Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
878/10.0TMCBR-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 130º E 221º DO CPC
Sumário: I - Apresentado, por advogado, após a oposição do requerido, requerimento quanto à litigância de má fé deste, releva o art 221º do CPC, pelo que o tribunal não tem de o notificar, autónoma e especificadamente, o que se consubstanciaria como uma duplicação, logo, desnecessária e proibida pelos princípios que subjazem aquele normativo: auto responsabilidade, celeridade e economia de meios, e pelo princípio da limitação dos atos – artº 130º.

II -A condenação como litigante de má fé visa combater a degradação dos padrões de atuação processual e impor uma litigância leal e de boa fé, com convencimento, por banda do litigante, de que a razão lhe assiste.

III - Quem alega factos pessoais, com influência na decisão da causa, que se provou serem falsos, e sem que tenha provado justificação desculpável, tem de ser condenado como litigante de má fé.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

S (…) suscitou contra P (…) incidente de incumprimento das responsabilidades parentais  relativamente ao filho menor de ambos SJ (…).

Invocou:

A falta de pagamento da pensão de alimentos e de despesas médicas, medicamentosas e escolares do filho vencidas após Fevereiro de 2015, inclusive, tudo no montante, à data da instauração do incidente, de 1.248,47 euros.

Notificado o requerido, disse:

Inexistir incumprimento  no que respeita às pensões de alimentos vencidas entre Fevereiro de 2015 e Agosto de 2016.

O valor que pagou por conta das despesas foi de 666 euros, e não 66 euros como indica a requerente, e que várias despesas reclamadas não são devidas, por não ter dado o seu acordo às atividades respetivas, pelo que apenas é devedor do valor de 58,696 euros.

A fls. 129-130 a requerente veio requer a condenação do requerido, como litigante de má fé, em multa.

Na conferência de pais, estes declararam que apenas se encontrava em falta a pensão de alimentos vencida em Março e Abril de 2016, no valor de 200 euros.

Quanto às despesas inexistiu acordo.

A fls. 134-135 o requerido veio demonstrar o pagamento daqueles 200 euros.

A fls. 153 e sgs veio a requerente reclamar o pagamento de 137,67 euros relativos a despesas realizadas entre Outubro e Dezembro de 2016.

2.

Seguidamente foi proferida decisão quanto ao incidente com o seguinte teor:

«Pelo exposto, julgo o presente incidente parcialmente procedente, condenando o requerido, P (…), a pagar à requerente, S (…), as seguintes quantias devidas ao menor SJ (…):

- 235 euros de despesas com o Yoga;

- 140 euros de despesas com a natação;

- 120 euros de despesas com a música;

- 182,50 euros de despesa de saúde excepcional;

- 37,20 euros de material escolar;

- 241 euros de natação e musicoterapia.

Condeno o requerido como litigante de má fé, em 2 (duas) unidades de conta de multa.»

3.

Inconformado recorreu o requerido.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Do que resulta das alegações e provas apresentadas, não é sério imputar ao apelante a título de dolo ou negligência grave, a conduta descrita na douta sentença aqui apelada. Seria preciso, para tal, que se tivesse por preenchido um dos dois requisitos referidos e presentes no normativo legal do art.º 542º do CPC.

2. A norma em apreço nunca poderia ter sido convocada se fosse respeitada a sua teleologia, que impõe, para que se conclua pela litigância de má fé por alguma das partes no processo, a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta: tal pode ter ocorrido por a parte se encontrar, embora incorretamente, convencida da sua razão ou de que os factos se verificaram da forma que os descreve, hipótese em que inexistirá má fé. Impõe-se, pois, para que haja litigância de má fé, que a parte, ao deduzir a sua pretensão ou oposição infundamentada ou ao afirmar factos não ocorridos, soubesse da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição.

3. A prévia audição dos interessados, em termos de estes poderem alegar o que tiverem por conveniente sobre uma anunciada e previsível sanção, condiciona a condenação por litigância de má fé, revelando-se indispensável ao exercício do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, com vista ao cabal desempenho do direito de defesa, de forma a evitar decisões surpresa, sob pena da pratica de uma nulidade, com reflexos na decisão da causa.

4. A não observância do principio do contraditório acarreta a violação direta da Lei fundamental e do principio de acesso aos Tribunais, principio este com assento no art.º 20º da CRP.

5. Ao não ter sido dada ao apelante, autónoma e especificadamente, por banda do tribunal recorrido, a oportunidade de aquele se pronunciar sobre a intenção de ser sancionado como litigante de má fé e consequente multa, incorreu a douta sentença recorrida na nulidade prevista no art.º 195º, nº1, conjugado com os art.º 3.º, n.º 3 e 4.º, todos do CPC.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e  639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são, lógica e metodologicamente, as seguintes:

1ª-  Nulidade do processado por preterição do contraditório.

2ª- Inexistência de má fé do requerido.

5.

São os seguintes os factos dados como provados:

1. SJ (…) nasceu em 21/6/2006 e é filho da requerente e do requerido.

2. Por sentença de 15/1/2013 foi homologado o seguinte regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais : o SJ (…) ficou a residir com a mãe, ficando   exercício das responsabilidades parentais nas questões de particular importância entregue a ambos os progenitores em comum. Em termos alimentares ficou estipulado que o pai pagava mensalmente a quantia de 100 euros, actualizada anualmente por indexação à taxa anual de inflação, acrescida de metade das despesas escolares de início do ano (livros e material escolar), bem como metade das despesas de saúde excepcionais e metade das despesas com as actividades extracurriculares acordadas por ambos, mediante exibição e cópia dos respectivos recibos.

3. A requerente pagou as seguintes despesas com medicamentos do SJ (…)

- em 26/2/2015, 34,95 euros ; - em 10/2/2015, 15,30 euros;  - em 23/3/2015, 16,01 euros; - em 9/3/2015, 13,38 euros ; - em 7/3/2015, 0,98 euros; - em Abril de 2015, 4,96 euros (doc.12); - em Abril de 2015, 15 euros (1º doc.13); - em Abril de 2015, 19,38 euros (2º doc. 13); - em 20/5/2015, 29.68 euros - em 21/5/2015, 4,82 euros - em 18/5/2015, 10,95 euros - em 16/5/2015, 5,95 euros - em 16/6/2015, 15,30 euros - em 9/6/2015, 5,55 euros - em 8/6/2015, 4,96 euros - em 7/7/2015, 15,30 euros - em 8/7/2015, 16,78 euros - em 8/7/2015, 0,89 euros - em 10/7/2015, 16,69 euros - em 23/7/2015, 19,90 euros - em 31/7/2015, 4,96 euros - em 5/8/2015, 12,37 euros - em 22/8/2015, 8,95 euros - em 26/9/2015, 25,28 euros - em 16/10/2015, 3,41 euros - em 30/10/2015, 13,39 euros - em 22/11/2015, 14,23 euros - em 27/12/2015, 3,80 euros - em 30/12/2015, 7,40 euros - em 30/12/2015, 6,10 euros - em 6/1/2016, 0,98 euros - em 22/1/2016, 4 euros - em 6/1/2016, 12,92 euros - em 2/2/2016, 14,15 euros - em 12/2/2016, 0,98 euros - em 26/2/2016, 12,06 euros - em 15/3/2016, 26,05 euros - em 3/4/2016, 0,68 euros - em 5/4/2016, 32,72 euros - em 3/4/2016, 21,15 euros - em 24/4/2016, 3,15 euros - em 22/4/2016, 10,32 euros - em 26/4/2016, 1,49 euros - em 3/5/2016, 25,88 euros - em 13/5/2016, 6,18 euros - em 14/5/2016, 12,35 euros - em 26/5/2016, 0,98 euros - em 30/6/2016, 40,55 euros - em 30/6/2016, 20,80 euros - em 30/11/2016, 54,88 euros - em 2/11/2016, 1,66 euros

4. A requerente pagou as seguintes sessões de yoga do SJ (…) :

- 25 euros relativamente a Fevereiro de 2015 ; - 25 euros relativamente a Março de 2015 ; - 35 euros relativamente a Novembro de 2015 ; - 25 euros relativamente a Dezembro de 2015 ; - 25 euros relativamente a Janeiro de 2016 ; - 25 euros relativamente a Março de 2016 ; - 25 euros relativamente a Abril de 2016 ; - 25 euros relativamente a Maio de 2016 ; - 25 euros relativamente a Junho de 2016 .

5. A requerente pagou as seguintes despesas de transporte do Samuel da escola para terapia/actividade :

- 25 euros, vencidos em 2/3/2015; - 25 euros vencidos em 9/3/2015 - 25 euros vencidos em 8/4/2015 - 25 euros vencidos em 15/5/2015 - 25 euros vencidos em 29/6/2015 - 25 euros relativos a Julho de 2015 - 25 euros relativos a Setembro de 2015 - 25 euros relativos a Outubro de 2015 - 25 euros relativos a Novembro de 2015 - 25 euros relativos a Dezembro de 2015 - 25 euros relativos a Janeiro de 2016 - 25 euros relativos a Fevereiro de 2016 - 25 euros relativos a Abril de 2016 - 25 euros relativos a Setembro de 2015 - 25 euros, vencidos em 7/11/2016; - 25 euros, vencidos em 9/12/2016.

6. A requerente pagou as seguintes despesas de CAF/ATL ao CASPAE:

- 23,50 euros relativos a Março de 2015; - 35,70 euros relativos a Abril de 2015 - 59,10 euros relativos a Maio de 2015, incluindo 25 euros de natação; - 39,10 euros relativos a Junho de 2015, incluindo 25 euros de natação; - 68,10 euros relativos a Junho e Julho de 2015; - 18 euros relativos a quota e seguro de responsabilidade civil; - 29,70 euros relativos a Agosto de 2015; - 102 euros relativos a Outubro de 2015, incluindo 30 euros de natação; - 72 euros relativos a Novembro de 2015, incluindo 30 euros de natação; - 91,60 euros relativos a Dezembro de 2015, incluindo 30 euros de natação; - 72 euros relativos a Janeiro de 2016; - 81,60 euros relativos a Fevereiro de 2016; - 72 euros relativos a Março de 2016; - 72 euros relativos a Abril de 2016; - 42 euros vencidos em 13/5/2016; - 22,40 euros vencidos em 12/6/2016; - 47,60 euros vencidos em 12/6/2016.

7. A requerente pagou as seguintes aulas de música do SJ (…)

- 60 euros, vencidos em 3/2/2015; - 60 euros, vencidos em 25/2/2015.

8. Em 30/7/2015 a requerente despendeu 182,50 euros em Alarma Enuresis + 4 slips Rodger, que lhe foi receitado pela médica do Centro de Saúde.

9. A requerente adquiriu o seguinte material escolar para o Samuel:

- 23,55 euros em 12/9/2015; -10,40 euros em 26/8/2015; - 3,50 euros em 21/3/2016; - 3,25 euros em 22/9/2016.

10. A requerente pagou à Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo de Coimbra, onde o SJ (…)l frequenta natação e musicoterapia:

- 72 euros, vencidos em 11/11/2016; - 72 euros, vencidos em 8/11/2016; - 97 euros, vencidos em 7/12/2016.

11. Por conta das despesas do filho descritas nos pontos anteriores, o requerido pagou à requerente 378,67 euros .

12. O requerido concordou expressamente com a frequência, pelo SJ (…), do Yoga, da natação e da música.

13. No apenso E, em que a ora requerente suscitou o incumprimento do requerido em termos alimentares, aquela reclamou o pagamento de várias despesas de CAF/ATL ao CASPAE, de material e livros escolares, de medicamentos, de sessões de yoga, de transporte, de música do filho, o ora requerido foi notificado em quatro ocasiões e nunca invocou não ter dado o seu acordo à realização de tais despesas.

14. A Segurança Social descontou no subsídio de desemprego que pagou ao requerido 100 euros por mês desde Maio de 2014 inclusive, por conta dos alimentos vincendos, acrescidos, a partir de Março de 2015 inclusive, de 50 euros por conta dos alimentos vencidos, descontos que perduraram até Janeiro de 2016 inclusive .

15. A partir de Abril de 2016 inclusive e até Novembro do mesmo ano, o desconto dos alimentos vincendos foi efectuado pela entidade patronal do requerido no vencimento deste .

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

O princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, e, na estrita perspetiva das partes, quiçá o mais relevante.

Na verdade: «o processo civil reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars)…esta estruturação dialéctica ou polémica do processo tira partido do contraste de interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões…para o esclarecimento da verdade» - Manuel de Andrade, Noções Elementares, 1979, p.379.

 A  sua consagração legal  mais evidente está plasmada no artº 3º nº3 do CPC:

«O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

Efetivamente:

«O princípio do contraditório, previsto no art. 3º, nº 3, do NCPC, consiste numa garantia de participação efectiva que é concedida à parte contrária para se pronunciar sobre o desenvolvimento de todo o litígio, permitindo-se o exercício do seu direito de defesa com a exposição das suas razões e a discussão acerca da matéria que considera relevante para se alcançar a justa composição do litígio e a efectivação em juízo dos seus direitos.» - Ac. do STJ de 22.02.2017, p. 2325/15.1T8OAZ.P1.S1 in dgsi.pt.

(sublinhado nosso)

Este princípio  emerge não apenas para as decisões sobre matéria de direito ou de facto, como, mutatis mutandis, para a  prova com base na qual tais decisões são proferidas.

Aqui dispõe o artº 415º do CPC, o qual, sob a epígrafe “princípio da audiência contraditória”, estatui no seu nº1:

«Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas»

6.1.2.

Relevante para esta  questão é a asserção vertida na decisão e que o recorrente não contesta, a saber:

«A fls. 129-130 a requerente veio requerer a condenação do requerido como litigante de má fé, em multa.

O requerido não se pronunciou.»

Não obstante assim ser, o recorrente pugna que ele deveria ter sido notificado «autónoma e especificadamente, por banda do tribunal recorrido, (dando-lhe) a oportunidade de …se pronunciar sobre a intenção de ser sancionado como litigante de má fé…»

Mas não lhe assiste razão.

O requerimento aludido consubstancia um requerimento autónomo da mãe, introduzido em juízo na sequência das alegações  pela sua ilustre advogada.

Logo, emerge aqui, mutatis mutandis e não obstante tal  ilustre advogada assumir o estatuto de patrona, o disposto no artº 221º  nº1 do CPC :

« Nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do réu ao autor são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte, no respetivo domicílio profissional, nos termos do artigo 255.º.».

Ademais, em tal requerimento, a requerente, contrariando o alegado pelo pai, entende que ele está a distorcer a verdade dos factos – vg. quanto à alegada sobreposição/cumulação dos descontos por banda da SS e da sua entidade empregadora  e  quanto à sua anuência  às  despesas apresentadas, que agora nega – e, unicamente, entende que ele está a agir de má fé, impetrando a sua condenação a este título.

Por conseguinte, e por um lado, o tribunal não estava vinculado a operar uma autónoma e dupla notificação, pois que tal violaria  princípio da limitação dos atos -  artº 130º do CPC – bem como o princípio da autorresponsabilidade das partes e o fito da celeridade e da economia de meios que está ínsito e é pretendido por aquele  segmento normativo e este preceito.

E, por banda outra, dada a singularidade, autonomia e singeleza do assunto versado em tal requerimento, é suposto - e, em todo o caso, é exigível -, que o requerido se apercebesse e interiorizasse o seu conteúdo, e, assim, se bem lhe aprouvesse, exercesse o seu direito ao contraditório.

Até porque, tendo tal requerimento sido apresentado em 24.10.2016, a conferência de pais realizou-se no dia 15.11. seguinte, diligência na qual poderia alegar quanto à má fé.

Ora nem na sequência da notificação via mandatário, nem na conferência, nem posteriormente, ele se defendeu quanto a tal questão.

Nesta conformidade, e mesmo que fosse caso de notificação pelo tribunal – que não é, como se viu -, a omissão da mesma constituiria uma nulidade processual que estaria sanada pela inação do requerido.

Pois que ele não a arguiu na conferência de pais, em que esteve presente e na qual é suposto que tenha tido conhecimento da mesma, nem, inclusive, repete-se, nas diligências e atos posteriores –  cfr. artºs 195º e 199º nº1 do CPC.

6.2.

Segunda questão.

6.2.1.

Estatui o art. 542° do CPC:

2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

Na versão anterior às alterações de 95/96, era entendimento constante da jurisprudência que só uma conduta dolosa daria lugar à condenação por má fé. Entendia-se, pois, que não bastava a negligência mesmo grosseira, exigindo-se uma conduta essencialmente dolosa.

Efetivamente,  sufragava-se que  o requisito essencial da má fé era: «a consciência de não ter razão»,  pelo que o então artº 452º do CPC não punia a culpa grave, mas apenas os comportamentos pautados pelo dolo, pois que, exigindo a lei a má fé,  «quis manifestamente afastar a culpa, mesmo no grau mais elevado»  - Alberto dos Reis, no CPC anotado, Vol. 2°, pág. 263.

Porém, com a atual redação deste preceito legal, passaram a ser punidas não só as condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes.

Este alargamento « …é, com certeza  fruto da degradação dos padrões de atuação processual e do uso dos respetivos instrumentos,… a par do realce dado ao princípio da  cooperação e aos deveres de boa fé e de lealdade processuais…» - António Geraldes, em Temas Judiciários Vol. I, pág. 313.

Sendo que, inclusive, e como se plasma no preâmbulo do DL 329-A/95 de 12.12 que deu nova redação ao então artº 456º do CPC - hoje 542º -  que alargou o âmbito de aplicação do instituto : «Como reflexo do princípio da cooperação e dos deveres que lhe são inerentes, permite-se, sem quaisquer limitações, a condenação como litigante de má fé da própria parte vencedora, desde que o seu comportamento processual preencha alguma das previsões contidas no nº2 do artº 456º…»

Tal alargamento teve, naturalmente, em vista, restringir os casos de litigância  maliciosa ou  altamente temerária, pretendendo incutir nas partes a necessidade de uma sã atitude processual, pautada e norteada por uma atuação o mais clara e linear possível, sem subterfúgios, truques e mentiras.

E sendo certo que a jurisprudência era amplamente magnânima na condenação a tal título, criou-se uma convicção de impunidade que levava a colocar ou a contestar em juízo casos de total insustentabilidade, ou, pior, distorcidos ou falseados na sua génese factual.

Com os inerentes prejuízos para a imagem do sistema da justiça e, outrossim, para os interesses dos próprios sujeitos processuais vítimas de tal atuação.

Importa, pois, na sequência do atual desígnio legislativo, impor uma cultura de rigor nesta matéria, com os inerentes benefícios, a todos os títulos e níveis, dai advenientes.

Não obstante, há que apreciar e decidir com as cautelas e precauções necessárias.

E devendo os tribunais serem prudentes na condenação a este título, porque tal implica não apenas uma censura e afetação económico-financeira a nível processual, como um desmerecimento a nível pessoal marcante e inquinador da honestidade e probidade presumivelmente insertas na esfera jurídica pessoal do normal cidadão - cfr. Ac. do STJ de 15.10.2002, dgsi.pt,p.02A2185.

Assim, para a condenação como litigante de má fé não basta a simples impugnação per positionem da versão de uma das partes sempre que a versão oposta à alegada seja provada.

Nem pode confundir-se com a manifesta improcedência da pretensão ou oposição deduzida, pois que, como se viu, a própria parte vencedora pode ser condenada a este título.

O fundamento ético do instituto exige que se conclua por um desrespeito pelo tribunal, pelo processo e pela justiça, imputável subjetivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata) - Ac. da RPde 20.10.2009, p. 30010-A/1995.P1.

6.2.2.

No caso vertente a julgadora condenou o requerido invocando o seguinte discurso argumentativo:

« No caso em apreço, temos que o requerido afirmou que a requerente recebeu, em determinados meses, os alimentos em duplicado, por terem  sido efectuados descontos simultaneamente pela Segurança Social e pela sua entidade empregadora .

Ora, tal como consta da factualidade apurada, a Segurança Social efectuou descontos desde Maio de 2014 até Janeiro de 2016 inclusive; e a entidade patronal do requerido apenas os realizou a partir de Abril de 2016 inclusive !

Isto é, o cabeça de casal efectivamente sabia que esta sua alegação não tinha qualquer fundamento, pois os descontos foram levados a cabo em quantias a si devidas.

Acresce que o requerido negou ter acordado com a requerente a prática pelo filho do Yoga, da natação e da música, o que sabia não corresponder à verdade .

Assim, a sua conduta foi processualmente reprovável, devendo ser penalizada em conformidade com o disposto no artigo 542º do C.P.C..»

Já o recorrente entende que a norma legal atinente exige:

«a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta: tal pode ter ocorrido por a parte se encontrar, embora incorretamente, convencida da sua razão ou de que os factos se verificaram da forma que os descreve…»,

Em tese assim é.

Mas, no caso vertente, os requisitos legais encontram-se presentes.

Na verdade, e como bem aduz a Srª Juíza, o pai alegou factos – duplicação de descontos e não anuência quanto a certas despesas -  que, a provarem-se, influenciariam o desfecho da causa.

E influenciariam em seu benefício e em prejuízo da requerida e do filho de ambos.

Tanto assim que ele formulou as suas contas com base em tais factos.

Ora provou-se que eles eram falsos, ou, noutra nuance  menos incisiva, não correspondiam à verdade.

Acresce que não se pode concluir que tal alegação se verificou por erro desculpável do pai.

Nem ele tal alegou e provou, nem a singeleza e objetividade dos factos tal inculca.

Aliás, sendo tais factos de cariz pessoal e que o requerido conhecia – ou, o que é o qb., sendo-lhe exigível que conhecesse –, tal juízo de desculpabilidade sai, acrescidamente, frustrado.

Ora:

«Quem nega o conhecimento de facto pessoal -máxime se determinante para a (im)procedência da ação -, desrespeita a contraparte, o tribunal, e faz uso abusivo do processo, pelo que deve ser condenado como litigante de má fé» - Ac. da RC de  2015.01.20, p. 15/11.3TBFND.C1 in dgsi.pt, subscrito por este relator e pelo aqui 1º ajunto.

Improcede o recurso.

7.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - Apresentado, por advogado, após a oposição do requerido, requerimento quanto à litigância de má fé deste, releva o art 221º do CPC, pelo que o tribunal não tem de o notificar, autónoma e especificadamente, o que se consubstanciaria como uma duplicação, logo, desnecessária e proibida pelos princípios que subjazem aquele normativo: auto responsabilidade, celeridade e economia de meios, e pelo princípio da limitação dos atos – artº 130º.

II -A condenação como litigante de má fé visa combater a degradação dos padrões de atuação processual e impor uma litigância leal e de boa fé, com convencimento, por banda do litigante, de que a razão lhe assiste.

III - Quem alega factos pessoais, com influência na decisão da causa, que se provou serem falsos, e sem que tenha provado justificação desculpável, tem de ser condenado como litigante de má fé.

8.

Deliberação.

Termos em que se julga o recurso improcedente e, consequentemente, se confirma a decisão.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2017.06.28.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos