Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
234/10.0TTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: FALTA DE GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA
GRAVAÇÃO REQUERIDA
NULIDADE SECUNDÁRIA
PRAZO DE ARGUIÇÃO
LEI REGULADORA DO CONTRATO DE TRABALHO
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – INST. CENTRAL – 1ª SEC. DE TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 155º, NºS 3 E 4, E 195º, AMBOS DO NCPC; 68º CPT; 6º DO CT DE 2003.
Sumário: I – Nos termos do artº 68º do Código de Processo de Trabalho, a audiência de julgamento deve ser gravada desde que a decisão admita recurso ordinário e qualquer das partes o requeira ou o tribunal a determine oficiosamente.

II – Nos termos do artº 155º, nºs 3 e 4 do nCPC (aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06), a gravação da audiência deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respectivo acto, sendo que a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

III – A não gravação da audiência que tenha sido requerida acarreta uma nulidade prevista no artº 195º do nCPC, dependendo a sua apreciação da tempestiva arguição na 1ª instância (não deve ser arguida apenas por via de recurso).

IV – Caso a gravação não seja disponibilizada no prazo de dois dias a contar do acto (cada sessão de julgamento), então é cometida uma irregularidade susceptível de ser considerada, em si mesma, uma nulidade secundária, pelo que a sua verificação está dependente da arguição pela parte interessada, sem o que essa nulidade se considera sanada.

V – O contrato de trabalho, em princípio, rege-se pela lei escolhida pelas partes e tal escolha pode ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa.

VI – Na vigência do Código do Trabalho de 2003, o seu artº 6º, com a epígrafe ‘Lei aplicável ao contrato de trabalho’, regia sobre a determinação da lei reguladora do contrato (nºs 1 a 3) e estabelecia expressas limitações aos critérios aí enunciados, fundados ‘numa conexão mais estreita’ e na prevalência de disposições imperativas (nºs 4 a 7).

Decisão Texto Integral:

   Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O autor instaurou contra a ré a presente acção declarativa com processo comum emergente de contrato de trabalho pedindo que: a) se declare ilícita a cessação do contrato de trabalho entre autor e ré por iniciativa e despedimento da ré, por ausência de processo disciplinar ou qualquer outra fórmula legalmente admitida; b) se condene a ré a pagar-lhe as quantias e os títulos referidos nos artºs. 17.º a 21, no montante global de € 13.200,00 e a emitir o modelo n.º 5.044; c) se condene a ré a pagar-lhe a quantia de € 528,00 relativa a juros de mora já vencidos, bem como os juros vincendos à taxa legal de 4% desde 25 de Setembro de 2009 até integral pagamento.

Para tanto, alega, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de trabalho escrito, o qual, com o passar do tempo, se tornou efectivo, e que esta, sem prévio processo disciplinar, despediu-o em 25 de Setembro de 2009, tendo, em consequência, sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais.

A ré veio contestar a acção, conforme fls. 88-91 dos autos, defendendo-se por excepção e por impugnação. Por excepção, suscitou a incompetência internacional do tribunal, por entender ser competente tribunal de São Tomé e Príncipe; suscitou a excepção da ineptidão da p.i. e a lei aplicável. Por impugnação, alegou, em síntese, que informou o autor de que o contrato a termo não se iria renovar, pelo que nada lhe deve.

Foi proferido despacho saneador, onde foram conhecidas as excepções da incompetência internacional e da ineptidão da p.i., as quais foram julgadas improcedentes, e relegada para final a questão da lei aplicável ao caso.

Prosseguindo o processo os seus termos veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente improcedente, tendo sido declarado ilícito o despedimento por iniciativa da ré, por ausência de processo disciplinar e sendo a ré condenada a pagar ao autor: a quantia de € 6.400,00  a título de salário de 25 dias de Setembro de 2009 e proporcionais de férias, subsídios de férias e de Natal pelo tempo que durou o contrato de trabalho; a quantia de € 3.600,00 a título de indemnização por antiguidade; a pagar ao autor as retribuições que este deixou de auferir desde trinta dias antes da propositura da acção (20.09.2010) até à data do trânsito da sentença; sobre tais quantias, juros, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento. No mais, a ré foi absolvida do pedido.

É desta decisão que, inconformada, a ré veio apelar. Alegando, apresentou as seguintes conclusões:

[…]


O autor apresentou contra alegações, sustentando a manutenção do julgado.
Entretanto, após a apresentação deste recurso, foi proferido o seguinte despacho sobre a suscitada questão da falta de gravação:

«i.) Questão prévia:

Vem a ré, por requerimento datado do dia 21.12.2015, arguir o vício de deficiência/inexistência da gravação das sessões da audiência final, que tiveram lugar nos dias 02/04/2014 e 18/11/2015 (esta apenas para alegações finais).

Cumpre apreciar.

Determina o artigo 155.º, n.º 3 do NCPC (aqui de aplicar em face do regime previsto no art. 5º, n.º 1 da Lei 41/2013, de 26/06, que: “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respectivo acto”.

E o n.º4 do mesmo normativo legal dispõe que “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada”.

Consagra-se no referido artigo 155.º, n.º4 do CPC que a nulidade processual descrita tem de ser arguida no prazo de dez dias (a que acresce sempre o tempo conferido à Secção de dois dias a contar do respectivo acto para proceder à disponibilização da gravação – cf. nº3 do mesmo normativo supra transcrito).

Embora o artigo 155.º, n.º3 refira “acto”, não nos merece qualquer dúvida de que o legislador se refere a cada sessão de julgamento, pelo que o referido prazo deve ser considerado por referência a cada concreta sessão (neste sentido vide João Correia e Paulo Pimenta, in “Introdução ao Estudo e À Aplicação do Código de Processo Civil de 2013”, página 35, anotação 24). Não obstante a obrigação de arguir o vício em causa decorra com evidência da conjugação dos referidos normativos legais, veja-se o Ac. da Relação de Coimbra de 10.07.2014, no qual se diz:

“Conjugando os n.º 3 e 4 do artigo 155º do Novo CPC, pressuposta a “obrigação de gravar” decorrente do nº 1 do mesmo artigo 155º, resulta dever ser disponibilizada às partes (o que pressupõe um ato expresso da Secretaria com esse alcance) a gravação, “[…] no prazo de dois dias a contar do respectivo acto” (nº3), sendo que, omitido que seja esse acto de disponibilização (estamos a prefigurar a hipótese que aqui tem interesse prático), deve a parte interessada em recorrer assinalar formalmente essa incidência ao Tribunal de primeira instância (rectius, invocar a nulidade dessa não disponibilização), como forma de desencadear o acto pressuposto nesse nº 3 do artigo 155º (mesmo que esse acto corresponda ao assumir da falta de gravação) e, por essa via, criar a parte interessada o elemento processual que permite desencadear a invocação prevista no nº 4 do mesmo artigo 155º: “[a] falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (sublinha-se, e é sintomático, que a norma tanto se refere à deficiência como à falta de gravação).” - disponível para consulta em www.dgsi.pt.

Vertendo esta perspectiva ao caso dos autos, atentas as datas da realização da audiência final e a data de apresentação do requerimento sob análise, mesmo considerando os referidos dois dias para disponibilização pela Secretaria da gravação, decorre com evidência que o mesmo foi apresentado extemporaneamente. Não tendo a requerente arguido a nulidade no prazo de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que alegadamente ocorreu a omissão/deficiência da documentação, mesmo que aquela exista, o invocado vício encontra-se sanado.

Termos em que se se indefere o requerido.

Notifique.»

Perante este despacho, a ré veio dele apelar. E, alegando, apresentou as seguintes conclusões:

«A) Vem o presente recurso de apelação interposto do douto despacho que julgou sanado o vício de deficiência /inexistência da gravação das sessões da audiência final em consequência indeferiu o pedido de anulação dos depoimentos e termos subsequentes.

B) O julgamento deste processo foi realizado já ao abrigo do regime do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013.

C) O n.º 3 do artigo 155° desse Novo Código de Processo Civil, dispõe que a “gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respectivo acto”.

D) A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

E) Esta norma refere-se tanto à deficiência como à falta de gravação.

F) A gravação não foi disponibilizada à apelante no prazo de dois dias previsto no nº 3 do art.º 155º do C.P.C.

G) A apelante rcquereu que a referida gravação, fosse disponibilizada criando desta forma o elemento processual que permite desencadear a invocaçào prevista no n.º 4 do mesmo artigo 155º. “[a] falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada”

H) O prazo para a arguição da nulidade em causa não se encontrava esgotado sendo por isso tempestivo o pedido de anulação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento.

I) A decisão recorrida violou os citados nºs 3 e 4 do art. 155º do C.P.C., pelo que, ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a nulidade resultante da falta de gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento.»

O autor apresentou contra alegações, sustentando a manutenção do julgado.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, pronunciou-se pela improcedência dos recursos.

*
II- Factos considerados como provados pela 1.ª instância:
Da decisão sobre a matéria de facto, é a seguinte a factualidade que vem dada como provada:
[…]

*

III. Apreciação

É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação.

Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver, no âmbito dos dois recursos a apreciar, se podem equacionar do seguinte modo:

- omissão do registo da prova e possibilidade de anulação da decisão de 1ª instância, para renovação da produção de prova.

- qual a lei aplicável à relação laboral entre as partes.

Vejamos:

1. A questão da omissão do registo da prova:

Esta questão vem equacionada nos dois recursos apresentados pela ré apelante, pelo que será abordada em conjunto.

Vejamos:

Nos termos do art. 68.º do Código de Processo do Trabalho, a audiência deve ser gravada desde que a decisão admita recurso ordinário, qualquer das partes o requeira ou o tribunal a determine oficiosamente (n.º 2).

Observada a contestação da ré verificamos que a mesma requereu a gravação dos depoimentos de testemunhas que indicou.

Contudo, a gravação da audiência não teve lugar, como se observa das respectivas actas.

No recurso da sentença, a apelante alega que a inexistência da gravação acarreta a nulidade secundária prevista “no art. 201.º do CPC”, uma vez que tal deficiência integra uma omissão de um acto prescrito na lei que influi na decisão da causa por obstar, quer à fundada impugnação da matéria de facto pelas partes com base na gravação, quer à reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação.

A audiência de julgamento em que deveria ter havido registo de gravação ocorreu em 2014, pelo que ao caso é já aplicável o novo CPC, actualmente em vigor, de acordo com o art. 5.º, n.º 1 da Lei 41/2013, de 26/06 (teve lugar em duas sessões, nos dias 02/04/2014 e 18/11/2015, esta apenas para alegações finais).

Segue-se que a nulidade arguida é agora prevista no art. 195.º do mesmo CPCivil, sendo certo que ocorreu a omissão de um acto necessário gerador de nulidade, na medida em que a omissão pode influir no exame da causa.

Todavia, na medida em que a omissão não se traduz numa nulidade coberta pela sentença, como veremos, dependendo a sua apreciação de tempestiva arguição na 1.ª instância, a mesma não deveria ter sido arguida por via de recurso, tal como a ré o fez.

Porém, tendo a 1.ª instância emitido pronúncia sobre a sua arguição, em decisão que é objecto do segundo recurso a apreciar, não deixaremos de analisar a questão.

E, neste plano de apreciação, cumpre desde já dizer que concordamos com aquela decisão.

Na verdade, o regime da arguição da nulidade por omissão de gravação está hoje contemplado com um regime específico no art. 155.º do CPC.

Determina o seu n.º 3 que: “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respectivo acto”. E o seu n.º4 dispõe que “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (sublinhados nossos).

Segue-se que, como se refere no despacho recorrido, caso a gravação não seja disponibilizada no prazo de dois dias a contar do acto (no caso, cada sessão do julgamento sujeito a gravação), então é cometida uma irregularidade susceptível de ser considerada, em si, uma nulidade secundária, pelo que a sua verificação está dependente da arguição pela parte interessada, como forma de desencadear o acto pressuposto no n.º 3 do artigo 155.º (arguição da nulidade por falta ou deficiência da gravação).

É este o entendimento que sufragamos, já sustentado por esta da Relação de Coimbra, no Acórdão de 10.07.2014 (in www.dgsi.pt, proc. 64/13.7T6AVR-A.C1), citado no despacho recorrido, e no qual se escreveu:

«Conjugando os n.º 3 e 4 do artigo 155º do Novo CPC, pressuposta a “obrigação de gravar” decorrente do nº 1 do mesmo artigo 155º, resulta dever ser disponibilizada às partes (o que pressupõe um ato expresso da Secretaria com esse alcance) a gravação, “[…] no prazo de dois dias a contar do respectivo acto” (nº3), sendo que, omitido que seja esse acto de disponibilização (estamos a prefigurar a hipótese que aqui tem interesse prático), deve a parte interessada em recorrer assinalar formalmente essa incidência ao Tribunal de primeira instância (rectius, invocar a nulidade dessa não disponibilização), como forma de desencadear o acto pressuposto nesse nº 3 do artigo 155º (mesmo que esse acto corresponda ao assumir da falta de gravação) e, por essa via, criar a parte interessada o elemento processual que permite desencadear a invocação prevista no nº 4 do mesmo artigo 155º: “[a] falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (sublinha-se, e é sintomático, que a norma tanto se refere à deficiência como à falta de gravação). Quando assim não ocorra, ou seja, quando a parte se limite, como aqui sucedeu, a recorrer no prazo de trinta dias depois de notificada da Sentença (…), a questão da omissão ou da deficiência da gravação fica precludida como questão operante no processo, por esgotamento do prazo em que deveria ter sido suscitada. Em qualquer caso, no actual regime (no Novo CPC) não é na instância de recurso que essa questão deve (pode) ser suscitada (veja-se a referência ao nº 1 do artigo 195º no trecho intermédio do artigo 630º, nº 2 do CPC)».

Por consequência, reconhece-se razão ao despacho recorrido quando concluiu que o vício da falta de gravação se encontra sanado, por falta de tempestiva reacção da ré.

Na verdade, a audiência teve lugar em duas sessões, nos dias 02/04/2014 e 18/11/2015, esta apenas para alegações finais, pelo que apenas a primeira contou com depoimentos cuja gravação tinha sido requerida.

A gravação não foi disponibilizada à ré em dois dias (não tinha sido efectuada, de resto) e esta não arguiu a nulidade nos dez dias que tinha para esse efeito, a contar da omissão registada. Tal não lhe permitiu, depois, arguir a nulidade referente à falta de gravação.

Apenas em 17/12/2015 (v. requerimento de fls. 163) a ré solicitou a disponibilização da gravação dos depoimentos, portanto muito para além dos dez dias de que dispunha para arguir a omissão da disponibilização da a gravação no prazo de dois dias a contar do respectivo acto.

Logo, a questão da omissão da gravação ficou precludida como questão operante no processo, por esgotamento do prazo em que deveria ter sido suscitada.

Deste modo, improcede o primeiro recurso da ré quanto a esta questão, bem como na totalidade o segundo recurso também em apreciação.

2. A questão da lei aplicável:

A ré entende que a lei aplicável ao contrato de trabalho é a lei de S. Tomé e Príncipe.

Diversamente, a sentença recorrida considerou aplicável a lei portuguesa.

No caso, justifica-se a percepção do conflito de leis, em matéria de direito internacional privado, uma vez que se verificam elementos de conexão com as ordens jurídicas dos dois Estados.

A 1.ª instância considerou que, tendo o contrato sido celebrado em 5 de Março de 2008 e iniciado nesta mesma data, ao caso, para efeitos de apreciação da questão, era convocável a norma de conflitos contida no artigo 6º do Código de Trabalho de 2003, o qual determina para a determinação da lei aplicável a prevalência da escolha das partes.

Nesse quadro, observando que no texto do contrato não foi determinado, expressamente, a lei que rege o mesmo, procurou determinar qual teria sido a escolha tácita da lei aplicável ao caso, tendo em conta os elementos de facto apurados, sublinhando as circunstâncias de facto do autor ser de nacionalidade portuguesa e ter residência em Portugal, o contrato ter sido celebrado em Portugal, o vencimento mensal era pago em Portugal, sendo que uma outra quantia (5.000.000 de dobras) era paga em S. Tomé, e atendendo, ainda, que o formato usado para o contrato é “em tudo parecido com o usado no mercado laboral português”, concluiu que as partes escolheram, de modo implícito, a lei Portuguesa.

A ré apelante, insurgindo-se contra esta conclusão, manifesta que não é possível concluir que as partes escolheram qualquer lei. Assim, na falta de escolha da lei pelas partes, defende que o critério da conexão mais estreita que deve ser atendido, sendo esta definida nos termos do nº 3 do mesmo art. 6.º do Código do Trabalho de 2003, ou seja o do local habitual da prestação do trabalho e a localização do estabelecimento onde o trabalhador presta o trabalho, pelo que a lei aplicável deve ser a lei de S. Tomé e Príncipe.

Vejamos:

Desde logo, considerando que o contrato de trabalho foi firmado em  5 de Março de 2008, deve entender-se aplicável o disposto na Convenção sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, aberta à assinatura em Roma, no dia 19 de Junho de 1980, e a que Portugal aderiu pela convenção assinada no Funchal, em 18 de Maio de 1992, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/94 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 1/94, diplomas publicados no Diário da República, I Série-A, n.º 28, de 3 de Fevereiro de 1994, vigente na ordem jurídica portuguesa desde 1 de Setembro de 1994 (Aviso n.º 240/94, de 30 de Agosto de 1994, no Diário da República, I Série-A, n.º 217, de 19 de Setembro de 1994). O art. 2.º da Convenção destaca o seu carácter universal, sendo que a lei designada nos seus termos é aplicável, mesmo que essa lei seja de um Estado não Contratante.

Não é aplicável ao caso o Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I),  porquanto este Regulamento (referido no n.º 2 do art. 12.º da Lei n.º 7/2009 que aprovou o Código do Trabalho de 2009 e que revogou o art. 6.º do Código do Trabalho de 2003 na medida em que esse Regulamento passasse a ser aplicável) só é aplicável a partir de 17 de Dezembro de 2009.

Por outro lado, à data da celebração do contrato de trabalho vigorava o Código do Trabalho de 2003, cujo artigo 6.º, com a epígrafe “Lei aplicável ao contrato de trabalho”, regia sobre a determinação da lei reguladora do contrato (n.os 1 a 3) e estabelecia expressas limitações aos critérios aí enunciados, fundadas “numa conexão mais estreita” e na prevalência de disposições imperativas (n.os 4 a 7).

Há, pois, que conhecer as normas da Convenção, bem como a do art. 6.º do Código do Trabalho de 2003, sendo que entre umas e outra não há contradição.

A Convenção consagra o princípio fundamental da liberdade de escolha da lei aplicável ao contrato (artigo 3.º), escolha que “deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa” (artigo 3.º, n.º 1), e do princípio geral de que, se não tiver ocorrido a sobredita escolha, o contrato deve ser regulado pela lei do País com o qual apresente “uma conexão mais estreita” (artigo 4.º, n.º 1). Mas adopta um regime específico para o contrato de trabalho no artigo 6.º da Convenção, de acordo com o qual, na falta de escolha feita nos termos do artigo 3.º, o contrato de trabalho é regulado (a) pela lei do País em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que tenha sido destacado temporariamente para outro País, ou (b) se “não prestar habitualmente o seu trabalho no mesmo País, pela lei do País em que esteja situado o estabelecimento que contratou o trabalhador, a não ser que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com um outro País, sendo em tal caso aplicável a lei desse outro País”.

Semelhantemente, o artigo 6.º do Código do Trabalho de 2003 também acolhe, no respeitante à determinação da lei aplicável ao contrato de trabalho, o princípio da autonomia privada, ao estabelecer que o contrato de trabalho “rege-se pela lei escolhida pelas partes” (n.º 1), sendo que na falta de escolha de lei aplicável, o contrato de trabalho é regulado pela lei do Estado com o qual apresente uma conexão mais estreita (n.º 2) e na determinação da conexão mais estreita, além de outras circunstâncias, atende-se (a) à lei do Estado em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que esteja temporariamente a prestar a sua actividade noutro Estado e (b) à lei do Estado em que esteja situado o estabelecimento onde o trabalhador foi contratado, se este não presta habitualmente o seu trabalho no mesmo Estado (n.º 3). Sublinhando que os “os critérios enunciados no número anterior podem não ser atendidos quando, do conjunto de circunstâncias aplicáveis à situação, resulte que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com outro Estado, caso em que se aplicará a respectiva lei”.

Ou seja, em princípio, o contrato de trabalho rege-se pela lei escolhida pelas partes e tal escolha pode ser expressa ou “resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa”.

Observando o contrato de trabalho firmado entre as partes, junto aos autos a fls. 14, constata-se que não determinaram expressamente qual a lei aplicável, ou seja, não consta do mesmo uma referência expressa à legislação escolhida para o reger.

A 1.ª instância mostrou dar relevo, para concluir pelo acordo tácito à lei portuguesa, à circunstância do formato usado para o contrato ser “em tudo parecido com o usado no mercado laboral português”. Mas não nos parece ser de dar esse relevo. Como diz a ré no recurso “não é de estranhar que o formato usado para o contrato é em tudo parecido com o usado no mercado laboral português, pois S. Tomé e Príncipe é uma antiga colónia portuguesa e à semelhança de outras o seu ordenamento jurídico espelha essa condição”.

É certo que o autor tem nacionalidade portuguesa e residência em Portugal (como resulta do texto do contrato) e o contrato foi celebrado em Portugal, como resulta do facto 8.. Mas tal nada nos acrescenta quanto à definição da vontade tácita sobre a escolha da lei aplicável.

Por outro lado, também nada acrescenta, a nosso ver, a circunstância de parte do vencimento mensal ser pago em Portugal (em euros) e uma outra quantia (em dobras) ser paga em S. Tomé.

Deste modo, não podemos concluir, como concluiu a sentença recorrida, que as partes escolheram a lei portuguesa de forma “implícita

A ré apelante, insurgindo-se contra essa conclusão, manifesta que não é possível concluir que as partes escolheram qualquer lei, no que lhe damos razão. Assim, defende que na falta de escolha da lei pelas partes, é o critério da conexão mais estreita que deve ser atendido, sendo esta definida nos termos do nº 3 do mesmo art. 6.º do Código do Trabalho de 2003, ou seja o do local habitual da prestação do trabalho e a localização do estabelecimento onde o trabalhador presta o trabalho, pelo que a lei aplicável deve ser a lei de S. Tomé e Príncipe.

A escolha teria de ser expressa ou “resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa”, como dissemos. Com os elementos de facto constantes dos autos, não podemos concluir que a escolha resulta de modo inequívoco do contrato ou das circunstâncias da causa.

Segue-se que importa apurar de conexão mais estreita e, desde logo, das previstas no n.º 3 do art. 6.º do Código do Trabalho de 2003 (semelhantes às previstas na Convenção, como dissemos).

Importa assim verificar qual o país em que o autor “no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que esteja temporariamente a prestar a sua actividade noutro Estado”.

Observando o texto do contrato, verificamos que dele não consta o país em que o autor deveria, no cumprimento do contrato, prestar habitualmente o seu trabalho.
Na cláusula 1.º do contrato é dito que a ré admite o autor ao seu serviço, obrigando-se este a prestar serviço com funções inerentes à categoria profissional de operador de espalhadora de betão betuminoso. E na cláusula 2ª é referido que ele prestará serviços sob as ordens e direcção da ré “no local de trabalho que o 1.º Outorgante determinar”.
Ou seja, repetimos, não está definido qual país em que o autor deveria, no cumprimento do contrato, prestar habitualmente o seu trabalho, sendo que na interpretação aberta do contrato poderia ser em qualquer um, se assim a ré o determinasse.

É certo que se provou (facto 9.) que o trabalho foi prestado em São Tomé e Príncipe. Mas isso para nós não basta, já que a norma de conflitos, quanto a este elemento de conexão, contém a menção ao local de prestação habitual (definida contratualmente), ressalvando que é essa que deve ser atendida mesmo que o trabalhador “esteja temporariamente a prestar a sua actividade noutro Estado”. No caso, não sabendo qual o local habitual de prestação do trabalho (ou admitindo que ele pudesse ser em qualquer local, qualquer país), a circunstância do trabalho ter sido prestado em São Tomé e Príncipe não nos elucida se esse era o local habitual ou temporário, nos termos contratados.

Deste modo, a nosso ver este elemento de conexão, contido na alínea a) do  n.º 3 do art. 6.º do Código do Trabalho de 2003, não pode operar

Segue-se que importa apurar, então, da conexão também prevista naquela norma e que é a do estabelecimento onde o trabalhador foi contratado, se este não presta habitualmente o seu trabalho no mesmo Estado.

Mas já dissemos não ser determinável o local de prestação habitual de trabalho, em função do estipulado no contrato. E, por outro lado, também não sabemos onde se situa o estabelecimento onde o autor foi contratado. Sabemos, é certo que a ré tem sede em São Tomé na República Democrática de S. Tomé e Príncipe (facto 10.). Mas a sede (de natureza social meramente jurídica) não é o mesmo que estabelecimento, ou seja, a organização de meios físicos e humanos que são o suporte da actividade económica. E, dos factos apurados, nenhum nos indica onde esteja situado esse estabelecimento, essa base da organização produtiva (tanto podendo ser em Portugal, como em S. Tomé e Príncipe).

Por conseguinte, também a nosso ver, este elemento de conexão, contido na alínea b) do n.º 3 do art. 6.º do Código do Trabalho de 2003, não pode operar para a definição da lei aplicável.

Resta então apurar de outro elemento de conexão mais estreito.

Ora, o n.º 2 do artigo 4.º da Convenção indica que se presume que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde a Parte que está obrigada a fornecer a prestação característica do contrato tem, no momento da celebração do contrato, a sua residência habitual.

Não pode haver dúvidas que a prestação característica do contrato de trabalho (aquela que o define e lhe dá identidade) é a prestação do trabalho. Neste caso, por conseguinte, a parte que está obrigada a fornecer a prestação característica do contrato é o autor/trabalhador.

No momento da celebração do contrato, como do seu clausulado consta, ele tinha a sua residência em Alcains, Portugal.

Sendo assim, por força da presunção assinalada e no caso dos autos, deve considerar-se que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com Portugal e daí ser aplicável a lei portuguesa.

Se assim não fosse, no caso, sempre seria de atender à regra supletiva prevista no n.º 2 do art. 42.º do Código Civil, que elege como conexão atendível o lugar da celebração do contrato. E, assim sendo, tendo o contrato sido assinado (celebrado) em Portugal (v. facto 8.), sempre seria aplicável a lei portuguesa.

Por conseguinte, embora com diferentes fundamentos, é de manter o entendimento da 1.ª instância no que toca à lei aplicável ao contrato de trabalho.

E, deste modo, nenhumas outras questões tendo sido suscitadas no recurso, deve improceder totalmente a apelação da ré acima identificada primeiramente.


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IV- DECISÃO

Termos em que se delibera julgar improcedentes ambas as apelações da ré.

Custas a cargo da apelante.


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 (Azevedo Mendes - Relator)

 (Felizardo Paiva)

 (Paula do Paço)