Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/18.2GAMGL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
DESPACHO MERAMENTE TABELAR
Data do Acordão: 02/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 620.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL; ART. 4.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - O caso julgado formal só se constitui quando é contrariado em despacho posterior um anteriormente proferido que tenha apreciado concretamente as questões cujo conhecimento ora se repete.

II – Assim não sucede quando o despacho precedentemente proferido é meramente tabelar, não se debruçando sobre uma qualquer questão concreta.

Decisão Texto Integral:






ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Nos presentes autos de Processo Comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, que correm termos pelo Juízo Central Criminal de Viseu, J1, em que são arguidos

- S, Lda,

- SF,

- C, Lda, e

- AJ,

sendo demandada SAP, SA, e

sendo chamada F – Companhia de Seguros, SA e E – Segurança Contra Incêndios, Lda,

no decurso da primeira sessão de julgamento, pela Ex.ma Juíza Presidente foi ditado para a acta despacho do seguinte teor literal:

Nos presentes autos foi deduzida acusação contra S, Lda., SF, C, Lda. e AJ, pelos factos dela constantes.

Por requerimento de 24/08/2020, a assistente MF deduziu reclamação hierárquica com vista à reabertura do inquérito, com o consequente apuramento da responsabilidade criminal da SAP, S.A. e de FG.

Requerimento do qual viria a desistir em 09/09/2020.

Consolidou-se, assim, o objecto dos presentes autos, que recai sobre a matéria factual levada à acusação. Nesta não são descritos factos que permitam sustentar a responsabilidade criminal da demandada SAP, Lda.

Nos termos do artigo 71º do Código de Processo Penal, “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

Está assim consagrado princípio da adesão, no sentido da suficiência do processo penal e do juiz penal, para apreciar a questão do pedido civil decorrente dos factos ilícitos da acusação:

Quanto às pessoas contra quem deve o pedido ser deduzido, preceitua o artigo 73º do mesmo Código de Processo Penal que: “1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal.

Daqui se infere que o pedido civil pode ser deduzido contra pessoas, demandados, que não sejam arguidos nos autos.

Contudo, como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 29/03/ 190/11.7JAGRD-A.C1; Rel. Luís Teixeira) acessível em www.dgsi.pt: “é inequívoco que o pedido de indemnização civil terá que ter como suporte, como causa de pedir, os mesmos factos que justificam a imputabilidade criminal.

Conforme se decidiu no AUJ n.º 7/99 (DR, Iª Série, de 3/8/1999) e AUJ n.º 3/2002 (DR, Iª Série, 5/3/2002), o pedido civil tem que se fundar exclusivamente na responsabilidade civil extracontratual ou.por facto ilícito, ainda que decorrente da transmissão de responsabilidades.

“Se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, não se funda na responsabilidade civil do agente pelos danos que, com a prática do crime causou, então esse pedido não é admissível em processo penal”. - Ac. do STJ de 28-05-2015, Proc. n.º 2647/06.2TAGMR.G1.S1.

Ou seja, os factos geradores da responsabilidade civil têm que ser os mesmos que justificam a responsabilidade criminal. Os responsáveis é que podem ser sujeitos jurídicos diferentes.

Em determinadas situações, existe coincidência entre o responsável criminal e responsável civil – situação mais comum, em que o arguido responde pela prática do crime e dos danos que este causou.

Noutras, existe um responsável criminal (arguido) e responsável meramente civil, decorrente da transmissão desta – v. segurado e seguradora, quando a conduta do segurado constitui ato ilícito criminoso.

E ainda outras situações em que o responsável criminal (arguido), está a agir em nome de um responsável meramente civil – trabalhador a agir em nome ou em representação da entidade empregadora ou gerente a agir em nome ou em representação da sociedade (podendo coexistir uma responsabilidade solidária).”

Não se tratando de responsabilidade transmitida ou solidária, a ação civil tem como causa de pedir “(…) os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado.”

Neste sentido, a diversa jurisprudência a que se alude no mencionado Acórdão, designadamente:

“I – O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre que ser fundado na prática de um crime.

II – O poder de cognição do tribunal criminal é limitado pelo objecto do processo, que é delineado pelos factos e sujeitos referidos na acusação e/ou pronúncia se a houver. Salvo a possibilidade de alteração prevista na lei adjetiva, na sentença penal o tribunal só se pode pronunciar sobre os factos e as pessoas referidos naquelas peças processuais.

III – O tribunal penal é incompetente em razão da matéria para se pronunciar sobre um pedido cível fundamentado na inobservância pelos demandados (não arguidos) dos requisitos de que depende a validade de um contrato de concessão de crédito, se os demandados não tiverem tido qualquer participação na autoria dos factos relatados na acusação que sustentam a imputação ao arguido dos crimes de burla e falsificação de documento” – Acórdão da Relação de Guimarães de 10/07/2014 (proc. n.º 2647/06.2TAGMR.G1; Rel. João Lee Ferreira).

O Ac. TRE de 29-05-2012: “3. Não se verifica a situação prevista no art. 71º do C.P.P. quando o pedido cível não se funda na prática do crime da acusação, mas na prática do crime do arquivamento. 4. Não ocorrendo a situação de excepção que justifique a intervenção do juiz penal no julgamento da causa cível, para a qual ele é materialmente incompetente na falta desse pressuposto de extensão de competência, verifica-se a nulidade insanável prevista no art. 119º al. e)) do CPP, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento” – Acórdão da Relação de Évora de 29/05/2012 (proc 470/10.9JAFAR.E1; Rel. Ana Barata Brito).

“I. Consagra o artigo 71° do CPP o princípio da adesão. II. Nos termos do artigo 73º, n.º 1 do CPP, «o pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil(...)». III. No entanto, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre que ser fundamentado na prática de um crime, tem de ter na sua base uma conduta criminosa, que determina o funcionamento do princípio da adesão. IV. Nos autos investiga-se a prática de um crime de falsificação. V. O demandante deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido pelos factos integradores do tipo legal de falsificação que lhe vem imputado na acusação pública. VI. E deduziu pedido de indemnização civil contra o D..., SA., por este, negligentemente, no período de apresentação a pagamento, previsto no artigo 29° da Lei Uniforme do Cheque, ter recusado o pagamento do cheque, violando assim o disposto no artigo 32° da LUCH. VII. A causa de pedir quanto a esta pretensão, é assim, inequivocamente, a responsabilidade extracontratual do demandado, estruturada em torno dos artigos 483° C Civil e 14° do Decreto 13.00, resultante, não da falsa declaração do arguido, mas antes da falta de diligência do Banco ao não cumprir o disposto no artigo 32° da LUC. VIII. Por isso não pode ser demandado nestes autos” – Acórdão da Relação do Porto de 11/07/2012: (proc 1/09.3TAVLG.P1; Rel. Ernesto Nascimento)

Resulta, pois, do exposto, que soçobrando o pressuposto-base para a vigência do princípio da adesão, ou seja, a descrição na acusação de factos que pudessem sustentar a responsabilidade criminal da demandada SAP, SA, não só esta seria parte ilegítima na acção, como careceria este Tribunal de competência para conhecer da responsabilidade civil em causa.

Termos em que não se admite o pedido de indemnização civil na parte em que foi deduzido contra a demandada SAP, S.A.. E não sendo admissível o pedido quanto a esta, ficam igualmente prejudicados os chamamentos deduzidos pela mesma contra a E. e a F..

Notifique.

Inconformados com tal despacho, os demandantes civis

- MF,

- LI,

- PM, e

- BM,

dele interpuseram o presente recurso, que motivaram, assim concluindo:

a) Em 18.01.2021 foi proferido despacho nos autos (referência 87365641) no qual por legal e tempestivo foi admitido liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido contra SAP SA.

b) SAP SA foi citada para contestar o pedido de indemnização civil, tendo apresentado contestação em 26.04.2020, no qual não invocou       a inadmissibilidade legal de ser demandada nos autos.

c) O despacho de admissão do pedido de indemnização civil contra Sonae não foi objeto de reclamação ou recurso, tendo transitado em julgado.

d) Após trânsito em julgado do sobredito despacho foi proferido nos autos despacho em 20.09.2021 (referência 88875651), no qual foi decidido não admitir o pedido de indemnização civil na parte em que foi deduzido contra SAP SA.

e) A primeira decisão de admissão do pedido de indemnização civil, por ter transitado em julgado, não pode ser objeto de nova decisão, e tendo o sido deve ser desconsiderada por violação de caso julgado formal assente na primitiva decisão.

f) Por ter violado caso julgado formal a decisão recorrida deve ser revogada, mantendo-se a primitiva decisão de admissão do pedido de indemnização civil deduzido contra SAP SA.

g) A sentença recorrida, por erro de interpretação e aplicação, violou o disposto no artigo 620.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicável nos termos do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.

Nestes termos, e com o meu douto suprimento de V.ªs Ex.ªs, dando-se provimento ao presente recurso, e revogando-se o despacho recorrido nos termos supra referidos com o que se fará JUSTIÇA.

Respondeu a demandada Sonae, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

§ 1. A decisão recorrida é plenamente fundada, nos termos e no tempo em que foi proferida, e não merece qualquer reparo: atento o princípio da adesão, previsto no artigo 71.º do CPP, não podem ser admitidos em processo penal pedidos de indemnização civil que não se fundem na prática do crime objecto do processo, fixado tematicamente pela acusação.

§ 2. O pedido de indemnização civil deduzido pelos Recorrentes não emerge da prática dos crimes objecto dos presentes autos – em que SAP, SA nunca foi, a nenhum título, implicada, sequer na fase de inquérito –, não se verificando assim, a respeito da putativa “responsabilidade” assacada à SAP, SA pelos Recorrentes, a situação prevista no artigo 71.º do CPP, que (excepcionalmente) legitima a dedução de pretensão indemnizatória em processo-crime e a submete à apreciação do tribunal penal.

§ 3.      O despacho anteriormente proferido pelo Tribunal a quo em 18 de Janeiro de 2021, tratando-se de despacho meramente tabelar e de apreciação genérica, que não se pronuncia em concreto sobre a verificação dos pressupostos do pedido de indemnização civil, é intrinsecamente insusceptível de revestir força de caso julgado formal, como é jurisprudência pacífica, pelo que o despacho recorrido em nenhuma medida violou aquele efeito (inexistente).

§ 4.      Quer a incompetência do Tribunal a quo para apreciar o pedido de indemnização civil na parte relativa à SAP, SA, quer a ilegitimidade passiva desta, configuram excepções dilatórias que são de conhecimento oficioso (logo, sem dependência de alegação pelas partes e nenhum efeito preclusivo associado à omissão dessa alegação), nos termos dos artigos 96.º, 97.º, 98.º, 99.º, 278.º, n.º 1, alíneas a) e d), e n.º 3, 577.º, alíneas a) e e), 578.º do CPC, subsidariamente aplicáveis.

§ 5. Decaindo o pressuposto-base para a aplicação do princípio da adesão, o Tribunal poderia e deveria oficiosamente e em tempo útil determinar a inadmissibilidade do pedido de indemnização civil (só assim evitando, aliás, a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea e), do CPP, que resultaria do processamento de uma pretensão indemnizatória fora da situação prevista no artigo 71.º do CPP, e a inerente prática de actos inúteis).

Termos em que, e nos mais de Direito, deve o recurso dos Demandantes ora Recorrentes ser julgado totalmente improcedente, porque infundado, confirmando-se na íntegra o despacho proferido pelo Tribunal a quo.

Também a interveniente Fidelidade respondeu, concluindo pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

Analisadas as conclusões que os recorrentes retiram da motivação conjunta do seu recurso, logo se constata que é apenas uma a questão a decidir, que se prende com a eventual violação de caso julgado, em que se traduziria o despacho recorrido.

Ou seja, a análise da questão não é suscitada no recurso pela via da apreciação da questão de fundo, antes através de uma questão de natureza processual, adjectiva.

O artº 71º do CPP estabelece um regime que integra o designado principio da adesão: “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

Daqui resulta que estando em causa responsabilidade civil conexa com a responsabilidade criminal, por regra e atento o princípio da suficiência do processo penal, o pedido respectivo deve ser formulado no âmbito do processo penal.

E bem se entende que assim seja, pois que sendo analisada nos autos a responsabilidade criminal do agente, é curial que, do mesmo passo, e como sua consequência, se aprecie da eventual reparação dos danos causados.

No entanto, a matriz essencial da norma é que a causa de pedir se traduza na prática de um crime, daqui resultando que estamos perante responsabilidade civil aquiliana, resultante da prática de um ilícito criminal (v. o artº 483º, 1, do CC: “aquele que, com dolo … violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios…”).

A legitimidade do demandante (na vertente de integração da sua responsabilidade criminal e civil conexa) há-de aferir-se, numa primeira aproximação, da sua conduta tipificada como criminosa, na existência de um laço de pertinência entre a sua conduta (ilícito típico) e um resultado danoso criado na esfera pessoal ou patrimonial da vítima.

Excepcionalmente podem ser demandados sujeitos com responsabilidade meramente civil, desde que esta seja acessória da responsabilidade criminal (v.g. pela via contratual, como seja, p. ex. por via de um contrato de seguro) – v. o artº 73º CPP.

No nosso caso, a demandada Sonae não se encontra acusada da prática de um qualquer crime; não ocorre a sua responsabilidade directa. Da mesma forma, e como se disse no despacho recorrido, na acusação “não são descritos factos que permitam sustentar a responsabilidade criminal da demandada SAP”.

Assim sendo, não pode a demandada em causa vir a ser objecto de uma qualquer condenação civil nos presentes autos, pois que não é responsável pela prática de um qualquer crime, por não se encontrar pronunciada.

Por isso, carece a demandada SAP de legitimidade, na sua vertente substancial, de falta de interesse directo em contradizer (v. o artº 30º, 1 e 2, CPC).

Conforme acórdão do STJ, citado no despacho recorrido, “Se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, não se funda na responsabilidade civil do agente pelos danos que, com a prática do crime causou, então esse pedido não é admissível em processo penal”. - ac. do STJ de 28-05-2015, Proc. n.º 2647/06.2TAGMR.G1.S1.

No nosso caso acresce que a demandada Sonae nem sequer ocupa a posição de agente nos presentes autos, pois que não lhe é assacada, na pronúncia, a prática de um qualquer crime.

Finalmente, a impugnação recursiva dos demandantes optou por uma posição mais formal, adjectiva: pretendem que a existência de caso julgado era impeditiva da prolação do despacho ora recorrido.

Alegam que a demandada em causa foi citada para contestar o pedido de indemnização civil, tendo apresentado contestação   em 26.04.2020, no qual    não invocou    a inadmissibilidade legal de ser demandada nos autos e que o despacho de admissão do pedido de indemnização civil não foi objeto de reclamação ou recurso, tendo transitado em julgado.

Afirmam que a decisão recorrida, «por erro de interpretação e aplicação, violou o disposto no artigo 620.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicável nos termos do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal».

No entanto, olvidam que tem vindo a ser jurisprudência constante dos nossos tribunais aquela segundo a qual o caso julgado formal só se constitui quando é contrariado em despacho posterior um anteriormente proferido que tenha apreciado concretamente as questões cujo conhecimento ora se repete. Não é esse o nosso caso, pois que o despacho proferido em 18/1/2021 foi meramente tabelar, não se debruçando sobre uma qualquer questão concreta.

Assim sendo, é aqui aplicável a doutrina do acórdão desta RC proferido no proc. 3582/13.3TJCBR-C.C1:

Se for proferido despacho saneador tabelar, do estilo “Não existem outras excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.”, não se constitui qualquer caso julgado formal, pois isso só poderá acontecer se o julgador apreciar em concreto as questões referidas no art. 595º, nº 1, a) do NCPC, como decorre do nº 3 de tal artigo.

Por isso, não ocorre nos presentes autos qualquer violação de caso julgado anterior.

Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra o despacho recorrido.

Custas pelos recorrentes, em regime de solidariedade.

Coimbra, 2 de Fevereiro de 2022

Jorge França (relator)

Paulo Guerra (adjunto)