Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
669/10.8TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: FORMAÇÃO DO CONTRATO
PLURALIDADE
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DECRETO-LEI 178/86, DE 3 DE JULHO.
Sumário: I – Assumindo as relações entre Autora e Ré, relativas à comercialização de produtos produzidos pela Ré no distrito de Setúbal, características típicas de um contrato de transporte, quando os clientes eram grandes superfícies; de um contrato de concessão comercial, quando os clientes eram pequenas superfícies, que pagavam a pronto; e de um contrato de agência, quando os clientes eram pequenas superfícies que pagavam a crédito, estamos perante uma formação contratual complexa plural.
II - Existindo diferentes graduações na unitariedade ou na pluralidade das formações contratuais complexas, neste caso pode-se dizer que estamos perante três negócios jurídicos perfeitamente autónomos, mas que o facto de se inserirem num plano global de utilização da actividade da autora para a comercialização dos produtos da Ré no distrito de Setúbal, conferem-lhe ainda um grau de unidade que pode ter reflexo no tratamento jurídico destes contratos.

III – O contrato que não têm por objecto uma única prestação isolada (one-shot deal), assumindo-se como um contrato relacional duradouro de eficácia sucessiva, do qual nascem reiteradas obrigações diferenciadas, não se tendo apurado a fixação de qualquer prazo para a sua vigência, com vista a não se permitir uma vinculação inde­finida a obrigações contratuais que contraria o direito à liberdade contratual, em regra aceita-se a desvinculação unilateral.

IV – Neste tipo de contratos os pressupostos da resolução com fundamento em incumprimento da contraparte devem ser compatibili­zados com o princípio da exigibilidade, pelo que o credor apenas pode resolver o contrato se o incumprimento imputável ao devedor tornar inexigível a subsistência da relação, o que se por um lado amplia os pressupostos resolutivos, acrescentando-lhe o requisito de exigibili­dade, por outro lado restringe-os, não sendo necessário, por exemplo, a verificação de um incumprimento definitivo, sendo suficiente que a gravidade do incumprimento torne inexigível a subsistência da relação contratual.

V - Caso se considere que após o incumprimento contratual verificado não é exigível que a contraparte mantenha essa relação pela quebra de confiança que o mesmo objectivamente provoca, na medida em que gera o fundado receio da perma­nência da situação de inadimplência ou de futuros incumprimentos dos deveres do infractor, a resolução do contrato é legítima.

VI - Apesar da independência funcional dos diferentes contratos nessa forma­ção, dado que estamos perante “negócios de confiança”, nos quais avultam as facetas cooperativa e fiduciária, depositando o produtor o sucesso da sua actividade comercial e a reputação dos seus produtos nas mãos do “distribuidor”, o incumpri­mento reiterado da prestação de um dos contratos justifica não só a resolução desse contrato, mas também a dos restantes que a ele estão ligados no programa económico de distribuição dos produtos da Ré no distrito de Setúbal, uma vez que esse compor­tamento estende a perda de confiança e a consequente inexigibilidade de manutenção dos vínculos contratuais a todo o complexo económico-negocial em causa, operando aqui o princípio simul stabunt, simul cadent.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora intentou contra a Ré a presente acção declarativa com processo ordinário, pedindo:

- O reconhecimento de que entre a Autora e o Ré se estabeleceu um acordo comercial que consistia na venda de produtos lácteos aos clientes da Autora;

- O reconhecimento de que a Ré terminou de forma injustificada o acordo comercial existente com a Autora, incorrendo em responsabilidade contratual;

- O reconhecimento de que a Ré se apropriou de forma ilícita dos clientes da Autora;

- a condenação da Ré  a pagar-lhe a quantia global de € 10.390.251,93, a título de prejuízos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a cessação do acordo.

- a condenação da Ré  a pagar-lhe os danos emergentes da desvalorização comercial que sofreu, em função da resolução contratual, cujo valor deverá ser relegado para execução de sentença.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:

A Autora é uma sociedade anónima, cuja designação foi alterada a partir de 2008, cujo objecto social consiste na produção, engarrafamento, importação e exportação de bebidas e matérias-primas inerentes à actividade.

A Autora decidiu dedicar-se à comercialização, em nome individual, de leite, queijos, manteigas, bolos e iogurtes, cuja actividade durou até ao final da década de 70, através da empresa L..., responsável pela comercializa­ção em Portugal de iogurtes sob a designação de “...”, ao abrigo de um contrato, com exclusividade, para determinadas zonas do distrito de Setúbal.

No início da década de 80 a empresa I..., posteriormente adquirida pela Ré, manifestou interesse em adquirir a carteira de clientes da Autora, no sentido de começar a vender aos clientes da Autora os seus iogurtes, pelo que ficou acordado que a Autora passaria a exercer a sua actividade, ao abrigo de um acordo comercial, com exclusividade, para o distrito de Setúbal, na comercialização daqueles iogurtes.

Esta relação foi-se sempre desenvolvendo, de modo a que a Autora ia sempre adquirindo produtos à I..., procedendo, posteriormente à sua venda, trans­porte e facturação aos clientes que faziam parte da sua carteira, tendo esta relação comercial se mantido inalterada, mesmo depois da aquisição executada em 1989 pela empresa D..., que manifestou a intenção de continuar o contrato, tendo garantido, através dos seus representantes, que nenhum iogurte seria vendido sem intervenção directa da Autora.

Deste modo, manteve-se a relação comercial, sendo que os clientes da Autora continuaram a efectuar-lhe as encomendas, que por sua vez adquiria os produtos à Ré, procedendo em termos finais à sua venda, transporte, entrega e facturação.

A carteira de clientes da Autora foi sendo aumentada durante as décadas de 70 e 80, tendo deixado de comercializar mais de 50% de produtos alimentares que comercializava, a pedido da Ré, mediante a contrapartida de ser representante exclusiva desta na zona de Setúbal.

Actualmente, a actividade da Ré no distrito de Setúbal assenta nos clientes que a Autora lhe colocou à disposição, sendo certo que apesar de a partir de determinada altura a facturação ser efectuada directamente pela Ré, tal procedimento não era para a generalidade dos clientes, tendo, de qualquer forma, continuado as encomendas a ser feitas directamente à autora.

Em 2007 a Ré contactou a Autora, transmitindo-lhe a sua intenção de pôr fim às relações comerciais que haviam durado cerca de 28 anos.

Apesar de ter recebido toda a clientela da Autora, com as vantagens daí advenientes, tendo sido interpelada para compensar a Autora, nunca manifestou disponibilidade de efectuar qualquer pagamento.

A Ré deve indemnizar a Autora pelo valor da clientela, no montante de € 8.755.827,54, correspondente ao valor médio das vendas efectuadas por esta nos último cinco anos, bem como pelas despesas que fez no desenvolvimento desta relação comercial, designadamente com a aquisição de um terreno e equipamentos, respectivamente nos valores de € 300.000,00 e € 343.532,76 e ainda com o despedi­mento de funcionários que, em virtude da cessação do contrato, deixaram de ser necessários.

Alega ainda prejuízos para a sua imagem e reputação, decorrentes do facto da Ré ter referido, junto dos seus clientes, que a Autora não seria o melhor exemplo e outros prejuízos patrimoniais em virtude de ter ficado sem clientes e sem produtos para vender, que contabiliza, respectivamente em € 7.500,00 e € 939.391,63.

Finalmente, alega que sofreu desvalorização comercial, com o conse­quente prejuízo que não está ainda em condições de contabilizar, relegando a liquida­ção deste prejuízo para execução de sentença.

Conclui que a Ré se apropriou da sua clientela, praticando actos de con­corrência desleal, aproveitando-se da sua situação de inferioridade, incorrendo em responsabilidade obrigacional.

A Ré contestou, invocando a excepção de incompetência territorial.

Ainda por excepção invocou a caducidade do direito de indemnização da clientela peticionado pela Autora, por ter já decorrido mais de um ano desde a cessação do contrato e comunicação efectuada pela Autora no sentido de exigir o pagamento de indemnização, até à data da instauração da presente acção.

Por impugnação, sustentou não ser verdade o descrito pela Autora, ale­gando em síntese:

Nunca pretendeu adquirir nem adquiriu qualquer carteira de clientes da Autora, sendo as relações comerciais entre as duas sociedades sempre mantidas em moldes abertos, nos termos que descreve e sem qualquer obrigação de exclusividade.

A ampliação da clientela não se deveu à Autora, mas antes ao trabalho da Ré e seus colaboradores, bem como à qualidade dos produtos.

O trabalho efectuado pela Autora limitava-se à operação de recepção, transporte e entrega de mercadorias, cobrando como preço uma percentagem sobre o valor das mesmas.

Em 5 de Junho de 2007 comunicou à Autora que iria assumir a entrega da mercadoria no ... de Setúbal e Almada a partir de 5 de Novembro de 2007, cessando os serviços logísticos da Autora, pelo que, após essa comunicação, a Autora informou a Ré que deixaria de lhe remeter os valores em dívida, o que fez relativa­mente aos valores vencidos entre 30 de Setembro e 30 de Outubro de 2007 e aos vencidos depois de 31 de Outubro de 2007.

Por esse motivo, em 20 de Novembro de 2007 a Ré avisou a Autora de que, caso não efectuasse os pagamentos em dívida, suspenderia os fornecimentos e cessaria a relação comercial, pelo que, não tendo a Autora cumprido as suas obriga­ções, a Ré suspendeu as relações comerciais e resolveu o contrato.

Não corresponde à verdade o valor de vendas que a Autora refere, sendo que nunca impôs também a aquisição de quaisquer bens ou equipamentos, pelo que se esses investimentos foram efectuados, integram o risco próprio do negócio por parte da Autora, a que a Ré é totalmente alheia.

Deduziu pedido reconvencional, dando por reproduzido o alegado na con­testação, alegando que por força dos fornecimentos de iogurtes não pagos pela Autora, tem um crédito sobre esta de € 120.649,14, cujo pagamento peticiona, acrescido dos respectivos juros, que ascendem a € 29.021,23.

Concluiu pela improcedência da acção.

A Autora respondeu, concluindo pela improcedência das excepções e do pedido reconvencional e, no mais, concluiu como na petição inicial

Foi admitido o pedido reconvencional.

No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção da incompetên­cia territorial.

Veio a ser proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:

» julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolver a ré “D..., S.A” dos pedidos contra si deduzidos pela autora “G..., S.A.”.

» julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional deduzido pela ré con­tra a autora e, em consequência, condenar a autora “G..., S.A” a pagar á ré “D..., S.A” o montante de € 120.649,14, acrescido de juros de mora às taxas legais em vigor, sendo os mesmos devidos, relativamente à quantia de € 73.694,81, desde 20 de Novembro de 2007 até integral pagamento; e relativamente à quantia de € 46.954,33 desde a citação até integral pagamento, absolvendo a autora do demais peticionado.

» julgar improcedente o pedido deduzido pela ré de condenação da autora como litigante de má-fé.

A Autora inconformada com a decisão interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

...

A Ré apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão.

1. Da junção de “relatório técnico e parecer jurídico” pela Recorrente

Já após a distribuição do recurso e quando o processo se encontrava con­cluso à Relatora para elaboração de projecto de acórdão, a Autora, invocando o disposto no art.º 651º, n.º 1 e 2, do C. P. Civil, veio proceder à junção aos autos de um documento que apelidou de relatório técnico e parecer jurídico, alegando que ao contrário do que consta da douta sentença, os valores peticionados pela Ré/Reconvinte (ora recorrida) por referência às facturas relacionadas entre os pontos 36 a 52 dos factos considerados provados na douta sentença, não se encon­travam em débito por parte da A./Reconvinda (ora recorrente) e, consequentemente, não podia tal facto fundamentar a rescisão contratual efectuada pela D..., SA.

A Ré veio opor-se à junção desses documentos, alegando, além do mais, que a sua junção é extemporânea.

Segundo consta da nota introdutória desse documento, subscrito por um revisor oficial de contas e por um jurista, o mesmo reporta-se a aspectos meramente contabilísticos e financeiros e, em nenhum momento se refere a aspectos ou conse­quências legais dos mesmos. Nada neste relatório constitui um aconselhamento legal.

O artigo 651º do Código de Processo Civil, relativamente à junção de pareceres e de documentos em fase de recurso, determina o seguinte:

1. As partes podem juntar documentos às alegações nas situações excep­cionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessá­ria em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

2. As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projecto de acórdão.

Tendo o documento em causa sido junto quando já se havia iniciado o prazo para a elaboração do projecto de acórdão, pois o processo, após a sua distribui­ção, já se encontrava concluso à sua Relatora, independentemente do mesmo poder ser considerado ou não um parecer de um jurisconsulto e de ser admissível a junção de relatórios técnicos nesta fase, é inegável que a sua junção é extemporânea, pelo que o mesmo não será considerado na decisão do recurso.

Assim, não se admite a junção dos documentos efectuada já em fase de recurso, ordenando-se o seu desentranhamento e oportuna restituição à apresentante, condenando-se esta em multa que se fixa em 1 UC – art.º 443º, n.º 1, do C. P. Civil e art.º 27º, n.º1, do R. C. Processuais.

2. Do objecto do recurso

2.1. Da impugnação da matéria de facto

...

Dispõe o art.º 640º do Novo C. P. Civil:

1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 — O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º.

Da leitura das alegações do recurso interposto resulta manifesta a discor­dância da Autora quanto a pontos concretos da matéria de facto julgada quer provada quer não provada, pontos esse que identifica, dando, desse modo, satisfação à exigência contida no n.º 1, a), do artigo acima transcrito.

No que respeita à indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – al. b), n.º 1 – a Recor­rente no corpo da suas alegações invoca os depoimentos das seguintes testemunhas:

..., transcrevendo excertos dos respectivos depoimentos, mencio­nando a sua localização na gravação.

Analisado o registo da prova resulta que a localização, na gravação, das passagens indicadas não é  mais que a totalidade da duração de todos os depoimento prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento, assinalando o seu início e fim, sem menção da localização dos trechos que em seu entender apresentavam relevância para o efeito pretendido

A Recorrente ao invocar, do modo como o fez, os depoimentos que, na sua perspectiva, tinham virtualidade para modificar a decisão da matéria de facto, não deu satisfação à exigência contida naquela alínea b).

Limitou-se a indicar as horas de início e fim do depoimento em cada uma das sessões das testemunhas que identifica, sem menção da localização na gravação dos trechos que em seu entender apresentavam relevância para o efeito pretendido.

A especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve ser acompanhada, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o seu recurso – art.º 640º, n.º 2, a), do Novo C. Processo Civil.

A transcrição das passagens dos depoimentos que o recorrente considere relevantes para a modificação pretendida, resultando da lei como uma faculdade que lhe é concedida, não configura uma alternativa à obrigatoriedade de indicação exacta das passagens da gravação.

Deste modo, não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador for­mou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas, para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especifica­ção impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 640º do Novo C. P. Civil, devendo ainda proceder a uma análise critica da prova, de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto que pretende ver alterados não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.

No caso em apreço a Recorrente limitou-se a requerer a análise de docu­mentos e dos depoimentos, cujos autores identifica, sem cumprir o ónus de especi­fi­cação imposto pelo n.º 2, a), do art.º 640º do Novo C. P. Civil, ou seja, não indicando as passa­gens exactas da gravação em que funda a sua impugnação, sendo certo que tendo a mesma sido efectuada digitalmente, no sistema H@bilus Media Studio, conforme da acta consta, tal era possível, nem fazendo qualquer análise crítica dos meios de prova, nomeadamente documental, que, em seu entender, provocam as alterações por si pretendidas.

Assim, considerando que as alegações da Recorrente não dão satisfação às mencionadas exigências legais, nos termos expostos, rejeita-se o recurso no que se refere à impugnação da decisão da matéria de facto.

2.2. Das questões a decidir

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações apresentadas pela Recorrente, cumpre conhecer das seguintes questões:

a) Há contradição entre o facto 18º julgado provado e o 4º julgado não provado, bem como entre o facto 27º julgado provado e o 12.º julgado não provado?

b) A Ré deve indemnizar a Autora do prejuízo que esta sofreu com a ces­sação da relação contratual?

c) O pedido reconvencional deve ser julgado improcedente?

3. Da contradição factual

...

4. Os factos:

Os factos provados são os seguintes:

...

5. O direito aplicável

5.1. Do pedido indemnizatório

Nos presentes autos está em causa o termo de uma relação contratual que Autora e Ré mantiveram durante anos e que tinha por objecto a distribui­ção/comercialização de produtos produzidos pela Ré no distrito de Setúbal.

Não se provou, porque também não se alegou, quais foram os termos acordados dessa relação, ou seja as declarações de vontade definidoras dos direitos e obrigações que resultavam para as partes do estabelecimento daquele vínculo contratual, tendo-se apenas revelado o modo da sua execução, isto é os actos mate­riais em que a mesma decorria.

Se isso não impede que se considere a existência de uma relação contratual juridicamente vinculante, torna espinhoso para o intérprete a definição rigorosa dos termos dessa relação, como aliás não deixou de salientar a decisão recorrida, sendo necessário extrair da descrição da sua vivência o conteúdo do acordo que a confor­mou.

Segundo a matéria de facto provada são os seguintes os termos em que se desenvolvia a relação contratual existente entre Autora e Ré:

- Os clientes, consumidores finais, que pagavam a pronto, efectuavam encomendas à ..., que, por sua vez, adquiria produtos à Ré, que os facturava na totalidade à Autora, com um desconto de 13% correspondente à comissão.

- Procedendo a Autora à venda, transporte, entrega e facturação dos pro­dutos a esses clientes finais que pagavam a pronto.

- A Ré era sempre responsável por receber as devoluções dos clientes e proceder ao respectivo pagamento.

- Em relação aos clientes que pagavam a pronto, a Autora vendia-lhes e facturava os produtos contra o respectivo pagamento ao preço de tabela, tendo um ganho de 13%.

- Em relação aos clientes a crédito, a Autora efectuava as encomendas à Ré, entregava os produtos aos clientes, com guia de remessa em nome da Ré, sendo esta que facturava.

- Nestes casos de facturação directa aos clientes a crédito, as encomendas continuaram a ser efectuadas à Autora, que, depois, as encaminhava para a Ré com vista à venda dos produtos pretendidos.

- A Ré creditava, em regra, todos os meses, através de nota de crédito, o correspondente à margem devida à Autora.

- Os produtos produzidos pela Ré eram comercializados no distrito de Setúbal, nas maiores superfícies comerciais, como ... nos seguintes termos: as notas de encomendas eram apresentadas à Ré, que preparava os lotes encomendados e entregava as encomendas completas à Autora; era a Ré quem facturava e cobrava do cliente; a Autora procedia à recepção, transporte e entrega de mercadorias, recebendo da Ré uma percentagem sobre o valor da mercadoria, de 9%.

- Nas pequenas superfícies era a Autora quem visitava os clientes entre­gava a mercadoria, facturava e cobrava, nos clientes a pronto, remetendo à ré o produto das vendas.

- A Ré manteve, por sua conta, um promotor das vendas, a quem incumbia coordenar os vendedores, aprovar e alterar as rotas, designar prováveis clientes, aprovar a sua aceitação ou recusá-la e fixar as condições de fornecimento dos seus produtos, no distrito de Setúbal.

- Até ao envio da carta reproduzida em 8 dos factos provados a Ré man­teve, por sua conta, um gestor de contas, ao qual era incumbido o controle dos fornecimentos das mercadorias, no distrito de Setúbal.

- As propostas dos novos clientes das pequenas superfícies eram analisa­das pelo promotor de vendas da Ré.

Desta descrição resulta que as relações entre Autora e Ré, relativas à comercialização de produtos produzidos pela Ré no distrito de Setúbal, assumiam características diferentes conforme os destinatários eram grandes ou pequenas superfícies e conforme eram “clientes a pronto” ou “clientes a crédito”.

Relativamente à comercialização dos produtos da Ré com os clientes que exploravam grandes superfícies, a Autora limitava-se a proceder à recepção, trans­porte e entrega de mercadorias, sendo a Ré quem recebia as notas de encomenda daquelas empresas, facturava e cobrava os respectivos créditos, recebendo a Autora uma percentagem sobre o valor da mercadoria, de 9%, limitando-se a prestação da Autora à mera deslocação dos produtos da Ré para os seus compradores, mediante remuneração, estamos perante uma prestação típica do contrato de transporte, o qual se encontra ainda nuclearmente regulado no Código Comercial (Título X, art.º 366º a 393º), a que acresce uma miríade de leis especiais relevantes [1].

Quanto à comercialização dos produtos da Ré com os clientes que explo­ravam pequenas superfícies que pagavam “a pronto”, sendo a Autora que lhes vendia, em nome próprio, aqueles produtos, os quais adquiria à Ré, com um ganho de 13%, que correspondia à sua “comissão”, já estamos perante uma relação que corresponde ao contrato socialmente típico de concessão comercial [2], uma vez que estamos perante uma relação duradoura entre produtor e distribuidor, actuando este em nome e por conta própria no cumprimento da obrigação de proceder à revenda numa determinada zona dos bens adquiridos ao produtor, mediante uma margem de lucro, incidindo sobre o produtor o dever de vender esses bens ao distribuidor e sobre este o dever de os comprar ao produtor.

O facto de não se ter provado a existência de algumas cláusulas que são habituais nos contratos de concessão comercial não impede esta qualificação, uma vez que, recorde-se, o apuramento do conteúdo da relação contratual não se fez através da prova do teor das cláusulas que integravam esse contrato, mas sim dos termos em que o mesmo era executado e a sua vivência, nesta parte, é inequivoca­mente típica de um contrato de concessão comercial.

O contrato de concessão não é objecto de uma regulamentação específica legal, pelo que, sendo um contrato juridicamente atípico, é-lhe aplicável a disciplina convencionada pelas partes, as regras gerais do direito dos contratos e as regras previstas para o contrato de agência, por ser aquele que, dispondo de uma regula­mentação específica, lhe é mais próximo, com o necessário cuidado de verificar a adequação dessas normas às finalidades do contrato de concessão comercial [3].

Quanto à comercialização dos produtos da Ré com os clientes que explo­ravam pequenas superfícies, mas que pagavam a crédito, sendo a Autora quem angariava as encomendas, mas sendo a Ré quem procedia à venda dos produtos encomendados àqueles clientes, recebendo a Autora uma comissão por essas vendas, já estamos perante uma relação que se enquadra na figura típica do contrato de agência.

Na verdade, o contrato de agência, que é regulado pelo Decreto-Lei n.º 178/83 de 3 de Julho, é aquele pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta de outra a celebração de contratos, de modo autónomo e estável, mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes - artigo 1º do referido diploma. Era isso que precisamente fazia o Autor, relativamente aos clientes a crédito, angariando encomendas de produtos da Ré, os quais esta posteriormente vendia a esses clientes, procedendo a Autora à sua entrega.

Nesta relação, além desta prestação típica do contrato de agência, a Autora também executava outra prestação complementar típica do contrato de transporte que consistia na entrega dos produtos vendidos aos referidos clientes.

Se não é possível dizer que estamos perante um único contrato, como faz a sentença recorrida que o qualificou como atípico, é admissível encarar o conjunto das relações contratuais estabelecidas entre Autora e Ré como uma formação contratual complexa plural[4].

Na verdade, conforme refere Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho [5] estas formações abrangem diversíssimas formas de conexões contratuais que visam regulamentar operações económicas complexas – ou seja, aqueles casos em que as partes pretendem regular os interesses relacionados com determinado programa económico, programa este “unitário”, na medida em que todos os efeitos predispos­tos pelas partes, ainda que disseminados por vários instrumentos contratuais aparentemente autónomos, se acham ao serviço de uma “causa” ou função global (precisamente, a causa ou função da operação económica em causa), não sendo pois estranhos ou indiferentes, uns em relação aos outros -, disciplinadas pelos sujeitos com recurso à conclusão de diversos contratos, mas isto apenas no sentido de serem diversos e separados os procedimentos contratuais.

Estas três relações negociais de características diversas têm em comum o facto de se encontrarem estabelecidas entre os mesmos sujeitos e todas elas visarem a distribuição comercial, em sentido lato, de produtos da Ré, no distrito de Setúbal, não existindo, contudo, qualquer conexão funcional entre as diferentes relações.

Existindo diferentes graduações na unitariedade ou na pluralidade das formações contratuais complexas, pode-se dizer que estamos perante três negócios jurídicos perfeitamente autónomos, mas que o facto de se inserirem num plano global de utilização da actividade da Autora para a comercialização dos produtos da Ré no distrito de Setúbal, conferem-lhe ainda um grau de unidade que pode ter reflexo no tratamento jurídico destes contratos.

Caracterizadas e qualificadas as relações contratuais existentes entre Autora e Ré, vejamos o que levou à sua cessação.

Provou-se o seguinte:

- A Ré, em 5 de Junho de 2007, comunicou à Autora que “iria assumir a entrega da mercadoria ao ... a partir de 5 de Novembro de 2007, cessando os serviços logísticos da Autora”.

- No dia 03-08-2007 a Ré enviou à Autora, tendo esta recebido, uma carta, na qual reafirmava a anterior comunicação.

- Após estas comunicações, a Autora informou a Ré que deixaria de lhe remeter os valores respeitantes às vendas efectuadas pela Autora nas pequenas superfícies aos clientes que pagavam a pronto, uma vez que apesar de ser a Autora quem facturava e cobrava essas vendas, remetia à Ré o respectivo produto para pagamento do preço de aquisição.

- No dia 23-10-2007 a Ré enviou à Autora, tendo esta recebido, uma carta, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual comunicava, além do mais, o seguinte: “Vimos por este meio informar que a nossa decisão de assumir a actividade de entrega logística nos ... se mantém inalte­rada, tal como vos foi comunicado na reunião de 05 de Junho p.p., e por escrito, na nossa carta de 03 de Agosto de 2007.”

- A Autora concretizou o que havia anunciado, tendo deixado de remeter à Ré o produto da venda de várias mercadorias que a Ré lhe havia entregue e que se encontram descriminadas nos factos provados.

- No dia 20-11-2007 a Ré enviou à Autora, tendo esta recebido, uma carta, na qual comunicava, além do mais, o seguinte: “Vimos por este meio solicitar o pagamento total da dívida em atraso, no montante de 73.694,81 euros, até 30 de Novembro, referente à facturação dos meses de Setembro e Outubro. Caso contrário, a D..., S.A. será forçada a suspender os fornecimentos à vossa empresa.”.

- No dia 23-11-2007 a Ré enviou à Autora, tendo esta recebido, uma carta, na qual comunicava, além do mais, o seguinte: “No seguimento das vossas comuni­cações anteriores, vimos mais uma vez manifestar o interesse da D... em conti­nuar a desenvolver o negócio de Auto-Venda com a vossa empresa, na qual acredi­tamos em termos de vendas e rentabilidade. Conforme por várias vezes o demons­trámos, este é um negócio que tem sido, é e continuará a ser rentável, não havendo na nossa perspectiva qualquer justificação para a alteração das condições com que presentemente temos vindo a trabalhar. Queremos também informar-vos que não aceitamos qualquer tipo de retenção de pagamentos que nos são devidos, pelo que agradecemos que os mesmos sejam efectuados imediatamente de acordo com as indicações do nosso Costumer Service. O cumprimento destes prazos é fundamentais para a continuação das relações comerciais entre as nossas duas empresas.”

- No dia 03-12-2007 a Ré enviou à Autora, tendo esta recebido, uma carta, na qual comunicava o seguinte: “Tendo em conta os reiterados incumprimentos das obrigações assumidas pela ..., nomeadamente o pagamento dos valores em dívida referentes aos meses de Setembro e Outubro, assim como o incumprimento da obrigação e condição de entrega de produto, informamos a nossa decisão de rescindir com efeitos imediatos todas as relações comerciais com a vossa socie­dade.”.

- No dia 10-12-2007 a Autora enviou à Ré uma carta, que esta recebeu, na qual lhe comunicava, além do mais, o seguinte: “Tendo presente o tempo de vigência do contrato, entende a minha cliente que tem o direito ao recebimento de uma compensação decorrente da clientela que, ao longo dos anos, foi angariando para o grupo.”

Desta descrição resulta que a situação de conflito que conduziu ao termo das relações entre a Autora e a Ré tem origem na comunicação feita por esta àquela de que iria assumir a entrega da mercadoria ao ... a partir de 5 de Novembro de 2007, cessando por isso os respectivos serviços logísticos que a Autora vinha prestando.

Estamos perante uma redução do objecto do contrato de transporte, por decisão unilateral da Ré.

O contrato de transporte em causa não era um negócio que tinha por objecto uma única prestação isolada (one-shot deal) mas sim um contrato relacional duradouro de eficácia sucessiva, do qual nascem reiteradas obrigações diferenciadas [6], não se tendo apurado a fixação de qualquer prazo para a sua vigência.

Neste tipo de contratos, com vista a não se permitir uma vinculação inde­finida a obrigações contratuais que contraria o direito à liberdade contratual, em regra, aceita-se a desvinculação unilateral. Não podendo as partes serem obrigadas a permanecer indefinidamente adstritas à realização das prestações a que se vincularam num determinado momento, devem poder livremente sair do contrato, através de uma denúncia ad nutum [7]. A tutela da liberdade não reclama que o contrato não possa ter uma duração ilimitada, sendo suficiente que esteja assegurada a possibilidade de qualquer dos sujeitos se desvincular da relação assumida, sem prejuízo da consagra­ção de exigências de pré-aviso ou do pagamento de compensações.

Sendo, pois, admissível a denúncia do contrato de transporte em causa, por qualquer das partes, era também admissível a redução unilateral do seu objecto, equivalente a uma denúncia de eficácia parcial, pelo que a cessação do contrato de transporte, relativamente à entrega da mercadoria ao ... a partir de 5 de Novembro de 2007, por iniciativa da Ré, antecipadamente comunicada, revela-se legítima.

A Autora retaliou a esta desvinculação parcial, deixando de remeter à Ré os valores respeitantes às vendas efectuadas pela Autora nas pequenas superfícies aos clientes que pagavam a pronto.

Recorde-se que esta obrigação inseria-se no contrato de concessão estabe­lecido entre a Autora e a Ré, no qual, apesar de ser a Autora quem facturava e cobrava as vendas dos produtos por ela adquiridos à Ré, o pagamento a esta desses produtos era efectuado com as receitas das vendas efectuadas pela Autora aos “clientes a pronto” das pequenas superfícies.

Tal comportamento traduz-se num incumprimento reiterado da obrigação da Autora pagar à Ré os produtos adquiridos para revenda, reflectido em múltiplas prestações, não se tendo provado que lhe assistisse qualquer direito a proceder à retenção desses pagamentos.

Após várias interpelações, sem sucesso, para a Autora pagar as prestações em atraso, a Ré, por comunicação de 3 de Outubro de 2010, invocando o incumpri­mento da Autora, rescindiu todas as relações comerciais que mantinha com a Ré, pondo, assim, termo aos três contratos acima descritos.

Pretende a Autora ser indemnizada dos prejuízos que resultaram da cessa­ção unilateral dos contratos.

Na p.i., a Autora, além do pagamento de outras quantias indemnizatórias, pediu a condenação da Ré a pagar-lhe € 8.755.827,54, quantia equivalente ao valor médio anual das vendas da Autora relativas aos produtos produzidos pela Ré nos últimos cinco anos, a qual, nas palavras da peticionante, se destinaria a indemnizar o facto da Ré ter ficado com a clientela angariada pela Autora.

No recurso agora interposto da sentença que negou a existência deste direito de indemnização a Autora reclama o pagamento da mesma quantia indemni­zatória, alegando, contudo, que a mesma não respeita à indemnização de clientela prevista no regime do contrato de agência, destinando-se antes a compensar os lucros que deixou de auferir com a cessação das relações comerciais que mantinha com a Ré.

Apesar de se suscitarem algumas dúvidas sobre se nesta parte do recurso o Recorrente pretende uma reapreciação da decisão da 1.ª instância sobre o pedido de pagamento de uma indemnização equivalente ao valor médio anual das vendas da Autora relativas aos produtos produzidos pela Ré nos últimos cinco anos, ou antes formula um novo pedido indemnizatório, com o mesmo valor, mas destinado a ressarcir dano diferente, tendo em consideração que existem diferentes visões sobre a finalidade da “indemnização de clientela”[8], não deixará de se apreciar este funda­mento do recurso. 

A Ré rescindiu todos os contratos que a ligavam à Autora, apresentando como razão o incumprimento reiterado da Ré da obrigação de pagamento dos produtos por ela fornecidos no âmbito do contrato de concessão.

Não nos podemos esquecer que estamos perante contratos relacionais duradouros – o de transporte de eficácia sucessiva e os restantes de eficácia perma­nente, na denominação adoptada por Galvão Telles [9] –, em que os pressupostos da resolução com fundamento em incumprimento da contraparte devem ser compatibili­zados com o princípio da exigibilidade, como aliás resulta expressamente no regime do contrato de agência do disposto no art.º 30º, a), do Decreto-lei n.º 178/86, de 3 de Julho.

Nestes contratos o credor só pode resolver o contrato se o incumprimento imputável ao devedor tornar inexigível a subsistência da relação, o que, se por um lado amplia os pressupostos resolutivos, acrescentando-lhe o requisito de exigibili­dade, por outro lado restringe-os, não sendo necessário, por exemplo, a verificação de um incumprimento definitivo, sendo suficiente que a gravidade do incumprimento torne inexigível a subsistência da relação contratual [10].

A resolução será admissível se o fundamento invocado para o termo do contrato integre uma “justa causa”, sendo necessário averiguar em que medida o acto de inexecução abala a confiança na relação contratual necessária à sua continuação.

Caso se considere que após o incumprimento contratual verificado não é exigível que a contraparte mantenha essa relação pela quebra de confiança que o mesmo objectivamente provoca, na medida em que gera o fundado receio da perma­nência da situação de inadimplência ou de futuros incumprimentos dos deveres do infractor, a resolução do contrato é legítima.

No presente caso, o Autor deixou de pagar à Ré os produtos que lhe adqui­ria para revenda aos clientes de pequenas superfícies que pagavam a pronto, tendo mantido essa atitude, apesar das várias interpelações que a Ré lhe dirigiu no sentido de proceder aos pagamento em falta, como forma de retaliação pelo facto da Ré ter licitamente reduzido o objecto do contrato de transporte existente entre elas.

Esta atitude de reiterado e obstinado incumprimento por uma das partes mina a esperança duma futura conduta adimplente, não sendo exigível à contraparte que mantenha as relações contratuais existentes entre elas, pelo que a resolução operada deve ser considerada uma resposta legítima por parte da Ré face à conduta reiterada, deliberada e obstinadamente incumpridora por parte da Autora.

Suscita-se, contudo, a questão de saber se o incumprimento reiterado da obrigação principal do contrato de concessão, pode legitimar não só a resolução deste contrato, mas também a resolução dos contratos de agência e transporte que uniam a Autora à Ré.

Como já acima dissemos, apesar destes contratos funcionarem autonoma­mente, têm em comum o facto de se encontrarem estabelecidos entre os mesmos sujeitos e todos eles visarem a distribuição comercial, em sentido lato, de produtos da Ré, no distrito de Setúbal, o que lhes confere um grau de unidade. Na verdade, todos eles têm como finalidade comum o estabelecimento de canais de distribuição dos produtos da Ré pelos comerciantes retalhistas do distrito de Setúbal, tendo assumido as formas contratuais que as partes entenderam ser as mais convenientes, conforme a tipologia dos clientes – grandes e pequenas superfícies comerciais, clientes a créditos e clientes a pronto.

Os factores de unidade entre os referidos contratos são, pois, a identidade de sujeitos e de finalidades, o que determina uma conexão subjectiva e teleológica entre eles que permite encará-los como uma formação contratual complexa plural como já acima se classificou.

Apesar da independência funcional dos diferentes contratos nessa forma­ção, dado que estamos perante “negócios de confiança” [11], nos quais avultam as facetas cooperativa e fiduciária, depositando o produtor o sucesso da sua actividade comercial e a reputação dos seus produtos nas mãos do “distribuidor”, o incumpri­mento reiterado da prestação de um dos contratos, justifica não só a resolução desse contrato, mas também a dos restantes que a ele estão ligados no programa económico de distribuição dos produtos da Ré no distrito de Setúbal, uma vez que esse compor­tamento estende a perda de confiança e a consequente inexigibilidade de manutenção dos vínculos contratuais a todo o complexo económico-negocial em causa, operando aqui o princípio simul stabunt, simul cadent [12].

Concluindo-se que a resolução de todas as relações contratuais que uniam a Autora à Ré foi legítima, porque fundamentada em justa causa que tornava inexigí­vel a manutenção daquelas relações, atento o anterior comportamento inadimplente da Autora, a sua cessação não consubstancia um incumprimento contratual que fundamente a constituição de um direito de indemnização, nos termos gerais – art.º 801º, n.º 2, do C. Civil –, pela cessação dos lucros que a Autora auferia com a execução desses contratos.

E se para a cessação do contrato de agência está prevista uma indemniza­ção de clientela após a cessação do contrato que é independente da indemnização pelo incumprimento do contrato – art.º 33º, do Decreto-Lei 178/86 de 3 de Julho –, a qual se pode estender, por analogia, ao contrato de concessão [13], não só tal indemniza­ção nunca é devida se o contrato tiver cessado por razões imputáveis ao agente – art.º 33º, n.º 3, do Decreto-Lei 178/86, de 3 de Julho –, como se apurou no presente caso, como também se mostra transcorrido, na situação sub judice, o prazo de caducidade para a propositura da respectiva acção judicial previsto no art.º 33º, n.º 4, do Decreto-Lei 178/86, de 3 de Julho, dado que a Autora comunicou à Ré que pretendia receber essa indemnização em 10.12.2007 e só propôs a presente acção em 14-5-2010.

Por esta razão não se mostra devida qualquer indemnização pela Ré, improcedendo o recurso nesta parte.

5.2. Do pedido reconvencional

A Ré fundamentou o recurso, relativamente à procedência parcial do pedido reconvencional, apenas na impugnação da prova da matéria de facto que conduziu a essa procedência.

Não tendo sido apreciada a impugnação da decisão na parte em que fixou a matéria de facto provada, por falta de cumprimento dos requisitos legais, deve o recurso ser também julgado improcedente nessa parte.

Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pela Recorrente.

Coimbra, 17 de Dezembro de 2014.

Sílvia Pires (Relatora)

Henrique Antunes

Isabel Silva

[1] Engrácia Antunes, in Direito dos contratos comerciais, pág. 735, 2.ª reimp. da ed. de 2009, Almedina.

[2] Sobre este tipo contratual, José Alberto Vieira, O contrato de concessão comercial, ed. 1991, da AAFDL, Maria Helena Brito, in O contrato de concessão comercial, ed. 1990, Almedina, António Pinto Monteiro, in Contratos de distribuição comercial, pág. 105 e seg., ed. 2002, Almedina, Engrácia Antunes, ob. cit, pág. 446, Pedro Romano Martinez, em Contratos comerciais, pág. 9 e seg., ed. 2001, Principia, e Fernando Ferreira Pinto, in Contratos de distribuição, pág. 58 e seg., ed. 2013, da Universidade Católica Editora.

[3] José Alberto Vieira, ob cit., pág. 140 e seg., António Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 62 e seg., Engrácia Antunes, ob. cit., pág. 450 e seg., Pedro Romano Martinez, ob. cit., pág. 10, e Fernando Ferreira Pinto, ob. cit., pág. 93 e seg..

[4] Ver esta classificação in Contratos complexos e complexos contratuais, pág. 77 e seg., tese de doutoramento inédita de Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, 2008, acessível na Biblioteca da Faculdade de Direito de Coimbra.

[5] Ob. cit., pág. 209.

[6] Sobre estes contratos, Inocêncio Galvão Telles, in Manual dos contratos em geral, pág. 492-493, ed. 2002, Coimbra Editora, Carlos Mota Pinto, in Teoria geral do direito civil, pág. 637 e seg, ed. 1996, Coimbra Editora, Menezes Cordeiro, in Tratado de direito civil português II, tomo I, ed. 2009, Almedina, e Nuno Manuel Pinto Oliveira, in Princípios de direito dos contratos, pág. 132 e seg., ed. 2011, Coimbra Editora.

[7] Pedro Romano Martinez, in Da cessação do contrato, pág. 225 a 230, ed. 2005, Almedina, Nuno Manuel Pinto Oliveira, ob. cit., pág. 137-138, Baptista Machado, in Obra dispersa, vol. I, pág. 631 e seg., ed. 1991, Scientia Iuridica, Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 533-536, e Paulo Alberto Videira Henriques, in A desvinculação unilateral ad nutum dos contratos civis de sociedade e mandato, pág. 196-218, ed. 2001, Coimbra Editora.

[8] Pode ler-se um relato dessa diferença de perspectivas em Fernando Ferreira Pinto, ob. cit., pág. 676 e seg.

[9]  Na ob. e loc. cit.

[10] Neste sentido, Baptista Machado, ob. cit., pág. 142-145 e 668-673, na R.L.J., Ano 118º, pág. 280-281, e na R.L.J., Ano 120, pág. 186, nota 10, Nuno Manuel Pinto Oliveira, ob.cit., pág. 135-136, Fernando Ferreira Pinto, ob. cit, pág. 410, e David Magalhães, in A resolução do contrato de arrendamento urbano, pág. 67-68, ed. 2009, Coimbra Editora, e os seguintes Acórdãos:

- do S.T.J., de 13.11.2001, em www.dgsi.pt, relatado por Fernandes Magalhães.

- do S.T.J., de 29.4.2003, em www.dgsi.pt,  relatado por Lopes Pinto.

- do S.T.J., de 9.1.2007, em www.dgsi.pt, relatado por Sebastião Povoas.

- do S.T.J., de 23.10.2007, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XV, tomo 3, pág. 101, relatado por Rui Maurício.

- do S.T.J., de 21.5.2009, em www.dgsi.pt, relatado por Alves Velho.

- do S.T.J., de 19-.1.2009, em www.dgsi.pt, relatado por Serra Baptista.

- da Relação de Lisboa, de 11.7.2002, na C.J., Ano XXVII, tomo 4, pág. 71.

- da Relação de Lisboa, de 16.12.2008, em www.dgsi.pt, relatado por Isabel Salgado.

- da Relação do Porto de 15.5.2003, em www.dgsi.pt, relatado por João Bernardo.

[11] Sobre estes negócios, Carneiro da Frada, in Teoria da confiança e responsabilidade civil, pág. 554 e seg., ed. 2004, Almedina, e Fernando Ferreira Pinto, ob. cit., pág. 141-146.

[12] Sobre a extensão da resolução de um contrato aos restantes que integram uma formação contratual complexa, Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, ob. cit., pág. 246 e seg. e em Coligação negocial e operações negociais complexas, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, volume comemorativo do 75.º Tomo do BFD, pág. 261.

[13] Carlos Barata, in Anotações ao novo regime do contrato de agência, pág. 86-87, ed. 1994, Lex, Pinto Monteiro, ob. cit, pág. 115-116, José Alberto Vieira, ob. cit., pág. 151 e seg., Rui Pinto Duarte, in Tipicidade a atipicidade dos contratos, pág. 184 e seg., ed. 2000, Almedina, Menezes Leitão, in A indemnização de clientela no contrato de agência, pág. 80 e seg., ed. 2006, Almedina, Fernando Ferreira Pinto, ob. cit., pág. 690 e seg. e a jurisprudência citada por este último autor.