Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2153/06.5TBCBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO DIREITO CANÓNICO
Data do Acordão: 06/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, N.º 1, 10º, 11º E 12º DA CONCORDATA DE 2004
Sumário: A acção instaurada por uma associação pública de fiéis para apreciar à luz de normas de Direito Canónico a regularidade do Decreto Bispal que nomeou uma Comissão para a dirigir é da competência – internacional e em razão da matéria – dos Tribunais Eclesiásticos.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

A Fundação A... e a B... , intentaram a presente acção declarativa de condenação, ao tempo, com processo ordinário, contra O Seminário C...; A Diocese D... representada pelo respectivo Bispo; E... e F..., já todos identificados nos autos, formulando o seguinte pedido:

“ser declarada nula e de nenhum efeito a confissão no P. 2153/06.5 TBCBR, revogando o despacho de homologação e determinando-se que o processo siga os seus termos, anulando-se todos os actos subsequentes que pressupõem ou têm como fundamento a referida «confissão» e condenando-se os RR,. solidariamente, nas custas dos autos a que deram causa e nas despesas suportadas pelas AA., a liquidar em execução de sentença”.

Para tal alegam, em resumo, que na sequência do afastamento do signatário da p.i., como mandatário da A. B... , com base no entendimento de que esta é uma associação canónica pública de fiéis, foi homologado o termo de desistência da acção e confissão da reconvenção, a que a autora não pode reagir.

Não obstante, a A. B... é uma associação privada de fiéis, representada pela sua Superiora, pelo que são nulos, por absoluta falta de poderes de representação, os actos praticados pelo R. F... em representação da B... , nomeadamente os tidos em vista com os presentes autos.

Consequentemente, não podia o 3.º Réu, na qualidade de Bispo da Diocese D... , emitir os dois decretos, que emitiu, em 15 de Julho de 2008 e 29 de Julho de 2008, designando o ora 4.º Réu, como comissário-adjunto, para representar a B... , invocando o disposto no cânone 318.º, do Código de Direito Canónico (adiante referido como CDC), por este ser apenas aplicável a associações públicas de fiéis e a bens eclesiásticos, o que, defendem, não ser o caso.

Sendo, como é, a 1.ª A. uma associação privada, o acto do Sr. Bispo D... é nulo, por fundamentado em norma que não é aplicável e porque violador do disposto no artigo 11.º da Concordata celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé, que estabelece que as associações privadas de fiéis só têm as limitações à sua autonomia constantes do CDC.

Do que decorre, reiteram, que o Sr. Bispo D... , não tem poderes para indicar o 4.º réu como representante da B... , o que se traduz na absoluta falta de vontade desta, que determina a nulidade ou anulabilidade da confissão/transacção que foi levada a cabo nos autos principais.

Contestando, os réus, no que a este recurso interessa, alegaram a incompetência material do Tribunal recorrido para julgar a presente acção, o que acarreta a sua absolvição da instância, dado que o que verdadeiramente está em causa é a apreciação da validade dos Decretos Bispais acima já referidos, o que implica averiguar da natureza jurídica da autora B... : se se trata de uma Associação Pública ou Privada de Fiéis, sendo certo que só no 1.º caso, estaria sujeita à autoridade do Ordinário do Lugar (no caso o Sr. Bispo da Diocese D... ) e ao disposto nos cânones 318 e seg.s do CDC, estando-lhe vedada no caso de se tratar de Associação Privada de Fiéis e, neste caso, seria ilegal a decisão do Sr. Bispo D... , consubstanciada nos acima referidos Decretos Bispais.

Acrescentam, nesta sequência, que estando em causa um acto relativo à organização de uma pessoa jurídica canónica praticado com fundamento no Direito Canónico, a apreciação da sua validade cabe em exclusivo ao ordenamento jurídico canónico, estando vedado o conhecimento de tal matéria aos tribunais comuns, por força do disposto nos artigos 2.º 10.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, da Concordata acima já referida e artigos 41.º, n.º 4 e 8.º, n.º 2, da CRP, de onde decorre que o Estado Português reconhece à Igreja Católica o direito de aplicar o direito canónico, quanto à organização das entidades com personalidade jurídica canónica, através de órgãos e foro próprios.

Salientam, ainda, que a própria classificação da autora B... , enquanto Associação Pública ou Privada de Fiéis, depende da aplicação das regras contidas no CDC e, em qualquer caso, independentemente de tal qualificação (da B... ) se tem de aplicar o ordenamento canónico, de que retiram a conclusão da validade dos Decretos Bispais a que acima já se aludiu, uma vez que só a Autoridade Eclesiástica, no caso o Ordinário do lugar – Bispo D... , tem competência para dizer quem representa uma determinada Associação de Fiéis, com sede na referida diocese, em face do que deve ser decretada a invocada excepção de incompetência material dos Tribunais Comuns Portugueses para a decisão da presente acção.

Respondendo, as autoras, reiteram que a B... se tem de qualificar como Associação Privada de Fiéis, pelo que nos termos do artigo 11.º, n.º 2 da Concordata só relevam as limitações canónicas à capacidade das pessoas jurídicas canónicas quando estas constem no CDC e in casu, trata-se de “questões de interesse temporal – disputa sobre a propriedade de dois prédios”, que estiveram na génese de todos processos que se encontram em curso na justiça terrena, pelo que são competentes para tal os tribunais comuns do Estado Português, como já decidido em alguns de tais processos, por se tratar de uma “associação privada e interesses puramente patrimoniais”, por inexistir qualquer limitação de direito canónico que limite a autonomia da autora B... , tal como decorre do cânone 305, só sendo de aplicar o previsto no cânone 318.º, no caso de se tratar de Associação Pública de Fiéis, o que aqui não acontece e assim sendo, de acordo com o cânone 1257, os bens temporais da pessoa jurídica privada apenas se regem pelos seus estatutos próprios.

Do que decorre serem os tribunais portugueses os competentes para dirimir a disputa entre as partes, nos termos do disposto no artigo 65.º-A, CPC, em face do que pugnam pela improcedência da invocada excepção.

Teve lugar a audiência prévia, na qual, conhecendo da excepção de incompetência do tribunal, em termos internacionais e em razão da matéria, se julgou a mesma procedente e se absolveram os réus da instância, com o fundamento, em resumo, em a B... constituir uma Associação Pública de Fiéis e, por isso, as regras convocáveis para dirimir a questão sub judice são as constantes do CDC, designadamente as que determinam a forma de representação da B... e conexa validade dos Decretos Bispais que nomearam um seu representante.

Inconformada com tal decisão, interpôs recurso, a autora Fundação A... , recurso, esse, admitido na Reclamação apensa, finalizando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

A) A douta sentença recorrida, fundamenta a decisão em «factos» que constituem meras conclusões (i dos factos provados, segmento final), contraditórios com o sentido da decisão (iv, decidiu-se que a B... é associação pública mas refere-se ao assistente espiritual, exclusivo das associações privadas) ou que são irrelevantes para a distinção entre associações privadas e associações públicas;

B) O critério distintivo entre associações privadas e públicas de fiéis assenta apenas na iniciativa da constituição, sendo privadas as criadas por iniciativa dos fiéis (can. 299) e públicas as criadas pela autoridade eclesiástica (can. 301), estas para a prossecução dum dos fins constantes da mesma disposição;

C) Face aos termos da aprovação dos Estatutos da B... “Tendo-nos sido pedida…” e à ausência de qualquer acto de atribuição de missão em nome e representação da Igreja, a B... é, inequivocamente, uma associação privada de fiéis;

D) De acordo com o art. 11º da Concordata de 2004, aprovada para ratificação pela RAR nº 74/2004, de 16 de Novembro, relativamente às pessoas jurídicas canónicas, é competente a autoridade eclesiástica, quando esteja em causa a violação do direito canónico, e os tribunais civis, quando esteja em causa a violação do direito interno português;

E) No caso dos autos estão em causa actos relativos a bens temporais duma associação de fiéis constituída canonicamente, expressamente excluídos da aplicação do Código de Direito Canónico pelo parágrafo 2º do Cânone 1257º;

F) Pelo que, tratando-se de averiguar, a título incidental, qual a natureza – pública ou privada – da B... no sentido de se aferir a aplicabilidade do referido preceito, são os Tribunais Civis competentes por força do art. 91º nº 1 do CPC;

G) Como sustenta o Prof. Doutor Rui de Alarcão, no seu parecer de Fevereiro de 2010, sobre a constituição da Fundação pela B... , “a qualificação da B... como pessoa jurídica de direito canónico privado permite-nos concluir, que os actos de administração e disposição dos bens que integram o seu acervo patrimonial estão submetidos à disciplina do direito civil português”;

H) Competência que, reportando-se os actos impugnados (essencialmente) a bens imóveis e à constituição de pessoa colectiva com sede em Portugal (a Fundação A... ) é exclusiva dos tribunais portugueses, nos termos das al. a) e b) do art. 63º do CPC;

I) Uma interpretação que vede aos Tribunais do Estado a averiguação da natureza jurídica da B... e a regularidade da sua representação para a prática de actos relativos a bens imóveis e à constituição de pessoa colectiva de direito português e com sede em Portugal viola frontalmente

I1) Os princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático, consignado no art. 2º da Constituição,

I2) concretizado na violação do princípio da liberdade de associação, nas vertentes de liberdade de auto-governo, liberdade administração e disposição dos seus bens pelas associações privadas, consignado no art. 46º, nº 1 e 2 da Constituição e

I3) a garantia da tutela jurisdicional efectiva, consagrada no art. 20º da Constituição, consubstanciando uma denegação do acesso a um tribunal independente,

I4) porquanto a autoridade eclesiástica é parte, não podendo ser independente, nos autos impugnados, em que manifestamente mais não se pretende do que uma apropriação ilegítima e abusiva de bens privados de uma associação privada de fiéis, utilizando todos e quaisquer meios.

J) Pelo que, violando a douta sentença recorrida, o próprio Código de Direito Canónico e as disposições civis, processuais e constitucionais acima referenciadas, deverá, se não for reformada, ser revogada por douto Acórdão que reconheça serem competentes para o julgamento dos autos os Tribunais do Estado,

Assim se fazendo a costumada,

JUSTIÇA!

            Contra-alegando, os réus, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, no que toca à questão da competência, estribando-se nos fundamentos nesta acolhidos e, assim não se entendendo, em sede de ampliação do recurso, se julgue a acção improcedente, com fundamento nas, também, invocadas excepções de caso julgado e caducidade.

            No que a esta designada “ampliação do recurso” concerne, a título de questão prévia, apenas importa referir que na decisão recorrida apenas se decidiu a excepção da competência, considerando-se prejudicadas as demais, pelo que estaríamos, em caso de procedência do presente recurso, perante a previsão do artigo 665.º, n.º 2, do NCPC e não da figura da ampliação do recurso.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é da competência internacional e em razão da matéria para o conhecimento e decisão dos presentes autos.

A factualidade a ter em conta é a que consta do relatório que antecede.

            Competência internacional e em razão da matéria para o conhecimento e decisão dos presentes autos.

            Sustenta a recorrente que são competentes para dirimir o conflito que subjaz nos presentes autos os tribunais comuns portugueses e não os tribunais eclesiásticos, por a autora B... se dever qualificar como uma associação privada de fiéis e que, por isso, não se pode recorrer à faculdade prevista no cânone 318 do CDC.

De outra forma, acrescenta, seria violado o disposto no artigo 20.º da CRP, que consagra o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, por configurar a denegação de acesso a um tribunal independente.

            De acordo com a decisão recorrida, ao invés, considerou-se que estamos em presença de uma associação pública de fiéis, que sempre seguiu e se orientou pelas normas a estas aplicáveis e estando em apreciação a regularidade do Decreto Bispal que nomeou uma Comissão para dirigir a B... , serão competentes os Tribunais Eclesiásticos.

            A querela judicial entre as Entidades em referência já se manifesta em várias acções judiciais interpostas/pendentes e em algumas delas tem-se colocado a questão da competência/incompetência dos tribunais portugueses para a respectiva apreciação e decisão, sendo certo que as soluções para tal encontradas não têm sido uniformes, como se constata das decisões para tal proferidas pelos diversos Tribunais que têm sido chamados a pronunciar-se.

            Efectivamente, desde logo, este Tribunal da Relação já por duas vezes decidiu pela competência dos tribunais comuns para conhecer dos pleitos em que tal lhe foi solicitado – cf. Acórdãos de 31/05/2011, Processo n.º 4680/08.0TBLRA.C1 e de 20/05/2014, Processo n.º 692/11.5TBVNO.C1, ambos disponíveis no respectivo sítio da dgsi e o STJ proferiu uma decisão em cada sentido; ou seja, uma decidindo pela competência dos tribunais portugueses (embora aí o pedido fosse o de reivindicação de bens imóveis) e outra no sentido de que a competência é de atribuir aos tribunais eclesiásticos (em caso semelhante ao aqui em apreciação, ou seja, em que estava em jogo averiguar da validade do Decreto Bispal que está na génese dos presentes autos) – cf. Arestos deste Tribunal de 22/02/2011, Processo n.º 332/09.2TBPDL.L1.S1 e de 10/12/2013, Processo n.º 27/09.7TBHRT.L1.S1, igualmente, ambos, disponíveis no respectivo sítio da dgsi.

            Para além destes dois Arestos já citados, e noutro âmbito, o STJ, foi chamado a dirimir a questão do conflito de competência entre os tribunais portugueses e eclesiásticos, entre outros, nos Acórdãos de 26/04/2007, Processo n.º 07B723 e de 17/12/2009, Processo n.º 743/08.0TBABT-A.E1.S1, disponíveis no mesmo sítio dos anteriores, nos quais se decidiu que perante a Concordata de 2004, se estiver em causa a violação do direito canónico, será chamada a intervir a autoridade da Igreja e estando em causa a violação do direito interno português, deve recorrer-se aos tribunais civis/comuns portugueses, baseando-se no princípio constitucional da separação da Igreja do Estado, que impede que se atribua a um tribunal ou entidade pública o poder de sindicar um concreto acto ou decisão da competente autoridade eclesiástica no exercício da sua tarefa de vigilância e fiscalização sobre a vida interna de associações constituídas sobre a égide do Direito Canónico.

            Como resulta do relatório que acima se elaborou e emerge de toda a “querela” que subjaz a todas as acções já intentadas, a questão última é a de saber a quem pertence o domínio sobre as várias propriedades que em cada uma de tais acções são reivindicadas, só que a mesma é precedida da questão de saber quem tem o poder de as administrar, mais concretamente, se o Bispo D... podia ou não emitir, validamente, o Decreto Bispal através do qual nomeou representantes à B... , em conformidade com o disposto com o cânone 318 do CDC, o que nos remete para uma análise do que se acha disposto no CDC acerca da constituição e regulamentação das ali designadas Associações de Fiéis, na prossecução dos seus fins e campo de aplicação de cada um dos direitos em conflito: canónico ou civil.

            Em conformidade com o disposto no artigo 59.º do NCPC, a matéria da competência internacional dos tribunais portugueses, rege-se, desde logo, pelo que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais e, apenas numa 2.ª linha, se terá em conta os factores de conexão enumerados no seu artigo 63.º.

            Um destes instrumentos internacionais é, sem sombra de dúvida, a Concordata assinada entre a Santa Sé e a República Portuguesa, que veio substituir a Concordata de 1940, que regula as relações entre ambas.

            A separação de poderes entre a Igreja Católica (a que aqui está em causa) e o Estado Português tem consagração constitucional, dispondo-se no artigo 41.º, n.º 4, da CRP que:

“As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.”.

            Estabelece-se neste preceito constitucional o princípio da inviolabilidade de consciência, de religião e de culto, consubstanciado na separação entre as Igrejas e o Estado e na liberdade de organização e do culto que assistem àquelas, do que resulta a obrigação de “não ingerência do Estado na organização das Igrejas e no exercício das suas funções de culto” – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP, anotada, na anotação ao preceito em referência.

Concordata referida a que, por força do disposto no artigo 8.º da CRP, há que dar prevalência relativamente às normas de direito interno (no caso, o que se dispõe no artigo 63.º do NCPC.).

Ora, de acordo com o artigo 2.º, n.º 1 da Concordata de 2004 (a que, doravante, nos referiremos como “Concordata”), a República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica (sublinhado nosso).

Ainda, a ter em conta, o disposto no artigo 10, da Concordata, segundo o qual:

“1. A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.

2. O Estado reconhece a personalidade das pessoas jurídicas referidas nos artigos 1, 8 e 9 nos respectivos termos, bem como a das restantes pessoas jurídicas canónicas, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica canonicamente erectos, que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede, ou pelo seu legítimo representante, até à data da entrada em vigor da presente Concordata.”.

Por outro lado, nos termos do artigo 11.º, n.º1, da Concordata:

“As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1, 8, 9 e 10 regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza.”.

Como refere Rui M. Moura Ramos, in A Concordata de 2004 e o Direito Internacional Privado Português, RLJ, ano 135.º, pág.s 282 e seg.s:

“O Estado Português reconhece também expressamente a personalidade jurídica das restantes pessoas jurídicas canónicas que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede ou pelo seu legítimo representante (…)

As pessoas jurídicas objecto de reconhecimento nos termos que acabamos de referir regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, tendo a mesma capacidade civil que o direito português reconhece às pessoas colectivas de idêntica natureza (…)

Se, nos termos do nosso direito internacional privado, a lei pessoal é a lei da sede das pessoas colectivas, serão pessoas colectivas de estatuto português e portanto sujeitas, na sua constituição, às regras da lei portuguesa, as entidades deste tipo que se encontrem sedeadas em Portugal. Ora, os referidos artigos 1.º, 8.º, 9.º e 10.º da Concordata reconhecem expressamente a personalidade jurídica a entidades sedeadas em Portugal em cuja constituição não têm que ser observados os preceitos da lei portuguesa. Assim acontece, desde logo, com a Igreja Católica (artigo 1.º, n.º 2)”.

Deste diferente regime, consagrado na Concordata (designadamente no seu artigo 11.º), como salientado em todos os Acórdãos do STJ a que acima se aludiu, resulta a regra de que as referidas pessoas jurídicas canónicas se regem pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades; ou seja, estando em causa a violação do direito canónico será chamada a intervir a autoridade da Igreja (Tribunais Eclesiásticos) e estando em causa a violação do direito interno português, então, impõe-se o recurso aos tribunais civis/comuns portugueses.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 17/12/2009, acima já citado, pretendeu-se com a redacção do artigo 11 da Concordata “fazer coincidir as regras de jurisdição e competência com as normas de direito material aplicáveis pelo foro eclesiástico e pelos tribunais e autoridades públicas”, colocando-se termo a uma possível disparidade de aplicação de regimes, como o permitia a anterior Concordata (a de 1940).

Assim, o próximo passo a dar consiste na averiguação de qual o direito violado: se o direito canónico, se o direito interno português, a fim de, em conformidade com tal conclusão, determinar qual a jurisdição que deve ser chamada a dirimir a questão em apreço.

O CDC regula a disciplina das Associações de Fiéis nos Cânones 298 e seg.s, ali se distinguindo entre associações privadas e públicas de fiéis; porém, todas elas, sejam públicas ou privadas, devem ter por finalidade a missão sobrenatural da Igreja, e ainda que louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, se chamam associações privadas (Cânones 298 e 299) ou públicas (estas a seguir explicitadas) – cf. Código de Direito Canónico, Edição Anotada da Universidad de Navarra Instituto Martin De Azpilcueta, Tradução Portuguesa a cargo de José A. Marques, Edições Theologica, Braga, 1984, a pág. 237.

Por contraponto às públicas que são erigidas pela autoridade eclesiástica competente, de acordo com o Cânone 301.

Cf. autores e ob. ora cit., a pág.s 238 e 239, entende-se por “associação pública aquela que foi erigida por acto formal da autoridade eclesiástica competente, ainda que talvez, na sua origem, a associação provenha da iniciativa privada dos fiéis. Sobre o alcance da qualificação de pública, o c. 116 Parágrafo 1.º, precisa que a pessoa jurídica dotada deste carácter actua em nome da Igreja dentro do âmbito para o qual foi instituída”, acrescentando-se que só a autoridade competente pode erigir associações de fiéis para fins que, pela sua natureza, estejam reservados à hierarquia eclesiástica, o que implica que a associação assim erigida se deverá manter dentro dos limites para os quais foi constituída.

Todavia, independentemente da sua qualificação como pública ou privada, toda a associação de fiéis está sujeita à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do lugar, como decorre do cânone 305.

As públicas devem obedecer ao estatuído nos cânones 312 a 320, designadamente, são erectas pela autoridade eclesiástica competente, tendo em vista a prossecução dos fins que se propõem realizar, carecendo os seus estatutos de aprovação da autoridade eclesiástica a quem compete a respectiva erecção, administrando os bens que possui em conformidade com os estatutos sob a superior direcção da autoridade eclesiástica respectiva, a quem devem prestar contas anualmente.

Assume especial relevância para o caso em apreço o disposto no cânone 318, Parágrafo 1.º, segundo o qual:

“Em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a autoridade eclesiástica referida no cân. 312 P. 1.º pode designar um comissário que em seu nome dirija temporariamente a associação.”.

Como se refere no CDC anotado já anteriormente citado, pág.s 247 e 248 “A nomeação de um comissário poderá ter lugar quando as circunstâncias aconselhem que a autoridade competente não só exercite a alta direcção (c. 315), mas que também assuma temporariamente o regime da associação, procurando ao mesmo tempo que cessem quanto antes os motivos que dão lugar a essa intervenção extraordinária.”.

Por seu turno, o regime das associações privadas encontra-se tipificado nos cânones 321 a 326, de onde resulta, no que aqui importa, que as mesmas são governadas pelos fiéis segundo as prescrições dos estatutos, com a ressalva de que se encontram sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica, nos termos do cânone 305, acima já referidos.

Por último, de acordo com o cânone 325, confere-se às associações privadas o direito de administrarem livremente os bens que possuem, de acordo com as prescrições dos estatutos e sem prejuízo de a autoridade eclesiástica competente vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação.

De ater ainda ao disposto nas Normas Gerais das Associações de Fiéis, designadamente, nos seus artigos 7.º e 23.º, de acordo com os quais, todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do lugar e que possibilita a este, em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a nomeação de um comissário que em seu nome dirige temporariamente a associação.

Ora, a decisão da questão sub judice depende, em absoluto, de a B... ser considerada como associação pública ou privada de fiéis e sem esquecer o que se acha disposto no cânone 305, desde que verificados os requisitos do cânone 323, do que depende a validade dos Decretos Bispais que nomearam um representante à B... .

Ou seja, tudo questões a resolver pelas regras acima referidas e que se encontram inseridas no CDC, à luz das quais é que se poderá aferir se a B... , aquando da sua actuação, violou ou não os respectivos estatutos e se, consequentemente, o Bispo D... estava ou não habilitado a emitir o Decreto através do qual nomeou um representante à B... .

Assim sendo, na esteira do que deixámos exposto e por via do disposto no artigo 11 da Concordata, estamos em face de uma eventual violação do disposto em normas do Direito Canónico, pelo que serão competentes para conhecer da presente acção os Tribunais Eclesiásticos.

Do confronto entre o disposto nos artigos 11 e 12 da Concordata, como se salienta no Acórdão do STJ, de 17/12/2009, já citado, “a aplicabilidade da ordem jurídica nacional não tem lugar quanto à regulação dos aspectos estruturais, orgânicos ou internos das pessoas colectivas canónicas, mas apenas quanto à disciplina de certas actividades, extrínsecas e complementares aos fins estritamente religiosos, envolvendo aspectos de índole patrimonial e prestacional que justificam a aplicação do nosso ordenamento jurídico e a sujeição a alguma forma de tutela ou controlo público.”.

O que está em causa, reitera-se é a validade do Decreto Bispal que, ao abrigo de normas de Direito Canónico, nomeou um representante à B... .

Trata-se, pois, de sindicar os fundamentos de tal Decreto Bispal, que corporiza a decisão do Ordinário do lugar, ou seja, da Autoridade Eclesiástica competente para o fazer, à luz do Direito Canónico, o que não pode ser apreciado nos tribunais portugueses, sob pena da violação do comando constitucional ínsito no artigo 41.º, n.º 4, da CRP, ou seja, do princípio da separação da Igreja e do Estado.

Está em apreciação uma potencial violação de regras do Direito Canónico, estando vedado à jurisdição comum o seu conhecimento e apreciação, que, assim, cabe aos tribunais eclesiásticos.

Como, igualmente, se refere no Acórdão do STJ por último citado, esta solução em nada colide com o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º da CRP, dado que neste não se impõe que o direito nele consagrado tenha de ser necessariamente atribuído aos tribunais portugueses, que não detêm o exclusivo da competência para o conhecimento e decisão de todos os litígios, mesmo daqueles que tenham conexão com outros ordenamentos jurídicos.

Acrescentamos nós que é a própria legislação nacional que a afasta em alguns casos, designadamente a nível das disposições que fixam a competência internacional dos tribunais portugueses, em que se dá prevalência ao que se encontra estabelecido nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais (cf. artigo 59.º do CPC e 8.º, n.º 2 da CRP), bem como no que se estabelece nos artigos 14.º a 65.º do Código Civil em que se prevêem e regulam inúmeras situações de conflitos de leis.

Concluindo, estando, como estamos nós, perante a alegada violação de normas previstas no CDC, nos termos expostos, terão de ser os tribunais eclesiásticos a conhecer e a decidir a questão sub judice, o que acarreta a incompetência – internacional e em razão da matéria – dos tribunais portugueses para conhecer da presente acção, com a consequente absolvição dos réus da instância, nos termos do disposto nos artigos 96.º, 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a); 576.º, n.º 2 e 577.º, al. a), todos do NCPC, sendo, pois, de manter a decisão recorrida.         

Assim, improcede o presente recurso.

           

Nestes termos se decide:

Julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 23 de Junho de 2015.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emidio Francisco Santos

Catarina Gonçalves