Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/19.0PECTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: INQUÉRITO
INSTRUÇÃO
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
DECLARAÇÕES DE CO-ARGUIDO
JULGAMENTO
LEITURA DE DECLARAÇÕES
AUSÊNCIA DO CO-ARGUIDO DECLARANTE
CONTRADITÓRIO
VALIDADE PROBATÓRIA
PROVA PROIBIDA
NOVA SENTENÇA
Data do Acordão: 07/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 141.º, N.º 4, AL. B), 345.º, N.º 4, E 357.º, N.º 1, AL. B), DO CPP; ART. 32.º, N.º 5, DA CRP
Sumário: I – As declarações de co-arguido prestadas, perante a autoridade judiciária, no decurso do inquérito, com a assistência de defensor, tendo aquele sido, então, informado nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do art. 141.º do CPP, e lidas em sede de audiência de julgamento (art. 357.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPP), o qual decorreu sem a presença do mesmo, podem, quanto aos factos incriminatórios que sobre si impendem, ser objecto de valoração, sujeita ao princípio da livre apreciação, pelo tribunal.

II – Contudo, por incompatibilidade com o exercício pleno do contraditório, não podem ser valoradas na parte em que revelem um prejuízo para os demais co-arguidos, ou seja, quando estes ficam privados, pela ausência em julgamento do co-arguido/declarante, do direito de, com as mesmas, o confrontarem.

III – Ao agir deste modo, o tribunal incorre em valoração proibida de prova, cuja consequência, caso a fundamentação da convicção se funde também noutros meios de prova, é a prolação de nova sentença no tribunal da 1.ª instância, expurgada que seja a referida prova legalmente não permitida.

Decisão Texto Integral:





Acordam os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório                                                                                                           

1. No âmbito do processo comum colectivo n.º 4/19.0PECTB do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Central Criminal de Castelo Branco - Juiz 1, por acórdão proferido em 12/01/2021, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

“3.1- Absolve A., J., D. da prática, em co-autoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-Lei 15/93 de 22/01 por referência à tabela I-A anexa ao diploma;

3.2- Absolve o arguido H. da prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º do Dec.-Lei nº 15/93, de 22-01.

3.3- Condena os arguidos A., J. e D. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, do Dec.-Lei nº 15/93, de 22-01 com referência às tabelas I-A e I-C anexa ao referido diploma, nos seguintes termos: --

a) A., como reincidente, pena de 4 (quatro) anos de prisão;

b) J., pena de 3 (três) anos de prisão;

c) D., pena de 2 (dois) e 6 (seis) anos de prisão;

3.4- Condena o arguido H., pela prática de um crime de consumo, p. e p. pelo art. 40º, nº 2, do Dec.-Lei nº 15/93, de 22-01, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros).

3.5- Ao abrigo do disposto nos art.os 50º e 53º do C.Penal, suspende-se a execução das penas de prisão ora decretadas quanto aos arguidos J. e D. por igual período de tempo - com regime de prova relativamente ao arguido J., onde deve incluir-se o tratamento que se revelar necessário à problemática aditiva e acompanhamento médico/psicológio que se revelar adequado.

3.6- Condenam-se os arguidos nas custas do processo, fixando em 2 Uc´s a taxa de justiça para cada um dos arguidos.

3.7- Julga-se improcedente o pedido de perda de vantagens, nos termos supra expostos.

 […]

*

2. Inconformado com a decisão recorreu o arguido A., formulando as seguintes conclusões:

“a) O Acórdão recorrido condenou o Arguido pela prática de um crime de tráfico de Estupefacientes P. P. pelo artigo 25º;

b) Fundamentou a sua decisão na matéria que deu como provada e nas convicções que para si resultaram da produção da prova;

c) O douto Acórdão Recorrido, relativamente aos factos provados, assentou, basicamente, nas declarações do arguido D. em sede de primeiro Interrogatório Judicial;

d) Porém, relativamente a este arguido não foi possível exercer o contraditório, porquanto, o mesmo faltou à audiência de julgamento;

e) Na data do referido primeiro interrogatório judicial do Arguido D., o Recorrente não era Arguido nos autos e, consequentemente, não esteve representado por defensor ou Mandatário na Diligência Judicial sub judice.

f) Consequentemente, o depoimento do coarguido D., apesar de lido em sede de audiência de julgamento, não pode ser valorado como meio de prova quanto ao Recorrente, porquanto, não foi possível exercer o direito ao contraditório.

g) Relativamente às respostas dadas à matéria de facto, o Meritíssima Juiz “a quo”, na perspectiva do aqui Recorrente e, com o devido respeito, respondeu erradamente aos factos considerados como provados n.º 1 a 24, 32, 33 e 40 a 42.

h) O Artigo 32º da CRP consagra o chamado direito ao contraditório. E esse direito não é, meramente, formal.

i) O processo penal português comunga dos princípios do justo processo, consubstanciados normativamente na Constituição da República Portuguesa, na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no Código de Processo Penal e legislação avulsa.

j) A epistemologia do processo penal é de natureza cognitiva, instruído com as provas recolhidas de modo lícito, transparente, leal, acautelando sempre o direito de defesa, assegurando sempre o contraditório, ainda que sujeito a um procedimento especial, como é o caso de testemunhas protegidas ou agentes encobertos.

l) A impossibilidade de contraditar, de exercer o contraditório, através do Mandatário, é absolutamente ilegal e como tal não pode ser aceite pelo tribunal.

m) O direito de defesa é "sagrado", pilar fundamental do processo equitativo, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só podendo ser limitado por lei expressa.

n) Assim sendo, a fundamentação da matéria de facto da douta sentença é ilegal por violação do artigo 32º da CRP.

o) Acresce que, se retirarmos as declarações do Arguido D., não olvidando que ele refere que “desconfiava” que era para o N., não existe qualquer prova directa de que o ora Recorrente praticou os factos pelos que foi condenado.

p) A douta decisão faz tábua rasa do depoimento das testemunhas e outros meios de prova constantes nos autos e apenas se funda nas declarações de um coarguido que não foi possível contraditar.

q) Na verdade, em sede de Audiência de Julgamento, e após audição da prova gravada, não se vislumbra qual o fundamento para a conclusão debitada na douta Sentença.

r) Ou seja, dos depoimentos não se pode retirar, com a certeza necessária, a possibilidade de questionar o princípio da presunção de inocência.

s) Em suma, interpretação conferida pelo Meritíssimo Juiz "a quo” ao art. 127° do C.P.P., ofende o "princípio da presunção da inocência" do Recorrente do art. 32°. n°. 2 da C.R.P., sendo este prejudicado em termos jurídico penais pela valoração errada de declarações que conforme foi acima defendido não podem sustentar a base de uma condenação.

t) Alterando-se a resposta à matéria de factos nos termos constantes da conclusão precedente, resulta claro que o Arguido deverá ser absolvido da prática do crime pelo que foi condenado e, consequentemente do pedido de Indemnização Cível.

u) Ou seja, a prova produzida leva-nos necessariamente a conclusões diferentes das extraídas pelo Acórdão Recorrido.

v) A prova produzida quanto ao Arguido é manifestamente insuficiente;

x) Conclui-se pois que a Sentença Recorrida merece, nos termos do vertido nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 412º do CPC, ser censurado por ser manifesto que as provas produzidas impõem decisão diversa da Recorrida.

z) Para concluir, a Sentença Recorrida deve ser revogada e substituída por outra que aplique correctamente o direito aos factos apurados, nos termos supra expendidos.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, em consequência, revogada a Sentença Recorrida, que deve ser substituído por outro que decidida em conformidade com a prova produzida e junta aos Autos.”


*

3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

4. Em resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu:

“1. Alega o recorrente que “a fundamentação da matéria de facto da douta sentença é ilegal por violação do artº 32º da CRP”, assentando este seu entendimento de que foi violado o princípio do contraditório nacircunstânciade o Tribunalaquo ter formadoasuaconvicção para a condenação, exclusivamente, na versão do co-arguido D. apresentada aquando do depoimento prestado em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, versão essa que o recorrente não pôde contraditar, nem na altura de tal interrogatório uma vez que, então, não era arguido, nem posteriormente pois que não esteve presente na audiência de discussão e julgamento.

2. Porém, quer arguido ora recorrente, quer o seus Ilustres Advogados conheciam, desde logo a partir do momento em que foram notificados do despacho de acusação, a versão dos factos apresentada pelo co-arguido D., não podendo vir agora invocar o seu desconhecimento e com isso a postergação de garantias de defesa. Não tendo reagido ao despacho de acusação conformou-se com a mesma.

3. Do mesmo modo, quanto à falta do arguido à audiência de discussão e julgamento, e alegada impossibilidade de exercício do contraditório daí decorrente, temos que o tribunal a quo entendeu, ancorado no disposto no nº 2, do artº 333º do Código de Processo Penal, e com os fundamentos exarados em acta (cfr. acta de audiência de julgamento de 04.12.2021, a que corresponde a referência 32739828), que a audiência podia iniciar-se sem a sua presença.

4. Tal decisão do tribunal a quo mereceu a concordância do seu Ilustre Defensor, posto que à mesma não reagiu.

5. Acresce que nos termos do disposto no nº 3 do predito normativo (artº 333º) “No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312.º”.

6. Contudo, também aqui nada foi dito ou requerido pela defesa do recorrente, impondo-se a conclusão de que o Ilustre Advogado do recorrente entendeu não haver interesse, necessidade ou pertinência em que o arguido viesse exercer o seu direito a prestar declarações em qualquer momento após o início da audiência de discussão e julgamento e até ao seu encerramento. E, se assim foi, não se vê como pode vir agora orecorrente invocar a violação do princípio do contraditório ou de qualquer outro.

7. Falece ainda razão ao recorrente porquanto, como decorre da fundamentação da matéria de facto, para além das declarações do co-arguido D. o tribunal a quo a valorou ainda outras provas que, conjugada e criticamente apreciadas, levaram à condenação do recorrente.

8. De resto, o arguido em momento algum, prévio ao julgamento ou até aoencerramento deste, lançou mão de qualquer das faculdades /direitos que a lei processual penal prevê para reagir contra o que considera agora ter andado mal em qualquer das fases processuais e, não o tendo feito não se vislumbra que o possa agora fazer, sendo certo que não foi violado pelo douto acórdão que o arguido impugna o disposto no art.32º, ou outro preceito da Constituição da República Portuguesa, tendo o arguido sido condenado com base em provas legalmente produzidas, bastantes e adequadas.

9. Do mesmo modo que não violou o tribunal a quo o princípio do in dubio pro reo, já que, ante a prova produzida, e tal como se percebe pela leitura da fundamentação da matéria de facto, resulta evidente que não havia lugar à aplicação de tal princípio.

10. A prova existente nos autos foi convincente, não criando ao tribunal a quo, como não podia criar, qualquer dúvida que levasse o mesmo a socorrer-se do referido princípio, decidindo a favor do arguido.

11. Assim, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura, devendo, em consequência, ser negado provimento ao recurso interposto e mantido aquele nos seus precisos termos.

Sendo este o nosso entendimento, Vossas Excelências, porém, melhor decidirão e farão, como sempre, a habitual JUSTIÇA.”

5. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o visto, nos termos do art 416º, nº 2 do CPP.

6. Realizou-se a audiência, requerida nos termos do art 411º, nº 5 do CPP.

7. Cumpre decidir.


*

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço importa decidir se o tribunal a quo procedeu à valoração proibida de prova, concretamente no que respeita às declarações, prestadas nos termos e para os efeitos do artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do CPP, na parte em que o foram em prejuízo do co-arguido/recorrente.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do acórdão em crise - transcrição parcial:

2.1. Factos provados

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

 “2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA - Da acusação:

1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o inicio de 2019 até ao dia 16.07.2020 o arguido A. resolveu vender estupefacientes, nomeadamente cocaína e haxixe a consumidores que o procuravam para o efeito, quer directamente, quer através de outros indivíduos.

2. O arguido A., também para obter aquele produto estupefaciente, e de modo a impedir que fosse encontrado na posse do mesmo, utilizava outros indivíduos, em regra mais jovens para trazerem o produto estupefaciente, ora da cidade de Tomar, ora de Espanha e lho entregarem na sua residência.

3. O arguido informava os arguidos J. e D. onde se deviam dirigir, chegando a acompanhá-los.

4. Atento aquele propósito e organização já por si delineada, o arguido A. pelo menos por quatro vezes deu instruções para o arguido J. se dirigir a Tomar para ir buscar cocaína, tendo este solicitado o auxílio do arguido D..

5. Chegando o arguido A. a acompanhar os arguidos J. e D..

6. Desde pelo menos o início de Abril de 2019 até ao dia 05.03.2020, o arguido JM decidiu juntar-se ao propósito do arguido A. e vender produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína e canábis resina (haxixe), a diversos consumidores que para o efeito o procuravam.

7. O arguido D., em data não concretamente apurada, mas desde pelo menos meados de Novembro de 2019 até 05.03.2020, decidiu juntar-se ao propósito do arguido A., acedendo a fazer o transporte daquele e do arguido J., quando estes, conjuntamente, ou em separado, se dirigiam, quer a Tomar, quer a Espanha, para comprar produto estupefaciente, recebendo por cada viagem entre 150€ e 200€.

8. Em data não concretamente determinada, mas que se situa no decurso do mês Dezembro de 2019, o arguido A. informou o arguido J. que se deveria deslocar a local não concretamente apurado, em Espanha, buscar produto estupefaciente.

9. Após essa ordem, o arguido J. pediu o auxílio do arguido D., que acedeu ao seu pedido.

10. Assim, os arguidos J. e D. deslocaram-se no veículo de marca Opel, modelo Corsa de matrícula (…), propriedade deste último, que conduziu.

11. Chegados a uma localidade, não concretamente apurada em Espanha, enquanto o arguido D. esperou dentro do veículo supra mencionado, o arguido J. foi ter com pessoa não identificada que lhe entregou o produto estupefaciente.

12. Regressados a Castelo Branco, os arguidos dirigiram-se às proximidades da Praceta (…), e, enquanto o arguido D. aguardou dentro do veículo, o arguido J. foi encontrar-se com o arguido A., a quem entregou o produto estupefaciente.

13. Também no dia 17.01.2020, os arguidos J. e D. deslocaram-se a Tomar por determinação do arguido A., que os acompanhou.

14. Assim, os arguidos A., J. e D. deslocaram-se no veículo de marca Opel, modelo Corsa de matrícula (…), propriedade deste último, que conduziu.

15. Chegados a Tomar, os arguidos J. e A. foram buscar o produto estupefaciente, ficando o arguido D. a aguardar dentro do carro.

16. Chegados a Castelo Branco, os arguidos J. e D. foram deixar o arguido A. nas proximidades de sua casa.

17. Também no dia 31.01.2020, e por determinação do arguido A., os arguidos dirigiram-se a Tomar, no veículo Opel Corsa de matrícula (…), que o arguido D. conduziu.

18. Chegados a Tomar, o arguido D. aguardou dentro do seu veículo automóvel, enquanto o arguido J. foi encontrar-se com um individuo não identificado que lhe entregou o produto estupefaciente.

19. Nesta ocasião, assim que chegaram a Castelo Branco os arguidos J. e D., dirigiram-se às imediações da casa de A., tendo-lhe o arguido J. entregue o produto de estupefaciente no interior da sua casa.

20. No dia 4 de Março de 2020, mais uma vez o arguido A. deu instruções ao arguido J. de que se deveria dirigir a Tomar, para ir buscar cocaína.

21. Todavia, nesta ocasião o arguido A. alugou o veículo Nissan Pulsar, de matrícula (…), à empresa (…) para tal deslocação.

22. Após, o arguido A. entregou o veículo aos arguidos J. e D. que de imediato se dirigiram a Tomar.

23. Ali chegados, enquanto o arguido D. aguardou dentro do veículo, o arguido J. foi buscar 81,328 gramas de cocaína.

24. Em seguida, os arguidos dirigiram-se novamente a Castelo Branco, com o fito de entregar o produto estupefaciente ao arguido A..

25. Pelas 00 horas e 30 minutos do dia 05.03.2020 e porque agentes da Polícia de Segurança Pública vinham no seu encalço, os arguidos entraram no parque de estacionamento da Padaria do (…), na Zona Industrial de Castelo Branco, na tentativa de os despistar.

26. Porém, os agentes da Polícia de Segurança Pública aperceberam-se de tal e, quando se aproximaram do veículo, o arguido J. abriu a janela da frente do lado direito do veículo e atirou para a rua um saco de plástico contendo, no seu interior, parte da cocaína que haviam comprado e que foi imediatamente apreendida.

27. O arguido J. trazia consigo duas embalagens de cocaína, nomeadamente um plástico contendo 80,328gramas de cocaína (cloridrato) com 40,7% de pureza e suficiente para 163 doses e um plástico contendo 1,013gramas de cocaína (cloridrato) com 32,1% de pureza e suficiente para uma dose.

28. No dia e hora supramencionado o arguido J. tinha ainda na sua posse um telemóvel, de marca Apple, modelo Iphone de cor cinzenta;

29. Também no dia e hora supramencionados o arguido D. tinha na sua posse um telemóvel de marca Huawei, de cor preta;

30. No dia 05.03.2020, o arguido J. tinha ainda na sua posse, na sua residência, sita na Praceta (…), n.º (…), c/v Esq. Frt, Castelo Branco:

1. No quarto do arguido:

a. Uma balança de precisão, de cor cinza, sem marca;

b. Um telemóvel, de marca NOKIA, modelo 5130C, em razoável estado de conservação;

c. Um telemóvel, de marca LG, modelo, GS105, em mau estado de conservação;

d. Um telemóvel de marca Samsung, modeloSMJ30F/DSGSMH, de cor dourada;

e. Um telemóvel de marca Asus de cor preta;

f. 13 suportes de cartões SIM, 12 da operadora MEO e 1 da operadora OPTIMUS;

g. 6 embalagens de cartões SIM da marca MEO;

h. Um cartão de débito da Caixa Gerald e Depósitos emitido em nome de F.;

i. Uma pen drive, sem marca de cor azul; j. Um saco de plástico com vários recortes;

k. Um computador portátil de marca HP, G62-A10EP;

l. Um canivete, de marca café Quente e Frio, de cor azul; m. Um moinho de marca Grinder;

n. Um invólucro de plástico de brindes;

31. Também no dia 05.03.2020, o arguido D. tinha na sua posse, no interior do quarto onde residia, na Praceta (…), n.º (…), c/v Esq. Frt, Castelo Branco, um saco plástico com recortes.

32. Os arguidos J. e A. pagaram ao arguido D. entre 150€ e 200€ por cada uma das viagens supramencionadas.

33. Em execução do plano que gizou, o arguido A., no dia 12.01.2020, entre as 00h e as 00h e 20min, vendeu a H., nas proximidades da Escola (…), 8,587gramas de canábis resina, com 20% de pureza, suficiente para 34 doses, pelo montante de 100€.

34. Ainda no dia 12.01.2020, pelas 00h e 20min, a PSP interceptou o arguido H., na Urbanização (…), em Castelo Branco, na posse do supramencionado produto estupefaciente.

35. Também no decurso do mencionado plano, o arguido J., no dia 12.04.2019, pelas 03h e 32 na Rua da (…), nesta cidade, tinha na sua posse, para venda a terceiros, 35,516gramas de canábis com 38,1% de pureza, suficiente para 270 doses.

36. Naquela data e hora, o arguido, apercebendo-se da presença de agentes da PSP, encostou-se ao muro de uma vivenda ali existente com o número 13, escondendo nos arbustos um pacote de tabaco contendo o estupefaciente supra mencionado.

37. No dia 16.07.2020 o arguido A. tinha na sua posse no interior da sua residência sita na Praceta (…), (…), (…), nesta cidade:

1. No hall de entrada dentro de um tanque uma pochete de cor bordeaux, contendo:

a. Um telemóvel de marca Iphone, A1549 de cor dourada; b. Um telemóvel de marca Iphone;

2. No quarto do arguido:

a. Um documento único do automóvel n.24176295;

b. Um cartão SIM da marca MEO;

c. Um cartão de suporte de um SIM da marca MEO;

(…).


*

- Da discussão da causa e dos autos, com relevo para a decisão de mérito:

 1. Arguido A.:


*

 2. Arguido J.:

(…).


*

3. Arguido D.:

(…).


*

4. Arguido H.:

(…).

***

2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA - Da acusação:

(…).

2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

“O tribunal fundamentou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e a livre convicção dos julgadores, nos termos do preceituado no artº 127º do CPP e na prova documental e pericial junta aos autos.

O arguido J., nesta audiência de julgamento referiu que a droga que lhe foi apreendida era sua e do arguido D., para consumo dos dois; e que se deslocavam ambos a Tomar e a Espanha (depois de Penamacor) para a adquirir; negou qualquer instrução do arguido A. neste capítulo.

Contudo, em 1º interrogatório judicial de arguido detido, ocorrido a 05.03.2020, o arguido J. referiu que a droga (cocaína) que lhe foi apreendida não era sua, nem do D., não concretizando, porém, a quem pertencia.

Já o arguido D., em declarações no referido 1º interrogatório judicial de arguido detido afirmou que “não consumia nada disso”, apenas “uma ervita de vez em quando, aos fins de semana”; o seu objectivo era angariar algum dinheiro para conseguir trazer a filha para Castelo Branco; refere que o J. lha dava 150€ a 200€ por cada viagem; acompanhava o J. a Tomar, sabia que era droga, mas não sabia que tipo de droga era; o J. não tem carta, eu só levava o carro, deixava o carro estacionado ao pé do Bairro, eu nem saía do carro. Refere que uma vez foram num carro alugado, sendo que o J. já tinha as chaves deste.

Perguntado para quem era a droga que iam buscar respondeu desconfiar que era um indivíduo careca, de etnia cigana, com a alcunha de N., que estava sempre a ligar ao J.; quando chegavam deixava o J. à porta (do N.) e ele ia lá entregar o que tinha que entregar; o pagamento eu recebia (pela condução) era no final da viagem – referindo que fez 4 viagens a Tomar.

Ficou o Tribunal plenamente convencido da veracidade da versão apresentada por D., de que conduzia o carro transportando o J., que não tinha carta de condução, indo a Tomar buscar cocaína para entregar ao individuo que ligava ao J., o referido N..

O D. recebia em regra 150€ por viagem e o J. entrava num bairro de barracas (de ciganos) e trazia o estupefaciente, parando junto da casa do N. quando chegavam a Castelo Branco.

Não restaram dúvidas ao Tribunal que o mencionado “N.” era o arguido A., pessoa descrita pelo arguido D. e pela mãe do arguido J., o qual viu na companhia de seu filho algumas vezes, tendo o seu filho graves problemas de consumo de drogas, onde gastava avultadas quantias de dinheiro – como comprova a “escuta” em que a mãe do arguido J. conversa com o filho, totalmente desesperada pela situação vivenciada por este, pelas avultadas quantias de dinheiro, relativas a dívidas relacionadas com consumos de droga (cocaína) – cfr. sessão 20 do apenso B, 19.02.2020.

Acresce que na ocasião em que foi utilizado um carro alugado numa das viagens a Tomar, o aluguer foi efectuado pelo arguido A. (cfr, docs, fls. 322/325), afinal o dominus da situação descrita nos autos, já que os arguidos J. e D. paravam junto da residência deste quando regressavam das ditas viagens.

Em diligências levadas a cabo nos autos comprova-se que havia conhecimento, diálogo, convívio, entre o arguido A. e o arguido J. – relatórios de vigilância de 13.07.2019 e de 05.10.2019.

A realização das viagens levadas a cabo a Tomar foi apurada e atestada nos autos de visionamento realizados aos fotogramas solicitados à (…) e à (…) (fls. 571/589).

Como decorre do já antes mencionado pelo arguido D. (1º interrogatório judicial), foi igualmente confirmada a realização das viagens a Tomar e a Espanha, bem como a propriedade do produto estupefaciente ali adquirido, como sendo de A..

O Tribunal deu, assim, como provados os factos correspondestes à factualidade descrita, tendo presente a prova ora mencionada.

Acresce que os depoimentos prestados pelos Srs. Agentes da PSP contribuíram, também eles, para a prova dos factos sobre os quais depuseram.

Os agentes da PSP NR, DB descreveram de modo absolutamente claro os factos em que interveio o arguido J. ao encostar-se a um muro/sebe, onde vieram logo depois a encontrar um maço de tabaco contendo no seu interior 35,516 gr de canábis (suficiente para 270 doses).

O Chefe da PSP RF participou na detenção dos arguidos J. e D. no dia 05.03.2020, descrevendo os correspondentes factos dados como provados – 81 gr de cocaína na posse do arguido J. (164 doses), ao regressar de Tomar, conduzido pelo arguido D..

O arguido H. confirmou ter adquirido o produto estupefaciente que lhe foi apreendido no dia 12.01.2020 (8,587 gr de canábis, suficiente para 34 doses, pelo preço de 100€) ao arguido A..

Em suma, as declarações dos arguidos acima referidas, foram conjugadas com os depoimentos das testemunhas e demais prova dos autos, permitindo ao Tribunal alicerçar a firme convicção de que o arguido A. (o “N.”) era o dominus da relação estabelecida com o arguido J., fortemente dependente de drogas (entre elas, cocaína) e no consumo das quais gastava rios de dinheiro que sua mãe lhe ia dispensando (o que a “escuta” já mencionada bem esclarece), actuando o arguido D. como motorista, nas deslocações a Tomar ou a Espanha, para compra do estupefaciente, recebendo como contrapartida por cada viagem, em regra 150€.

Quanto ao arguido H. apenas se provou ter comprado ao arguido A. a quantidade de canábis referida (8,587 gr de canábis, suficiente para 34 doses, pelo preço de 100€).

Declarações e depoimentos, que foram conjugados com a prova pericial e documental dos autos, a saber:

Documental:
1- Auto de notícia de fls. 1;
2- 2- Auto de apreensão de fls. 3;
3- Fotografias de fls. 4, 5;
4- 4- Teste rápido de fls. 6;
5- 5- Objecto de fls. 7;
6- Relatórios e fotografias de fls. 43 a 46, 55 a 61;
7-  Fotografias de fls. 126;
8- Informação do registo de veículo de fls. 128;
9- 9- Auto de noticia de fls. 302;

10- Relatório de fls. 303, 304;

11- Auto de apreensão de fls. 318; 12- Teste rápido de fls. 319;

13- Auto de apreensão e fls. 320;

14- Informação e registo de veículo de fls. 321;

15- Documentos de aluguer de veículo de fls. 322 a 325;

16- Auto de apreensão de fls. 326;

17- Teste rápido de fls. 327;

18- Fotograma de localização da intercepção dos arguidos de fls. 328;

19- Fotografias de fls. 329 a 332;

20- Fotografias de fls. 333;

21- Auto de notícia por detenção de fls. 343 a 346;

22- Exame de pesquisa forense de fls. 484 a 488;

23- Informação da (…) de fls. 565;

24- Informação da (…) de fls. 566;

25- Informação da (…) de fls. 569;

26- Informação da (…) de fls. 570;

27- Autos de visionamento de fls. 571 a 590; 28- Listagem da (…) de fls. 590, 591;

29- Documento de fls. 619;

30- Ver fls. 619 a 635

31- Auto de noticia por detenção de fls. 744, 745; 32- Auto de busca e apreensão de fls. 748, 749; 33- Auto de busca e apreensão de fls. 751;

34- Auto de busca e apreensão de fls. 752;

35- Pesquisa forense, ou pesquisa informática de fls. 814 a 821;

36- Certidão do processo 1109/09.0JACBR que se protesta juntar; Do Apenso B

37- Auto de noticia de fls. 2, 3;

38- Auto de apreensão de fls. 4; 39- Teste rápido de fls. 5;

40- Fotografias de fls. 6;

Do apenso C 41- transcrições das intercepções telefónicas que compõem o apenso C; 42 DVD das intercepções telefónicas juntos aos autos.

Prova Pericial:

- exame pericial do LPC da Policia Judiciária de fls. 716; - exame pericial do LCP da Policia judiciária de fls. 859 - exame pericial do LPC da PJ de fls. 861;

Tal acervo probatório permitiu ao Tribunal formar uma forte convicção quanto à verificação dos factos dados como provados, pelos motivos já enunciados.

No que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos tiveram-se em conta os c.r.c. respectivos.

Relativamente à situação sócio-económica dos arguidos tiveram-se em conta os relatórios sociais juntos aos autos.

Quanto aos factos não provados, sobre os mesmos não foi produzida prova ou prova suficiente para, com o grau de certeza exigível, o Tribunal poder dá-los como assentes.”

3. Apreciação

Insurge-se o recorrente contra os factos que vem dados por provados sob os itens 1 a 24, 32, 33, e 40 a 42 do acórdão em crise por entender que se encontram sustentados apenas nas declarações prestadas no inquérito (artigo 141.º, n.º 4, alínea b) do CPP) pelo co-arguido D. e que foram reproduzidas em sede de audiência de discussão e julgamento. Acrescenta que na data do referido primeiro interrogatório judicial do arguido D., o Recorrente não era Arguido nos autos e, consequentemente, não esteve representado por defensor ou Mandatário na Diligência Judicial sub judice. Por outro lado, o Arguido D. não esteve presente na audiência de julgamento pelo que não lhe foi possível exercer o direito ao contraditório.

Importa assim apreciar se no caso em apreço, à luz do n.º 4, do artigo 345.º do CPP, não poderiam ter sido valoradas as declarações do co-arguido D. contra o recorrente, no pressuposto de que não teve a possibilidade de contra-interrogar o co-arguido, seu autor.


*

Conforme decorre da fundamentação da decisão de facto é certo que as declarações do co-arguido D. prestadas no 1º interrogatório judicial foram incluídas no acervo probatório em que o tribunal recorrido baseou a sua convicção, relativa à conduta do recorrente.

Com efeito, consta da motivação da matéria de facto:

 “Perguntado para quem era a droga que iam buscar respondeu desconfiar que era um indivíduo careca, de etnia cigana, com a alcunha de N., que estava sempre a ligar ao J.; quando chegavam deixava o J. à porta (do N.) e ele ia lá entregar o que tinha que entregar; o pagamento eu recebia (pela condução) era no final da viagem – referindo que fez 4 viagens a Tomar.

Ficou o Tribunal plenamente convencido da veracidade da versão apresentada por D., de que conduzia o carro transportando o J., que não tinha carta de condução, indo a Tomar buscar cocaína para entregar ao indivíduo que ligava ao J., o referido N..

Não restaram dúvidas ao Tribunal que o mencionado “N.” era o arguido A., pessoa descrita pelo arguido D. e pela mãe do arguido J., o qual viu na companhia de seu filho algumas vezes…”

Por outro lado, está assente:

- Tais declarações do arguido D. foram reproduzidas em sede de audiência de julgamento – cf. acta de fls. 994 - porque o referido arguido faltou por, alegadamente, se encontrar ausente no estrangeiro.

- O recorrente não tinha defensor presente no 1º interrogatório judicial de D..

Posto isto.

Alguns dos princípios fundamentais do processo penal constam de regras da Constituição da República sendo de relevar o princípio do acusatório e o princípio do contraditório, plasmados no art 32º, que sob a epígrafe «Garantias de processo criminal», estabelece nos n.os 1 e 5:

«1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

[…]

5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.»

Conforme resulta da norma do art 355º, do CPP “ Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.

É assim manifesto que relativamente à prova vigora o princípio da imediação e da oralidade, respeitando aquele predominantemente à audiência de julgamento.

Daí que por regra não valem em audiência de julgamento, - nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, - quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, com a ressalva das provas contidas em atos processuais cuja leitura em audiência seja permitida (artº 355º do C.P.P.), sendo portanto excepcional a possibilidade de valoração de declarações e depoimentos prestados em fase anterior ao julgamento, sempre exigindo a verificação dos pressupostos dos artigos 356.º e 357.º, do CPP.

Vejamos o procedimento no que respeita a declarações do arguido.

Resulta da redacção introduzida pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, ao artigo 141º, nº 4, alínea b), do Código de Processo Penal, que prestando o arguido declarações em sede de inquérito, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, ou perante autoridade judiciária com assistência de defensor e com a legal advertência (artigo 357º, nº 1, alínea b), do Código de processo Penal), poderão as diras declarações ser utilizadas na audiência de julgamento, mesmo que o arguido seja julgado na ausência ou não preste declarações, estando sujeitas à regra geral da livre apreciação de prova, estatuída no artigo 127º, do mesmo diploma legal.

Acresce que art. 357.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal, é claro no sentido de que a valoração das declarações prestadas pelo arguido devidamente informado nos termos do art.141.º, n.º 4, alínea b), do mesmo Código, exige a reprodução ou leitura das mesmas em audiência de julgamento, para cumprimento do contraditório e embora de algum modo limitado, dos princípios da imediação e da oralidade.

Por outro lado, do disposto no artigo 345º, do Código de Processo Penal, resulta expressamente que se um co-arguido prestar declarações em audiência de julgamento, em prejuízo de outro ou de outros co-arguidos e se recusar a responder às perguntas formuladas, nomeadamente pelos defensores dos imputados co-arguidos, tais declarações não poderão valer como meio de prova.

Também o Supremo Tribunal de Justiça considerou estar vedado ao tribunal valorar as declarações de um co-arguido, proferidas em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio, sob pena de violação do art. 32º, n.º 5 da CRP. No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 7-2-01 (proc. n.º 4/00-3) refere "As declarações que os arguidos prestem estão tuteladas na sua produção e no seu âmbito pelo estatuto próprio do arguido, devendo ser sujeitas ao princípio do contraditório na medida em que afectem o co-arguido, não valendo contra este se esse contraditório não puder ser estabelecido, mormente pela oposição do arguido produtor da prova”. Cfr ainda ac STJ de 3-09-2008, relator Cons. Santos Cabral.

É então pacífico que as declarações de co-arguido, produzidas em audiência de julgamento, em prejuízo de um ou mais co-arguidos, não valem como meio de prova, quando não sujeitas ao princípio constitucional do contraditório, estabelecido no artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

Importa equacionar as declarações prestadas por co-arguido em inquérito, - nos termos do disposto no artigo 141º, nº 4, alínea b), do Código de Processo Penal, - em caso de ausência ou de exercício do direito ao silêncio pelo co-arguido imputador.

Tendo-se por assente que a regra é que as testemunhas ou os arguidos são inquiridos na audiência e não lhes devem ser lidos os seus depoimentos anteriores, precisamente para garantir a recepção imediata e directa da prova pelo tribunal, também as declarações produzidas em inquérito pelo arguido nos termos supra assinalados, - e em audiência reproduzidas como uma espécie de declaração documentada - contrariam princípios como os da imediação e da oralidade e restringe intoleravelmente o contraditório.

Tem-se então como assente o entendimento doutrinária e jurisprudencialmente pacífico, relativamente à interpretação do disposto no artigo 345º, nº 4, do Código de Processo Penal, que declarações de co-arguido em prejuízo de outro co-arguido, prestadas em inquérito ou em audiência de julgamento, quando subtraídas ao exercício do direito ao contraditório, constitucionalmente estabelecido no artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, não podem valer como meio de prova.

A propósito do exercício do contraditório alerta o Ac Rel Évora de 5-05-2015  “A possibilidade dos sujeitos processuais se poderem pronunciar sobre uma declaração documentada não satisfaz o contraditório, pois este exige, não apenas a possibilidade dos sujeitos processuais se pronunciarem sobre um documento junto ao processo, mas a possibilidade de poderem instar e contra-instar uma testemunha sobre a matéria probanda. Trata-se da salvaguarda da observância de «um contraditório pela prova» e não apenas de «um contraditório sobre a prova». Tese adaptável ao caso de declarações de co-arguido produzidas no inquérito e reproduzidas em audiência, na ausência ou no silêncio daquele.

Por nos merecer total concordância, citamos o Ac Rel de Coimbra de 05-05-2021, relatora Maria José Nogueira, do qual extractamos:

“… Na verdade, não se vê como, tendo estado os co-arguidos duplamente privados do contraditório: num primeiro momento quando não marcaram, de qualquer forma, presença no ato de interrogatório do co-arguido onde foram produzidas as declarações que os incriminava [não está obviamente em causa diligência que possa ser olhada como antecipação da audiência]; num segundo momento pela impossibilidade de “confrontar” o co-arguido [que não compareceu em julgamento] com as declarações [na parte que os incrimina] em sede de audiência, seja possível defender não encerrar a valoração das mesmas em seu prejuízo violação ao artigo 32.º, n.º 5 da CRP.

Não se encontra razoabilidade, para concluir de modo diferente, na invocada excecionalidade do regime prevenido no n.º 4, do artigo 345.º do CPP, conducente a que apenas quando o co-arguido se recusasse a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.ºs 1 e 2 do citado artigo [nestas últimas se incluindo as sugeridas pela defesa] ocorresse proibição de valoração; o mesmo já não acontecendo quando aquele se remetesse ao silêncio [tout court] ou não fosse possível fazê-lo comparecer no julgamento. Na verdade, a regra é a de que não valem em julgamento, “nomeadamente para efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência” – [artigo 355.º do CPP], constituindo – isso, sim - exceção [justificada, com vimos, na Exposição de motivos da proposta de Lei n.º 77/XII] a valoração das declarações prestadas pelo arguido no âmbito do inquérito nos termos consentidos na alínea b), do n.º 4, do artigo 141.º do CPP.

Regressando ao ensinamento de Paulo Dá Mesquita «… o contraditório sendo também um imperativo constitucional ao qual está subordinada a audiência de julgamento marca a proibição relativa a declarações processuais de terceiros (onde se inclui o co-arguido que não é objeto do nosso tema) e o princípio da intransmissibilidade nesse domínio (objeto também de uma alteração em 2013 na revisão do artigo 356.º), mas já não vale para a utilização de declarações do próprio, por faltar o elemento nuclear, a alteridade relativamente à fonte da prova.

Daí que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sempre tenha excluído a aplicabilidade do artigo 6.º, n.º 3, da alínea d), da Convenção a declarações do próprio arguido, apenas preconizando a aplicabilidade dessa cláusula à utilização como prova contra o arguido das declarações do co-arguido relativamente ao qual nunca lhe tenha sido facultada a possibilidade de colocar questões» - [ob. cit., pág. 145].

A propósito da alínea d), do n.º 3, do artigo 6.º da CEDH escreve Irineu Cabral Barreto: «Se os elementos de prova devem ser produzidos em audiência pública, tendo em vista um debate contraditório, tal não impede a utilização das provas recolhidas na fase de instrução do processo, desde que as regras do contraditório tenham sido observadas, no momento da produção da prova ou mais tarde.

A produção de prova, nomeadamente a testemunhal, deve revestir um carácter contraditório, concedendo-se à defesa a possibilidade de contestar todo o elemento de prova produzido perante o tribunal e invocado por este para fundamentar a sua decisão, de modo a poder combater eficazmente as acusações que lhe são feitas» - [cf. “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª Edição, 2010, Coimbra Editora, págs. 218-220].

E se é certo, … que o exercício do contraditório não se limita apenas ao direito do co-arguido, em prejuízo do qual foram prestadas – nestes autos, em fase anterior e não contraditória do processo - declarações por outro co-arguido, de o poder confrontar com as mesmas, a verdade é que as ditas declarações, sendo incriminatórias do primeiro e, nessa medida, objeto de valoração pelo tribunal na formação da convicção, não podem ser, elas próprias, subtraídas ao contraditório, tando mais que – embora não o encaremos como argumento definitivo -, não raramente, são, sobretudo, aquelas que surgem a sustentar a convicção no sentido da condenação. Ao co-arguido tem de assistir o direito de fazer “contra-interrogar” (confrontar) o autor as declarações prestadas em seu prejuízo.”

Em suma, “as declarações do co-arguido feitas perante a autoridade judiciária no decurso do inquérito, com a assistência de defensor, tendo sido o mesmo, então, informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º do CPP, reproduzidas em sede de audiência de julgamento que decorreu sem a sua presença, não podiam, quanto aos factos incriminatórios de co-arguido, ser objecto de valoração, sujeita ao princípio da livre apreciação, por parte do tribunal. Contudo, já não o podiam ter sido, como o foram, na parte em que declarou em prejuízo dos co-arguidos/recorrentes, quando estes se viram privados, pela ausência daquele em julgamento, do direito de, com as mesmas, o confrontarem, por tal não ser compatível com um exercício pleno do contraditório» - ac cit Rel Coimbra de 05-05-2021.

Efectivamente o co-arguido prejudicado por tais declarações, viu-se privado, pela ausência daquele em julgamento, do direito de o confrontar, o que se revela gravemente incompatível com um exercício pleno do contraditório.

O tribunal a quo valorou as declarações prestadas pelo co-arguido D. no âmbito do inquérito, reproduzidas em audiência, e que embora não constituam o único material probatório incriminatório, - que se mostra suportado por outras provas, - foram relevantes na condenação do recorrente, não obstante o julgamento ter sido realizado na sua ausência do referido D..

E concluímos como o mencionado acórdão: Ao assim ter agido o tribunal a quo procedeu à valoração proibida de prova.

Resultando da fundamentação da convicção que o tribunal a quo para dar assentes, como provados, os factos enumerados na sentença também quanto à conduta imputada ao ora recorrente se ateve a diferentes meios de prova, impõe-se que, uma vez reconhecida a valoração proibida de prova, o mesmo tribunal, expurgada que seja esta do processo de convicção, decida em face dos demais elementos probatórios convocados, proferindo, de acordo com o juízo que vier a fazer, nova sentença.


*

Mostram-se prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.

*

III. Dispositivo

Termos em que acordam ou juízes que compõem este tribunal, na procedência do recurso, em julgar, nos termos sobreditos, verificada a valoração proibida de prova, determinando que pelo mesmo tribunal, expurgada que seja a mesma do processo de convicção, decida em face dos demais elementos probatórios convocados, proferindo, de acordo com o juízo que vier a fazer, nova sentença.

Sem tributação.

Texto processado e revisto pela relatora

Coimbra, 7 de Julho de 2021         

Isabel Valongo (relatora)

Alexandra Guiné (adjunta)

Alberto Mira (presidente da 5.ª secção)