar contrato autónomo de permuta, mas antes quiseram um preço final total que englobava não apenas a quantia de 195 mil euros, como, também, lotes urbanizados, ou parcela rústica de 5000m2, tudo referente ao terreno vendido.

Por conseguinte, a não alusão na escritura final a tal aspeto não implica violação de requisitos de forma com a consequente nulidade do contrato dissimulado.

O qual, repete-se, é um e só um: o de compra e venda.

E este, salvo quanto à simulação relativamente  ao exato valor do preço, consta na escritura definitiva que respeita a forma legal.

Nesta conformidade, o contrato, dissimulado apenas quanto ao preço, é válido e eficaz.

Pelo que deve ser cumprido pontualmente, ou seja, ponto por ponto, nos termos anuídos e tal como as partes o quiseram, isto é, pelo preço total global, em numerário e em espécie, como firmado pelas partes  no contrato promessa – cfr. artº 406º do CC.

Na verdade, esta vinculação das partes resulta logo do próprio contrato promessa que elas outorgaram.

É que,  no atinente à natureza jurídica deste contrato, urge ter presente que ele, estruturalmente, se apresenta um verdadeiro contrato (definitivo), pois que está sujeito aos requisitos de qualquer outro.

O seu cariz provisório apenas emerge em termos meramente funcionais, uma vez que é apenas um meio para a satisfação dos interesses das partes, que só acontecerá, verdadeiramente, com a celebração do contrato prometido, seu objeto imediato -  cfr. Angelo Abrunhosa, in O CONTRATO-PROMESSA, REQUISITOS, EFEITOS in https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/866/1/CONTRATO_PROMESSA.pdf.

In casu, esta natureza jurídica definitiva e vinculativa do contrato promessa emerge reforçada, pois que se provou -   ponto 21 – que:

« As partes, com a celebração do contrato-promessa de compra e venda, pretenderam estipular todas as condições relativas à compra e venda e não apenas assegurar a celebração da escritura de compra e venda»

Ora apurou-se que o preço final acordado foi o de 195 mil euros, mais lotes urbanizados, ou, subsidiariamente, uma parcela de 5000m2, do terreno rústico prometido vender.

Decorrentemente, as partes ficaram vinculadas e têm de cumprir conforme contratualmente se obrigaram.

Acresce que, versus o plasmado na sentença, inexiste qualquer «indeterminabilidade do objeto negocial», na parte que ora nos ocupa e releva.

 Devidos e entregues pela compradora aos vendedores, para pagamento do preço total do prédio vendido, seriam os lotes que fossem destacados/autonomizados; e, à míngua da existência dos mesmos por o prédio não ter sido loteado, e subsidiariamente, como foi anuído, será uma  sua parcela de 5000m2, a determinar por sorteio.

 Para o que têm de ser constituídos no prédio vendido os lotes possíveis com esta área e sortear-se o lote que há-de caber aos vendedores.

O ónus de não fracionamento pelo período de 10 anos, nos termos do artigo 6º/6 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12, já não está em vigor pois que este prazo já foi ultrapassado.

Finalmente, substancialmente, e se, por qualquer motivo – factual ou legal – tal parcelamento não for possível, assiste jus aos vendedores, para que o contrato seja cumprido nos termos convencionados, a serem indemnizados pelo valor correspondente a uma hipotética parcela  de 5000m2 do terreno em causa.

Processualmente, tal pretensão foi formulada pelos autores a título de pedido subsidiário, o qual colhe cobertura legal – artº 554º nº1 e Ac. STJ de 29.06.2017, p. 825/15.2T8LRA.C1.S1, in dgsi.pt.

Certo é que eles não lograram provar o valor de tal parcela.

Mas provado o seu direito a tal ressarcimento a título de sucedâneo pecuniário, tem de ser-lhes concedido o direito à liquidação do adequado quantum no respetivo incidente  – artº 609º nº2 do CPC.

Procede, brevitatis causa, o recurso.

(…)

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a sentença, e, agora, condenar a ré na entrega aos autores  de parcela de 5000m2  a destacar no terreno em causa, ou, na impossibilidade de tal destacamento, a entregar-lhes a quantia equivalente ao seu valor, a liquidar em execução de sentença.

 Custas pela ré.

Coimbra, 2022.06.14.