Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
549/14.8TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO DE INTERDIÇÃO
NOVA LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – INSTÂNCIA LOCAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 130.º/1/A) DA LEI 62/2013, DE 26-08
Sumário: Na nova Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013, de 26-08) cabe às Instâncias Locais (cfr. art. 130.º/1/a)) a competência material para preparar e julgar as acções de interdição por anomalia psíquica.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

O Magistrado do Ministério Público intentou a presente acção especial de interdição por anomalia psíquica contra A... , residente na Rua (...) , Leiria.

Publicitada a acção e ainda antes de ter sido constatada a incapacidade do requerido para ser citado, foi proferido, em 22/01/2015, despacho no qual o tribunal (Juiz da Instância Local Cível da Comarca de Leiria) julgou verificada a sua incompetência, por entender ser, quanto à matéria, o pleito da competência do respectivo Tribunal de Família e Menores.

Inconformado com tal decisão, interpôs o Ministério Público recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que declare competente, em razão da matéria, a Instância Local Cível de Leiria, onde os ulteriores termos do processo devem prosseguir.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. - Os presentes autos versam sobre a decisão do Mm. Juiz a quo, de se declarar incompetente, em razão da matéria, para julgar a presente acção de interdição, por entender que a mesma, face ao disposto no art. 122.º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto, mais concretamente, da alínea g), é da competência do Tribunal de Família e Menores.

2. - No sentido social, entende-se estado civil como a existência e condições da existência do indivíduo perante a lei civil (solteiro, casado, viúvo ou divorciado), o que em nada está relacionado com as situações julgadas e decididas nas acções de interdição ou seja, situações de incapacidade para o governo da sua pessoa e dos seus bens.

3. - O facto das acções de interdição serem objecto de registo, nos termos do disposto no art. 1º do Código de Registo Civil, não implica que estas assumam natureza de acção de estado civil, uma vez que no art. 1º do Código de Registo Civil encontram-se elencados vários factos, cujo registo, não obstante ser obrigatório, v.g., declaração de insolvência, em nada estão relacionados com o “estado civil das pessoas”.

4. - As acções de interdição não versam sobre o estado civil das pessoas, propriamente dito, mas sim sobre uma situação pessoal que afecta a capacidade de exercício de direitos do indivíduo.

5. - O instituto da interdição e da inabilitação encontram-se reguladas na lei substantiva no Livro I (parte geral), Título II (das Relações Jurídicas), Subtítulo I (das pessoas), Secção V (incapacidades), subsecção I e II, a par com a maioridade e emancipação (subsecção I e II), releva, uma vez que, a interdição, tal como a menoridade, constituem modalidades de incapacidade para o exercício de direito, colocando-se as questões relacionadas com as mesmas, nomeadamente, a sua declaração, no plano da titularidade de situações jurídicas, relevante para efeitos de capacidade para ser parte em negócio jurídico.

6. - Deste modo, é indubitável, que, por exemplo, no caso de incumprimento de contrato em que uma das partes é menor, legalmente representada, os tribunais chamados para resolver a questão não serão os tribunais de Família e Menores, mas sim, os tribunais de instância central ou local, apesar de se tratar de questão relacionada com menor.

7. - Atendendo aos princípios proclamados pela “nova organização judiciária”, nomeadamente o espírito de especialização judiciária, apenas as questões de menores e família devem ser tratadas nos Tribunais de Família e Menores.

8. - Por tudo o exposto, não podia o despacho declarar incompetente em razão da matéria a Instância Local Cível de Leiria, por o ser a Instância Central de Família e Menores do Tribunal de Judicial da Comarca de Leria (2ª Secção), devendo, antes, verificar-se os ulteriores termos do processo.

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

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II – Fundamentação

A – Os factos pertinentes são os que estão retratados no relatório precedente.

B – Quanto ao direito:

A decisão recorrida entendeu que a competência para conhecer da presente acção pertence ao Tribunal de Família e Menores, por a mesma estar integrada na al. g) do art. 122.º da Lei 62/2013, de 26-08; preceito em que se diz que compete às secções de família e menores preparar e julgar “ (…) g) outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família”.

Comparando tal preceito com o correspondente art. 81º da anterior LOFTJ (Lei 3/99, de 13 de Janeiro), verifica-se que esta não continha uma alínea com o conteúdo da referida alínea g)[1].

Toda a questão está pois em saber o que deve entender-se ou o que é que se quis dizer com “acções relativas ao estado civil das pessoas e família”.

Tarefa em que não contamos com a ajuda do “pensamento legislativo” (cfr. art. 9.º do C. Civil), uma vez que os “textos” dos trabalhos preparatórios não fornecem qualquer esclarecimento sobre o que o legislador pretendeu com tal alínea.

Olhando para o que, no âmbito e vigência do art. 114.º/h) da Lei 52/2008, de 28/08, foi sendo decidido, constatamos que nas decisões que seguiram o entendimento aqui defendido pelo recorrente (Ministério Público) foi sustentada a ideia do legislador pretender incluir na previsão de tal alínea um conceito restrito de estado civil (não incluindo as causas que não têm a ver com o direito de família); acrescentando-se ainda que, se o legislador pretendesse fazer incluir as acções de interdição na competência dos tribunais de família e menores, dada a inovação que tal ocasionava em relação ao direito pregresso, ter-se-ia por certo exprimido de forma mais clara e concludente.

Que dizer?

Não se ignora que é tradicionalmente entendido[2] que as acções de interdição e de inabilitação versam sobre o estado das pessoas; e que, numa acepção lata, a interdição e a inabilitação estão claramente compreendidas no “estado civil”[3].

Em todo o caso, quer-nos parecer que a argumentação “literal” extraível da expressão “estado civil” é insuficiente para, por si só, se sobrepor à inserção sistemática e histórica, desde a sua criação, dos Tribunais de Família: conhecimento de acções que versam sobre litígios em que está exclusivamente em causa o Direito da Família.

Mais, a própria palavra “família” constante do final da al. g) do art. 122.º também aponta para as acções aí previstas (cobertas por tal alínea residual) dizerem respeito a litígios reguladas pelo Direito da Família.

“ (…) se o legislador pretendesse romper com esta longa tradição já sedimentada, estendendo a competência daquele tribunal de competência especializada a um tipo de acções de verificação frequente nos tribunais, mas em que não há lugar à aplicação de normas de Direito da Família, não teria deixado de o fazer de forma mais clara ou expressa no texto da lei[4].

Em conclusão, na nova Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013, de 26-08) cabe às Instâncias Locais (cfr. art. 130.º/1/a)) a competência material para preparar e julgar as acções de interdição por anomalia psíquica[5].

Procede pois o recurso.

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III – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, consequentemente, revogando-se o decidido, declara-se a Instância Local – Secção Cível – de Leiria competente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção de interdição.

Sem custas.

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Coimbra, 05/05/2015

(Barateiro Martins - Relator)

(Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)

[1] Tal “acrescento” vem do art. 114.º/h) da Lei 52/2008 de 28/08 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais aplicável apenas às comarcas piloto previstas no art. 171º/1 da mesma lei).
[2] cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. 3º, pág. 625; Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 5ª ed. pág. 53; Lebre de Freitas, CPC, anotado, vol. I, pág. 552 e Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. de Proc. Civil, vol. II, pág. 96 da 3ª ed.
[3] Ana Prata, Dicionário Jurídico, pág. 509/510, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 96, Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, pág. 101 e 102, Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais, 2ª ed., 1994, pág. 205; e Assento nº 1/92, DR, nº 134, de 11/06/1996, em que se entendeu que as acções sobre o estado das pessoas são aquelas cuja procedência se projecta sobre o estado civil de alguém – divórcio, separação de pessoas e bens, investigação de paternidade, impugnação de legitimidade, interdição, impugnação de impedimentos para o casamento, autorização para o casamento (…)”.

[4] Ac. do STJ de 13-11-2012, in ITIJ (Relator: Cons. João Camilo).

[5] É de € 30.000,00 a alçada da Relação (art. 44.º/1), sendo por isso o valor da presente acção de € 30.001,00 (art. 303.º do CPC); competindo à secção cível da instância central a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00 (art. 117.º/1/a)).