Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
559/12.0GBOBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
IDENTIFICAÇÃO
LOCALIZAÇÃO CELULAR
PRAZO
Data do Acordão: 02/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA, ÁGUEDA, JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º C), 11º Nº 2 E 18º DA LEI 109/2009, DE 15/9, 2º Nº 1 G), 3º, 4º, 5º, 6º E 9º, LEI Nº 32/2008, DE 17 DE JULHO E187º Nº 1 A) E B) A 189º CPP.
Sumário: O prazo máximo de acesso aos dados no âmbito de uma investigação criminal relativa a crimes em que seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico, é o prazo de um ano.
Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No inquérito n.º 559/12.0GBOBR que corre termos nos Serviços do Ministério Público junto da Comarca do Baixo Vouga, 1ª Secção do DIAP, Águeda, de que os presentes autos constituem apenso, foi proferido, em 24/10/2013, despacho pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal que indeferiu a promoção do Ministério Público no sentido de ser ordenado à operadora de telecomunicações móveis Vodafone o envio da facturação detalhada na qual constem todas as comunicações associadas ao número………, bem como a respectiva localização celular, relativas ao dia 06/12/2012.

2. Inconformado com tal despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):

…………….

Assim se decidindo, se fará a costumada JUSTIÇA.»

3. O arguido não respondeu ao recurso.

4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

5. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada disse.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição):

2. ………../………….

Face ao exposto, indefere-se o requerido.

Notifique o MP junto deste Juízo e, após, devolva os autos.»

                                                        *

2. Apreciando.

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([i]) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([ii]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([iii]).

A questão que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se deve ser mantido o despacho recorrido que indeferiu a promoção do Ministério Público no sentido de ser ordenado à operadora de telecomunicações Vodafone o envio da facturação detalhada na qual constem todas as comunicações associadas ao número…………, bem como a respectiva localização celular, relativas ao dia……...

O despacho recorrido indeferiu a promoção por entender que, não estando em causa a investigação de «crimes graves» tal como definidos na Lei n.º 32/2008, de 17/7, não pode considerar-se o prazo de conservação de dados de um ano previsto neste diploma, sendo, então, aplicável o prazo de 6 meses previsto na Lei n.º 41/2004, de 18/8, que já tinha decorrido posto que os dados pretendidos reportam-se a comunicações ocorridas há mais de 6 meses.

Nos autos está em causa a investigação de factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, b) do Código Penal, com pena de prisão de 1 a 5 anos.

A Lei n.º 41/2004, de 18/08, visa a protecção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações e aplica-se ao tratamento de dados pessoais no contexto da prestação de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público em redes de comunicação públicas como se determina no seu artigo 1.º, n.º 2.

A Lei n.º 32/2008, de 17/07, regula a conservação e a transmissão de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações com a finalidade exclusiva de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, como se explicita no seu artigo 3.º.

Esta lei impõe aos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações a obrigação de conservarem, pelo período de um ano, os dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação, encontrar e identificar o destino de uma comunicação, identificar a data, hora e a duração de uma comunicação, identificar o tipo de comunicação, identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento e identificar a localização do equipamento de comunicação móvel, neles se incluindo os dados telefónicos e da Internet relativos a chamadas telefónicas falhadas (artigos 4.º, 5.º e 6.º).

O seu artigo 9.º regula as condições da transmissão de dados, a qual só pode ser autorizada por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.

Para efeitos deste diploma, «crimes graves» são os crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima – alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º.

Daqui resulta, portanto, que o referido catálogo dos «crimes graves» não contempla o crime de furto qualificado em investigação nos autos.

Entretanto, entrou em vigor a Lei n.º 109/2009, de 15/09, a qual transpôs para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24/02, relativa a ataques contra sistemas de informação e adaptou o direito português à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa.

A Lei n.º 109/2009, de 15/09, introduziu e, sobretudo, ampliou diversos conceitos jurídicos-informáticos, alargou os tipos incriminadores dos cibercrimes que antes se encontravam previstos na Lei n.º 109/91, de 17/08, a qual revogou, estabeleceu o princípio da competência universal quanto à sua aplicação no espaço, consagrou medidas processuais de obtenção de prova digital e, genericamente, de combate ao cibercrime, fixou diversas obrigações para terceiros, máxime às operadoras de comunicação, com vista à preservação e apresentação de prova digital e definiu várias medidas de cooperação internacional no que concerne à obtenção de prova digital e, genericamente, ao combate à criminalidade informática.

A Lei n.º 109/2009, para além de disposições penais materiais que constituem o seu capítulo II, compreende um conjunto de disposições processuais aplicáveis a crimes informáticos, crimes cometidos por meio de um sistema informático e quaisquer crimes «em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico», o qual constitui o seu capítulo III.

O primeiro artigo deste capítulo é o 11.º (âmbito de aplicação das normas processuais) no qual se estabelece que, com excepção do disposto nos artigos 18.º e 19.º em relação aos quais existem algumas especificidades, as demais disposições processuais aplicam-se a processos relativos a crimes:

a) previstos nessa lei;

b) cometidos por meio de um sistema informático;

c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico (n.º 1).

O n.º 2 do artigo 11.º da Lei n.º 109/2009 ressalva que esta «não prejudica» a lei sobre conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de rede públicas de comunicações, aprovado pela Lei n.º 32/2008, de 17/07.

Estas disposições processuais são de aplicação geral, ou seja, trata-se da criação de meios de obtenção de prova digitais para o combate da criminalidade, seja qual for a sua forma([iv]).

Como refere Paulo Dá Mesquita «[a]s regras de direito probatório previstas no diploma não são assim meras normas processuais sobre cibercrimes ou sequer apenas relativas a crimes praticados em sistemas informáticos, mas correspondem a um regime consideravelmente mais abrangente sobre prova electrónica em processo penal aplicável a qualquer crime»([v]).

Este regime especial é perfeitamente entendível e justificável pois o que está em causa é a obtenção de prova intangível que só pode corporizar-se no processo com a intervenção especializada e indispensável dos próprios operadores dos sistemas. Se não fosse estabelecido um regime especial como aquele que está definido no mencionado diploma a investigação dos crimes nele previstos estaria condenada ao fracasso e estes crimes seguramente ficariam impunes já que apenas quanto aos crimes de catálogo seria então possível a obtenção dos dados pretendidos([vi]).

No caso dos autos, o Ministério Público pretende que a operadora de telecomunicações móveis Vodafone forneça a facturação detalhada de onde constem todas as comunicações associadas ao número…………, bem como a respectiva localização celular, relativas ao dia …………

Esta informação respeita a dados de tráfego na definição constante da alínea c) do artigo 2.º da Lei n.º 109/2009, de 15/09.

No que respeita a estes dados estabelece o artigo 18.º da Lei n.º 109/2009, de 15/09, que é admissível o recurso à intercepção de comunicações em processos relativos a crimes em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico quando tais crimes se encontrem previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal – alínea b) do n.º 1.

A intercepção e o registo de transmissões de dados informáticos só podem ser autorizados durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público – n.º 2.

A intercepção pode destinar-se ao registo de dados relativos ao conteúdo das comunicações ou visar apenas a recolha e registo de dados de tráfego, devendo o despacho especificar o respectivo âmbito de acordo com as necessidades concretas da investigação, aplicando-se o regime da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas constante dos artigos 187.º, 188.º e 190.º do Código de Processo Penal, em tudo o que não for contrariado pelo citado artigo – nºs 3 e 4.

No caso dos autos está em causa a investigação de um crime de furto qualificado, o qual é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, ou seja, com pena de prisão de máximo superior a 3 anos – artigo 187.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal.

A diligência mostra-se essencial para a descoberta da verdade, o que não é sequer posto em causa no despacho recorrido.

Em face da multiplicidade de normas legais actualmente vigentes que regem a conservação, acesso e divulgação de dados respeitantes a comunicações electrónicas importa fazer um esforço interpretativo que, conjugando todas as normas convocáveis ao caso concreto, alcance um resultado consequente e de harmonia com a unidade do sistema jurídico de acordo com a regra ínsita no artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil.

A Lei n.º 109/2009, de 15/09, como o legislador fez questão de nela proclamar expressamente (artigo 11.º, n.º 2), é cumulativa com a Lei n.º 32/2008, de 17/07.

A Lei n.º 109/2009, de 15/9 e o Código de Processo Penal, nos seus artigos 187.º a 189.º, não estabelecem qualquer prazo mínimo ou máximo para o acesso a dados de tráfego ou conteúdo pelo que, nesta parte, entende-se ser aplicável o regime instituído pela Lei n.º 32/2008, de 17/07, que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento e do Conselho de 15/3, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.

Não faz sentido convocar a Lei n.º 41/2004, de 18/8, para concluir que o prazo máximo de conservação de dados é de seis meses porque tal diploma diz respeito ao tratamento e à conservação de dados pessoais no contexto das relações estabelecidas entre as empresas fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas e os seus clientes, além de que este diploma afasta expressamente do seu âmbito de aplicação a prevenção, investigação e repressão de infracções penais, as quais são definidas em legislação especial, como se refere no n.º 4 do artigo 1.º.

Como salienta Paulo Dá Mesquita, depois de referir que o complexo normativo derivado da conjugação dos artigos 11.º, 12.º, 13º, 14º, 16.º e 18º da lei do cibercrime determina a revogação do essencial do regime previsto no artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, subsiste «a importância da Lei n.º 32/2008, sobretudo, no estabelecimento dos deveres dos fornecedores de serviços de conservação e protecção desses dados, bem como das condições técnicas operativas e destruição desses dados»([vii]).

Assim, conclui-se que o prazo máximo de acesso aos dados no âmbito de uma investigação criminal relativa a crimes em que seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico, é o prazo de um ano previsto no artigo 6.º da Lei n.º 32/2008, de 17/07.

Por conseguinte, uma vez que os dados pretendidos referem-se a comunicações ocorridas há menos de um ano, deve o despacho recorrido deve ser substituído por outro que defira a promoção do Ministério Público, posto que não é questionada a admissibilidade, nem a necessidade da diligência pretendida no despacho recorrido.

Procede, portanto, o interposto recurso.

                                          *

III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em determinar a sua substituição por outro que defira a promoção do Ministério Público.

                                          *

Sem tributação.

                                          *

                   Coimbra, 26 de Fevereiro de 2014

Fernando Chaves - Relator
Jorge Dias


[i] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[ii]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[iii] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[iv] - Pedro Venâncio, Lei do Cibercrime Anotada e Comentada, Coimbra Editora, 2011, págs. 90-91.
[v] - Processo Penal, Prova e Sistema Judiciário, Coimbra Editora, 2010, pág. 98.
[vi] - Acórdão da Relação de Lisboa de 22/1/2013, Proc.º 581/12.6PLSNT-A.L1-5, in www.dgsi.pt/jtrl
[vii] - Ibidem, página 123.