Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1093/08.8TBTNV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: FACTOS PROVADOS
ACORDO
CONFISSÃO
CHEQUE
CONVENÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 356º, Nº 2 DO CC; 46º, Nº 1 E 646º, Nº 4 DO CPC;
Sumário: I – Devem ter-se como não escritas as respostas dadas pelo tribunal sobre factos que se encontrem plenamente provados por acordo ou confissão das partes (artº 646º, nº 4 do CPC).

II - A confissão judicial pode ser feita espontaneamente nos articulados do processo, segundo as prescrições da lei processual, ou em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado para o efeito (artº 356º, nº 1 do CC).

III - As declarações confessórias feitas pelo advogado, oralmente ou por escrito, com simples procuração ad litem não valem como confissão, ficando, porém ressalvada a confissão tácita resultante dos articulados (artºs 38º e 490º, nºs 1 e 2 do CPC) ou a confissão expressa feita nos mesmos termos (artº 567º, nº 2 do CPC).

IV - No campo dos títulos executivos vigora entre nós, como decorre do artº 46º do CPC, o princípio da legalidade, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução documento a que seja legalmente atribuída força executiva.

V - Os cheques encontram-se entre os documentos (extrajudiciais) a que a lei confere força executiva. Desde logo, na sua função natural de documentos cartulares, ou seja, enquanto títulos de crédito de natureza cambiária, e podendo sê-lo, ainda, em determinadas condições, enquanto documento particular ou quirógrafo (cfr. artº 46º, nº 1, al. c) do CPC).

V - O contrato ou convenção de cheque traduz-se num acordo através do qual o banco acede, comprometendo-se ao seu pagamento, a que o seu cliente (titular de um direito de crédito sobre a provisão) mobilize os fundos que estão à sua disposição, por meio da emissão de cheques.

VI - Trata-se de um contrato que se caracteriza, além do mais, por ser autónomo (que portanto não se confunde com a relação de provisão, pois pode estabelecer-se esta relação sem que necessariamente se convencione a utilização de cheques), que assenta também nos princípios da boa fé e da tutela da confiança, que se situa dentro do universo dos negócios bancários, que é bilateral ou sinalagmático (por estabelecer um conjunto de direitos e deveres recíprocos para as partes que o outorgam), sendo a sua celebração feita frequentemente de forma tácita, e que se consubstancia mediante a requisição pelo cliente de um ou mais livros de cheques (ou mesmo através de simples cheques avulsos) e com a entrega deles pelo banco (donde, dada a frequente ausência de negociações preliminares, haver também quem o caracterize como sendo um contrato de adesão).

VII - Como se infere do disposto no artº 13º da LUC, e naquilo constitui entendimento pacífico, um cheque incompleto por falta de data do saque não deixa então de ser válido já que a lei permite que possa completado até do dia da sua apresentação a pagamento.

VIII - O que significa que a falta de data da emissão de cheque só se torna relevante se ela continuar em branco ou preencher na altura da sua apresentação a pagamento no banco sacado, ou então se o seu subscritor/emitente demonstrar que a referida data nela aposta contraria os acordos antes afirmados a esse respeito.

IX - Cessada a convenção de cheque, o banco fica, em princípio, desvinculado do dever de pagar os cheques que tenham sido entretanto emitidos com base nela, porém, tal não afecta ou prejudica a validade intrínseca desses próprios cheques, tal como resulta do disposto na parte final do acima citado artigo 3º da LUC.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. Na comarca de Torres Novas, R… instaurou (26/9/2008), contra o Clube Desportivo de …, processo comum de execução para pagamento de quantia certa, servindo de base à execução, como título executivo, um cheque titulando a quantia de € 25.438,00.

Para o efeito alegou, no respectivo requerimento executivo, o seguinte:

Que o exequente se obrigou a pagar uma letra descontada junto do B... de ..., na hipótese de a mesma não ser paga pelo executado.

Logo nessa altura os representantes do executado entregaram ao exequente o cheque junto para garantia daquele pagamento caso fosse pago pelo exequente, sendo isso que se acabou por verificar.

Apresentado a pagamento o referido cheque verificou-se que a conta tinha sido extinta, não tendo sido pago até o momento o seu valor.

2. O executado deduziu oposição à referida execução.

Para o efeito, e em síntese, alegou o seguinte:

O cheque dado è execução não está dotado de força executiva, e nem pode valer ou produzir efeitos enquanto tal.

Desde logo porque sendo a data da sua emissão e a assinatura de quem passa os cheques (o sacador) requisitos indispensáveis para que possam valer enquanto tal, acontece que a conta sobre a qual o cheque, dado à execução, foi sacado foi encerrada em 17 de Outubro de 2005 (por ordem de quem então tinha legitimidade para vincular o executado), pelo que a data aposta no cheque (2008/07/03) é uma data em relação à qual já não vigorava a convenção de cheque subscrita entre executado e o banco sacado. Ficando-se, aliás, mesmo sem saber como foi possível o exequente ter o referido cheque em seu poder naquela data.

Depois porque naquela data em que o cheque foi sacado, os legais representantes do executado eram os que haviam tomado posse em 18 de Janeiro de 2008, sendo que as assinaturas constantes do cheque não são suas, devendo, assim, considerar-se que, para os devidos efeitos, o cheque não se encontra assinado pelo sacador.

Com base em tal, concluiu o opoente pedindo a sua absolvição do pedido exequendo, por o mesmo se fundar em título executivo inexistente.

3. Na sua contestação, o exequente defendeu-se por impugnação, justificando a posse do referido cheque nos moldes em que já o fizera no requerimento executivo, ou seja, que pagou ao executado uma letra e que quem o então representava lhe entregou o dito cheque, assinado e com o valor que dele consta, apenas dele faltando a data do seu vencimento, tendo-lhe sido pedido que aguardasse, pois que quando tivessem dinheiro lhe pagariam, o que, todavia, nunca aconteceu, apesar do exequente ter ido insistido pelo seu pagamento.

Concluiu pedindo pela improcedência da execução.

4. No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da instância, após que se procedeu à elaboração da selecção da matéria de facto, sem que tivesse sido objecto de qualquer censura das partes.

5. Mais tarde, realizou-se o julgamento – com a gravação da audiência -, que terminou com a decisão sobre a matéria de facto (sem que tivesse sido objecto de qualquer reclamação).

6. Seguiu-se a prolação da sentença que, a final, decidiu julgar improcedente a oposição, determinando prosseguimento da execução.

7. Não se tendo conformado com tal sentença, o opoente dela apelou.

8. Nas correspondentes alegações de recurso que apresentou, o opoente concluiu as mesmas nos seguintes termos:

(...)

9. O exequente não contra-alegou.

10. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


1. Do objecto do recurso.

É sabido (entendimento que continua a manter-se com a actual reforma, aqui aplicável, introduzida ao CPC pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1) que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto.

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do presente recurso, verifica-se que as questões que importa aqui apreciar e decidir serão, essencialmente, as seguintes:

a) Da impugnação da decisão da matéria de facto.

b) Do erro de julgamento de direito.


***

2. Quanto à 1ª questão.

É sabido que se devem ter como não escritas as respostas dadas pelo tribunal sobre factos que se encontrem plenamente provados por acordo ou confissão das partes (artº nº 646, nº 4, do CPC).

A confissão judicial pode ser feita espontaneamente nos articulados do processo, segundo as prescrições da lei processual, ou em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado para o efeito (artº 356, nº 1, do CC).

Como escrevem os profs. Pires de Lima e A. Varela (in “Código Civil anotado, vol. I, 3ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 314, nota 1”) as declarações confessórias feitas pelo advogado, oralmente ou por escrito, com simples procuração ad litem (como sucede no caso em apreço com a procuração do ilustre mandatário do exequente) não valem como confissão, ficando, porém ressalvada a confissão tácita resultante dos articulados (artºs 38 e 490, nºs 1 e 2, do CPC) ou a confissão expressa feita nos mesmos termos (artº 567, nº 2, do CPC).

In casu, e como o próprio apelante admite (cfr. conclusão VI), só poderá estar em causa uma confissão tácita feita (pelo exequente, através seu ilustre mandatário) feita nos seus articulados (do requerimento executivo ou da contestação à oposição) e que mais vulgamente se designa por facto admitido por acordo (das partes).

O que nos remete para o regime consagrado no artº 490, nº 2, do CPC, aqui aplicável ex vi artº 466, nº 1, do mesmo diploma legal.

E em tal normativo estipula-se que “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto (...)”.

Ora, será que o referido facto que foi transportado para o citado artº 8º da base instrutória se deve considerar, no caso, admitido por acordo (de ambas as partes)?

Vejamos.

O executado na oposição que deduziu à execução invocou a inexistência de título (executivo), o que fundamentou, além do mais, na inexistência de convenção de cheque, dado que no momento em que o cheque dado à execução foi apresentado a pagamento a respectiva conta já há muito (17/3/2005) se encontrava encerrada, na sequência de pedido formulado para o efeito pelo executado ao banco sacado, pedido esse que fizeram acompanhar da declaração, além do mais, da entrega de todos os cheques/cartões que teriam em seu poder, e se encontrarem anuladas todas as ordens de pagamento associadas a referido contrato, acabando, na sequência de tal, por manifestar a sua estranheza por o exequente ter em seu poder o referido cheque com data de saque de 3/7/2008 (cfr. artºs 19 a 22).

Na contestação que deduziu a tal posição, o exequente começou por justificar a posse do referido cheque, alegando que, por ter pago (a pedido do mesmo) uma letra da responsabilidade do executado, quem então o representava lhe entregou o referido cheque devidamente assinado e preenchido, com excepção da parte referente à sua data de vencimento, pedindo-lhe que aguardasse pois logo que tivessem dinheiro lhe pagariam (cfr. artºs 2º a 4º). Foi, pois, de tal matéria factual que foi elaborado o referido quesito 8º da base instrutória.

É sabido que após a contestação, deduzida à petição da oposição à execução, não há legalmente lugar a qualquer outro articulado, pois que a ela se seguem imediatamente os termos do processo sumário de declaração (cfr. artº 817, nº 2, do CPC).

Desse modo, em face ao que acabamos de expor, não se pode, sem mais, assim, considerar que o facto contido no quesito foi admitido por acordo de ambas as partes (sendo certo que do requerimento inicial executivo nada foi referido quanto ao alegado pedido que supra se deixou sublinhado e que constitui essência do quesito formulado), e nem sequer que o mesmo está em sintonia com aquilo que foi alegado na petição da oposição à execução.

Em suma, conclui-se que referido facto inserto no quesito 8º da base instrutória não se encontra legalmente admitido por acordo, e daí que improceda a referida pretensão do apelante no sentido de ser alterada a matéria de facto (pois que, além daquele, nenhum o fundamento foi aduzido para o efeito) fixada pela 1ª instância.


***

2. Os factos.

Pelo tribunal a quo foram dados como provados os seguintes factos:


***

3. Quanto à 2ª questão.

3.1. Do erro de julgamento de direito (da sentença ao ter julgado improcedente a oposição à execução e determinado o prosseguimento desta).
3.1.1 É sabido que a oposição à execução funciona como uma contra-acção do devedor contra o credor para impedir a execução ou destruir os efeitos do título executivo. Ou seja, a oposição do executado visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta dum pressuposto, específico ou geral da acção executiva (cfr., artº 817, nº 4, do CPC e, por ex., o prof. Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 172”).
Importa, desde já, referir, dada a data em que foi instaurada a acção executiva, que ao caso se aplica a reforma executiva introduzida pelo DL nº 38/2003 de 8/3.
Dado o disposto no artº 816 CPC, se a execução se não baseia em sentença condenatória, além dos fundamentos de oposição especificados no artº 814, nº 1, na parte em que sejam aplicáveis (e não o são os fundamentos das alíneas b), d), f) e g)), pode invocar-se quaisquer outros que seria lícito deduzirem-se como defesa no processo de declaração, ou seja, o executado pode alegar na oposição tudo o que poderia alegar na contestação à acção declarativa, não só as causas impeditivas ou extintivas, como mesmo negar os factos constitutivos do direito que se invoca.
In casu, e conforme e decorre do alegado na respectiva petição inicial, o executado fundamentou a sua oposição à execução na inexistência de título executivo, quer por falta de convenção de cheque, na data do saque, por motivo da conta se encontrar encerrada, quer por falta de assinatura dos legais representantes do executado, na data do seu saque, e daí não estar o cheque que serve de base à execução dotado de força executiva e nem poder valer ou produzir efeitos enquanto tal.
Fundamento esse que se enquadra na previsão do artº 814, nº 1 al. a), do CPC (de onde ressalta que a oposição poder ter por fundamento a inexistência ou inexequibilidade do título).
3.1.2 Apreciemos.
Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os seus limites (artº 45, nº 1, do CPC).
É também sabido que o título executivo e a causa de pedir, numa acção executiva, são conceitos necessariamente não coincidentes, costumando, todavia, ainda afirmar-se que, como pressuposto processual específico dessa acção, o título é, grosso modo, uma condição e suficiente da mesma.
É igualmente sabido que no campo dos títulos executivos vigora entre nós, e tal como decorre do artº 46 do CPC, o princípio da legalidade, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução documento a que seja legalmente atribuída força executiva.
É também sabido que, com a reforma processual de 1995, o elenco dos títulos executivos foi significativamente ampliado, passando a conferir-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável em face do título, ou a obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto determinado (cfr. al. c) do nº 1 do artº 46 do CPC).
Conforme decorre do relatório do preâmbulo do DL nº 329-A/95 de 12/12 (pioneiro da introdução de tal reforma), subjacente a tal ampliação do elenco dos títulos executivos esteve a ideia de “contribuir significativamente para a diminuição do número de acções declaratórias de condenação propostas (…)”.
Legislador que decidiu, assim, sacrificar o valor de uma maior segurança jurídica aos valores de maior eficácia e celeridade das relações jurídicas.
É sabido que os cheques se encontram entre os documentos (extrajudiciais) que a lei reveste ali de força executiva. Desde logo, na sua função natural de documentos cartulares, ou seja, enquanto títulos de crédito de natureza cambiária, e podendo agora (naquilo que constitui entendimento claramente dominante da nossa doutrina e jurisprudência, embora com alguma vozes discordantes, e cuja problemática adiante analisaremos em pormenor se tal se vier a mostrar necessário para a resolução do caso em apreço) sê-lo ainda, em determinadas condições, enquanto documento particular ou quirógrafo (cfr. artº 46, nº 1 al. c) do CPC, e, por todos, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 90” e in “A Acção Executiva, 5ª ed., Coimbra Editora, pág. 59”, e o cons. Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução, 2005, 8ª ed., Almedina, pág. 35”).
Pois bem, na execução que instaurou contra o executado/opoente o exequente deu como título executivo um cheque.
Daí resulta que a execução tenha um título, importa é saber se o mesmo é exequível, isto é, se o mesmo está dotado de força executiva, nomeadamente, e desde logo, enquanto título de crédito cambiário ou cartular.

3.1.2.1 Numa visão funcional, mas não estritamente rigorosa, diremos que o cheque surge-nos como um meio de pagamento privilegiado (que permite dispensar directamente o recurso ao numerário).

Numa linguagem comum, pode dizer-se que o cheque configura uma ordem dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado), para que pague, ao primeiro ou a terceira pessoa, determinada quantia nele inscrita, e por conta dos fundos disponíveis nesse banco.

Numa definição mais jurídica e completa, que se apresenta consensual, e que resulta de uma leitura articulada dos artigos 1º e 2º da Lei Uniforme sobre Cheques (doravante designada por LUC), pode-se dizer que o cheque é um título cambiário de crédito, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, no sentido de pagar à vista a soma ou a quantia nele inscrita (cfr., por todos, F. Correia e A. Caeiro, in “RDE, 1978, pág. 457”).

Sem prejuízo de adiante o podermos vir a fazer (pelo menos quanto a algum deles) em relação em tais conceitos que compõem tal definição (e que integram o chamado direito de cheque externo ou abstracto), interessa, por ora, focalizarmo-nos sobre o chamado direito de cheque interno ou causal.

Tal como ressalta da leitura do artº 3º da LUC, na base da emissão de um cheque estão fundamentalmente duas relações jurídicas distintas: uma relação de provisão e um contrato ou convenção de cheque.

Podemos dizer que a relação de provisão se caracteriza pela disponibilização a favor do emitente de certos fundos que se conservam no banco, ou seja, essa relação pressupõe a existência, junto do banco, de fundos de que o sacador ou o emitente possa dispor, e que pode traduzir-se sob as mais diversas formas, tais como da existência de um depósito, de uma abertura de crédito, de uma conta corrente, de um desconto, etc..

O contrato ou convenção de cheque traduz-se num acordo através do qual o banco acede, comprometendo-se ao seu pagamento, a que o seu cliente (titular de um direito de crédito sobre a provisão) mobilize os fundos que estão à sua disposição, por meio da emissão de cheques.

A provisão surge, assim, não apenas como um requisito interno típico do cheque, mas também como um pressuposto do seu normal desempenho, já que, fundamentalmente, o mesmo surge funcionalmente, como já referimos, como um meio de pagamento. Na verdade, quando o apresentador do cheque se dirige ao banco para proceder à cobrança do mesmo deve existir provisão, ou seja, o banco deve assegurar o direito de crédito do sacador, disponibilizando para o efeito os fundos necessários ao pagamento do cheque.

Todavia, a falta de provisão não torna o cheque inválido (cfr. artº 3º - fine - da LUC), muito embora, como é sabido, essa irregularidade possa fazer incorrer o seu sacador em responsabilidade criminal ou/e civil (como salvaguarda, além do mais, da tutela da confiança na circulação dos títulos – cambiários -, em geral, e da protecção da boa fé do seu adquirente, em particular).

Daí que se diga que a relação de provisão surja, nuclearmente, como uma condição económica do cheque, e não mais do que isso.

Contudo, não basta a existência de uma relação de provisão, para que o cheque possa ser pago, sendo necessário algo mais para que o banco fique obrigado ao seu pagamento. E esse “algo mais” é nada mais nada menos a existência de um contrato ou convenção de cheque de que acima falámos.

Contrato esse que, como resulta da noção já acima exarada, se traduz num acordo pelo qual o banco, vinculando-se ao respectivo pagamento, acede a que o cliente (titular da provisão) mobilize os fundos à sua disposição, através da emissão de cheques.

Sem esse acordo o cheque continua também a ser válido (cfr. artº 3º - fine - da LUC), enquanto título, mas sem ele o banco não fica obrigado ao seu pagamento. E daí dizer-se que enquanto a relação de provisão aparece como uma condição económica do cheque, já o referido contrato de cheque surge, agora, como uma condição jurídica do mesmo, já que é ele que dá juridicidade àquela relação de provisão, uma vez só com ele, repete-se, o banco fica vinculado a pagar o cheque.

Trata-se, assim, de um contrato que se caracteriza, além do mais, por ser autónomo (que portanto não se confunde com a relação de provisão, pois pode estabelecer-se esta relação sem que necessariamente se convencione a utilização de cheques), que assenta também nos princípios da boa fé e da tutela da confiança, que se situa dentro do universo dos negócios bancários, que é bilateral ou sinalagmático (por estabelecer um conjunto de direitos e deveres recíprocos para as partes que o outorgam), sendo a sua celebração feita frequentemente de forma tácita, e que se consubstancia mediante a requisição pelo cliente de um ou mais livros de cheques (ou mesmo através de simples cheques avulsos) e com a entrega deles pelo banco (donde, dada a frequente ausência de negociações preliminares, haver também quem o caracterize como sendo um contrato de adesão).

Sendo, como supra deixámos exarado, um contrato bilateral/sinalagmático, do contrato de cheque emergem, assim, direitos e deveres recíprocos para as partes que o celebram.

No que concerne ao cliente/sacador, pode dizer-se que o principal direito que adquire pela celebração de tal contrato traduz-se, como naturalmente resulta do que atrás se deixou expresso, na possibilidade que passou a ter de emitir cheques sobre os fundos de que dispõe, sabendo que o banco ficou vinculado a pagá-los, ou seja, ficou com o direito de mobilizar os fundos existentes à sua disposição no banco, através da emissão de cheques.

No que concerne aos deveres, o cliente/sacador ficou com tal contrato obrigado, para além de ter fundos disponíveis e suficientes para pagar os cheques emitidos, a verificar regulamente o estado da sua conta, e a zelar pela sua boa guarda, ordem e conservação da sua caderneta de cheques, e bem assim ainda, no caso do seu extravio ou perda, a avisar imediatamente o banco. Resulta, assim, de tal um especial dever de vigilância e zelo que onera o cliente, e que, no fundo, se traduz numa prestação de facto, que deverá ser cumprida pontualmente.

Quanto ao banco, e no que concerne aos seus direitos, o principal é o de lançar em conta o pagamento dos cheques.

No que concerne aos deveres, há que distinguir entre os principais e os laterais:

Entre os primeiros ressalta, desde logo, o dever do pagamento dos cheques emitidos pelo cliente sacador (especialmente daqueles que tenham provisão), dispensando-nos, por desnecessário para o caso, de falar do segundos. (Vidé, sobre a problemática que acabamos de abordar, entre muitos outros, Ac. da RC de 19/12/2007, proc. 5975/04.8TBLRA.C1, disponível in “dgsi.pt/jtrc” – que foi por nós relatado -; Sofia Galvão, in “Contrato de Cheque, Lex, Lisboa 1992, págs. 20 e ss”; Paulo Olavo da Cunha, in “Cheque e Convenção de Cheque, Almedina, 2009, págs. 91/92 e 441 e ss”; José Maria Pires, in “O Direito Bancário, 2º Vol., pág. 333 e ss”; Ac. do STJ de 9/11/2000, in “CJ, Acs. do STJ, Ano VIII, T3 – 108” e Ac. da RLx de 28/4/2005, in “CJ, Ano XXX, T2 – 114”).

Importa ainda reter que o cheque, não obstante estar invariavelmente representado por um impresso normalizado fornecido pelo banco (módulo), a lei (LUC) não exige que o cheque revista forma especial, muito embora não prescinda de enumerar (no artº 1º) os requisitos essenciais que deva conter, sob pena de na falta de algum deles o título (documento) não produzir efeitos como cheque (artº 2º, e ressalvadas as excepções ali previstas), e que são os seguintes:

- Inserção da palavra cheque (expressa na língua empregue para a redacção do título);

   - Mandato puro e simples de pagar uma certa quantia determinada (ou seja, menção inequívoca da ordem de pagamento sobre a quantia certa, a pagar);

- A indicação do nome do sacado (que terá necessariamente de ser uma instituição de crédito - vg. um banco);

- Indicação da data e do lugar onde o cheque é passado; e

- Indicação de quem passa o cheque (o sacador).
Por fim, importa ainda atentar que o cheque pagável no país onde foi passado deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias, devendo esse prazo contar-se do dia indicado no cheque como data da sua emissão (cfr. do artº 29, §§ 1º e 4º, da LUC). O que constitui, tal com vem sendo dominantemente entendido, uma verdadeira condição de acção cambiária, e daí que se venha considerando ser tal apresentação tempestiva do cheque a pagamento como um verdadeiro requisito de exequibilidade do mesmo.

3.1.2.2 Pois bem, tendo presentes tais considerações acabadas de expandir, avancemos, agora, decisivamente para a resposta da questão colocada.

Observado o documento dado à execução como título executivo, verifica-se que se trata de um impresso normalizado fornecido pelo banco, que contem em si todas características e requisitos, de que atrás falámos, para poder se considerado como cheque.

Cheque esse que se encontra totalmente preenchido e assinado (com duas assinaturas no lugar de quem o emitiu – o executado/sacador), titulando a quantia de € 25.438,00, contendo o nome do exequente no lugar da pessoa à ordem de quem foi emitido, o local e a data (de 2008/07/03) da sua emissão, e no seu verso a indicação de que foi apresentado a pagamento em 04/07/2008 e que, em 07/07/2008, foi devolvido na Compensação, indicando-se como motivo a conta se encontrar encerrada.

Resulta da matéria apurada (cfr. nº 9) que as pessoas que assinaram o cheque e o entregaram o exequente eram então legais representantes do executado (nada tendo sido alegado, e muito menos demonstrado - num ónus que impendia sobre o opoente - que tivessem exorbitado o seu mandato ou as suas funções), e daí que se deva considerar que o requisito da assinatura do sacador, previsto no nº 6 do artº 1º da LUC, se mostra preenchido, sendo irrelevante para o efeito que fossem já outros os corpos sociais/legais representantes do executado quando, mais tarde, veio a ser aposta, pelo exequente, no cheque a data da sua emissão e aquando da sua apresentação a pagamento.

Na altura em que o referido cheque foi entregue ao exequente foi-o com a data (de emissão) em branco (cfr. nº 10).

Como vimos, a indicação da data em que o cheque é passado constitui um dos requisitos essenciais para que possa produzir efeitos como tal.

Todavia, tal como se infere do disposto no artº 13º da LUC, e naquilo constitui entendimento pacífico, um cheque incompleto por falta de data do saque não deixa então de ser válido já que a lei permite que possa completado até do dia da sua apresentação a pagamento. (Cfr. ainda, por todos, Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Cheques, 5ª ed., Livraria Petrony, notas de págs. 25, 50, 103 e 136”).

O que significa que a falta de data da emissão de cheque só se torna relevante se ela continuar em branco ou preencher na altura da sua apresentação a pagamento no banco sacado, ou então se o seu subscritor/emitente demonstrar que a referida data nela aposta contraria os acordos antes afirmados a esse respeito.

Porém, a esse respeito mantém-se em vigor a doutrina fixada pelo acordão do STJ de 14/5/96 (publicado no DR Iª série-A de 11/7/96), ao uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos: «Em processo de embargos de executado é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador ou a seu mandato, que recai o ónus de prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância».

Ora, calcorreando a matéria de facto assente, dela se verifica que o executado/opoente não logrou provar a existência de qualquer acordo ou pacto de preenchimento (no que se refere à data da emissão) do cheque dada à execução, e, consequentemente, na falta de esse acordo, impossibilitado estava também de demonstrar a sua inobservância, ou seja, a sua violação.

E daí que, ao contrário do que se fez na sentença recorrida, seja de concluir estarmos perante um cheque válido, que produz efeitos enquanto tal.

Mas será que a tal obsta o facto de quando o cheque foi apresentado a pagamento já a respectiva conta se encontrar encerrada, na sequência de comunicação feita, em 17/10/2005, pelo executado/sacador ao banco sacado (cfr. nº 3 dos factos assentes)?

É inolvidável que nos encontramos no domínio do contrato ou convenção de cheque, de que atrás falámos.

A convenção de cheque pode-se extinguir, como os demais contratos, por acto especificamente dirigido a esse efeito.

Muito embora a cessão da convenção, tal como a sua constituição, não careça de forma específica, é habitual documentar a extinção da convenção, encontrando-se a mesma normalmente associada ao encerramento de conta, na qual se prevê que o cliente devolva ao banco os módulos de cheque não utilizados ou assegura que os mesmo não são mais utilizados.

Ela, tanto podendo ocorrer por mútuo acordo de ambas as partes (do banco e do titular da conta), com por declaração unilateral de uma das partes, podendo neste caso tanto ocorrer, à semelhança do que acontece com a cessação dos contratos em geral, por rescisão, resolução ou por denúncia.

Como escreve Paulo Olavo da Cunha (in “Ob. cit., pág. 719”), “a convenção pode extinguir-se por efeito de encerramento da conta determinado pelo respectivo titular ou por comunicação deste ao banco de que não pretende continuar a movimentar a conta através de cheques, pelo que prescinde da respectiva utilização. A cessão da convenção configura-se aqui como uma verdadeira denúncia.”

Portanto, in casu, a convenção de cheque extinguiu-se ou cessou exclusivamente por declaração unilateral do executado, ou seja, por denúncia da mesma, na sequência do pedido que, por escrito (datado de 17/10/2005), o executado dirigiu ao banco solicitando-lhe o encerramento da conta sobre a qual foi sacado o cheque dado à execução.

Porém, quando tal denúncia foi feita já se encontrava em “circulação” o referido cheque, ou seja, já o mesmo tinha sido emitido e entregue a favor do ora exequente, titulando a quantia acima referida.

Com já acima vimos, o contrato ou convenção do cheque traduz-se num acordo pelo qual o banco, vinculando-se ao respectivo pagamento, acede a que o cliente (titular da provisão) mobilize os fundos à sua disposição, através da emissão de cheques.

Cessada tal convenção, o banco fica, em princípio, desvinculado do dever de pagar os cheques que tenham sido entretanto emitidos com base nela, porém, tal não afecta ou prejudica a validade intrínseca desses próprios cheques, tal como resulta do disposto na parte final do acima citado artigo 3º da LUC.

O que significa que no caso, o sobredito cheque, não obstante ter então já cessado a convenção de cheque (com o encerramento de respectiva conta) quando foi apresentado a pagamento, continuava intrinsecamente válido, e a produzir efeitos, enquanto título cambiário.

Desse modo, tendo sido apresentado a pagamento dentro prazo legal fixado no artº 29º da LUC, ou seja, dentro do prazo de 8 dias a contar do dia nele indicado como sendo o da sua emissão, ter-se-á de concluir que o mesmo se encontra também de revestido de força executiva.

E daí que, face a tudo o que se deixou exposto – e ao contrário do que defende o apelante -, se conclua que o cheque dado à execução é válido, apresentando-se na veste de título de crédito cambiário ou cartular, dotado, enquanto tal, de plena força executiva. Donde que não se acompanhe sentença recorrida quando considerou que o cheque em causa não seria válido enquanto título executivo cambiário, mas somente enquanto documento particular/quirógrafo.

Enquanto título revestido de natureza cartular, o cheque dado à execução consubstancia em si uma verdadeira obrigação cambiária.

Porém, encontrando-nos no domínio das relações imediatas, o executado sempre poderia opor ao exequente excepções fundadas sobre as relações pessoais com este (naquilo que configura uma excepção o princípio consagrado no artº 22º da LUC), e nomeadamente discutir a relação causal ou subjacente, tudo se passando como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta.

Contudo, como resulta do que supra deixámos expresso, não foi esse o caminho seguido pelo executado para fundamentar a sua oposição, pois a sua estratégia de defesa ali adoptada visou discutir a falta de um pressuposto processual específico (que fez assentar na alegada inexistência de título, executivo), e não discutir a relação fundamental ou subjacente.

Nas alegações de recurso, o executado/opoente alarga agora aquela sua defesa à não inexigibilidade da obrigação exequenda, invocando para o efeito a existência de um acordo celebrado com o exequente que apontava no sentido de o primeiro só pagar a dívida titulada pelo referido cheque quando pudesse fazê-lo (isto é, de dispor de dinheiro para o efeito), o que configuraria a estipulação de uma verdadeira cláusula cum puerit, prevista no artº 778, nº 1, do CC.

Só que a referida pretensão defensiva do opoente, assente em tal fundamento, está condenada ao naufrágio.

Desde logo, porque tal configura um questão nova, que não foi precedentemente submetida a apreciação do tribunal a quo, o que, conforme vem pacificamente sendo entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, consequentemente (e não se tratando de questão que seja de conhecimento oficioso) vedaria a este tribunal ad quem que dela conhecesse.

Depois, e caso assim não se entendesse, porque basta calcorrear a matéria factual assente para, sem mais, se verificar que esse alegado acordo não ficou provado (sendo certo que nem sequer fora antes por si alegado), sendo que era sobre o opoente que, como facto impeditivo do direito do exequente, impendia tal ónus de prova (cfr. artº 342, nº 2, do CC).

Termos, pois, em que por tudo exposto, se decide negar provimento ao recurso, e confirmar a sentença recorrida (ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente).


***

III- Decisão


Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se (ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente) a sentença da 1ª instância.

Custas pelo opoente/apelante.


Isaías Pádua (Relator)
Teles Pereira
Manuel Capelo