Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
785/11.9TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
EXPLORAÇÃO DEFICITÁRIA
INTERESSE
ADMINISTRADOR
TERCEIROS
Data do Acordão: 01/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ALÍNEA G) DO Nº 2 DO ART. 186º DO CIRE
Sumário: I – Nas situações previstas no nº 2 do art. 186º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência, sem admissão de prova em contrário e sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

II – O que está em causa na alínea g) da norma acima citada não é propriamente a mera gestão ruinosa e imprudente do património ou rendimentos do devedor, independentemente das concretas circunstâncias em que ela se traduza, sendo que o preenchimento dessa previsão legal pressupõe o prosseguimento de uma determinada actividade cuja exploração se revele deficitária e pressupõe que tal aconteça em benefício e no interesse de pessoa diversa do devedor, ou seja, em benefício dos seus administradores ou de terceiro.

III – Não pode ser subsumida à previsão da alínea g) o caso de um devedor singular cuja insolvência decorreu de vários contratos de mútuo que celebrou no seu próprio interesse e que, por força dos seus parcos rendimentos, não conseguiu amortizar.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I.
Nos autos de insolvência de A... , o Sr. Administrador da Insolvência emitiu parecer sobre a qualificação da insolvência, propondo que a mesma fosse considerada fortuita e referindo não ter detectado qualquer facto que possa ser integrado no art. 186º, nº 2, do CIRE.

Na sequência de promoção do Ministério Público, o Sr. Administrador foi notificado para analisar os contratos de mútuo celebrados pela Insolvente, a aplicação dos capitais mutuados e a situação económica daquela durante o período em que se desenrolaram os actos que criaram a situação de insolvência e para apresentar novo parecer na sequência dessas diligências.

O Sr. Administrador veio apresentar exposição, dizendo que a Insolvente tem perto de setenta anos e aufere um rendimento proveniente de uma pensão por velhice no valor de 246,36€, tendo aproveitado as propostas das instituições financeiras que lhe ofereciam crédito para adquirir bens de consumo corrente que já não consegue identificar. Mais reafirma o seu parecer no sentido de a insolvência ser qualificada como fortuita dada a ausência de factos que permitam qualificá-la como culposa.

Ainda na sequência do que foi promovido pelo Ministério Público foram solicitadas informações às empresas financeiras que concederam crédito e à Segurança Social.

Realizadas essas diligências, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa, com fundamento no disposto no art. 186º, nº 1 e nº 2, alínea g), do CIRE, dada a circunstância de a Insolvente ter obtido diversos créditos ao consumo, acumulando um passivo de 8.700,00€, quando é certo que não tinha qualquer expectativa de que a sua situação económica melhorasse, sendo certo que não dispunha de outros rendimentos além da sua pensão de reforma, cujo valor actual é de 246,36€.

Notificada a Insolvente, veio a mesma responder, invocando uma situação de dificuldade económica e depressão, por ter sido abandonada pelo marido e por ter sido despedida do emprego que conseguiu arranjar; nessas circunstâncias e sempre na esperança de conseguir novo emprego, aceitou as propostas de empréstimos vantajosos que, telefonicamente, lhe eram oferecidos pela Cofidis e Cetelem. Mais alega que, apesar disso, foi cumprindo as suas obrigações – com a ajuda da filha e de duas amigas – mas a sua situação económica piorou, na medida em que não conseguiu arranjar emprego e ainda foi vítima de um furto de objectos em ouro e cheques e de um assalto por esticão, sendo que, apesar de ter tentado junto daquelas instituições, a redução do valor das prestações e a concessão de maior prazo para o pagamento, não obteve qualquer resposta.

Foi proferido despacho saneador e foi dispensada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão a fixar a matéria de facto provada e foi proferida sentença onde se decidiu qualificar a insolvência como fortuita.

Discordando dessa decisão, o Ministério Público veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1 - O Tribunal proferiu sentença no sentido de qualificar a insolvência de M A...como fortuita.
2 - O Tribunal deu como provados, entre outros, os seguintes factos:
- A requerida nasceu em 9/12/1943.
- A requerida recebe pensão de velhice no valor mensal actual de 254,00 (actualizada em Janeiro de 2012) desde 25/09/1992, bem como complemento social de idoso desde 2009, no valor actual de 113,70,
- A requereria, em datas não concretamente apuradas, mas entre, meados de Novembro de 2005 e pelo menos meados de Maio de 2007, obteve de cinco instituições financeiras créditos para consumo, tendo cessado o pagamento correspondentes prestações pelo menos desde Dezembro de 2010, totalizando o passivo relativamente a tais créditos à data da apresentação à insolvência a quantia de 8.176,52.
- A requerida não possui qualquer activo imobiliário.
- Em meados de 1999 o marido da insolvente abandonou a casa de morada de família, deixando de contribuir para as despesas da mesma, como até aí fazia.
- A partir dessa altura, foi a requerida, com a sua reforma, que passou a suportar todas as despesas.
- A insolvente entrou em depressão, não só por ter sido abandonada pelo marido, como por ficar com poucos recursos económicos.
- E foi mais ou menos nessa época, em que se encontrava extremamente fragilizada e deprimida, que começou a ser contactada telefonicamente pela Cofidfis e pela Cetelem a proporem-lhe empréstimos "altamente vantajosos".
- Tentou a arranjar emprego, mas era muito difícil, porque nunca tinha trabalhado por conta de outrem e não tinha quaisquer qualificações literárias ou experiência.
- Acabou por arranjar um serviço de limpeza em casa de um casal na (...).
- Em data não apuradas patrões da requerida que residiam na (...)foram-se embora de tal local.
- A insolvente ao ver-se abandonada, enganada, sem emprego e com despesas mensais superiores a sua reforma e sempre na esperança de conseguir novo emprego, acabou por ceder, "aceitando" as propostas da Cofidis e da Cetelem.
- Não conseguir arranjar mais algum emprego e para obter mais rendimentos arrendou um quarto da sua casa a uma senhora.
- Essa senhora desapareceu e levou consigo alguns pertences da insolvente, diversos objectos em ouro e quarto cheques em branco de uma conta de depósitos à ordem que a insolvente possuía no Millenium.
- Mas apareceram dois desses cheques, com a assinatura falsificada, no valor de 85,00 e 90,00 euros que a insolvente teve que pagar.
- Cada a vez com mais dificuldades e económicas e sempre com a esperança de arranjar um emprego e como continuava a receber "propostas" das referidas Cofidis e Cetelem, voltou a "ceder".
- Mas nunca deixou de cumprir todos os empréstimos que tinha contraído a maior parte das vezes com ajuda de duas amigas e da filha.
- E até "penhorando" os poucos objectos em ouro que não lhe tinham sido furtados.
- A requerida nunca mais arranjou trabalho.
- Já nem com a ajuda das duas amigas continuou a conseguir suportar o pagamento de todos os empréstimos que tinha contraído.
3 - A factualidade dada como provada levou o Tribunal a concluir, "Que houve lugar a endividamento por parte da devedora, e que a mesma não possuía património ou rendimentos bastantes para cobrir as dívidas que contraiu é facto indesmentível- - - ".
4 - Vivendo a insolvente de uma pensão de reforma, ao que tudo indica de invalidez ou que começou por ser de invalidez, de cerca de 350,00 euros e contraindo empréstimos junto de cinco instituições financeiras, acumulando uma dívida de mais de 8.000,00 euros, sendo certo que as prestações que pagou o fez com o apoio de amigos e da filha, não vemos como afastar a culpa da insolvente na criação e agravamento doa situação de insolvência em que caiu. E nem mesmo o marketing escandaloso dessas instituições podem explicar a sua conduta.
5 - E como é que a insolvente poderia pensar e esperar por melhorias na sua situação económica se tinha já 62 anos ou mais, não tinha formação académica nem profissional e nem mesmo experiência profissional que lhe permitisse alimentar tal esperança?
6 - Da matéria fáctica dada como provada, só por si, e salvo o devido respeito por opinião diversa, resulta, a nosso ver, à saciedade que a insolvente fez uma gestão imprudente e ruinosa dos seus rendimentos, em proveito próprio pois que usufruiu dos meios financeiros colocados à sua disposição, com consequente prejuízo para os credores que viram frustrados os seus créditos.
7 - Não podendo deixar de prever que iria entrar em incumprimento generalizado, pois que sabia que não podia perspectivar qualquer melhoria da sua situação económica.
8 - A gestão deficitária do património da pessoa colectiva ou singular constitui, sem mais, culpa grave na criação e agravamento da situação de insolvência, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, prescreve o art. 186º nº 1 e 2 al. g) e 4 do CIRE.
9 - Verificada qualquer uma das situações tipificadas nas alíneas do nº 2 do art. 186° deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa, por se tratar de presunções inilidíveis de situação de insolvência culposa" - Sumário do Acórdão do TRC no P. N° 427/07.7TBAGD de 4-5-2010.
10- O Tribunal deu como provados factos integradores de uma insolvência culposa.
11 - Ao não qualificar a insolvência de A... como culposa o Tribunal a quo violou o disposto no art. 286º nº 1 e 2 al. g) e 4 do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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II.
Questão a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão ou não reunidos os pressupostos para que a insolvência possa ser declarada como culposa, apurando, designadamente, se, como sustenta o Apelante, está preenchida a previsão do art. 186º, nº 2, alínea g), do CIRE.
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III.
Na 1ª instância, foi considerada provada a seguinte matéria de facto:
1 - A requerida apresentou-se à insolvência em 09/02/2011.
2 - A requerida nasceu a 09/12/1943.
3 - A requerida recebe pensão de velhice no valor mensal actual de € 254,00 (actualizada em Janeiro de 2012) desde 25/09/1992, bem como complemento social do idoso desde Janeiro de 2009, no valor actual de €113,70.
4 - A requerida, em datas não concretamente apuradas, mas entre meados de Novembro de 2005 e pelo menos meados de Maio de 2007, obteve de cinco instituições financeiras créditos para o consumo, tendo cessado o pagamento das correspondentes prestações pelo menos desde Dezembro de 2010, totalizando o passivo relativamente a tais créditos à data da apresentação à insolvência a quantia de €8.176,52.
5 - A requerida não possui qualquer activo imobiliário.
6 - Em meados de 1999 o marido da insolvente abandonou a casa de morada de família, deixando de contribuir para as despesas da mesma, como até aí fazia.
7 - A partir dessa altura, foi a requerida, com a sua reforma, que passou a suportar todas as despesas.
8 - A insolvente entrou em depressão, não só por ter sido abandonada pelo marido, como por ficar com poucos recursos económicos.
9 - Teve que consultar um Psicólogo Clínico.
10 - E consequentemente, teve que passar a suportar o preço das consultas.
11 - E foi mais ou menos nessa época, em que se encontrava extremamente fragilizada e deprimida, que começou a ser contactada telefonicamente pela Cofidis e pela Cetelem a proporem-lhe empréstimos “altamente vantajosos”.
12 - A insolvente foi negando essas “ofertas”.
13 - Tentou arranjar emprego, mas era muito difícil, porque nunca tinha trabalhado por conta de outrem e não tinha quaisquer qualificações literárias ou experiência.
14 - Acabou por arranjar um serviço de limpeza em casa de um casal na (...).
15 - De início tudo corria bem, recebia as horas que ia fazendo semanalmente.
16 - Em data não apurada, os patrões da requerida que residiam na (...)foram-se embora de tal local.
17 - Dos serviços de limpeza prestados a requerida ficou sem receber a quantia de €600,00.
18 - E as ofertas telefónicas de crédito por parte da Cofidis e da Cetelem continuavam.
19 - A insolvente ao ver-se abandonada, enganada, sem emprego e com despesas mensais superiores à sua reforma e sempre na esperança de conseguir novo emprego, acabou por ceder, “aceitando” as propostas da Cofidis e da Cetelem.
20 - Não conseguiu arranjar mais algum emprego e para obter mais rendimentos arrendou um quarto da sua casa a uma senhora.
21 - Essa senhora desapareceu e levou consigo alguns pertences da insolvente, diversos objectos em ouro e quatro cheques em branco de uma conta de depósitos à ordem que a insolvente possuía no Millennium.
22 - A insolvente apresentou queixa.
23 - Mas apareceram dois desses cheques, com a assinatura falsificada, no valor de 85,00 € e 90,00 €, que a insolvente teve que pagar.
24 - Cada vez com mais dificuldades económicas e sempre com a esperança de arranjar um emprego e como continuava a receber “propostas” das referidas Cofidis e Cetelem, voltou a “ceder”.
25 - Mas nunca deixou de cumprir todos os empréstimos que tinha contraído a maior parte das vezes com a ajuda de duas amigas e da filha.
26 - E até “penhorando” os poucos objectos em ouro que não lhe tinham sido furtados.
27 - A requerida nunca mais arranjou trabalho.
28 - E ainda foi assaltada por esticão quando vinha de receber a reforma.
29 - Ocorrência essa que ainda a deixou mais debilitada mental e economicamente.
30 - Já nem com a ajuda das duas amigas continuou a conseguir suportar o pagamento de todos os empréstimos que tinha contraído.
31 - De início, quando não conseguia cumprir, avisava, quer telefonicamente, quer por fax, a Cofidis, a Cetelem e o Santander Consumer.
32 - Chegando inclusivamente a solicitar a redução das prestações e o prolongamento do pagamento no tempo, mas nunca recebeu qualquer resposta a essas solicitações.
33 - A insolvente contraiu os empréstimos na expectativa de que a sua situação económica melhorasse e que arranjasse meios financeiros para os pagar.
34 - A insolvente casou com B... em 29/10/1967.
35 – Tal casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 14 de Junho de 2005, transitada em julgado em meados de Julho de 2005.
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IV.
Apreciemos, então, a questão colocada no recurso.

Dispõe o art. 186º, nº 1, do CIRE Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem. que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
A qualificação da insolvência como culposa pressupõe, pois, de acordo com a norma citada: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Contudo, o nº 2 da norma citada enuncia um conjunto de situações, cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário, como decorre da expressão “considera-se sempre” – que em tais situações a insolvência é sempre culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Situação diversa ocorre nas situações previstas no nº 3 da norma citada, onde apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento do devedor – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência Cfr. Ac. do STJ de 06/10/2011, proc. nº 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt. . Por outro lado, e ao contrário do que acontece nas situações a que alude o nº 2, a presunção de culpa estabelecida no nº 3 pode ser ilidida mediante prova em contrário (conclusão que se impõe em face do disposto no art. 350º, nº 2, do C.Civil e em face da circunstância de a lei o não proibir).
Importa ainda esclarecer que, apesar de as disposições normativas contidas nos referidos nºs 2 e 3 apenas aludirem a devedores que não sejam pessoas singulares, dispõe o nº 4 que as mesmas também são aplicáveis à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, com as devidas adaptações e quando a tal não se opuser a diversidade das situações.
Feitas estas considerações gerais, reportemo-nos agora ao caso concreto que está em causa no presente recurso.
Ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, considera o Recorrente que, perante a matéria de facto provada, se deve considerar verificada a situação prevista na alínea g) do nº 2 da norma acima citada, o que, a ser verdade, implicaria, como vimos, que a insolvência fosse considerada culposa, desde que a aplicação dessa norma seja compatível com a circunstância de a presente insolvência se reportar a uma pessoa singular.
Nos termos da norma citada, considera-se culposa a insolvência quando os administradores do devedor que não seja pessoa singular tenham “prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência”.
Ao sustentar a aplicação da referida norma, o Recorrente argumenta como se a situação nela descrita correspondesse a uma mera gestão imprudente, ruinosa ou deficitária do património ou dos rendimentos do devedor, sendo que, na sua perspectiva, a mera circunstância de a Insolvente se ter endividado muito para além das suas capacidades económicas seria bastante para integrar a sua previsão.
Mas, na nossa perspectiva, não é assim.
De facto, o que está aí em causa não é propriamente a mera gestão ruinosa e imprudente do património ou rendimentos do devedor, independentemente das concretas circunstâncias em que ela se traduza. A situação ali prevista pressupõe a prossecução de uma determinada actividade cuja exploração se revele deficitária e pressupõe que tal aconteça em benefício e no interesse de pessoa diversa do devedor, ou seja, em benefício dos seus administradores ou de terceiro. Está em causa, portanto, uma determina actividade deficitária, que é exercida em nome do devedor, fazendo reflectir no seu património os prejuízos inerentes, mas sem que para ele exista qualquer benefício, porquanto tal actividade não é exercida no seu interesse, mas sim no interesse pessoal dos respectivos administradores ou de terceira pessoa.
De facto, aquilo que, na nossa perspectiva, justifica o facto de, nas situações descritas no nº 2, a insolvência se considerar sempre culposa (dispensando a demonstração de qualquer outro facto ou circunstância) é a manifesta irregularidade dos comportamentos ali descritos, que, na sua maioria, correspondem a condutas claramente lesivas do património do devedor e da garantia patrimonial dos respectivos credores e cuja ilicitude não podia ser ignorada, na medida em que diminuem e afectam o património do devedor insolvente, de forma totalmente injustificada (designadamente porque tais actos, apesar de praticados pelo devedor ou pelos seus administradores, visam apenas o favorecimento de terceiros, já que, apesar de se reflectirem negativamente no património do devedor, não são praticados no seu interesse, mas sim no interesse de outrem) e sem que comportem qualquer possibilidade credível de terem sido adoptados sem dolo ou culpa grave. Estão em causa condutas que, implicando, na sua maioria, um favorecimento de outras pessoas que não o devedor, já indiciam, só por si, uma específica vontade e intenção, que, por regra, não se compadece com a inexistência de dolo ou culpa grave.
Ora, a prossecução de uma exploração deficitária no interesse do próprio devedor não revela, só por si, uma qualquer anormalidade ou uma especial intenção ou censurabilidade que, como tal, possa justificar a dispensa de demonstração de qualquer outro facto para considerar a insolvência como culposa. Poderá existir, naturalmente, uma má gestão – que poderá ser ou não culposa – mas não existe aí nenhum acto ou comportamento, cuja anormalidade e gravidade permita antecipar um qualquer juízo sobre o seu carácter culposo e que, como tal, se insira no âmbito de previsão da norma citada. A ser de outro modo, praticamente todas as insolvências seriam culposas.
Mas, se ao invés daquilo que é normal, tal exploração é exercida em prejuízo do devedor e no interesse e em benefício de qualquer outra pessoa – sejam os seus administradores, seja um terceiro – já se configura uma situação que evidencia uma especial censurabilidade, porquanto, ao contrário do que se impunha, está a ser reflectido no património do devedor um prejuízo – que, evidentemente, afecta o seu património e os seus credores – que deveria ter repercussão no património de outrem, na medida em que aquela exploração não é exercida no interesse do devedor, mas sim no interesse pessoal dos seus administradores ou de terceira pessoa.
Além do mais, o que se dispõe (claramente) na citada alínea g) é que a insolvência se considera culposa quando os administradores do devedor (pessoa colectiva) prossigam uma exploração deficitária no seu interesse pessoal ou de terceiro, e, portanto, não estão abrangidas na previsão legal as situações em que os administradores prosseguem essa exploração no interesse do próprio devedor. E, se assim é quando está em causa uma pessoa colectiva, também será assim quando está em causa uma pessoa singular, por força do disposto no nº 4 do citado art. 186º.
Parece-nos, pois – como referimos – que a situação prevista na citada alínea g) pressupõe a prossecução de uma determinada actividade cuja exploração se revele deficitária e pressupõe que tal aconteça em benefício e no interesse de pessoa diversa do devedor, ou seja, em benefício dos seus administradores ou de terceiro.
Ora, não é isso que acontece no caso dos autos.
De facto, nada se provou que permita afirmar que a Insolvente explorasse – e que, como tal, tivesse prosseguido – qualquer actividade (deficitária ou não) e muito menos se provou que tal actividade fosse exercida no interesse pessoal de outras pessoas que não a Insolvente. Refira-se que a celebração dos contratos de mútuo por parte da Insolvente – e será apenas essa a circunstância que está subjacente à sua insolvência – não corresponde à “exploração deficitária” a que alude a citada alínea g) e, de qualquer modo, esses mútuos sempre teriam sido celebrados no seu interesse e não no interesse de qualquer outra pessoa.
Não se verifica, portanto, a situação prevista na referida alínea g) e também não ocorre qualquer uma das situações que estão previstas nas demais alíneas do nº 2 do citado art. 186º.
Assim sendo, a insolvência apenas poderia ser considerada culposa ao abrigo do disposto no nº 1 da norma citada, o que, como vimos, pressupunha a efectiva demonstração de que a insolvência havia sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao processo de insolvência, importando referir que não funciona, no caso, a presunção de culpa estabelecida no nº 3, porquanto a Insolvente não estava obrigada ao cumprimento das obrigações ali estabelecidas (refira-se que, sendo a Insolvente uma pessoa singular que não era titular de qualquer empresa, não tinha o dever de se apresentar à insolvência – cfr. art. 18º, nº 2 – dispondo claramente o nº 5 do art. 186º que, se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da sua situação económica).
Ora, parece claro que não estão verificados os requisitos enunciados no nº 1.
Com efeito e sendo certo que – como referimos – o atraso na apresentação à insolvência não releva aqui para efeitos de qualificação de insolvência, a única actuação que poderá ser imputada à Insolvente e que determinou a sua situação de insolvência reside no facto de ter celebrado diversos contratos de mútuo que, por força dos seus parcos rendimentos, não conseguiu amortizar.
Mas, independentemente da questão de saber se a Insolvente actuou com dolo ou culpa grave, a verdade é que tal actuação (que deu origem à insolvência) não se insere no âmbito temporal estabelecido no art. 186º, nº 1.
Com efeito, como decorre da matéria de facto, tais contratos terão sido celebrados entre meados de Novembro de 2005 e meados de Maio de 2007 e, portanto mais de três anos antes do início do processo de insolvência (sendo que este teve início em 2011).
Assim, porque a única actuação da Insolvente que poderia relevar para efeitos de qualificação da insolvência não ocorreu nos três anos anteriores ao processo de insolvência, não estão reunidos os pressupostos enunciados no citado nº 1 e de cuja verificação dependia a qualificação da insolvência como culposa.

Assim, pelas razões citadas, a insolvência terá que ser qualificada como fortuita.
Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
I – Nas situações previstas no nº 2 do art. 186º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência, sem admissão de prova em contrário e sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
II – O que está em causa na alínea g) da norma acima citada não é propriamente a mera gestão ruinosa e imprudente do património ou rendimentos do devedor, independentemente das concretas circunstâncias em que ela se traduza, sendo que o preenchimento dessa previsão legal pressupõe o prosseguimento de uma determinada actividade cuja exploração se revele deficitária e pressupõe que tal aconteça em benefício e no interesse de pessoa diversa do devedor, ou seja, em benefício dos seus administradores ou de terceiro.
III – Não pode ser subsumida à previsão da alínea g) o caso de um devedor singular cuja insolvência decorreu de vários contratos de mútuo que celebrou no seu próprio interesse e que, por força dos seus parcos rendimentos, não conseguiu amortizar.
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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Sem custas dada a isenção do Recorrente.
Notifique.

Maria Catarina R. Gonçalves (Relatora)
Maria Domingas Simões
Nunes Ribeiro