Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
37/09.4TAPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
Data do Acordão: 11/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENAMACOR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 287º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A exigência legal de que o requerimento para abertura da instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos.
A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução formulado pelo assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução, a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, n.º 1, do C. Proc. Penal.
Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, no exercício do direito de defesa.
Em última análise, o que está em causa é a garantia constitucional do direito de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da C.R.P.).
O disposto no artigo 287º, n.º 2, do C. Proc. Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria Constituição.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No processo comum, em fase de instrução, nº 37/09.4TAPNC do Tribunal Judicial de Penamacor, o assistente A... apresentou queixa contra B... por factos que em seu entender integram a prática de crimes de denúncia caluniosa ou de difamação.
O Ministério Público, findo o inquérito, decidiu proceder ao respectivo arquivamento.
O Assistente requereu a realização de instrução.

Por despacho proferido em 26 de Janeiro de 2011 o Mmº Juiz de Instrução rejeitou o requerimento de instrução por inadmissibilidade legal.

Inconformado com o teor de tal despacho, dele recorreu o assistente A..., extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
A) Dão-se por inteiramente reproduzidos os termos do requerimento de abertura de instrução, bem como do douto despacho recorrido;
B) O requerimento de abertura de instrução, na medida em que transcreve a queixa apresentada e factos nela vertidos, identifica a denunciada, identificando ainda pelo menos uma das queixas por ela apresentadas, a que deu origem ao processo NUIPC 42/09.0GAPNC e indica os meios de prova produzir, respeita os critérios fixados aos requisitos constantes do artº 287°, nº 2, e, por sua remissão, das als b) e c) do nº 3 do artº 283°, ambos do Código de Processo Penal.
C) O douto despacho recorrido entende, pelo contrário, que não se procedeu à enumeração dos factos concretos que permitissem, com um mínimo de rigor, precisar e delimitar o objecto do processo, nem à descrição de um acervo factual bastante e suficiente para, por si só, poder sustentar (com recurso à factualidade nele descrita, e sem mais) uma eventual pronúncia; nem, bem assim, à identificação da pessoa contra quem pretende que venha a ocorrer a instrução;
D) Entende ainda, o Douto Despacho recorrido, que não foi concretizada a subsunção e a integração jurídica, em que se deve traduzir a exigência de indicação das disposições aplicáveis, nem concretizados os processos penais em que se tenha concluído pela absolvição dos factos típicos e ilícitos a si imputados, nem, bem assim, situadas minimamente no tempo as condutas que se pretendem com relevância criminal, desconhecendo-se, na descrição efectuada pelo requerente, quais as queixas e onde as mesmas foram apresentadas e por quem, perante qual autoridade pública, em que tempo e lugar, quais os factos que permitem concluir pela falsidade de tal actuação.
E) Tal entendimento não tem reflexo no texto do próprio requerimento de abertura de instrução como resulta da sua leitura, por um lado, e por outro lado evidencia a exigência que o mesmo seja em tudo equivalente a uma acusação.
F) O recorrente adere e invoca, a esse respeito, a Jurisprudência que se vem formando no Douto Tribunal da Relação de Coimbra, de que o Douto Acórdão de 29-09-2010, no Recurso Penal na 304/06.9TAAVR-A.Cl é uma das expressões;
G) Ao não admitir a instrução com tais fundamentos, violou, o douto despacho recorrido o disposto no artº 287º, nº 2, e, por sua remissão, nas als b) e c) do nº 3 do artº 283º, ambos do Código de Processo Penal, e ainda o disposto no artigo 6.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais;
H) O artº 287º, nº 2, interpretado, como o foi insitamente no douto despacho recorrido, no sentido de que o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente deve conter todos os elementos de uma acusação, nos seus precisos termos, é inconstitucional por violação do direito constitucional de tutela efectiva, consagrado no nº 4 do artº 20° da Constituição da República Portuguesa, que assim ficou violado, devendo ser considerado inconstitucional.
I) Assim, impunha-se decisão diversa, a de admitir a instrução requerida, pelo que o douto despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por acórdão que ordene tal admissão.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
a) Conforme o disposto no art. 283º n° 3 al. b) e c), aplicável por remissão do art. 287º n° 2, ambos do CPP, a acusação - leia-se, o requerimento de abertura de instrução - deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis;
b) O requerimento de abertura de instrução configura, pois, substancialmente uma verdadeira acusação alternativa;
c) Porém, o requerimento apresentado pelo recorrente limita-se a enunciar as razões de discordância do arquivamento, não contendo a imputação de factos capazes de fundamentar a aplicação ao(s) arguido(s) de uma pena;
d) Na verdade, o requerimento de abertura de instrução não identifica de forma clara e inequívoca a pessoa contra quem o assistente pretende venha a correr a instrução, não circunstância minimamente no tempo as condutas que pretende com relevância criminal, sendo omissa quanto à indicação de quaisquer factos de onde se retirem a falsidade das respectivas imputações.
e) Por outro lado, no que concerne a qualificação jurídica dos factos, que se consubstancia na exigência de indicação das "disposições legais aplicáveis", constata-se que o assistente transfere para o Tribunal o ónus da sua concretização, em manifesta violação do princípio do acusatório, com indicação "alternativa" das normas penais aplicáveis, desconhecendo-se qual é o crime que pretende imputar.
f) O requerimento de abertura de instrução, pela sua essencialidade na determinação do objecto do processo, deve conter todos os factos criminalmente relevante para aplicação de uma pena ao arguido, sendo consequentemente inadmissível que tal articulado seja elaborado por remissão outros elementos que se encontrem algures no processo e muito menos constantes em outros processos.
g) Assim, a instrução é inadmissível por falta de objecto, nos termos do art. 287º nº 3 in fine do CPP;
h) A decisão recorrida não violou nenhuma disposição legal;
i) O recurso não deve, por isso, merecer provimento.
Termos em que:
Deverá o recurso improceder, confirmando-se integralmente o despacho recorrido, assim fazendo V.Ex.as a costumada JUSTIÇA.

O Mmº Juiz a quo admitiu o recurso interposto e manteve o despacho recorrido.

Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
No que respeita ao mérito do recurso acompanha-se a resposta do Ex.m.º magistrado do M.P. no TJ de Penamacor.
Na verdade, no que aos presentes autos respeita, o requerimento de instrução apenas poderia ter lugar relativamente ao participado crime de denúncia caluniosa, atenta restrição elo art.º 280 n.º 1 b) do CPP relativamente á difamação.
E quanto àquele, o que é facto é que, como referem a decisão recorrida e a resposta do M.P., o requerimento de abertura da instrução não fornece elementos que objectivem tal ilícito penal. É que no mesmo apenas se refere a participação junta, mas não se concretizam factos que permitam concluir pela falsidade da imputação e muito menos a consciência da mesma, sendo que estes são elementos essenciais do ilícito. O que recorrente afirma é que existe um litígio relativamente a um terreno, que este é seu e que a arguida entende que o mesmo é pertença da sua mãe, acusando-o de o ter invadido e ocupado abusivamente. Ora, como é evidente, perante o litígio, é difícil admitir a consciência da falsidade da imputação, sendo certo que, no seu requerimento, como se disse, o requerente, e ora recorrente, não fornece quaisquer elementos que permitem afirmar a existência dessa consciência de falsidade, não podendo pois a instrução ser admitida atentas as características que deve revestir o pedido desta, que o mencionado despacho e resposta dão conta, na sequência aliás dos ditames do art.º 287° n.º 2 do CPP., devendo pois ser mantida a decisão recorrida.
Pelo que sou de parecer que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.
***
II. Fundamentos da Decisão Recorrida
A decisão objecto do presente recurso é do seguinte teor:
O assistente A..., inconformado com o despacho da digna magistrada do Ministério Público que se decidiu pelo arquivamento dos autos, veio requerer a abertura da instrução, dando-se aqui por integralmente reproduzido o requerimento que apresentou.
Recorde-se, ao assistente é facultada a abertura de instrução, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art. 287º, nº 1, al. b), do Cód. P. Penal).
Nos casos em que é requerida pelo assistente, a fase de instrução tem por finalidade a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do Cód. P. Penal).
Quando formulado pelo assistente - por não se conformar com a decisão de arquivamento do inquérito - o requerimento para a abertura de instrução é que define e limita o objecto do processo, sendo certo que ao Tribunal está vedada a pronúncia por factos que importem uma alteração substancial dos que nele constem.
Nisto radica o princípio da vinculação temática do Tribunal ao objecto do processo tal como definido pelo assistente no requerimento para abertura de instrução.
Podemos, pois, afirmar que, nestes casos, o requerimento para abertura de instrução constitui, em suma, uma “acusação alternativa”, uma verdadeira acusação em sentido material, e, neste caso, o requerimento para abertura de instrução deve conter a narração de forma individualizada dos factos concretos imputados ao arguido ou visado com a instrução.
Trata-se de uma exigência que deriva da estrutura acusatória do processo penal (art. 32º da Constituição).
Com efeito, para além das razões de facto e de direito da discordância do assistente relativamente ao arquivamento, o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente deverá conter, entre o mais – e sem prejuízo de não estar sujeito a formalidades especiais -, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e, ainda, as disposições legais aplicáveis (art. 283º, nº 3, als. b) e c) ex vi do art. 287º, nº 2, do Cód. P. Penal).
Precisamente, impõe-se-lhe também que descreva os factos que integrem o ilícito criminal imputado ao(s) arguido(s) visado(s) com a instrução, o que, por um lado, se mostra imprescindível para o exercício do direito de defesa e do contraditório (já que, na verdade, desconhecendo o visado com a instrução os concretos factos que lhe são imputados, comprometida estaria a sua defesa), e, por outro lado, permite estabelecer os limites da investigação judicial, já que o juiz de instrução não poderá conhecer de factos que não constem do requerimento para instrução.
Ora, compulsando o requerimento para instrução apresentado pela assistente, verifica-se que o mesmo, efectivamente, não procede a uma enumeração de factos concretos que permitissem, com um mínimo de rigor, precisar e delimitar o objecto do processo.
Não procedeu à descrição de um acervo factual bastante e suficiente para, por si só, poder sustentar (com recurso à factualidade nele descrita, e sem mais) uma eventual pronúncia.
Aliás, nem identifica a pessoa contra quem pretende venha a correr a instrução.
O requerimento para abertura da instrução em apreço não contem a factualidade concreta que seria necessária para poder servir de suporte a uma eventual decisão de pronúncia.
Por fim, também ao nível da subsunção e integração jurídica, em que se deve traduzir a exigência de indicação das “disposições legais aplicáveis”, o assistente transfere para o Tribunal o ónus da sua concretização, em manifesta violação do princípio do acusatório. Indicando em alternativa as normas penais aplicáveis, desconhecendo-se qual é o crime que pretende imputar.
Ora, compulsando o requerimento para instrução apresentado, constata-se que o mesmo:
Não identifica a pessoa contra quem pretende venha a correr a instrução, incumprindo por esse modo o ónus de fazer constar de forma clara e inequívoca os elementos que permitam ao visado saber que os factos são-lhe imputados, e não a outro qualquer, e saber que é contra si (e não contra um terceiro) que o requerente pretende o procedimento; uma peça acusatória não se compadece com incertezas que tenham a ver com os visados num procedimento criminal;
Não concretiza os processos penais em que se tenha concluído pela absolvição dos factos típicos e ilícitos a si imputados, deixando para o Tribunal a tarefa de os encontrar e precisar, em manifesta violação do princípio do acusatório, sendo certo que, a nosso ver, a peça acusatória deverá valer por si, e não pode constituir um articulado de remissão para outros elementos, mesmo que se encontrem algures no processo, muito menos constantes em outros processos como indica o requerente;
Não situa minimamente no tempo as condutas que pretende com relevância criminal, desconhecendo-se, na descrição efectuada pelo requerente, quais as queixas e onde as mesmas foram apresentadas e por quem, perante qual autoridade pública, em que tempo e lugar, quais os factos que permitem concluir pela falsidade dessa imputação;
Com tal procedimento, o requerente acabou por transferir para o Tribunal o ónus de, numa eventual decisão de pronúncia, encontrar e mencionar os factos que omitiu, transferindo, também aí, para o Tribunal o ónus de perscrutar quais as concretas normas penais objecto de uma eventual pronúncia; acrescente-se que o requerimento para instrução menciona condutas que em abstracto poderiam ser até susceptíveis de integrar mais do que um crime em alternativa como indica (denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365.º, n.ºs 1 e 3 ou crime de difamação artigo 180.º, do Código Penal, sendo este de natureza particular).
Não se mostra cumprida a exigência legal.
Acrescente-se que, acaso entendesse que o Ministério Público, na fase de inquérito, não efectuara todas as diligências possíveis para investigar o crime, e que as investigações deviam prosseguir, então o requerente em questão tinha ao seu dispor a faculdade de suscitar a intervenção hierárquica prevista no art. 278º do Cód. P. Penal.
É que a instrução destina-se à comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito ou de deduzir acusação, que haja sido tomada pelo Ministério Público, mas não pode ter por finalidade a averiguação dos factos a imputar ao visado com a instrução quando eles foram omitidos no requerimento para abertura da instrução.
Assim, há que concluir pela inadmissibilidade da abertura da fase de instrução, que, por tais razões, sempre seria inútil, pois nunca poderia conduzir a uma decisão de pronúncia, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência fixada no Ac. nº 7/2005 do STJ, não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do Cód. P. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
Pelo exposto, por ser inadmissível, não se admite a instrução requerida por A....
Sem custas.
Notifique.
***
III. Apreciação do Recurso
Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) e, vistas essas conclusões, suscita-se a questão de saber se o requerimento de instrução do assistente obedece aos requisitos do artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, devendo ser recebido.
Com efeito verificamos pelo teor do despacho recorrido que o requerimento de instrução do assistente foi rejeitado, em suma, com os fundamentos de não conter descrição suficiente dos factos, correcta imputação criminal e identificação de arguido.
O recorrente por seu turno sustenta a perfeição do requerimento de instrução e que a interpretação efectuada no despacho recorrido do artigo 287º, nº 2 viola o disposto no artigo 20º, nº 4 da CRP – direito a tutela efectiva.

Apreciando:
Antes de mais, importa confrontar o teor do requerimento de instrução que se encontra redigido nos seguintes termos:
- Início de Transcrição –
A..., casado, residente na Rua …, assistente nos autos à margem referenciados e nos mesas já melhor identificado, vem requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto nos artºs 286º e ss. do Código de Processo Penal, e com os seguintes fundamentos:
1º - O assistente deduziu nos presentes autos queixa-crime contra B... Curto, nos termos e com os seguintes fundamentos:
"( ... )
1º - A denunciada apresentou queixa contra o ora queixoso por várias vezes, tendo a última das quais dado origem ao Procº NUIPC 42/09.0GAPNC.
2º - No mesmo processo, a denunciada apresentou queixa, contra o ora participante, em representação de sua Mãe, pretensa ofendida, tendo declarado que existe um terreno em litígio e o arguido informou-a da intenção de ocupar o terreno dela tendo-a, após isso, invadido e ocupado a parcela que afirma pertencer-lhe, ali fazendo um buraco, ocupando a passagem e colocando-lhe cascalho, impedindo-a que assim dela tirasse proveito.
3°- Tendo por objecto os vários prédios envolvidos neste litígio, encontram-se a correr no Tribunal Judicial da Comarca de Penamacor as acções cíveis nºs 12/07.3TBPNC 44/07.1TBPNC e nº 33/09.1TBPNC conforme consta dos documentos nºs 1, 2 e 3 que ora se juntam e cujos termos aqui ficam, para todos os efeitos, dados por integralmente reproduzidos.
4°- Em todas elas a agora denunciada tem intervenção e, logo, conhecimento dos factos ali alegados.
5°- A denunciada tem pleno conhecimento que a área de terreno a que se reporta na sua queixa não pertence a nenhum dos prédios de sua Mãe ou seus, mas sim ao prédio que é objecto da acção de preferência n° 12/07.3TBPNC.
6° - Ao apresentar a referida queixa-crime, a denunciada tinha plena consciência de estar a afirmar uma falsidade,
7º - E fê-lo, claramente, com o intuito de fazer incidir sobre o ora participante o ónus de um processo crime no âmbito do litígio civil em curso.
8°- Já em ocasiões anteriores, ao longo dos últimos meses, a denunciada efectuou participações criminais contra o queixoso, por razões similares, em concreto pretenso furto de água de um poço que se situa na propriedade deste,
9°- Ou que terá ameaçado agredir a sua Mãe,
10°- Tudo sempre com a consciência da falsidade do que afirmou e, bem assim, com vista a criar uma situação de desiquilibrio no litígio civil.
11°- Neste momento, a sucessiva apresentação de queixas-crime contra o ora participante está a criar, no mesmo e na sua família, um permanente sentimento de tensão psicológica e mesmo de receio,
12º - Tendo que ser posto um fim a tal conduta reiterada.
13°- As referidas condutas constituem a prática de outros tantos crimes de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artº 365°, nºs 1 e 3, do Código Penal.
14°- Porém, ainda que não constituíssem crime de denúncia caluniosa, sempre seriam crimes de difamação. p. e p. pelo artº 180° do mesmo diploma legal, o que desde já expressamente se invoca a título subsidiário.
( ... )
20º - O ora requerente veio ainda constituir-se assistente e declarar a intenção de deduzir pedido de indemnização civil, tendo requerido que:
"(…)
sejam identificados e inquiridos todos os Agentes do Posto de Penamacor, da Guarda nacional Republicana, que tenham intervindo no processo referenciado no anterior artº 1°, bem como em todas as demais queixas feitas, pela denunciada, contra o ora participante, designadamente os que tenham sido chamados ao local do litígio, situado nas hortas do extremo da Rua Ocidental, em Aldeia do Bispo.
3°- Juntou ainda os documentos constantes dos autos.
4º- A fls. 153 dos autos foi ordenada a busca, na base de dados, dos inquéritos que correm contra o assistente.
5º - A fls 185 e ss foi junta certidão do processo 42/09.0GAPNC, no qual apenas consta a respectiva denúncia.
6º- A fls. 187 consta um aditamento ao auto de denúncia, aqui dado por reproduzido;
7º - A fls. 162 e 163, foram inquiridos os senhores militares da GNR que tiveram intervenção na denúncia dos autos 42/09.0GAPNC, que porém se pronunciaram, manifestando evidente desconhecimento, quanto a pretensas difamações proferidas, e não quanto à matéria dos autos.
8º - O mesmo sucedeu quanto às testemunhas indicadas pela arguida, a fls. 190 e 191.
9º - A dmª Procuradora não procedeu a mais diligências, não tendo, designadamente, cuidado de ordenar a reinquirição das testemunhas para que respondessem à matéria dos autos, não tendo ordenado a verificação de inquéritos que se já encantassem arquivados e, sobretudo, não cuidou de saber em que estado se encontra o processo 42/09.0GAPNC ou se, bem assim, existem nos mesmos elementos relevantes para a condução do presente inquérito.
10º - Quanto a este último aspecto não cuidou, a Dmª srª Procuradora, aferir se se impunha, ou não, nos termos legais, a junção de inquéritos, se se impunha, ou não, considerar o desfecho daquele processo como questão prejudicial para decisão no presente inquérito e, finalmente, não cuidou se se impunha a utilização de prova ali feita.
11°- Finalmente ignorou, a Dmª Procuradora, conhecer sequer da questão da invocada denúncia caluniosa, nada tendo referido a esse respeito, e apenas notificando o assistente para deduzir a acusação particular quanto à prática de um crime de difamação, que afirmou entender não existir.
12º- Certo é que o assistente, na sua queixa, referia a mero título subsidiário a questão de, caso se entendesse que as queixas denunciadas a título de denúncia caluniosa o não fossem, então sempre deveriam os mesmos ser considerados difamação.
13º- Assim, impunha-se, por banda do MP, que se justificasse o sentido do tácito­entendimento de que se está ante difamação e não denúncia caluniosa, o que não sucedeu, facto que constitui nulidade processual, o que desde já expressamente se invoca.
Acresce que,
14º- A fls 6, 10, 11, 18 e ss, 20, 27, 31, 33, 35, 64, 75, 80, 82, 83, 89 e ss, e 92 dos autos de inquérito nº 42/09.0GAPNC existe matéria que, no entender do ora assistente, é relevante para o conhecimento da presente questão, isso muito embora o mesmo ainda não tenha sido encerrado.
15º- Isto porque revelam contradições e uma conduta processual, por banda da aqui arguida, indiciatórias dos elementos factuais tipificadores da prática do crime de denúncia caluniosa denunciado nestes autos.
Nestes termos, vem requerer a Vº Exª se digne ordenar a abertura de instrução, dignando-se proceder, para além das demais que tiver por pertinentes, às seguintes diligências:
a) Conhecer da nulidade ora invocada ou,
b) Conhecer da eventual necessidade de junção deste com o acima mencionado inquérito ou,
c) Conhecer da eventual natureza de questão prejudicial a decisão final que seja tomada no acima mencionado inquérito ou,
d) Ordenar as diligências de prova seguintes:
-Reinquirição de todas as testemunhas, desta feita à matéria da queixa e não de outros pretensos factos não denunciados;
-Indagação quanto à existência de todos os inquéritos em que a ora denunciada seja denunciante e o ora assistente denunciado, incluídos os já arquivados;
-Recolha dos elementos probatórios constantes do inquérito n° 42/09.0GAPNC, designadamente os que constam de fls. 6, 10, 11, 18 e ss, 20,27,31,33,35,64,75,80,82,83,89 e ss, e 92 dos mesmos;
- Fim de Transcrição -

Vejamos em primeiro lugar o quadro normativo em que deve mover-se a apreciação da questão suscitada.
E porque, no requerimento de instrução, o recorrente imputa o cometimento de crimes de denúncia caluniosa e subsidiariamente de difamação, deve ser esclarecido de imediato que, de acordo com a previsão do artigo 287º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, o assistente apenas pode requerer instrução em relação a crimes que não sejam de natureza particular. Quanto a esses, incumbe-lhe deduzir acusação findo o inquérito nos termos dos artigos 284º e 285º do Código de Processo Penal.
O artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal preceitua, relativamente ao requerimento de instrução, que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente … à não acusação … e dos factos que …se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º nº 3, alíneas b) e c).
Este último artigo e a sua alínea b) preceitua que “a acusação contém sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.
Lembre-se que a instrução tem como escopo definido no artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal «a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.»
Mas o processo penal (lei adjectiva) destina-se a efectivar a responsabilidade penal (artigo 2º do Código de Processo Penal) sendo seu pressuposto que essa responsabilidade exista. Dai que a primeira fase do processo penal; o inquérito, se destine a investigar a existência de um crime e a determinar os seus agentes e a responsabilidade deles (artigo 262º do Código de Processo Penal). Logo, a acusação que ponha termo a essa fase processual deve identificar arguido, entendido como a pessoa penalmente responsável pelos factos que constituem crime e descritos nessa peça processual e, do mesmo modo, por força dos normativos citados, deve o requerimento de instrução obedecer a tal requisito.
Se o processo penal se destina a efectivar a responsabilidade penal, ele apenas faz sentido e deve prosseguir quando estão presentes os pressupostos da punição, ou seja, quando seja possível imputar a uma pessoa factos concretos que constituem crime.
Se o requerimento de instrução não é dirigido contra arguido identificado e envolvido em factos certos e determinados, manifesto é que estamos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução por falta do mais elementar pressuposto do processo penal que é a responsabilidade criminal que não é susceptível de ser integrada por meras alegações conclusivas de que foram apresentadas queixas de conteúdo falso e de que quem as apresentou conhecia a falsidade das mesmas.
Vejamos. O requerimento de instrução é completamente omisso quanto a todas as alegadas queixas com excepção de uma, a que deu origem ao processo que é identificado.
Mas em relação a essa queixa que começa por não ser temporalmente localizada, sendo certo que a função de delimitação temática da acusação/requerimento de instrução não consente remissões para outras peças processuais em elementos essenciais, apenas consta o seguinte que "a denunciada apresentou queixa, contra o ora participante, em representação de sua Mãe, pretensa ofendida, tendo declarado que existe um terreno em litígio e o arguido informou-a da intenção de ocupar o terreno dela tendo-a, após isso, invadido e ocupado a parcela que afirma pertencer-lhe, ali fazendo um buraco, ocupando a passagem e colocando-lhe cascalho, impedindo-a que assim dela tirasse proveito" e "tendo por objecto os vários prédios envolvidos neste litígio, encontram-se a correr no Tribunal Judicial da Comarca de Penamacor as acções cíveis nºs 12/07.3TBPNC 44/07.1TBPNC e nº 33/09.1TBPNC".
O recorrente através da peça processual em análise pretendia, em primeiro lugar, imputar à arguida a prática de crimes (em número indeterminado) de denúncia caluniosa.
Ora, tal como consta do artigo 365º, nº 1 do Código Penal, comete tal crime "quem por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento".
São, assim, elementos objectivos do mencionado tipo de crime:
A apresentação de denúncia de factos que constituam crime;
A identificação da pessoa que os terá praticado;
A falsidade dos factos objecto da denúncia.
Relativamente ao conteúdo da denúncia que vem vertida no requerimento de instrução, não se encontra factualizada situação que possa constituir a denúncia de factos integradores de crime.
Que crime foi, com efeito, denunciado em face de tal descrição. Crime de dano? Crime de usurpação de coisa imóvel? Não é possível responder a tal questão posto que não vêm descritos elementos factuais que os possam integrar, convindo lembrar que a simples ocupação de propriedade alheia sem o uso de violência ou ameaça com mal importante, ou sem dano específico em alguma das suas partes componentes não constitui crime.
Logo, o recorrente não factualizou no seu requerimento de instrução a ocorrência de denúncia de factos que constituem crime, o que era indispensável desde logo para a imputação objectiva do crime de denúncia caluniosa.
Mas mais. Também não factualiza a situação concreta de que deriva a falsidade do conteúdo da denúncia, ou seja, não alega que seja o proprietário ou que por outra razão o legítimo detentor do prédio que terá sido invadido, nem sequer que não o invadiu. Em suma, não descreve a factualidade que em contraponto da denunciada será a que corresponde à verdade.
Também por omissão deste elemento objectivo do tipo de crime estaria vedada a possibilidade de efectuar a imputação criminal em causa.
Em síntese, o requerimento de instrução começa por não descrever factos objectivos concretos que possibilitam a imputação criminal que parece pretender efectuar e não vislumbramos pressuposto mais básico da responsabilidade penal.
A exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141).
Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição.
Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução (cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005).
Ao contrário do recorrente não se vislumbra neste entendimento coincidente com o expresso no despacho recorrido qualquer interpretação violadora da constituição. Antes pelo contrário a necessidade de rejeitar requerimento de instrução que não descreva factos concretos praticados por pessoa determinada é decorrência da própria constituição e dos direitos fundamentais que consigna em matéria de processo penal, como resulta do antes exposto.
E nenhum obstáculo ao direito de tutela efectiva se pode vislumbrar neste entendimento, posto que se limita a exigir ao assistente a descrição dos factos integradores do crime que imputa (tal como, aliás, ao Ministério Público) o que não se configura como exigência desproporcionada, antes estritamente indispensável para salvaguarda do direito de defesa igualmente objecto de consagração constitucional.
Aliás o que se configura é que o assistente denegou a si próprio esse direito não descrevendo no requerimento de instrução factos integradores do crime ou crimes que pretendia imputar.
E esta falta de descrição é condição suficiente para a rejeição do requerimento de instrução tal com foi decidido em primeira instância.
Ainda assim não deixará de se anotar que igualmente se exigia que o requerimento de instrução indicasse expressamente o número de crimes cometidos, especificasse o crime cometido sem imputações criminais subsidiárias e concluísse pelo correspondente pedido expresso de pronúncia da arguida que nunca é indicada como tal, embora não ofereça dúvidas qual seja a sua identidade.
Não existe, pois, motivo para censurar a decisão recorrida, devendo ser mantida.
***
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, mantendo a decisão recorrida.
Pelo seu decaimento vai o recorrente condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em quatro unidades de conta.
***
Coimbra,
(Texto processado e integralmente revisto pela relatora).

_______________________________
(Maria Pilar Pereira de Oliveira)

_______________________________
(José Eduardo Fernandes Martins)