Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
180/19.1T9SRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
NOTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 107.º, N.ºS 1 E 2, E 105.º, N.º 4, AL. B), DO RGIT
Sumário: I – O artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT (redacção conferira pela Lei n.º 53-A/2006, de 29-12) não exige que a notificação nele prevista concretize os valores devidos à autoridade tributária.

II – Assim é porque o fim visado pelo legislador com a consagração daquele normativo foi o de assegurar ao sujeito tributário uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias em dívida e da coima aplicável, incidindo sobre ele o ónus de colher informação, junto da autoridade tributária, sobre a dimensão concreta desses valores.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO:   

No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 180/19.1T9SRT que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Juízo de Competência Genérica da Sertã., foi, em 5/3/2021, proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte:                                  

V. Decisão

Pelo exposto, o Tribunal julga a acusação procedente e em conformidade decide:

- condenar o arguido J. pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo art. 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal e pelos artigos 6.º, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Infracções Tributárias na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 900,00 (novecentos euros).

- Condenar a sociedade arguida S., Lda. pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, por força das disposições conjugadas dos art. 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal e artigos 7º, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias na pena de multa de 170 (cento e setenta dias) dias à taxa diária de € 9,00 (nove euros), o que perfaz o quantitativo legal de € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros).

- condenar os arguidos J. e S., Lda. no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s, por cada um dos arguidos.

(…).”

                                                                                   ****

Inconformado com a decisão, dela veio interpor recurso o arguido J., em 13/4/2021, extraindo da sua motivação as seguintes Conclusões:

1.ª Discorda-se, e por isso se impugna, da sentença recorrida que condenou o Arguido, e ora Recorrente, pela prática, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 30.º, n.º 2, e 79.º, do Código Penal e pelos artigos 6.º, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 3, do Regime Geral das Infrações Tributárias.

2.ª Salvo melhor entendimento - e pese embora a elevada consideração e respeito que a Mma. Juiz a quo do Tribunal recorrido é merecedora – existe uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

3.ª Com relevância para a motivação deste Recurso, deram-se como provados os factos 14 a 17 e como não provados a alínea a) da douta sentença recorrida.

4.ª A sentença recorrida esclarece quais são os elementos objetivos do tipo do crime de abuso de confiança contra a segurança social, de entre os quais se destaca a notificação aa que alude o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, ou seja, o devedor tem de ser notificado para em 30 dias liquidar as prestações em falta, acrescidas de juros e coima.

5.ª Ou seja, da notificação referida têm de constar, obrigatoriamente, o valor em dívida, juros e valor da coima, pelo que, com esta notificação o que releva é a regularização, no todo, da situação tributária no prazo de 30 dias.

6.ª No caso dos autos foi considerado provado que os montantes relativos aos anos de 2015 e 2016, como estavam incluídos no PER, o qual foi negociado e votado favoravelmente pela Segurança Social, não podiam ter sido incluídos na notificação e não relevam em termos criminais (factos provados 14 a 17).

7.ª Ora, a notificação feita aos Arguidos não pode, pois, ser considerada válida e eficaz, pois a Segurança Social em claro abuso de direito e em violação da boa fé notificou a sociedade Arguida para proceder ao pagamento da quantia de 18.039,74 €, acrescida de juros e coima, sendo que nem sequer os juros estavam contabilizados.

8.ª Pelo que, se com a notificação se pretende o pagamento integral do valor em dívida, a mesma não podia nunca fazer referência aos valores englobados no PER, sendo que esse plano de pagamento está a ser cumprido escrupulosamente (Factos provados 14 a 17).

9.ª Agiu a Segurança Social em claro abuso de direito e também ela própria abusou da confiança que depositou nos Arguidos, ao vir exigir o pagamento de uma só vez, de entre outros, dos valores englobados no PER, sendo que parte desse valor, à data da notificação, já tinha sido liquidado por conta das prestações do PER já vencidas.

10.ª Assim, e como a notificação, por um lado, é um dos elementos objetivos do tipo e condição de punibilidade não poderiam os Arguidos ter sido condenados pela prática do crime de que vinham acusados e foram pronunciados, porque a notificação feita pela Segurança Social padece de nulidade insanável, não estando verificado um dos elementos objetivos do tipo, sendo que esta falha nunca foi colmatada nem pela Segurança Social, nem pelo Ministério Público, e foi alegada pelos Arguidos em sede de requerimento de abertura de instrução.

11.ª Como tal, ao falhar esta notificação, os Arguidos tinham de ser absolvidos.

12.ª Neste sentido dispõe o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12/07/2018, Processo n.º 646/12.4TATVR.E1, disponível em www.dgsi.pt, nos termos do qual, e não obstante a notificação a que alude a al. b), do n.º 4, do art. 105.º, do RGIT, o que é certo é que é igualmente um pressuposto da instauração do procedimento criminal, pois enquanto a notificação não tiver lugar e não decorrer o prazo de 30 dias ali estabelecido, aquele procedimento criminal não deve iniciar-se.

13.ª Pelo que, prosseguindo o processo sem que se mostre realizada regularmente a notificação, a falta desta condição implica a absolvição.

14.ª Não é exigível ao homem médio que liquide um determinado valor no prazo de 30 dias quando, na verdade, existe um plano de pagamento no contexto de um PER, negociado e votado favoravelmente pela Segurança Social, a ser cumprido, e cujo pagamento faseado só termina em 2029.

15.ª Sendo que este entendimento consta da fundamentação da sentença recorrida pois “encontrando-se a sociedade arguida a cumprir devidamente o plano, nada legitima que, antes do prazo concedido, venha agora mudar de posição e lançar mão daquele artigo, fazendo tábua rasa do plano homologado e que foi elaborado seguindo as suas exigências (…). Contemple-se que o art. 334.º do CC aclama que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, corporiza um instituto jurídico autonomizado, traduzido na proibição de comportamento contraditório e é matéria de conhecimento oficioso.”

16.ª Pelo que não se percebe como é que, concluindo que não podia a Segurança Social ter feito a notificação naqueles moldes, se condena os Arguidos, principalmente, quando é claro para a Mma. Juiz a quo que a Segurança Social agiu em claro abuso de direito. Tal vai totalmente contra as regras da experiência comum e contra os mais elementares princípios do direito, nomeadamente, o princípio da legalidade e da certa e segurança jurídica.

17.ª In casu, e atenta a fundamentação de direito da sentença recorrida, e não obstante ser entendimento da jurisprudência e da doutrina que o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social se consuma aquando da retenção ilícita dos valores a entregar, o que é certo é que é condição da punibilidade deste crime a notificação a que alude a al. b), do n.º 4, do art. 105.º, do RGIT, pelo que não sendo a mesma válida e eficaz, não podiam os Arguidos ser condenados pelo crime de que foram acusados e pronunciados.

18.ª Desde logo, porque a Segurança Social bem sabia e não podia ignorar que estava a notificar mal a sociedade Arguido e que a notificação feita exige o pagamento total de uma só vez.

19.ª No discernimento do homem médio, é impensável pagar um valor que bem sabe que não deve na totalidade, pelo menos, sendo certo que a Segurança Social não ia simplesmente negociar o valor em dívida.

20.ª Sempre se dirá, ainda, que os arestos mobilizados na fundamentação de direito, nomeadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03/11/2015, relatora Maria Leonor Esteves, não se aplica pois trata de situações distintas, pois na situação apreciada no acórdão referido, em sede de produção de prova resultou que o valor em dívida não era o que constava da notificação a que alude o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT. Já no caso dos autos, a Segurança Social, agindo em abuso de direito e contra os ditames da boa fé, notificou o Arguido para pagar a quantia total de 18.039,74 €, bem sabe que parte desse valor não era exigível.

21.ª Neste sentido, releva-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12/07/2018, processo n.º 646/12.4TATVR.E1, disponível em www.dgsi.pt.

22.ª Em suma, entendemos que a notificação feita pela Segurança Social em 31/10/2019 é nula, pelo que não se encontra preenchido o requisito da punibilidade previsto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.

23.ª Assim, existe, no nosso entendimento, uma clara contradição entre a fundamentação de direito e a decisão, porquanto, deveriam os Arguidos ter sido absolvidos da prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, pois não está verificado o requisito da punibilidade, sendo certo que a condição prevista no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, configura um pressuposto da instauração do procedimento criminal, pelo que enquanto a notificação não tiver lugar e não decorrer o prazo de 30 dias ali estabelecido, aquele procedimento criminal não deve iniciar-se.

24.ª É o caso dos autos, pelo que os Arguidos deveriam ter sido absolvidos.


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O recurso, em 15/4/2021, foi admitido.

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 O Ministério Público, em 14/5/2021, apresentou resposta, em que defendeu não merecer provimento o recurso, concluindo do seguinte modo:

1. Por Sentença nestes autos exarada foi o arguido J. condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo art. 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal e pelos artigos 6.º, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Infracções Tributárias na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 900,00 (novecentos euros).

2. Os valores em dívida até Setembro de 2016 foram englobados no plano de recuperação da sociedade arguida, tendo sido proferida sentença homologatória do plano de revitalização elaborado e aprovado, em 24 de Fevereiro de 2017, tendo sido deduzido o valor referente a tais montantes na matéria de facto provada.

3. Entende o Recorrente que a notificação operada ao arguido, por força do art. 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, considerando os valores constantes do PER que celebrou entretanto com a Segurança Social não se encontra correta uma vez que os valores englobados no PER não poderiam ter sido incluídos em tal notificação, pelo que a mesma não é válida e eficaz, devendo o arguido ser absolvido, posto que a Segurança Social notificou a sociedade arguida para proceder ao pagamento da quantia de 18.039,74€, não devendo ter sido contabilizados os valores englobados no PER.

4. O que se visa com tal condição de punibilidade é a conduta do arguido posterior à notificação, ou seja, apurar se o mesmo cumpriu ou não com o pagamento dos créditos em dívida à Segurança Social. Consideramos que, não contemplando tal notificação a totalidade dos créditos, não poderá o arguido aproveitar-se de tal situação para, em última instância, dizer que não está praticado o crime, posto que bem sabia que aqueles valores eram devidos e não estavam englobados no PER.

5. O objetivo primeiro da notificação efetuada nos termos e ao abrigo do disposto no art. 105.º, n.º 4 al. b) do RGIT não é dar a conhecer ao arguido quais as concretas quantias que se encontram em dívida, mas tão só uma possibilidade concedida para que ocorra regularização da sua situação tributária e liquidar os créditos tributários, não se verificando, deste modo, a prática de crime.

6. Conforme se extrai do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.11.2019, Proc. 103/17.2T9CBT.G1 «conforme decorre do Acórdão da Relação de Guimarães de 10-10-2016, no âmbito do processo judicial n.º 263/11.6IDBRG.G1, “Não está ferida de irregularidade a notificação do sujeito tributário nos termos do artº 105, nº 4, do RGIT, por não haver concretizado os valores que têm de ser pagos. É que o legislador quis conceder ao arguido uma última oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal por via do pagamento das quantias devidas e da respetiva coima, sendo único ónus daquele inteirar-se dos valores, junto das entidades competentes”».

7. Ainda no citado Acórdão lê-se que «a notificação em apreço não se destina a dar conhecimento ao sujeito tributário, com exatidão, das prestações ainda em dívida, uma vez que ele próprio delas terá conhecimento, mas sim conceder-lhe uma nova oportunidade para pagar, agora já com os juros de mora respetivos e o valor da coima aplicável, a fim de se eximir à sua responsabilidade criminal».

8. «A notificação a que alude o artº 105º, nº 4, al. b), do R.G.I.T., não tem que conter os valores exactos a pagar. Aquilo que o legislador pretendeu foi que se concedesse ao sujeito tributário uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias devidas e da coima aplicável, sobre ele incidindo o ónus de se inteirar dos valores exatos em dívida junto da autoridade tributária», conforme, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23.02.2021, Proc. 1129/18.4T9MTA-A.E1.

9. Deverá improceder o Recurso interposto pelo arguido posto que a notificação a operar ao arguido, nos termos do art. 104.º, n.º 1 al. b) não tem a virtualidade de lhe dar a conhecer os concretos montantes em dívida, dos quais, aliás, já tem conhecimento, posto que foi o próprio quem os comunicou à Segurança Social.

10. Assim, o facto de a notificação operada ao Recorrente ter englobado os valores constantes do PER não tem a virtualidade de não operar o reconhecimento e o cumprimento da condição objetiva de punibilidade, com a notificação operada, tanto mais que tais valores foram descontados em sede de sentença.

11. Pelo que, considerando a inserção jurídico-penal dos autos, não ocorreu qualquer violação de quaisquer normas ou princípios jurídico-penais e não ocorreu qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, pelo que se entende bem andou o Tribunal a quo ao concluir pela condenação dos arguidos.


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Nesta Relação, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, em 24/5/2021, emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

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Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II. Decisão Recorrida:

“(…)

II. Fundamentação de facto

II.1. – Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. A primeira arguida é uma sociedade comercial por quotas, com sede em (…), constituída em 16 de Fevereiro de 1998, matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Sertã sob o n.º (…) que tem por objecto a exploração de serração de madeiras e todos os produtos afins (CAE -----).

2. Desde o início da constituição da sociedade, e, pelo menos, desde o mês de Fevereiro de 2015 até ao presente, que é o arguido J. que administra aquela sociedade, S., Lda., em nome e no interesse da mesma, decidindo da afectação dos meios financeiros da empresa, assinando e expedindo correspondência, exercendo o poder disciplinar em relação aos trabalhadores da sociedade, celebrando e rescindindo contratos de trabalho, depositando e levantando capitais em bancos, assinando recibos e cheques, ajustando e liquidando contas com devedores e credores e representando a sociedade junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas, organismos corporativos ou de coordenação económica, e assinando todas as declarações de natureza fiscal, bem como assegurando o cumprimento das obrigações tributárias e relativas à Segurança Social.

3. A sociedade arguida tinha ao seu serviço, nos períodos compreendidos entre Fevereiro de 2015 a Fevereiro de 2019, trabalhadores, a quem pagou os respectivos salários.

4. Durante o período aludido em 3., a sociedade arguida, através do arguido J., procedeu ao desconto, no salário dos seus trabalhadores e na remuneração dos membros dos órgãos sociais, das contribuições devidas por estes à Segurança Social, entregando, mensalmente, as respectivas declarações de remunerações pagas no mês anterior aos seus trabalhadores.

5. Era o arguido J. quem, por conta e no interesse da sociedade arguida, procedia ao pagamento dos salários aos trabalhadores, descontando dos mesmos os montantes relativos às quotizações devidas.

6. Os arguidos descontaram e retiveram dos salários que a sociedade arguida pagou aos seus trabalhadores e gerentes, referentes aos meses de Fevereiro de 2015 a Junho de 2015, de Julho de 2016 a Janeiro de 2017, de Março de 2017 a Dezembro de 2017 e de Fevereiro de 2018 a Fevereiro de 2019 as seguintes quantias relativas a quotizações devidas à Segurança Social:

Quotizações retidas e não pagas:

Ano     Mês     Quotizações dos trabalhadores

2015    Fevereiro        27,93€ 560,08€

2015    Março 118,93€ 572,35€

2015    Abril   118,93€ 567,16€

2015    Maio   119,32€ 632,36€

2015    Junho  118,34€ 670,57€

2016    Julho   480,87€

2016    Agosto            123,85€ 486,28€

2016    Setembro        124,24€ 556,44€

2016    Outubro          124,04€ 485,73€

2016    Novembro      124,43€ 490,22€

2016    Dezembro       122,48€ 487,14

2017    Janeiro            129,27€ 505,47€

2017    Março 129,95€ 494,75€

2017    Abril   128,94€ 336,73€

 2017   Maio   126,39€ 397,92€

2017    Junho  108,37€ 310,46€

2017    Julho   129,61€ 315,32€

2017    Agosto            129,61€ 272,15€

2017    Setembro        129,95€ 299,93€

2017    Outubro          129,27€ 323,07€

2017    Novembro      0,40€ 297,92€

2017    Dezembro       127,59€ 318,54€

2018    Fevereiro        132,95€ 320,73€

2018    Abril   132,95€ 321,99€

2018    Maio   133,51€ 324,90€

2018    Junho  133,79€ 328,50€

2018    Julho   133,51€ 521,67€

2018    Agosto            133,79€ 513,09€

2018    Setembro        0,86€ 133,51€ 351,56€

2018    Outubro          133,51€ 279,51€

2018    Novembro      133,51€ 386,53€

2018    Dezembro       131,26€ 194,52€

2019    Janeiro            138,19€ 274,79€

2019    Fevereiro        107,90€ 389,41€

 7. Assim, os arguidos retiveram dos salários pagos aos trabalhadores e gerentes da primeira arguida o montante global de € 18.039,74 (dezoito mil e trinta e nove euros e setenta e quatro cêntimos) relativo a quotizações à Segurança Social, correspondendo a:

- trabalhadores por conta de outrem, calculado de acordo com a aplicação da taxa de 11%,

- gerentes (membros dos órgãos estatutários), calculado de acordo com a aplicação da taxa de 10% e 9,3%.

8. Os arguidos não entregaram à Segurança Social as quantias descritas em 6. entre o dia 10 e o dia 20 do mês seguinte àquele a que dizem respeito, nem nos 90 dias que se lhe seguiram, e a 3 de Dezembro de 2019, continuava em dívida a quantia de € 14.394,17 (catorze mil trezentos e noventa e quatro euros e dezassete cêntimos).

9. Da mesma forma, os arguidos, também, não pagaram a referida quantia, bem como os respetivos acréscimos legais, incluindo o valor da coima aplicável pela falta de entrega daquela prestação, no prazo de 30 dias que lhes foi dado, através de notificação pessoal, que receberam em 31 de Outubro de 2019 para esse efeito, nas instalações e por técnico da Segurança Social, identificando os períodos concretos em dívida, nada tendo o arguido dito, requerido e/ou arguido aquando da mesma e perante o técnico, tendo até 3 de Dezembro de 2021 entregue a quantia de € 3.645,57 (três mil seiscentos e quarenta e cinco euros e cinquenta e sete cêntimos).

10. Ao invés, os arguidos utilizaram todos os montantes mencionados em 6. no pagamento de despesas decorrentes do exercício da atividade da primeira arguida, designadamente pagamento de despesas correntes, integrando-as totalmente no património desta.

11. O arguido J. agiu sempre deliberada, livre, voluntária e conscientemente, e na qualidade de sócio-gerente da primeira arguida, no interesse e por conta desta, com o propósito conseguido de não entregar à Segurança Social os valores que haviam descontado nas remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, a título de quotizações para a Segurança Social e, dessa forma, fazerem suas as quantias supra descritas, bem sabendo que pertenciam ao Estado – Segurança Social e que assim diminuíam as respectivas receitas e património, agindo contra a vontade desta, o que conseguiu.

12. Bem sabiam que aqueles valores não pertenciam à sociedade arguida, mas à Segurança Social e que estava obrigado a entregá-los por força das disposições aplicáveis, sabendo ainda que a sua conduta, referente ao período de Outubro de 2016 até Fevereiro de 2019, era proibida e punida por lei.

Mais resultou provado que,

13. Da certidão permanente da sociedade identificada em 1. consta o seguinte: «A.P. 13/19980216 – CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE E DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ORGÃO(S) SOCIAL(AIS) FORMA DE OBRIGAR/ÓRGÃOS SOCIAIS: (…) Forma de obrigar: Com a assinatura do gerente J.. Estrutura da gerência: Fica a cargo do sócio J. (…) ORGÃO(S) DESIGNADO(S): GERÊNCIA: J NIF/NIPC: (…) Cargo: Gerente Residência/Sede: (…); de (…) NIF/NIPC: (…) Cargo: Gerente - Data da deliberação: 2001.11.05 Residência/Sede: (…)». –conforme documento de fls. 21 a 28 que aqui se dá por integralmente reproduzido.

14. A sociedade arguida S., Lda. apresentou processo especial de revitalização, que deu início ao processo n.º (…), que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de (…).

15. No âmbito do processo identificado em 14., em 20-09-2016 foi publicitado o anúncio com o seguinte teor: «Publicidade do despacho da nomeação de administrador judicial provisório nos autos acima indicados Ficam notificados todos os interessados de que na Comarca de (…), foi, em 19-09-2016, proferido despacho de nomeação de administrador judicial provisório da Devedora: S., Lda, NIF (…), Endereço: (…). Para Administrador Judicial Provisório foi nomeado o Sr. (…) Endereço: (…). Qualquer credor dispõe de 20 dias contados da publicação no Portal Citius do despacho a que se refere a al, a) do n°3 do art 170-C. do CIRE, para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, que, no prazo de cinco dias elabora uma lista provisória de créditos. A presente decisão obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dividas contra o devedor durante o decurso das negociações e implica a suspensão das ações em curso para cobrança de dividas - art. 17.º-E n°1 do C.I.R.E. A presente decisão implica para o devedor a proibição da prática de atos de especial relevo, nos termos definidos no art. 161º do C.I.R.E., sem prévia autorização do administrador provisório - art. 17°-E nº 2 do CIRE. O devedor fica obrigado a prestação de informações nos termos previstos no art. 17.º-D nº 6 do C.I.R.E.. Ficam disponíveis, na secretaria, os documentos que acompanham o requerimento inicial, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17-C, nº 3, alínea b) do C.I.R.E. O Sr. Administrador Judicial nomeado tem, relativamente à devedora, as funções previstas no art. 17.º D. nº 9 do C.I.R.E. e tem direito de acesso à sede e Instalações da devedora, além do direito de proceder a quaisquer inspeções e exames, designadamente aos elementos da contabilidade, nos termos do n 3 do art. 33º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável ex vi art. 17.º-C, nº 3, al. a) do mesmo diploma.».

16. No âmbito do processo mencionado em 15. e em sequência de 16., os valores em dívida à Segurança Social até Setembro de 2016 foram englobados no plano de recuperação da sociedade arguida, tendo aquela votado favoravelmente à aprovação do mesmo, dado que negociado com o administrador judicial provisório os requisitos que exigia para aprovação do PER, tendo sido proferida sentença homologatória do plano de revitalização elaborado e aprovado, em 24 de Fevereiro de 2017.

17. O plano de recuperação da sociedade arguida prevê pagamentos até ao ano de 2029 e está a ser cumprido para com a Segurança Social, motivo pelo qual se verificou o decréscimo do montante em dívida aludido em 6., no valor de € 3.645, 57 (três mil seiscentos e quarenta e cinco euros e cinquenta e sete cêntimos).

18. Actualmente, a sociedade arguida mantém-se em actividade, atravessando, ainda, dificuldades económicas, apresentando reduzido lucro, tendo ao seu serviço onze trabalhadores, liquidando os salários dos mesmos, ainda que com pequenos atrasos, e integrando o seu património dois camiões, dos anos de 1980 e 1995, três carrinhas, de 1995 e 2007, e as máquinas necessárias ao desenvolvimento da sua actividade.

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II.2. - Factos não provados

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II.3. – Motivação da matéria de facto

(…)


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III. Do Direito

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Da escolha e medida da pena

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III. Apreciação do Recurso:

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que devam ser conhecidas oficiosamente.

As questões que vêm colocadas pelo recorrente são as seguintes:

- Saber se:

1) existe uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;

2) a notificação feita pela Segurança Social, em 31/10/2019, é nula, não se encontrando, por isso, preenchido o requisito da punibilidade previsto no artigo 105.º, n.º 4, b), do RGIT.


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1) da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão:

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2) da nulidade da notificação feita pela Segurança Social, em 31/10/2019, não se encontrando, por isso, preenchido o requisito da punibilidade previsto no artigo 105.º, n.º 4, b), do RGIT:

O recorrente alega, em concreto e no essencial, o seguinte:

“(…) Assim, conforme consta da douta sentença, configura um dos elementos objetivos do tipo a notificação prevista na al. b), do n.º 4, do art. 105.º, do RGIT.

Neste sentido, dispõe o art.º 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, que “4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: (…) b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”

Ou seja, da notificação referida têm de constar o valor em dívida, juros e valor da coima, pelo que, com esta notificação o que releva é a regularização, no todo, da situação tributária no prazo de 30 dias.

No caso dos autos, foi considerado provado que os montantes relativos aos anos de 2015 e 2016, como estavam incluídos no PER, o qual foi negociado e votado favoravelmente pela Segurança Social, não podiam ter sido incluídos na notificação e não relevam em termos criminais (factos provados 14 a 17).

Ora, a notificação feita aos arguidos não pode, pois, ser considerada válida e eficaz, pois a Segurança Social, em claro abuso de direito, notificou os Arguidos para procederem ao pagamento da quantia de …, acrescida de juros e coima, sendo que nem sequer os juros estavam contabilizados.

Pelo que, se com a notificação se pretende o pagamento integral do valor em dívida, a mesma não podia nunca fazer referência aos valores englobados no PER, sendo que esse plano de pagamento está a ser cumprido escrupulosamente (facto provado…).

Agiu a Segurança Social em claro abuso de direito e também ela própria abusou da confiança que depositou nos Arguidos, ao vir exigir o pagamento de uma só vez, de entre outros, dos valores englobados no PER, sendo que parte desse valor, à data da notificação, já tinha sido liquidado por conta das prestações do PER já vencidas.

Assim, e como a notificação, por um lado, é um dos elementos objetivos do tipo, e, por outro, exige o pagamento integral do valor em dívida, não poderia ter sido considerado este elemento verificado porque a notificação padece de nulidade.

Em suma, não poderiam os Arguidos ter sido condenados pela prática do crime de que vinham acusados e foram pronunciados, porque a notificação feita pela Segurança Social padece de nulidade insanável, não estando verificado um dos elementos objetivos do crime, sendo que esta falha nunca foi colmatada nem pela Segurança Social, nem pelo Ministério Público, e foi alegada pelos Arguidos em sede de requerimento de abertura de instrução.

Como tal, ao falhar esta notificação, os Arguidos tinham de ser absolvidos.

(…).

Não é exigível ao homem médio que liquide um determinado valor no prazo de 30 dias quando, na verdade, existe um plano de pagamento no contexto de um PER,  negociado e votado favoravelmente pela Segurança social, a ser cumprido, sendo que o valor notificado ao devedor engloba todo o montante incluído no PER e cujo pagamento faseado só termina em 2029.

(…).

Em face do teor da fundamentação de direito da sentença recorrida e salvo o devido respeito, não se percebe como é que, concluindo que não podia a Segurança Social ter feito a notificação naqueles moldes, se condena os Arguidos, principalmente quando é claro para a Mma. Juiz a quo que a Segurança Social agiu em claro abuso de direito. Tal vai totalmente contra as regras da experiência comum e contra os mais elementares princípios do direito, nomeadamente, o princípio da legalidade e da certa e segurança jurídica.

Ora, a Segurança Social, ao notificar a sociedade Arguida para proceder ao pagamento da quantia de 18.039,74 €, fê-lo em total desrespeito da lei, nomeadamente, do princípio da certeza e segurança jurídica, agindo em abuso de direito e em má-fé.

(…).

Desde logo, porque a Segurança Social bem sabia e não podia ignorar que estava a notificar mal a sociedade Arguida e que a notificação exige o pagamento total de uma só vez.

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A Lei nº 53-A/2006 de 29 de Dezembro, que deu a redação vigente ao artigo 105.º, do RGIT, acrescentou, no que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, e ao crime de abuso de confiança contra a segurança social (ex vi, artigo 107.º, n.º 2, do referido regime geral), uma nova condição objetiva de punibilidade – assim qualificada pela jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 6/2008, de 9 de abril, publicado no DR n.º 94/2008, Série I, de 15 de maio de 2008, – e que consiste em a falta de entrega das prestações tributárias e das prestações de segurança social, declaradas, deduzidas e não entregues, só ser punível se não forem pagas, com os legais acréscimos, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito feita.

As condições objetivas da punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a ação antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a ação incide, não são, não obstante, parte desta ação.


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Entendemos que a circunstância de a notificação em causa não dizer respeito apenas aos valores posteriores a setembro de 2016 não inquina a sua validade.

Nesta matéria, salvo o devido respeito pela orientação defendida pelo recorrente, com apoio em alguma jurisprudência, acompanhamos aqueles que defendem que a lei não exige a menção expressa do montante exato a pagar na notificação realizada, na medida em que aquilo que o legislador visou foi que ao sujeito tributário fosse concedida uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias devidas e da coima aplicável, sobre ele incidindo o ónus de se inteirar dos valores exatos em dívida junto da autoridade tributária, o que bem se compreende, na medida em que o valor das prestações retidas e não pagas forçosamente são do seu conhecimento, porque as declarou, o mesmo sucedendo com eventuais pagamentos parcelares que, entretanto, tenha efetuado – ver, neste sentido, o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23/2/2021, Processo n.º 1129/18.4T9MTA-A.E.1, em wwwdgsi.pt. No mesmo sentido, ver os Acórdãos do mesmo Tribunal, de 3/11/2015, Processo n.º 546/12.8IDFAR.E.1, e de 17/12/2020, Processo n.º 300/15.5T9TVR.E.1, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7/1/2015, Processo n.º 735/09.2TAOAZ.P1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24/1072012, Processo n.º 263/11.6 IDBRG, in www.dgsi.pt.

Ora, no caso em apreço, o recorrente, ao receber a notificação para proceder ao pagamento de determinada quantia, estando a cumprir com o que havia sido acordado no PER, não podia sequer desconhecer que, ao valor apresentado (€ 18.039,74), sempre teria de ser abatido o montante já acordado relativo ao período compreendido entre fevereiro de 2015 e setembro de 2016, nem que se encontrava em dívida um valor relativo ao período entre outubro de 2016 e fevereiro de 2019.

Note-se, aliás, que os pagamentos parcelares já feitos pelo ora recorrente, no âmbito do respetivo PER, como resulta da sentença recorrida, não foram, de modo algum, esquecidos na apreciação jurídica que consta da sentença recorrida.

Logo, como bem considera o Ministério Público, na resposta ao recurso, não merece, também aqui, reparo a decisão ora em crise sendo certo que a notificação efetuada não padece de nulidade.


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IV. Decisão:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso. 

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

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Coimbra, 8 de Setembro de 2021

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (ajunta)