Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
555/11.4GBPBL.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL (3.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 151.º E SS. DO CPP
Sumário: I - Por força do caso julgado (formal), o despacho que, embora de modo genérico, admite “a prova indicada” na contestação apresentada pelo arguido - perícia a incidir sobre alcoolímetro utilizado na detecção do estado de influenciado pelo álcool -, não pode ser posteriormente alterado em novo despacho de sentido contrário, ou seja, que rejeita aquele meio de prova, com fundamento na sua desnecessidade.

II - A consequência decorrente da violação do caso julgado formal traduz-se na ineficácia jurídica do despacho recorrido e de todos os actos processuais que se lhe seguirem.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 555/11.5GBPBL do 3.º Juízo do Tribunal Judicial do Pombal após acórdão do TRC de 27.06.2012, no qual foi deliberado no sentido da anulação do julgamento, foram os autos remetidos à 1.ª instância e aí tramitados sob a forma de processo comum singular, tendo sido proferida acusação contra o arguido A..., melhor identificado nos autos, sendo-lhe, então imputada a prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal.

2. No decurso da audiência de discussão e julgamento foi proferido o despacho judicial de 24.04.2013 [cf. fls. 216/217], indeferindo perícia requerida pelo arguido na sua contestação, apresentada a coberto do artigo 315.º do CPP.

3. Finda a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 09.05.2013, foi decidido [transcrição parcial do dispositivo]:
«Por tudo o exposto e ao abrigo das disposições legais citadas:
6.1. Condeno o arguido como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo disposto no art. 292º n.º 1 e 69.º n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 7,50 € (sete euros e cinquenta cêntimos) e numa pena acessória de inibição da faculdade de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses.
(…)».

4. Inconformado, quer com o despacho de 24.04.2103, quer com a sentença final, recorreu o arguido, colocando em crise ambas as decisões.

5. No que ao recurso do despacho de 24.04.2013 respeita, extraiu da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. O arguido apresentou contestação e o respectivo requerimento probatório, arrolando uma testemunha e requerendo ao tribunal a nomeação de perito ou entidade independente para efectuar exame ao alcoolímetro, para apuramento da fiabilidade do mesmo;
2. Sobre o requerido incidiu despacho, com a referência 3355419, de 30.01.2013, no qual se lê: «admito por legal e tempestiva a contestação crime e a prova nela indicada»;
3. O respectivo despacho transitou em julgado, em 21.02.2013;
4. Por despacho, proferido em plena audiência de julgamento, registado em acta, de 24.04.2013, com a referência 3473082, a perícia requerida pelo arguido na contestação, e que havia sido admitida no despacho anterior, transitado, foi indeferida;
5. O artigo 666.º do CPC dispõe: «1. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. 2. É lícito, porém, ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la, nos termos dos artigos seguintes. 3. O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, até onde seja possível, aos próprios despachos»;
6. Esta norma, aplicável ao processo penal, por força do disposto no artigo 4.º do CPP, emana do princípio da segurança jurídica que, exige a estabilidade das relações jurídicas e das decisões, de forma a proteger a confiança dos cidadãos;
7. Assim, o despacho ora recorrido, ao pronunciar-se sobre questão já decidida por despacho anterior é ilegal.
8. Com a prolação do douto despacho, foram violadas, entre outras, as normas dos artigos 666.º, do CPC e artigo 4.º do CPP, bem como os artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP.
Termos em que, invocando-se o douto suprimento deste Venerando Tribunal, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se o douto despacho recorrido, mantendo-se o anterior e, em consequência, ordenar-se a realização da perícia requerida, com as demais consequência legais.
Porém, V. Exas. decidirão como for de Justiça!

6. No que concerne ao recurso da sentença, formulou o recorrente as conclusões de fls. 285 a 288 – as quais, por se poder vir a revelar desnecessário, por ora, não se transcrevem – questionando, no essencial: a natureza do aparelho, refutando constituir o mesmo um analisador quantitativo; a omissão no aparelho do factor de conversão de miligramas por litro em grama por litro, aspecto que colocaria em crise a taxa de alcoolemia concretamente considerada.

7. Por despacho de 18.06.2013 foram os recursos admitidos, fixados o respectivo regime de subida e efeito.

8. Aos recursos respondeu o Ministério Público – sem que, contudo, haja formulado conclusões – sustentando, a correcção das decisões recorridas, as quais, deveriam, em consequência, manter-se com a improcedência dos recursos [cf. fls. 292/298].

9. Remetidos os autos a este tribunal, pronunciou-se a Exma Procuradora – Geral Adjunta, emitindo parecer no sentido da rejeição do recurso interlocutório em função de não haver o recorrente especificado nas conclusões da motivação do recurso interposto da sentença manter naquele interesse, pugnando, louvando-se, no essencial, na argumentação expendida na resposta do Ministério Público, pela improcedência do recurso apresentado da decisão final [cf. fls. 303].

10. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, reagiu o recorrente nos termos constantes de fls. 308/309.

11. Na sequência de haver sido por determinação do relator, para tanto, notificado, veio o recorrente esclarecer manter interesse no recurso interlocutório – [cf. fls. 310/314].

12. Exercido o contraditório, remeteu a Exma. Procuradora-Geral Adjunta para o parecer emitido a fls. 303 [cf. fls. 316].

13. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto dos recursos
1.1. Questão prévia
No seu parecer, por não haver o recorrente ter dado cumprimento ao ónus que sobre ele recaía de especificar nas conclusões do recurso interposto da sentença se mantinha interesse no recurso intercalar, pronunciou-se a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no sentido da rejeição do mesmo.
Não obstante, por decisão da relatora, foi o recorrente notificado nos termos do artigo 417.º, n.º 3 do CPP, com referência ao n.º 5 do artigo 412.º, para esclarecer se pretendia ver apreciado o dito recurso, o que mereceu, da sua parte, resposta positiva.
Exercido o contraditório, remeteu a Exma. Procuradora-Geral Adjunta para o parecer já emitido.
Apreciando, dir-se-á que independentemente de no caso se poder retirar das conclusões do recurso interposto da decisão final o interesse no conhecimento do recurso interlocutório [cf. os pontos 3., 4. e 5. das conclusões], o que só por si, em nosso entender, não consentia, sem mais, a preconizada rejeição, o certo é que o n.º 3 do artigo 417.º do CPP, inclui na sua previsão o n.º 5 do artigo 412.º do mesmo diploma legal – [cf. Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª edição, págs. 1145/1146], sentido em que, maioritariamente, se tem vindo a pronunciar a jurisprudência do Tribunal Constitucional [cf. acórdãos do TC n.º 724/04, n.º 381/06 e n.º 215/2007, contendo, este último, uma resenha de decisões que apontam nessa direcção].
Nesta conformidade, decide-se pelo conhecimento do recurso interlocutório.

1.2.
       De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço:

No que concerne ao recurso interlocutório:
A questão controversa traduz-se, tão, só em saber se podia o despacho recorrido ter indeferido a perícia, requerida, pelo arguido, na contestação.

No que respeita ao recurso da sentença final:
São duas as questões colocadas: Saber se o aparelho em questão não constitui analisador quantitativo; decidir se a eventual omissão no aparelho do factor de conversão de miligramas por litro em grama por litro coloca em crise a taxa de alcoolemia concretamente considerada.


2. A decisão recorrida
a. É o seguinte o teor do despacho recorrido de 24.04.2013:
«O arguido em sede de contestação requereu a nomeação de perito ou entidade independente para proceder a um exame ao alcoolímetro usado na fiscalização do arguido, a fim de apurar da sua pretensa fiabilidade, sobre o qual não se pronunciou o despacho que recebeu a referida contestação, pois que de outra forma teria de indicar necessariamente a entidade pericial ou perito o que, de forma manifesta, não aconteceu. E como tal houve omissão de pronúncia quanto à admissibilidade de tal meio probatório que cumpra agora sanar.
Pronunciando-me agora sobre o requerido entendo que os documentos que foram juntos nos autos a 04/11/2011 atestam, numa primeira aparência, a legalidade da utilização do aparelho que foi usado na fiscalização rodoviária efectuada ao arguido, e bem assim que o mesmo se encontrava à data certificado pelo IPQ, entidade competente nesta matéria, conforme de fls. 34.
Os factos aqui em questão tiveram lugar no dia 03/10/2011, data em que o aparelho foi usado, pelo que qualquer perícia ao mencionado aparelho, se é que ainda em uso naquelas forças policiais, apenas aferiria do seu estado de funcionamento à data em que tal perícia fosse realizada, o que não revelaria para efeitos de concluir que há mais de dois anos atrás não estaria em correcto estado de funcionamento.
Para além disso e quanto aos termos regulamentares e de uso de tais equipamentos existe hoje abundante jurisprudência dos nosso tribunais superiores fixando os seus termos, sentido a até alcance probatório, pelo que nessa medida, por dilatória, indefiro a requerida perícia, sendo certo que o artigo junto pelo arguido aos autos e publicado no sítio www.automotor.xl.pt, e seu autor, não tem, salvo o devido respeito, maior «peso» que a jurisprudência que os nossos tribunais superiores têm a este propósito firmado ao longo do tempo a este respeito, nem a decisão do tribunal judicial de Nova Jersey se encontra junto aos autos para que dela possamos retirar as dúvidas sistémicas a respeito deste tipo e modelo de alcoolímetro.»

b. Não se transcreve, por ora, o teor da sentença recorrida, por poder o conhecimento do respectivo recurso resultar prejudicado em consequência da decisão sobre o recurso interlocutório.

3. Apreciando
a. Recurso do despacho interlocutório
Não obstante o tratamento jurídico que lhe vem dado, a decisão sobre a pretensão do recorrente só passa pela resposta à questão de saber se o despacho recorrido constitui violação de caso julgado formal.
E, com todo respeito pelo esforço argumentativo no mesmo expendido, afigura-se-nos incontornável, pelas razões que sinteticamente se passam a alinhar, assim ter sido.

Vejamos.
1. Notificado nos termos e para o efeito do disposto no artigo 315.º do CPP, apresentou o arguido/recorrente a contestação de fls. 198 a 203, requerendo, entre outros meios de prova, perícia a incidir sobre o alcoolímetro;
2. Sobre a dita peça processual incidiu o despacho de fls. 206 do seguinte teor: «Admito por legal e tempestiva a contestação crime e a prova nela indicada»;
3. Despacho esse que, notificado, em 30.01.2013, ao arguido e Ministério Público, em 24.04.2013 já há muito havia transitado em julgado;
4. Não é o facto de no despacho identificado em 2. o tribunal não haver procedido em conformidade com o disposto no artigo 154.º do CPP – com a indicação dos peritos, do objecto da perícia e das circunstâncias de tempo e lugar da realização da mesma – que invalida a decisão no sentido da admissão da prova pericial, anteriormente, tomada;
5. No contexto, apenas poderia ser encarada como preterição de formalidade, oficiosamente sanável nos termos do artigo 123.º do CPP;
6. Não podendo o tribunal, servir-se de tal omissão para concluir por não se haver pronunciado sobre a requerida perícia;
7. Quando efectivamente, resulta inequívoco que, ainda que em termos genéricos, se pronunciou sobre todos os meios probatórios requeridos, admitindo-os;
8. As considerações sobre o eventual interesse da dita perícia – por mais pertinentes que se revelem - não podiam em momento posterior à sua admissibilidade ser convocados para indeferir o que já fora admitido;
7. E isto porque o caso julgado formal, entretanto formado nos autos no que respeita aos meios de prova admitidos, o impedia;
8. Com efeito, ocorre caso julgado formal «quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução … O caso julgado respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito» - [cf. o acórdão do STJ de 02.12.2010 (proc. n.º 3564/10.7TXLSB-F.S1); no mesmo sentido vd. os acórdão do STJ de 12.11.2008, proc. n.º 08P2868, de 24.05.2006 (proc. n.º 06P1041)];
9. A sanção pela violação do caso julgado formal é considerar o despacho recorrido e todos os actos que se lhe seguiram sem qualquer eficácia jurídica – [cf. acórdão do STJ de 15.02.2007 (proc. n.º 07P336].

Assiste, pois, razão ao recorrente, tendo a procedência do recurso como consequência a revogação do despacho de 24.04.2013, o qual deverá ser substituído por outro que no seguimento do anterior despacho de admissão da prova, designadamente, pericial, lhe dê sequência, colmatando as omissões verificadas, o que conduz à invalidação de todo o processado subsequente, tudo sem prejuízo do disposto no artigo 328.º, n.º 6 do CPP.

Mostra-se, assim, prejudicada a apreciação do recurso interposto da sentença.

III. Decisão
Termos em que acordam os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
a. Na procedência do recurso interlocutório em revogar o despacho de 24.04.2013, o qual deve ser substituído por outro que no seguimento do anterior despacho de admissão de prova prolatado nos autos lhe dê sequência, colmatando as omissões verificadas, com vista à realização da perícia, invalidando, assim, todos os actos processuais que ao mesmo se seguiram, sem prejuízo do disposto no artigo 328.º, n.º 6 do C.P.P.;
b. Julgar prejudicada a apreciação do recurso interposto da sentença.
Sem custas

Coimbra, 19 de Fevereiro de 2014

(Maria José Nogueira - Relatora)
(Isabel Valongo)