Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
828/07.0TACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
ELEMENTOS DO TIPO
TIPO JUSTIFICADOR
Data do Acordão: 03/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 37º DA CRP,14º,31º E 180º DO CP; 410º E 428º DO CPP.
Sumário: 1.O direito à honra e consideração como o direito à critica, um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, ilimitados.

2.O tipo justificador previsto no n.º 2 do art.180.º do Código Penal, não inviabiliza a necessidade do Tribunal ponderar se a imputação de factos ou de juízos valorativos, que atentam contra a honra e consideração de outra pessoa, se encontram justificados no âmbito da aplicação do art.31.º, n.º 2 do Código Penal, nomeadamente da sua alínea c).

3.Depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal e com a obrigação de dizer a verdade, deve narrar os factos de que tem conhecimento, mesmo que sejam ofensivos para a honra e consideração de outrem.

4.Provando-se que a testemunha mentiu conscientemente no âmbito do seu depoimento, agindo com conhecimento e vontade de faltar à verdade e de ofender a honra e consideração do visado deverá a mesma, agora com a qualidade de arguido, ser condenado pelos crimes de difamação e de falso testemunho.

5.Não se tendo provado que a mesma testemunha, no quadro da função social de prestação de depoimento como testemunha, faltou à verdade, deve ela, agora com a qualidade de arguido, ser absolvido da acusação dos crimes de difamação e de falso testemunho.

Decisão Texto Integral: Relatório

            Pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, sob acusação do Ministério Público e acusação particular da assistente B. foi submetido a julgamento em Processo, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido

A, casado, comerciante, nascido a 21….1960, filho de M e de M., natural da freguesia e concelho de Castelo Branco, residente na Rua … em Castelo Branco,

imputando-lhe o Ministério Público a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º1 e 3 do Cód. Penal, tanto na redacção anterior como na redacção posterior à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 04.09, e a assistente B., a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º1 do Cód. Penal, acusação que o Ministério Público acompanhou .

            A demandante B deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido A.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 22 de… de 2009, decidiu julgar as acusações improcedentes, porque não integralmente provadas e, em consequência:

- absolver o arguido da prática do crime de falso testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º1 e 3 do Código Penal; e

- absolver o arguido da prática do crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º1 do Código Penal.

            Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso a assistente B., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1.º ‑ Comete o crime previsto e punido no artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal quem imputa facto ofensivo da honra a outrem, por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda pela reprodução de um juízo por meio de terceiros.

2.º ‑ Da sentença recorrida resulta provado que o arguido, dirigindo‑se a terceiros, proferiu palavras objectivamente, atentatórios da sua honra e consideração.

3.º ‑ Resulta igualmente provada a intenção de ofender a Assistente no seu bom nome, honra e consideração, sabendo que a sua conduta, voluntariamente assumida, era proibida e punida por lei.

4.º ‑ Da matéria de facto provada não resulta que o arguido fez as afirmações em causa nos autos para realizar interesses legítimos e que tais imputações são verdadeiras, ou que tinha fundamento sério para, de boa fé, as reputar verdadeiras.

5.º ‑ Pelo contrário, da decisão recorrida, por si só e conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se dá conta que o arguido agiu de forma dolosa e com base suficiente para reputar o seu depoimento como falso.

6.º ‑ A causa de exclusão da ilicitude prevista no art.31.º, n.º 2, al.c) do Código Penal não tem aplicação no caso enunciado, porquanto para o crime de difamação o legislador previu uma específica causa de exclusão da responsabilidade penal, que determina que a conduta não será punível se, cumulativamente, o arguido provar a o interesse legítimo e veracidade das declarações prestadas.

7.º ‑ Impende sobre o arguido o ónus de provar a veracidade do depoimento, assim como que tinha fundamento sério para, de boa fé, o reputar de verdadeiro ‑ art.180.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal.

8.º ‑ A sentença recorrida enferma de manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão e de errada interpretação da matéria de facto provada e do artigo 180.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

9.º ‑ Da matéria de facto provada resulta que da conduta, ilícita e culposa, perpetrada pelo arguido decorreram danos, patrimoniais e não patrimoniais, para a assistente, cifrando‑se os primeiros em € 750,00.

10.º ‑ A factualidade provada permite também ao tribunal arbitrar indemnização a título de danos não patrimoniais, a qual deveram ser fixada de forma equitativa, tomando em consideração a gravidade das imputações feitas pelo arguido e da consequente ofensa que as mesmas representaram para a assistente.

11º ‑ Deve, pelo exposto, revogar‑se a douta sentença recorrida, proferindo-­se acórdão que condene o arguido pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º do CP, e que julgue o pedido cível formulado totalmente procedente, como é, aliás, de inteira Justiça!

           O Ministério Público na Comarca de Castelo Branco respondeu ao recurso interposta pela assistente, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

        O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da  improcedência do recurso e manutenção da sentença absolutória.

        Colhidos os vistos, cumpre decidir.

   Fundamentação

           A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:

           Factos provados

1 – Correram termos pelo … Juízo do Tribunal da Comarca de Castelo Branco um autos de Processo Comum Singular com o n.º …/04.0TACTB, nos quais a aqui assistente B. também figurou como assistente e onde foram constituídos arguidos JO. e A.

2 – Antes de chegar à fase do julgamento, os autos passaram pela fase de instrução, onde o aqui arguido J. foi arrolado como testemunha pelos mencionados JO e A.

3 – Durante a fase instrutória o aqui arguido prestou depoimento perante o Juiz de Instrução, na qualidade de testemunha e após ter prestado o juramento legal de responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas.

4 – No depoimento então prestado o arguido, na qualidade de testemunha e após prestar o juramento legal, reportou-se à aqui assistente B. que:

“É do seu conhecimento que a assistente pedia aos fornecedores uma percentagem sobre os preços dos produtos fornecidos ao hotel, que no seu caso foi de 2%. Mais refere que essa foi a razão pela qual a empresa para a qual o ora depoente trabalha deixou de fornecer o hotel.

Mais esclarece que efectivamente era falado entre os fornecedores do hotel que a assistente e bem assim outras pessoas que ali trabalhavam na área das compras cobravam percentagens aos fornecedores” ( sic);

Mais afirmou o aqui arguido, na referida fase de instrução na qualidade de testemunha e após prestar o juramento legal que :

“Para além do seu caso, refere que existe uma outra empresa que se dedica à venda de congelados, que funciona por cima da padaria de M…, na Zona …. de Castelo Branco, cujo nome desconhece mas que pertence a um senhor conhecido por X…, para a qual trabalha um funcionário de nome P, entretanto falecido há cerca de ano e meio, referindo-lhe este último que também a ele a B. havia pedido o pagamento de 2%.

Não sabe se o referido P. ou a empresa para a qual trabalhava efectivamente pagavam os 2%. O referido P. disse-lhe também que por vezes levava caixas de camarão a casa da B., desconhecendo o depoente se isso assim era e a que título o fazia ” ( sic).

Nas mesmas circunstâncias, a ali testemunha e aqui arguido disse: “ que a B. lhe tinha pedido o pagamento dos 2% fosse feito por fora” ( sic).

5 – Na sequência do transcrito depoimento do aqui arguido, ali testemunha, foi ouvido no decurso da mesma instrução o X, que negou que alguma vez a aqui assistente lhe tenha pedido, a sí ou ao seu cunhado P. qualquer percentagem nas vendas feitas ao hotel.

6 – Quando prestou o referido depoimento o arguido actuou de forma voluntaria, livre e consciente na selecção do seu conteúdo e sentido.

7 – Com as declarações prestada pelo aqui arguido e transcritas em 4) a propósito da assistente, enquanto funcionária do Hotel,… pôs em causa a honorabilidade e seriedade daquela, tendo a mesma ficado vexada.

8 - Em consequência das deslocações da assistente ao escritório do seu ilustre mandatário bem como das despesas que suportou com tais deslocações e Tribunal Judicial de Castelo Branco com os honorários que terá de lhe pagar, aquela terá de despender, pelo menos, 750,00 Euros.

Matéria de facto não provada

Em face da prova produzida e analisada em julgamento, não ficámos convictos de que :

a) Ao proferir as expressões transcritas no depoimento que prestou o aqui arguido quis ofender a assistente no seu nome, honra e consideração, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

b) Que o conteúdo das afirmações transcritas supra em 4) é contrário à verdade, coisa que o arguido sabia ao prestá-las em Tribunal e ainda assim proferiu-as actuando de forma voluntário livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

c) Que a assistente tenha tido qualquer prejuízo patrimonial ou despêndio com a sua deslocação ao Tribunal por causa deste processo.

Motivação

Convicção positiva:

A matéria de facto consignada com provada nos pontos 1, 2, 3, 4 e 5 resultou da apreciação que fizemos da prova documental junta aos autos e bem assim do conhecimento funcional que já tínhamos dos factos derivados do factos de termos sido o Juiz de Instrução perante o qual os factos se passaram.

De resto, foi esse conhecimento funcional que nos permitiu dar como assente a matéria de facto vertida no ponto 6.

Já a matéria de facto constante do ponto 7 resultou do teor do depoimento prestado em julgamento pela testemunha MG a qual, não obstante sogra da assistente, e tendo alguma dificuldade em distinguir entre os concretos reflexos dos factos apreciados nestes autos alegadamente praticados pelo arguido, dos concretos reflexos sobre a pessoa da assistente de todos os demais factos apreciados no âmbito do Processo Comum Singular com o n.º …/04.0TACTB, do .. Juízo deste Tribunal, no essencial pareceu-nos credível o seu depoimento, pois que a matéria ali vertida é a que está de acordo com as regra da experiência e da normalidade do acontecer.

Por fim, a matéria de facto vertida no ponto 8 assentou nessas mesmas regras da experiência e da normalidade do acontecer.

         Convicção negativa:

A explicação dos fundamentos que nos levaram a dar como não provados os factos contidos no ponto 2.1.2. é mais delicada do que aquela que nos levou a formar a convicção positiva daqueles que ficaram provados, em particular no que diz respeito aos factos das al.s a) e b) .

A propósito dos referidos factos foram apreciados os depoimentos do arguido, que continuou a manter as afirmações já feitas no âmbito de Processo Comum Singular com o n.º …/04.0TACTB, do …º Juízo, e da assistente que os negou integralmente.

Ainda a propósito desta matéria foi ouvida a testemunha X.

Como é sabido, o CPP consagrou, no art.127.º, de forma expressa, o princípio da livre apreciação das provas, por virtude do qual a decisão quanto à matéria de facto assenta na livre convicção do julgador, que deve ser devidamente fundamentada para poder ser sindicada pelos sujeitos processuais e pelo tribunal ad quem.

A decisão quanto à matéria de facto tem de se conformar, naturalmente, com as regras da experiência sem o que seria arbitrária.

Conforme acertadamente se escreveu no Ac. do TRG de 29/01/2007, in www.dgsi.pt, “Do princípio da livre apreciação da prova, resulta que a decisão não consiste numa operação matemática, ou meramente formal, devendo o julgador apreciar as provas, analisando-as dialecticamente e procurando harmonizá-las entre si e de acordo com os princípios da experiência comum, sem que o julgador esteja limitado por critérios formais de avaliação.

A reconstituição processual da realidade histórica de certo facto humano não é ou dificilmente poderá ser a expressão precisa e acabada de um qualquer meio de prova e particularmente da prova testemunhal, dadas as naturais dificuldades em se reproduzir fiel e pormenorizadamente o que foi percepcionado ou vivenciado, geralmente de forma passageira e ocasional, muito antes da audiência de discussão e julgamento, local privilegiado para a produção e discussão das provas. Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos - por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais.

Não se trata - na avaliação da prova - de uma mera operação voluntarista, mas de conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

Envolve a apreciação da credibilidade que merecem os meios de prova, onde intervêm elementos não racionalmente explicáveis, v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova em detrimento de outro - tem essencial relevo a imediação.

Mas ainda deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, aspecto que já não depende substancialmente da imediação, mas deve basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, da experiência e nos conhecimentos científicos.

De regresso ao caso dos autos cumpre desde já dizer que, nenhum a aspecto foi posto em evidencia no julgamento que nos autorize a dar maior credibilidade ao depoimento do arguido do que ao depoimento da assistente, e o inverso também é verdadeiro, no que diz respeito à correspondência entre a realidade e o sentido das afirmações feitas por aquele na qualidade de testemunha perante o Juiz de Instrução, no âmbito do Processo Comum Singular com o n.º …/04.0TACTB, do ...º Juízo.

Ambos mantiveram as posições já anteriormente afirmadas, as quais se revelam antagónicas entre si.

Por sua vez, as referidas expressões podem ser divididas em duas partes : uma que diz respeito concretamente ao aqui arguido, e que se reportam ao facto de a assistente lhe ter pedido 2 % do valor dos fornecimentos feitos ao hotel, pagos por fora, como condição da continuidade desses fornecimentos, o que ele se recusou a pagar; A outra tem a ver com o que o arguido diz ter ouvido da boca do funcionário da testemunha X o P, na tertúlia semanal que este último, o arguido e alguns outros vendedores mantinham na Quinta….

Acerca da primeira parte daquelas declarações ( as que se reportam directamente à experiência do arguido) para além do depoimento do arguido e da assistente, nada mais se provou que nos permita concluir que o que ali foi dito é verdade ou mentira; já quanto à segunda parte, importa fazer uma análise mais fina do depoimento da testemunha X a propósito desta questão:

Não obstante o que a referida testemunha já tinha dito no âmbito da instrução a que procedemos no Processo Comum Singular com o n.º…/04.0TACTB, do ...º Juízo, e que ficou consignado em 5), o certo é que o que importa aqui valorar nesta sede é o seu depoimento na audiência de julgamento destes autos.

E quanto a ele importa ter presentes quatro aspectos: Em primeiro lugar importa não olvidar que a testemunha foi chamado para confirmar ou infirmar se a aqui assistente alguma propusera à sua empresa, como condição de continuar a fornecer o hotel, o pagamento de 2% sobre o valor dos fornecimentos pagos por fora e uma caixas de camarão.

Ou seja, a testemunha foi chamado para depor sobre a mesma questão sobre a qual o aqui arguido A, havia sido chamado a depor no âmbito da instrução a que se procedeu no Processo Comum Singular com o n.º …/04.0TACTB, do ….º Juízo, sendo que, desta vez, a testemunha X já tinha o exemplo do que lhe poderia suceder se repetisse aqui o que o A. havia dito naquele outro processo; Em segundo lugar, importa ter presente que a empresa da testemunha X já fornece o H… há vários anos e, sendo a aqui assistente a Ecónoma do referido Hotel, é compreensível que aquele não se sentisse confortável ao proferir um depoimento que poderia pôr cobro a esses fornecimentos, com os inerentes prejuízos;

Estes dois factos são esclarecedores da forma contida como a testemunha depôs, e que é particularmente notória na parte final do seu depoimento, o que nos leva para o terceiros aspecto a considerar.

Na parte final do seu depoimento a testemunha X foi confrontado com a pergunta sobre se, abstraindo do caso concreto do H…, alguma vez tinha sido confrontado com o pedido do pagamento de quantias ( por fora) como condição de a sua empresa ser escolhida na sequência de concursos públicos abertos para o efeito.

E aí, a testemunha começou por dizer que não, para depois se embrulhar no seu depoimento, acabando por admitir que, por vezes, no que diz respeito a fornecimentos de escolas, isso poderia suceder mas que nunca foi conivente com essas práticas.

Ou seja, foi óbvio que estamos a entrar num domínio perigoso e melindroso das relações entre empresas fornecedoras e entidades compradoras de produtos alimentares, e que tem como elemento fulcral as pessoas responsáveis pela escolha dos fornecedores, com o poder de influência que isso lhes concede.

Por fim, e este é o último aspecto: a testemunha X limitou-se a dizer o que diz saber do que se passa da sua empresa. Porém, não sabe, nem podia saber pois que não fazia parte da tertúlia semanal da Quinta …, o Tribunal Judicial de Castelo Branco 1º Juízo que o seu funcionário Prudêncio dizia nesses jantares. E repare-se que, quando prestou declarações na instrução do Processo Comum Singular com o n.º …/04.0TACTB, do ..º Juízo, o aqui arguido teve o cuidado de dizer que não sabia se efectivamente a empresa do X pagava os referidos 2%, ou se levava à B. as caixas de camarão, ou a que título o fazia.

De resto, o argumento utilizado pela testemunha X de que o sistema informático da sua empresa não permitiria o desvio de mercadorias sem o seu controlo, não permite tirar grandes conclusões: isso só seria determinante se toda a mercadoria fosse introduzida no sistema, se a empresa contabilisticamente não tiver “saco azul” que permita pagar “por fora” e se o próprio X não for conivente com essa hipotética prática.

Tudo isto são variáveis para cuja demonstração ( no sentido de as confirmar ou de as infirmar) muito haveria para fazer.

Posto isto, entendemos que o depoimento da referida testemunha, por si só, não foi capaz de esclarecer a verdade ou a mentira do alegado pelo aqui arguido.

Por fim, a matéria vertida na al. c) resultou da falta de prova a seu respeito.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação da assistente B. as questões a decidir são as seguintes:

- se a sentença recorrida enferma de manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão e fez errada interpretação da matéria de facto provada e do art.180.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, devendo ser revogada a decisão recorrida e o arguido condenado pela prática de um crime de difamação e ainda no pedido de indemnização cível.

            Passemos ao conhecimento das questões.

A assistente B alega, em síntese, que o Tribunal a quo deu como provados, no essencial, todos os factos contidos na acusação particular, nomeadamente, que “ quando prestou o referido depoimento o arguido actuou de forma voluntária, livre e consciente na selecção do seu conteúdo e sentido” e que “com as declarações prestada pelo aqui arguido e transcritas em 4) a propósito da assistente, enquanto funcionária do Hotel .., pôs em causa a honorabilidade e seriedade daquela, tendo a mesma ficado vexada”, e acabou por concluir que não resultou provada a atitude dolosa e falsidade das afirmações que permitem a imputação do crime de difamação.

Esta conclusão entrará em contradição insanável com a fundamentação da própria decisão recorrida, já que o Tribunal considera, correctamente, que a conduta imputada à arguida preenche os elementos objectivos do crime de difamação e que “Como é bom de ver o arguido ao mencionarem tais factos não podiam deixar de representar a possibilidade de a assistente se sentir ofendida na sua honra e consideração.”.

Tendo também o Tribunal a quo considerado que a conduta do arguido não deixou de ser voluntariamente assumida, decorre da sentença que se mostram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de difamação.

Para o crime de difamação o legislador previu uma causa específica de exclusão da responsabilidade penal no n.º 2 do art.180.º do Código Penal, e o arguido não logrou provar que a imputação foi feita para realizar interesses legítimos, nem a verdade da mesma imputação ou que tivesse fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. Pelo contrário, da decisão recorrida, por si só e conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se dá conta que o arguido agiu de forma dolosa e com base suficiente para reputar o seu depoimento como falso.

A consideração feita na sentença recorrida de que o arguido agiu no cumprimento dum dever - o dever de prestar depoimento como testemunha -, não procede pois a causa de exclusão da ilicitude prevista no art.31.º, n.º 2, al. c), do Código Penal, não tem aplicação ao caso.

Vejamos.

A assistente B. embora sem nunca fazer menção ao n.º 2, do art.410.º do C.P.P., menciona expressamente que, conforme resulta do seu texto, a  sentença recorrida enferma do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e, ainda de um modo implícito, imputa à sentença recorrida o erro notório na apreciação da prova ao questionar o acerto de nela se dar como não provada a matéria de facto que consta das alíneas a) e b), da sentença recorrida, quando da decisão recorrida, por si só e conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se dá conta que o arguido agiu de forma dolosa e com base suficiente para reputar o seu depoimento como falso.
O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, a que acaba de se aludir, estatui que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
     a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
     b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou 
     c) O erro notório na apreciação da prova .
Estes vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
As normas da experiência comum são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão existirá quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa. Duas proposições contraditórias não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas.
No dizer dos Cons. Simas Santos e Leal Henriques “Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente , dada a colisão entre os fundamentos invocados”- in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros, 2ª ed., pág. 739.
O erro notório a que alude a al. c) , n.º 2 do  art.410.º do Código de Processo Penal tem lugar, por sua vez, “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando  determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo )  contido no texto da decisão recorrida”. - cfr. ainda, os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , na obra citada, pág. 740. No mesmo sentido decidiram, entre outros, o acórdão do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ).
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal ( art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) . 
O erro notório na apreciação da prova, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento.
Dito isto, importa agora fazer algumas considerações sobre os elementos constitutivos do  crime de difamação, com particular incidência sobre o elemento subjectivo, uma vez que é a nível do dolo que a recorrente aponta à sentença recorrida os vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

A honra ou consideração, protegida no art.180.º do Código Penal , consiste num bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade , quer a própria reputação ou consideração exterior .

Se a norma diz claramente que difamar é , dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que  envergonha e perturba ou humilha , cabem na previsão do art.180.º do Código Penal.

A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros , mas não o ser em termos penais. Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão , que  compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos .

É  o que decorre do art.37.º , n.º1 da Constituição da República Portuguesa , quando preceitua que « todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra , pela imagem ou por qualquer outro meio...». O direito à liberdade de expressão e critica tem limites , como decorre do n.º 3 do mesmo art.37.º da C.R.P , quando estabelece que « as infracções cometidas no exercício destes  direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal...».

Há pois que conciliar o direito à honra e consideração com o direito à critica, pois um e outro , pese embora sejam  direitos fundamentais, não são direitos absolutos , ilimitados .

Quanto ao elemento subjectivo do tipo, é pacífico que o crime de difamação é um crime doloso ( art.13.º do Código Penal ).
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu art.14.º, cada uma das formas em que ele se analisa ( directo, necessário ou eventual) .
A doutrina dominante define, porém, o dolo, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito.
Mas é ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal e, nesta parte, é ainda elemento constitutivo  do tipo-de-culpa dolosa.
O dolo é, assim, uma entidade complexa, cujos elementos constitutivos se distribuem pelas categorias da ilicitude e da culpa.
Neste entendimento, que seguimos, o Prof. Figueiredo Dias adiciona aos elementos  intelectual ( conhecimento de realização do tipo objectivo de ilícito ) e volitivo ( vontade de realização do tipo objectivo de ilícito ), o elemento emocional.
De acordo com a lição deste Professor « o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (…) , mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo contidos no “conhecimento e vontade de realização”; uma tal posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas. O que significa que a estrutura do dolo do tipo por que perguntamos aqui só se alcança quando se tenha a consciência clara de que, com ela, não fica por si mesma justificada a aplicação da moldura penal prevista na lei para o crime doloso respectivo; antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal.» - “Direito Penal – Parte Geral , Tomo I , Coimbra Editora , 2004 pág. 333.
O dolo neste tipo legal consiste, assim, no conhecimento e vontade de imputar perante terceiros, factos ou palavras ofensivos da honra e consideração de uma pessoa, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei.
No caso em apreciação, resulta do ponto n.º 6, dos factos dados como provados na sentença, que o arguido agiu com liberdade de acção na prestação do seu depoimento, isto é, que disse o que correspondia à sua vontade no depoimento. Tal situa-se no âmbito da voluntariedade da acção e não propriamente no dolo.  
Do ponto n.º 7 dos factos provados consta que o arguido com as declarações prestadas no âmbito dum processo, transcritas no ponto n.º 4, pôs em causa a honorabilidade e seriedade da   assistente e que esta ficou vexada.
O Tribunal a quo fundamentou o ponto n.º 6, no conhecimento funcional que resulta do facto do Juiz de julgamento ter sido o Juiz de Instrução no processo em que o arguido A. prestou o seu depoimento e, quanto à matéria que consta do ponto n.º 7, fundamentou-a no “...teor do depoimento prestado em julgamento pela testemunha M., a qual, não obstante sogra da assistente, e tendo alguma dificuldade em distinguir entre os concretos reflexos dos factos apreciados nestes autos alegadamente praticados pelo arguido, dos concretos reflexos sobre a pessoa da assistente de todos os demais factos apreciados no âmbito do Processo Comum Singular com o n.º…/04.0TACTB, do ...º Juízo deste Tribunal, no essencial pareceu-nos credível o seu depoimento, pois que a matéria ali vertida é a que está de acordo com as regra da experiência e da normalidade do acontecer.”

Posteriormente, na fundamentação da matéria de direito, quando o Tribunal a quo menciona  que “Como é bom de ver o arguido ao mencionarem tais factos não podiam deixar de representar a possibilidade de a assistente se sentir ofendido na sua honra e consideração” , quis dizer que o arguido sabia que os factos em causa podiam ofender a honra e consideração da assistente.
Tal menção não foge, porém, ao que consta dos pontos n.ºs 6 e 7 dos factos provados, pois como vimos nestes pontos ficou assente que o arguido ao agir, livre e conscientemente, na prestação das declarações, no âmbito dos autos de instrução , transcritas no ponto n.º 4, pôs em causa a honorabilidade e seriedade da assistente e que esta ficou vexada.
Na fundamentação de direito, lida na globalidade, o Tribunal a quo diz que os factos mencionados pelo arguido acarretam a possibilidade de ofender a honra e consideração da assistente B. quer os factos sejam verdadeiros quer sejam falsos, mas que no caso, perante o dever legal de depor com verdade, é indiferente se as revelações podem ou não atingir a honra e consideração da assistente, pois está afastada a possibilidade do arguido “... querer ferir ou atingir a honra e consideração do visado”.
Tal só sucederia se a testemunha prestasse um depoimento falso, com a consciência dessa falsidade, mas perante os factos dados como não provados nas alíneas a) e b) da sentença e a inexistência de elementos que demonstrem que o arguido ao proferir tais imputações no âmbito de um depoimento tivesse querido atingir a assistente na sua honra e consideração, o Tribunal a quo decidiu-se pela absolvição do arguido. 
Entre os factos dados como provados nos pontos n.ºs 6 e 7 da sentença e a fundamentação de direito, não existe, assim, a afirmação e a negação da existência de dolo e de falsidade do depoimento do agora arguido A.
Do texto da sentença recorrida resulta que o Tribunal a quo defendeu sempre que dos factos apurados e dados como assentes não se provou a existência de dolo e de falsidade do depoimento do agora arguido.
A decisão de absolvição está assim em conformidade com a fundamentação de direito que o Tribunal a quo teve como correcta.
O vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão não se verifica quando o resultado a que o juiz chega na sentença deriva, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados.
Assim, não se reconhece a existência do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Relativamente ao implícito vício do erro notório na apreciação da prova, consta da fundamentação, designadamente da matéria de facto, que o ora arguido A. manteve em julgamento as afirmações prestadas na instrução, em que foi testemunha, ou seja, que a assistente lhe pediu o pagamento de 2% sobre o valor dos fornecimentos pagos por fora, como condição de continuar a fornecer o hotel e que ouviu dizer, na tertúlia semanal, a um tal P., falecido há cerca de 1 ano e meio, funcionário da testemunha X, que a assistente B, lhe havia pedido também o pagamento de 2% e que por vezes levava caixas de camarão a casa desta, mas que desconhecia se isso assim era e a que título o fazia.
O Tribunal a quo explica na fundamentação da matéria de facto, com algum  desenvolvimento, os motivos pelos quais o depoimento da testemunha X, prestado em audiência de julgamento não foi tido como credível e capaz de esclarecer a verdade ou mentira das afirmações feitas pelo arguido.

Analisando o texto da decisão recorrida e as referências que na mesma são feitas ao depoimento da testemunha X concluímos que considerações tecidas a tal propósito são racionais e lógicas.

A opção tomada pelo Tribunal a quo , de dar como não provado que o arguido, ao proferir as expressões transcritas no depoimento que prestou, quis ofender a assistente no seu nome, honra e consideração, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e que o conteúdo das afirmações transcritas no ponto 4) dos factos dados como provados é contrário à verdade, està assente na oralidade e imediação e não viola as regras da experiência comum.
Assim, não se reconhece na decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, qualquer erro, e mais ainda notório, na apreciação da prova.  

A questão seguinte é se tendo o Tribunal a quo considerado que a conduta do arguido foi   voluntariamente assumida, decorre da sentença que se mostram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de difamação.

Quanto a esta parte, consta da sentença recorrida, e é pacífico, que os factos imputados pelo ora arguido no seu depoimento à ora assistente, prestado nos autos de instrução, são ofensivos da honra e consideração desta e preenchem os elementos objectivos do crime de difamação.    

A voluntariedade mencionada no ponto 6 dos factos provados na sentença refere-se, como já atrás dissemos, à acção, à conduta socialmente relevante, dominável ou dominada pela vontade do agente.

A voluntariedade do agente falta quando, designadamente, a sua conduta resulta de movimentos reflexos instintivos ou de uma força física exterior irresistível ou de coacção moral.   

Os factos que na acusação integravam o elemento subjectivo do crime de difamação, o dolo, como representação e conhecimento de uma conduta antijurídica, constam da al.a) da matéria de facto não provada.

Referindo-se a voluntariedade à acção , e não ao dolo, e estando dados como não provados na sentença os factos constantes da al.a) da respectiva matéria , é evidente que da voluntariedade da conduta do ora arguido na prestação do seu depoimento nos autos de instrução, não pode concluir-se que se mostram preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de difamação. 

Por fim, defende a assistente que para o crime de difamação o legislador previu uma causa específica de exclusão da responsabilidade penal no n.º 2 do art.180.º do Código Penal e o arguido não logrou provar que a imputação foi feita para realizar interesses legítimos, nem a verdade da mesma imputação ou que tivesse fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. A consideração feita na sentença recorrida de que o arguido agiu no cumprimento dum dever - o dever de prestar depoimento como testemunha -, não procede pois a causa de exclusão da ilicitude prevista no art.31.º, n.º 2, al. c), do Código Penal, não tem aplicação ao caso.
Vejamos.
Resulta do n.º 2 do art.180.º do Código Penal que a conduta do agente não será punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos ( al.a) e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira, sendo que a boa fé exige o cumprimento do dever de informação ( al.b).

O requisito da alínea a) inclui não apenas o interesse público legitimo , mas qualquer interesse do privado do mesmo agente.

O n.º 3 deste preceito acrescenta que «. Sem prejuízo do disposto nas alíneas b) , c) e d) do n.º2 do art.31.º o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar de imputação de facto relativo à intimidade da vida provada ou familiar.».
Existe um interesse real e efectivo em distinguir a imputação dum facto da formulação de um juízo sobre a honra e consideração do sujeito passivo , pois a causa de exclusão da ilicitude a que se referem os n.ºs 2 e 3 do art.180.º do Código Penal  diz apenas respeito à imputação de factos. A “exceptio veritatis” , como causa de exclusão da ilicitude prevista no art.180.º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal, tem lugar através da prova dos factos imputados, não se aplicando à formulação de juízos ofensivos. – Cfr. Desembargador António Oliveira Mendes , “ O direito à honra e a sua tutela Penal”, Almedina , 1996, páginas 62 a 64 , e Cons. Leal-Henriques e Simas Santos, “ Código Penal” , 2º Vol., 2ª edição, Rei dos Livros, pág.319 , e acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Abril de 1998, CJ, ano XXIII, 2º, pág. 64.
Sobre a causa de justificação do n.º2 do art.180.º do Código Penal, o Prof. Faria Costa salienta
que o n.º 3 do art.180.º do Código Penal, ao remeter para “ o número anterior” consagra inequivocamente no n.º 2 “ ...uma causa de justificação outra que não as resultantes do regime geral do art.31.º, o qual continua a valer (...) ainda que aquela causa de justificação especial deva decair.”. – in “Direito Penal Especial”, Coimbra Editora 2004, pág. 103.   
Mais acrescenta, o Prof. Faria Costa, que a regulamentação constante dos n.ºs 2 a 4 do art.180.º C.P., embora não consagre um tratamento exclusivo ou prevalente das situações de justificação no âmbito do direito penal da comunicação, pois as situações de justificação aí descritas têm um âmbito de aplicação geral e universal, visa desempatar, com específicos critérios o embate entre valores de densidade aproximada, como é o caso do direito à honra e o direito à informação.

No “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português” – RLJ , ano 115.º , n.º 3698, pág. 137 – , refere também o Prof. Figueiredo Dias que « Devem valer pois aqui, completamente, os princípios gerais do direito penal: a ofensa pode ser justificada através de qualquer causa geral de exclusão do ilícito ou até com o apelo – que frequentemente será fundado face a imputações ofensivas da honra de insignificante relevo ou gravidade – a cláusulas como a da adequação social.».

A propósito da não aplicação do n.º 2 do art.180.º do Código Penal a juízos de valor, o Tribunal Constitucional decidiu também que  “ Existe, assim, no nosso ordenamento jurídico-penal – máxime no citado art.31.º, n.º2, do Código Penal – norma que permite considerar legítimos juízos de valor ofensivos ou difamatórios, formulados no exercício da liberdade de expressão através da imprensa (...), sendo certo que a norma do art.180.º, n.º2, al. b), do Código Penal não esgota a protecção dessa liberdade...” – cfr. acórdão do T.C. n.º 599/99 de 24 de Março de 2004, in DR, 2.ª Série, de 2 de Junho.

E, no mesmo sentido, decidiu o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 407/2007, de 11 de Julho de 2007, in DR, 2.ª Série, de 29 de Agosto.

Em suma, e concordando com a doutrina e jurisprudência mencionadas, temos como certo que o tipo justificador previsto no n.º 2 do art.180.º do Código Penal, não inviabiliza a necessidade do Tribunal ponderar se a imputação de factos ou de juízos valorativos, que atentam contra a honra e consideração de outra pessoa, se encontram justificados no âmbito da aplicação do art.31.º, n.º 2 do Código Penal, nomeadamente da sua alínea c), ao contrário do defendido pela recorrente B..

No caso em apreciação, importa não esquecer que o ora arguido A. não fez as declarações em causa por sua espontânea vontade, mas porque foi arrolado como testemunha e nessa qualidade estava obrigado a dizer a verdade, mesmo que para o efeito ofenda a honra e consideração de outra pessoa, sob pena de cometer um crime de falsidade de testemunho, como bem se realça na decisão recorrida. 

O Tribunal a quo assume que não se encontram verificados os específicos requisitos cumulativos do n.º 2 do art.180.º do Código Penal, uma vez que o arguido A. não provou a veracidade da imputação.

Mas como vimos não se esgotam nesse preceito as causas de justificação da ilicitude. O facto praticado não é ilícito quando praticado no cumprimento de um dever imposto por lei ( art.31.º, n.º2, al. c) .

Depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal e com a obrigação de dizer a verdade, deve narrar os factos de que tem conhecimento, mesmo que sejam ofensivos para a honra e consideração de outrem e não possua meios para provar que a sua narração corresponde ao que viu e ouviu, como é o caso de os factos terem decorrido sem a presença de outras pessoas além do pretenso ofendido com as revelações, ou a pessoa de quem o ouviu ter já falecido.

Provando-se que a testemunha mentiu conscientemente no âmbito do seu depoimento, agindo com conhecimento e vontade de faltar à verdade e de ofender a honra e consideração do visado deverá a mesma, agora com a qualidade de arguido, ser condenado pelos crimes de difamação e de falso testemunho. 

Não se tendo provado que a mesma testemunha, no quadro da função social de prestação de depoimento como testemunha, faltou à verdade, deve ela, agora com a qualidade de arguido, ser absolvido da acusação dos crimes de difamação e de falso testemunho.

No caso presente não se provou que o arguido A., enquanto depôs como testemunha nos autos de instrução, faltou à verdade ao imputar à assistente factos que ela teria praticado e que objectivamente ofendem a honra e consideração desta, pelo que deveria ter sido absolvido, como foi, dos crimes de difamação e de falso testemunho, bem como do respectivo pedido cível.

Esta foi a orientação seguida também pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos acórdãos de 23/03/2006 (proc. n.º 10422/2005-9), de 16/07/2008 ( proc. n.º 9613/2007-3) e de 28/09/2006 ( proc. n.º 7111/2006-9), in www.dgsi.pt

Improcede, pelo exposto, o recurso interposto pela assistente.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela assistente B. e manter a douta sentença recorrida.

             Custas pela recorrente , fixando em 5 Ucs a taxa de justiça.

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                       

   *

                                                                                        Coimbra,


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.