Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
990/12.0TBLSA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
LETRA EM BRANCO
ACORDO DE PREENCHIMENTO
INTERPELAÇÃO
SUBSCRITOR
AVALISTA
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 10 DA LUSLL
Sumário: I – Com a entrega da letra assinada em branco o subscritor – v.g., o avalista - confere, necessariamente, à pessoa a quem faz a entrega o poder de a preencher e, portanto, o acto de preenchimento tem o mesmo valor que teria se fosse praticado pelo subscritor ou se já tivesse sido praticado no momento da subscrição e, portanto, que aquilo que se escreve na letra em branco considera-se escrito pelo subscritor, sendo, assim, de presumir que o conteúdo da letra representa a vontade daquele, embora esta presunção possa ser ilidida pelo subscritor através da demonstração de que houve abuso no preenchimento.

II - A lei cambiária não impõe, como condição de exigibilidade da obrigação de garantia do avalista de letra emitida em branco, a prévia interpelação deste.

III - Mas ainda que uma tal interpelação prévia fosse de exigir, na sua ausência sempre valeria como interpelação a citação do subscritor do avalista para a execução, embora com a consequência de a obrigação se considerar vencida apenas desde essa citação e o encargo das custas da execução dever recair sobre o exequente, se aquele cumprir a obrigação no prazo em que ainda o podia fazer.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

M..., SA, promoveu, no Tribunal Judicial da Comarca da Lousã,  contra A... e N..., acção executiva para pagamento de quantia certa, para dos últimos haver a quantia de € 16.493,17.

Alegou como fundamento desta pretensão executiva que, no desenvolvimento da sua actividade industrial de anodização de alumínios, forneceu a C..., Lda., diversas mercadorias, dos quais resultou um saldo de conta-corrente de € 16.493,37, tendo aquela aceite, para garantia do seu pagamento, uma letra no valor de € 18.000,00, avalizada pelos executados, que lhe não foi paga.

O executado N... – citado em Janeiro de 2014, designadamente para pagar - opôs-se à execução, pedindo se decrete a improcedência da execução, porquanto o título que serve de base ao requerimento executivo é nulo, por ter sido abusivamente preenchido, a nulidade do aval prestado e o levantamento da penhora de créditos de IRS, presentes e futuros, vencidos e não vencidos.

Alegou, como fundamento da oposição, que o aval que apôs na letra foi em branco, sem qualquer quantia ou data nela mencionada, que foi a exequente quem a preencheu, sem que previamente tenha discutido e negociado as condições em que tal preenchimento poderia ter lugar, que inexistiu qualquer convenção de preenchimento, não tendo dado consentimento ao preenchimento da letra, que é falsa a importância que dela consta, que a exequente, ao preencher, pelo seu punho, unilateralmente, com valor cuja origem desconhece e data de emissão e vencimento escolhidas a sue bel-prazer, fê-lo de forma abusiva, sem cumprimento do acordado, que a letra foi, assim, preenchida de forma arbitrária, ao arrepio do acordado, sem o seu conhecimento nem consentimento, nunca tendo sido interpelado pela exequente para proceder ao pagamento nem informada que a mesma ia ser apresentada a pagamento, e que a letra, por ter sido abusivamente preenchida, é nula, tornando nulo o aval que deu, não dispondo a exequente de título executivo bastante.

A exequente respondeu que os executados, N... e A..., lhe remeteram a letra não preenchida mas aceite por C..., Lda., devidamente avalizada por eles, que na carta que a acompanhava, os executados davam, desde logo, o seu consentimento para o seu preenchimento caso os valores que facturem ou de qualquer forma documentem não sejam por aquela firma atempada e efectivamente pagos, que aquela sociedade deixou de cumprir os seus compromissos, tendo, então, procedido ao preenchimento da letra de acordo com o combinado e consentido na carta, e que a letra titula o montante da dívida daquela sociedade, decorrente de fornecimentos e outras transacções comerciais, das quais resultou um saldo favorável, igual ao valor da execução.

Identificado o objecto do litígio, enunciados os temas da prova, e realizada a audiência de discussão e julgamento, a sentença final da causa, com fundamento em que não se pode deixar de se considerar verificada a ausência de interpelação prévia sobre os termos de preenchimento da letra (designadamente dos elementos referentes à data do vencimento e quantia a pagar), e, por isso, de proceder a presente oposição quanto à inexigibilidade da obrigação em relação ao executado/oponente N... por falta de vencimento da obrigação cartularjulgou procedente a oposição deduzida pelo executado/oponente N... e em consequência determinou o prosseguimento da execução apenas quanto ao executado A...

É esta sentença que a exequente impugna através do recurso ordinário de apelação – no qual pede que seja considerada nula, por falta de fundamentação de direito, ou, quando assim se não entenda, que seja revogada e se julgue a oposição à execução improcedente – tenho estabilizado a sua alegação nestas conclusões:

...

Não foi oferecida resposta.

2. Factos provados.

O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os factos seguintes:

...

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objetiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3, do nCPC).

A sentença impugnada com fundamento na ausência de interpelação prévia do executado opoente sobre os termos do preenchimento da letra concluiu pela inexigibilidade, relativamente àquele, da obrigação, por falta de vencimento da obrigação cartular, e julgou a oposição procedente.

                A exequente discorda, fazendo assentar a sua discordância na nulidade daquela sentença por falta de indicação do fundamento de direito, na inoponibilidade, pelo avalista, das excepções que o avalizado pode opor ao portador da letra emitida em branco, e na desnecessidade da interpelação do primeiro para o preenchimento daquele título cambiário.

Nestas condições, considerando os parâmetros da competência decisória desta Relação, definidos pelo conteúdo da sentença impugnada e da alegação da apelante, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:

a) Aquela sentença se encontra ferida com o valor negativo da nulidade substancial, por falta de indicação dos fundamentos de direito;

b) Ao avalista da letra emitida em branco está autorizado a invocar as excepções que ao seu avalizado é lícito opor ao portador desse mesmo título;

c) O avalista de letra emitida em branco deve ser previamente interpelado e se, por falta dessa interpelação, a obrigação pecuniária incorporada naquele título de crédito é intrinsecamente inexequível com fundamento na sua inexigibilidade, decorrente da falta de vencimento.

A resolução destes problemas vincula ao exame, ainda que leve ou breve, da causa de nulidade da sentença representada pela falta de especificação dos fundamentos de direito relevantes para a decisão, da posição jurídica do avalista e da condição ou pressuposto da acção executiva em que se resolve a inexigibilidade da obrigação exequenda.

3.2. Nulidade substancial da sentença impugnada.

O primeiro fundamento da impugnação consiste na nulidade substancial da sentença, valor negativo que, no ver da apelante, decorreria da falta de fundamentação de direito.

A falta de motivação ou fundamentação verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um qualquer pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artº 208 nº 1 da Constituição da República Portuguesa, 154 nº 1 e 615 nº 1, b), do nCPC).

Isto é assim, dado que uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do bom fundamento da decisão. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes. Compreende-se facilmente este dever de fundamentação, pois que os fundamentos da decisão constituem um momento essencial não só para a sua interpretação – mas também para o seu controlo pelas partes da acção e pelo tribunal de recurso[1].

A motivação constitui, pois, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível – como sucede na espécie sujeita - de garantia do direito ao recurso.

Portanto, o dever funcional de fundamentação não está, pois, orientado apenas para a garantia do controlo interno - partes e instâncias de recurso - do modo como o juiz exerceu os seus poderes. O cumprimento daquele dever é condição mesma de legitimação da decisão.

Na motivação da decisão o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as boas razões que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para toda a comunidade jurídica. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do juízo. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial[2]. Dito doutro modo: a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão[3].

A fundamentação da decisão é, pois, essencial para o controlo da sua racionalidade. Pode mesmo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela fundamentação. E como a racionalidade da decisão só pode ser aferida pela sua fundamentação, esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade.

Numa palavra: a exigência de fundamentação decorre da necessidade de controlar a coerência interna e a correcção externa da decisão.

No entanto, quanto a este ponto, há que fazer um distinguo, cuidadoso, entre a falta absoluta de motivação – da motivação deficiente, medíocre ou errada. O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (artº 154 nº 1 do nCPC)[4].

Tem-se, realmente, entendido que o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação[5]; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade[6]. Portanto, só a ausência total de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão: se a decisão invocar algum fundamento de facto ou de direito – ainda que exasperadamente errado - está afastada a nulidade, no tocante à justificação fáctica e jurídica da decisão. Assim, pelo que respeita aos fundamentos de direito, não é forçoso que o juiz cite os textos da lei que abonam o seu julgado: basta que aponte a doutrina legal ou os princípios jurídicos em que se baseou.

Depois, o tribunal não está vinculado a analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as considerações, todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários á decisão da causa[7]

Em face deste enunciado deve ter-se por certo que a sentença impugnada não se encontra ferida com o vício da nulidade que a recorrente lhe assaca.

A ratio determinante da procedência da oposição é só esta: a falta de interpelação prévia do executado – que figura na letra que constitui o título executivo na qualidade de avalista da aceitante – imposta pela circunstância de aquele título de crédito ter sido entregue em branco à exequente. Realmente, a sentença impugnada, fazendo sua a doutrina sustentada pelos acórdãos da Relação de Lisboa de 12 de Novembro de 2009, 20 de Janeiro de 2011 e 8 de Novembro de 2012[8] - é do parecer que, nos casos em que a letra é subscrita, designadamente pelo avalista, em branco, é necessária, a sua interpelação prévia pelo portador do título. Falta de interpelação prévia de que, de harmonia com a retórica argumentativa da sentença impugnada, decorre a inexigibilidade da obrigação em relação ao executado/oponente N... por falta de vencimento da obrigação cartular.

                Portanto, seja qual for a bondade ou a exactidão deste entendimento do problema, a verdade é que a sentença apelada contém ou indica, de forma clara, a razão ou o fundamento de direito que julgou relevante para a decisão, elucidando inteiramente os destinatários – designadamente a recorrente – dos motivos jurídicos dessa mesma decisão. É verdade que a sentença – como aliás, as espécies jurisprudenciais em que se apoiou - contra o que é conveniente, não cita o artigo da lei – designadamente da lei cambiária - que prevê a exigência daquela interpelação prévia. Mas não era o forçoso que o fizesse dado que – como se observou – é suficiente – para afastar a nulidade acusada – que se especifique a doutrina legal, ou que como tal seja julgada, ou o princípio jurídico em que se apoiou. É claro que a sentença apelada pode ter-se equivocado ao concluir pela exigência da apontada interpelação prévia como condição de exigibilidade da obrigação de garantia do avalista. Mas uma tal incorrecção constitui um puro error in iudicando – de direito – e não um error in procedendo, como é caracteristicamente aquele que constitui causa de nulidade da decisão, por falta – absoluta – de indicação da razão de direito que a justifica.

Por este lado, portanto, o recurso não dispõe de bom fundamento.

3.2. Posição jurídica do avalista.

O instrumento de que a exequente é portadora é legalmente qualificado como letra, no qual aquela, C..., Lda e o executado N... – e outro – figuram nas posições jurídicas de sacador, sacado – ou aceitante – e de avalista, respectivamente (artº 1 da LUsLL). A letra de câmbio – que é um título de crédito em sentido estrito e à ordem – enuncia uma ordem de pagamento dada pelo sacador a outra – o sacado – em favor de uma terceira – tomador – ou à sua ordem (artº 1 da LUsLL).

Todavia, a letra de câmbio é um título de crédito de formação sucessiva, um título susceptível de representar uma pluralidade de obrigações cambiárias, todas com igual objecto: determinada prestação pecuniária.

A obrigação inicial é a do emitente do título - o sacador. Aquela surge com a declaração cambiária deste na forma de uma ordem de pagamento. Por força dessa ordem, o sacador promete ao tomador – e portadores subsequentes – que fará com que o sacado assuma a responsabilidade cambiária do pagamento – aceite - e pague a letra, obrigando-se ele, sacador, a pagá-la se o sacado a não aceitar ou se, tendo-a aceitado, não a pagar. Todavia, o sacado só fica cambiariamente obrigado por uma declaração sua – o aceite. Pelo aceite, o sacado obriga-se a pagar a letra no seu vencimento.

A estas obrigações pode adicionar-se uma obrigação de garantia: a constituída pelo aval. Pelo aval, um terceiro garante o pagamento da letra por parte de um dos seus subscritores; ao lado da obrigação de um determinado subscritor da letra vem inserir-se a decorrente do aval, que cauciona aquela.

Por força da declaração cambiária de aval – que consiste, justamente, no acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra garante o pagamento dela por parte dos seus subscritores – o executado N... assumiu uma obrigação de garantia – garantia da obrigação do avalizado, que a cobre e cauciona (artºs 30 e 31 da LUsLL).

A lei é terminante na declaração de que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada (artº 32, I, da LUsLL). Trata-se, todavia, não de uma responsabilidade subsidiária – mas de uma responsabilidade solidária, dado que não goza do benefício da excussão prévia (artº 47, I, da LUsLL). Além de não ser subsidiária, aquela obrigação só imperfeitamente é uma obrigação acessória relativamente a do avalizado: trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da obrigação do avalizado no plano formal, dado que a obrigação do avalista se mantém ainda que a obrigação garantida seja nula, excepto se nulidade decorrer de vício de forma.

Portanto, no que respeita aos efeitos do aval, do ponto de vista da situação passiva do avalista, o aspecto mais relevante é este: o carácter solidário da responsabilidade do avalista, com a dos demais obrigados cambiários: o avalista não goza do benefício da excussão prévia do subscritor cuja obrigação cauciona, respondendo em primeira linha pelo seu pagamento diante do portador. O aval não se configura, assim, com uma garantia subjectiva, limitando-se a caucionar o pagamento da letra por parte de um dos seus subscritores; é, antes uma garantia objectiva, dado que cauciona o pagamento da letra, tout court: o avalista não garante que o avalizado pagará – mas sim que a letra será paga.

Para além de literal, a obrigação cambiária é também abstracta[9].

A criação da obrigação cartular pressupõe uma relação jurídica anterior que constitui a relação jurídica subjacente ou fundamental, causa remota da assunção da obrigação cambiária. Todavia, por força do princípio da abstracção, a causa encontra-se separada do negócio jurídico cambiário, decorrente de uma convenção extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental.

A obrigação cambiária é vinculante independentemente dos vícios da sua causa: as excepções causais são inoponíveis ao portador da livrança precisamente porque decorrem de uma convenção executiva extra-cartular, exterior ao negócio jurídico cambiário (artº 17 da LUsLL).

Mas isto só é assim nas relações mediatas – i.e., aquelas que se verificam entre um subscritor e um portador que se lhe não siga imediatamente na cadeia cambiária e que, portanto, não é sujeito da convenção extra-cartular - as excepções ex-causa só são oponíveis demonstrando-se que o portador, ao adquirir a letra, procedeu, conscientemente, em detrimento daquele que lhe opõe a excepção (artº 17 da LUsLL).

Portanto, o devedor cambiário não pode opor a terceiros excepções fundadas na relação fundamental ou causal da letra, a não ser que esses terceiros tenham, ao adquirir a letra, procedido conscientemente em detrimento do devedor.

É, portanto, indispensável que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de prejudicar o devedor. No entanto, uma coisa é a intenção de prejudicar, outra, a consciência de prejudicar: o portador, ao adquirir a letra, pode agir com o propósito de prejudicar o devedor mediante a inoponibilidade, por este, das excepções que tinha contra os precedentes portadores e pode proceder apenas com conhecimento dessas excepções e do prejuízo que é causado ao devedor com a perda delas. O adquirente da letra embora não a adquira com a intenção de iludir as excepções do devedor, pode fazê-lo sabendo que o devedor é prejudicado pela circunstância de não poder valer-se delas contra o novo portador.

Não é suficiente, portanto, o simples conhecimento, pelo adquirente, da existência das excepções, visto que a lei exige que o portador tenha agido conscientemente em detrimento do devedor e não age conscientemente em detrimento do devedor quem somente tem conhecimento das excepções que este poderia opor aos portadores antecedentes; não obstante esse conhecimento, pode o adquirente ter razões para supor que o devedor não será prejudicado, não excluindo, necessariamente, esse conhecimento, a boa fé do adquirente. Exige-se, assim, que o adquirente ao adquirir a letra conhecesse a existência da excepção e tivesse consciência de prejudicar o devedor: uma tal consciência significa ter o adquirente conhecimento de que prejudica, com a perda das excepções o devedor, e que ele aceita, voluntariamente, este resultado, querendo provocá-lo ou, ao menos, aceitando-o[10]. A prova deste facto incumbe, naturalmente, ao excipiente (artº 342 nº 2 do Código Civil).

Todavia, nas relações imediatas, i.e., nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato, porque os sujeitos cambiários o são simultaneamente da convenção executiva, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Quando isso suceda, o subscritor ou obrigado cambiário pode opor ao portador as excepções decorrentes das relações pessoais entre ambos.

No caso do recurso, é indiscutível que a letra que serve de título executivo foi emitida em branco.

A letra pode ser entregue a terceiro e entrar na circulação em branco.

Letra em branco é aquela em que falta algum dos requisitos enunciados na lei, mas que incorpora, ao menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária. Para que exista uma letra em branco é necessário que lhe falte algum ou alguns dos requisitos essenciais da letra, havendo no entanto, pelo menos, a assinatura de um obrigado cambiário; este obrigado segundo uma opinião só pode ser o sacador, embora segundo outra – doutrina que se tem por preferível – possa ser um diverso subscritor[11].

A lei não faz distinção nem põe limitações acerca da extensão do que falta no título, podendo ser deixadas em branco todas as declarações necessárias para a existência da letra ou só algumas delas (artº 10 da LUsLL). Basta, portanto, que no título destinado a tornar-se letra exista uma assinatura que possa valer como assinatura do sacador ou de outro obrigado cambiário, porque doutro modo não poderia verificar-se a hipótese prevista na lei de uma letra incompleta quando foi emitida, i.e., de uma letra susceptível de ser completada sem necessidade de uma ulterior cooperação do emitente (artº 10 da LUsLL)[12].

Para existência de uma letra em branco é necessário que o documento incompleto, subscrito, v.g., pelo aceitante, tenha sido emitida, ou seja entregue ao tomador, ou tenha de algum modo chegado à posse de um terceiro.

A letra em branco não é, enquanto lhe faltar qualquer elemento essencial, uma letra plenamente eficaz, sendo, porém, para muitos autores, já um título de crédito endossável, com fundamento em que crédito e a obrigação não surgem apenas com o preenchimento, embora este seja necessário para fazer valer os direitos cambiários. Para haver uma tal letra, é preciso que lhe falte algum ou alguns dos elementos essenciais, havendo, contudo, pelo menos a assinatura do emitente ou de qualquer outro subscritor[13].

A entrega do título é, nos termos gerais, um elemento essencial à validade da própria obrigação cambiária, e, portanto, a obrigação cambiária não surge se não se verificar a emissão da letra pelo seu possuidor.

Tratando-se, porém, de letra em branco, a sua entrega deve ser acompanhada de uma autorização, pelo subscritor ao credor, para a preencher. Faltando essa autorização o caso não é de letra em branco – mas de letra incompleta.

Com a entrega da letra assinada em branco o subscritor confere, necessariamente, à pessoa a quem faz a entrega o poder de a preencher e, portanto, o acto de preenchimento tem o mesmo valor que teria se fosse praticado pelo subscritor ou se já tivesse sido praticado no momento da subscrição. Aquilo que se escreve na letra em branco considera-se escrito pelo subscritor, sendo de presumir que o conteúdo da letra representa a vontade daquele; esta presunção pode, no entanto, ser ilidida pelo subscritor demonstrando que houve abuso no preenchimento, que a letra foi completada contrariamente aos acordos realizados (artº 10 da LUsLL)[14].

Quem assina, como subscritor, uma letra em branco pratica precisamente um acto jurídico que tem a mesma natureza que teria se a letra estivesse, no acto da assinatura, totalmente preenchida: ninguém apõe normalmente a sua assinatura numa letra sem ter a intenção de assumir uma obrigação cambiária.

O facto de um sujeito assinar uma letra que, sabendo não preenchida, a entrega por sua livre e espontânea vontade a outro indivíduo, só se compreende pela intenção de confiar o preenchimento a outrem. A subscrição e entrega de um título em branco deduz-se logicamente a vontade do emitente de fazer própria a declaração que um outro sujeito inserirá no título[15].

Antes de assinar ou de entregar a letra em branco, o aceitante – ou outro obrigado cambiário - pode, porém, convencionar com o credor em que termos deve ser feito o preenchimento, qual o conteúdo dos elementos essenciais da letra ainda em falta. Esta convenção não está sujeita a forma especial, podendo ser meramente tácita[16]. Portanto, ressalvado o caso de incompletude proveniente de lapso, parece que haverá sempre pelo menos um acordo tácito das partes quanto aos termos do preenchimento, hermenêuticamente extraível do contexto negocial mais vasto em que a subscrição e a entrega do título se inserem[17]. O acordo de preenchimento apenas concerne ao modo de preencher e não ao direito de o fazer.

Existindo esta convenção, se houver abuso no preenchimento, i.e., se o possuidor da letra inserir nela contexto diverso do convencionado, pode o subscritor – ou outro obrigado cambiário - opor a excepção de abuso. A excepção consiste, precisamente, na alegação de que a letra foi assinada e entregue em branco e que o contexto é diferente do que se ajustara. Como já se observou a prova desta excepção incumbe, claro está, ao aceitante ou outro obrigado cambiário (artºs 342 nº 2 e 378 do Código Civil)[18]. A excepção não é porém oponível ao portador relativamente ao qual os acordos realizados sejam inter alios acta, salvo demonstrando-se que adquiriu a letra de má fé ou cometido nessa aquisição uma falta grave (artº 10 da LUsLL).

Como consequência do carácter literal e abstracto que a obrigação cambiária assume logo que o título na qual se inscreve constitutivamente entra na circulação, a oponibilidade da excepção sofre, portanto, um desvio notável: a excepção do preenchimento abusivo não pode ser oposta àquele portador que recebe a letra completamente preenchida, salvo se este, ao adquiri-la, estiver de má fé ou, adquirindo-a, cometer falta grave (artº 10 da LUsLL)[19].

Com o nítido propósito de facilitar a circulação da letra em branco, estabelece-se como momento decisivo para avaliar da boa ou má fé do portador mediato, o da recepção da letra: a má fé posterior não releva. Portanto, o conhecimento do real conteúdo da convenção de preenchimento ou o seu desconhecimento por grave negligência só relevam, para recusar ao portador a protecção, se ocorrerem no momento da transmissão do título. A má fé superveniente, que consiste no conhecimento ou na ignorância negligente daquele preenchimento abusivo, é, assim, indiferente.

Na espécie do recurso, é patente que a letra foi – duplamente – subscrita em branco dado que dois subscritores dela – a aceitante, C..., Lda., e designadamente o opoente N... – assinaram o título correspondente incompleto, designadamente quanto ao seu valor e data de emissão e de vencimento. Trata-se, aliás, de uma situação típica: avalizado e avalista subscrevem ambos em branco o título, que o primeiro entrega, de seguida ao terceiro, o qual aquando do preenchimento surgirá como beneficiário.

A razão deste modo de proceder é clara – o reforço da garantia cambiária de uma dívida fundamental de carácter ainda incerto: o subscritor principal entrega o título à sua contraparte na relação extracambiária com vista a assegurar a satisfação de um direito de crédito futuro, eventual e ilíquido, normalmente resultante de uma situação de incumprimento; porém, para fortalecer a posição do credor, adiciona-se um segundo devedor no plano estritamente cambiário, ou seja um devedor que não é, em princípio, parte naquela relação fundamental, mas que materialmente se assume como garante das consequências patrimoniais desvantajosas provocadas pelo incumprimento do contrato avalizado.

Neste contexto pergunta-se: ao avalista que subscreveu o título em branco é também facultada a excepção da violação do pacto de preenchimento?

A resposta vincula, segundo a orientação jurisprudencial corrente, a um distinguo consoante o avalista tenha ou não subscrito o pacto de preenchimento e, portanto, se situe nas relações imediatas ou mediatas.

No primeiro caso, i.e., nos casos em que o avalista subscreveu o pacto de preenchimento, segundo aquela orientação jurisprudencial, as relações entre avalista em branco são sempre relações imediatas; ergo, é-lhe lícito opor a excepção pessoal, fundada nas relações imediatas entre avalizado e credor[20]; no segundo caso, como a relação entre portador e avalista não é uma relação imediata e aquele não é sujeito da relação contratual estabelecida entre o avalizado e o portador, e como – diz-se - a excepção do preenchimento abusivo é uma excepção pessoal, fundada nas relações entre avalizado e credor, aquele jamais poderá opô-la (artº 17 da LUsLL)[21].

Esta solução tem-se por exacta, embora seja discutível a via utilizada para a alcançar. Realmente, pode perguntar-se se o problema colocado pela subscrição em branco e pela oponibilidade da excepção do preenchimento abusivo deve ser resolvido por recurso à dicotomia relações mediatas/relações imediatas – e, portanto, por recurso ao artº 17 da LUsLL – ou antes pela aplicação da norma especificamente ordenada para a regulação da subscrição em branco – o artº 10 da LUsLL – a qual permite que o avalista possa prevalecer-se de certas vicissitudes de uma relação fundamental à qual é alheio.

Realmente o credor-portador que preenche o título em desconformidade com o acordo de preenchimento que ele próprio celebrou – tenha ou não o avalista participado nessa convenção – estará quase sempre de má fé e, quando assim não seja, incorre certamente em falta grave, dado que no momento em que adquiriu o título, conhecia ou devia conhecer o acordo de preenchimento por ele próprio concomitantemente subscrito. Em tal caso verificam-se, portanto, os dois pressupostos de que o artº 10 da LUsLL faz depender a invocação do preenchimento pelo subscritor em branco e, no balanço dos interesses subjacentes, compreende-se que a tutela penda para o lado deste último, dada a inidoneidade do portador[22].

Seja como for, mesmo para o entendimento jurisprudencial corrente – que corresponde a jurisprudência firme do Supremo – assente na dicotomia relações imediatas/relações mediatas, ao avalista é também facultada a alegação da excepção do preenchimento abusivo, desde que tenha tido intervenção no pacto de preenchimento: em tal caso, porém, compete-lhe a alegação e a prova do preenchimento abusivo[23].

Quer dizer: para que se coloque um problema de preenchimento abusivo, é necessário, em boa lógica - à luz da jurisprudência corrente - a existência de um pacto, acordo ou convenção de preenchimento, acordo que o portador do título, ao preenchê-lo, tenha violado ou desrespeitado.

Ora, se o avalista opta, para se eximir ao cumprimento da obrigação pecuniária incorporada no título, pela estratégia da alegação de que não interveio no pacto de preenchimento ou da exclusão da cláusula que contém esse pacto, essa alegação implica a sua (auto) exclusão da sua intervenção naquele pacto e, consequentemente, da sua localização nas relações imediatas com o tomador e portador da letra, à sombra das quais lhe era lícito invocar e fazer valer a excepção do preenchimento abusivo.

Se não se demonstra a existência de qualquer pacto, então não há objecto sobre o qual se possa assentar a alegação e a discussão do preenchimento abusivo, pelo que o avalista carece de fundamento para discutir uma eventual excepção, dado que, nesse contexto, nenhuma violação da convenção em que tenha sido parte imputa aos demais subscritores do título cambiário, através da qual se mantivesse nas relações imediatas[24].

Note-se que o caso não muda de figura, ainda que - como sustenta alguma doutrina[25] - se admita o avalista a invocar a excepção do preenchimento abusivo mesmo que não tenha participado no acordo ou convenção de preenchimento. Mesmo neste caso, continua a competir ao subscritor em branco demonstrar o quid com o qual o preenchimento é desconforme, pelo que se não lograr reconstruir em juízo os termos do acordo de preenchimento, o credor será admitido a exercer o seu direito cartular tal como o título o documenta. Mesmo na hipótese apontada – como esta Relação já sublinhou – quem invoca que não há/subsiste convenção de preenchimento, fica sem quid que sirva de suporte/reporte ao preenchimento abusivo[26].

Mas não é esse o caso do recurso.

Patentemente, os avalistas, gerentes da aceitante da letra – designadamente o executado N... – intervieram no pacto de preenchimento, autorizando o sacador – a exequente – a proceder ao seu preenchimento no tocante quer ao respectivo valor, quer relativamente à data do seu vencimento, caso em que a relação triangular assim estabelecida, como base comum das obrigações cambiárias do sacador, do aceitante e do avalista, permite concluir que se situam ainda no plano das relações imediatas entre todos aqueles interessados[27].

Portanto, ao opoente avalista é lícito opor a excepção do preenchimento abusivo. Note-se que se o demandado demonstrar, no contexto do preenchimento abusivo do título, que a quantia nele inscrita é superior à que resulta dos critérios do acordo de preenchimento, ao contrário do que sucede com o preenchimento injustificado – que leva ao afastamento da pretensão cambiária e executiva – a única consequência, seja qual for a fundamentação que se tenha por exacta, é a reconfiguração daquelas pretensões, devolvendo-as aos limites excedidos pelo credor[28].

Simplesmente, o que sucede, na espécie sujeita – como linearmente decorre dos factos apurados na 1ª instância – é que o executado não demonstrou, como lhe competia, que a exequente – sacadora e portadora da letra – tenha inserido nela contexto diverso do convencionado, designadamente quanto ao valor e à data do vencimento. Como a prova de que o contexto inserto na letra é diverso do acordado vincula o executado, em caso de non liquet, importa proferir uma decisão que o desfavorece, por ser a parte onerada com a prova (artºs 342 nº 2, 346 e 378 do Código Civil e 414 do nCPC).

De resto, a razão que a sentença teve por determinante para concluir pela procedência da oposição, não respeita a qualquer excepção ex-causa, i.e., fundada na relação fundamental ou causal da letra, mas numa circunstância inteiramente diversa: a falta de interpelação prévia do avalista imposta pelo facto de a letra ter sido emitida e entregue em branco e de só através dessa interpelação adquirir a notícia do exacto montante devido e da data de vencimento da sua obrigação de garantia – ausência de interpelação de que a sentença impugnada extraiu a conclusão da inexigibilidade da obrigação do executado N..., por falta de vencimento da obrigação cartular.

Dito de outro modo: a obrigação exequenda, por falta daquela interpelação, não é exigível e, por esse motivo, não é intrinsecamente exequível.

3.4. Exigibilidade da obrigação exequenda.

A exequibilidade intrínseca refere-se à obrigação exequenda e às suas características: a obrigação exequenda tem de apresentar certas características que justificam a execução pelo que deve, desde logo, ser exigível (artº 713 do nCPC).

A exigibilidade da obrigação é um pressuposto ou condição relativa à execução, dado que se a obrigação ainda não é exigível, não se justifica proceder à realização coactiva da prestação. A inexigibilidade da obrigação constitui fundamento de oposição a execução que, caso seja julgada procedente, determina a extinção da execução e a caducidade de todos os efeitos nela produzidos, como, por exemplo, a penhora ou a venda executiva dos bens penhorados (artº 732 nº 4 do nCPC).

Obrigação exigível, na acção executiva, é aquela que está vencida – ou que se vence com a citação do executado e em relação à qual o credor não se encontra em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação[29]. Maneira que, o vencimento da obrigação é sempre indispensável à sua exigibilidade – mas esta pode reclamar algo mais do que esse vencimento. No plano substantivo, diversamente, a exigibilidade da obrigação não está na dependência do seu vencimento, razão que explica que obrigações puras sejam exigíveis antes de estarem vencidas (artº 777 nº 1 do Código Civil).

Nas obrigações a prazo, a obrigação exequenda não é exigível se a fixação desse prazo couber ao credor e este não o estabeleceu: neste caso, a obrigação exequenda só é exigível depois de o tribunal o determinar (artº 777 nº 3 do Código Civil).

Se a obrigação for pura, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento, mas a obrigação não se considera vencida sem a interpelação do devedor (artº 777 nº 1 do Código Civil). A citação do executado para o cumprimento da obrigação vale como interpelação do devedor, embora o exequente fique responsável pelas custas da execução se o executado cumprir a obrigação no prazo em que ainda o pode fazer (artº 535 nºs 1 e 2, b), do nCPC).

A subscrição da letra em branco pode reconduzir-se a uma ideia genérica de garantia, num contexto de relativa incerteza. Supõe, em regra, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido – porque falta, por exemplo, determinar o seu valor ou a data do seu vencimento – ou no contexto da qual se prevê apenas como eventual a constituição de um direito de crédito. Aparece, sobretudo, no âmbito de relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente para fazer face ao facto patológico de um incumprimento. Mais do que acentuar o carácter ilíquido da dívida determinante da emissão da letra em branco, deve colocar-se no mesmo plano o seu carácter futuro e incerto: trata-se, em resumo, da garantia de responsabilidades futuras e ilíquidas. A segurança proporcionada ao credor – na qual radica, em última extremidade, o interesse prático da letra em branco – reside na circunstância de ficar desde logo com o título em seu poder: chegado o momento, completá-lo-á segundo o convencionado – mas sem dependência de qualquer nova manifestação de vontade do devedor. Não se torna, portanto, necessário obter a colaboração do devedor ou qualquer tipo de renovação da sua vontade de assumir uma vinculação cambiária.

Dito doutro modo: o subscritor de letra em branco não tem que praticar qualquer novo acto jurídico, nem fazer nova manifestação de vontade, para originar a obrigação cambiária prevista: para tanto basta a actividade material do detentor do título. O poder de preencher a letra em branco se não constitui um verdadeiro direito potestativo do receptor, integra-se ao menos na faculdade compreendida no direito do último de obter a declaração cambiária prometida pelo subscritor.

No entanto, sempre que o título seja emitido em branco, acompanhado de uma convenção reguladora da autorização e dos termos do preenchimento compreende-se, sem dificuldade que o sujeito a quem foi atribuída a faculdade de a preencher deva dar conhecimento ao subscritor – a qualquer subscritor – quer do facto do preenchimento quer do contexto exacto que inseriu no título, dado que só dessa maneira o subscritor – maxime o avalista – adquire a notícia, não, evidentemente, de que contraiu a obrigação cambiária - mas do exacto conteúdo da obrigação cambiária a que se vinculou e do momento em que deve satisfazê-la ou da violação, pelo portador, da convenção de preenchimento.

Mas o que não temos por certo – sem prejuízo, evidentemente, da unção devida por entendimento diverso - é que uma tal notícia ou interpelação tenha, imperativamente, de ter lugar previamente à proposição da execução que tenha por objecto a obrigação pecuniária constitutivamente incorporada no título e que, por ausência dessa interpelação prévia, aquela obrigação seja inexigível, por falta de vencimento e, como tal intrinsecamente inexequível.

Em primeiro lugar uma tal interpelação prévia do avalista não é reclamada, ao menos expressamente, pela lei cambiária, o que explica que quem sustente uma tal exigência – como é caso da sentença impugnada e das espécies jurisprudenciais em que se apoia - não indique o texto legal em que ela, directa ou indirectamente, se contém.

De outro aspecto, se a letra foi emitida em branco designadamente quanto à época do pagamento e se o portador, de harmonia com a convenção de preenchimento, lhe insere essa indicação, a obrigação pecuniária que incorpora considera-se vencida – e como tal exigível - nessa data (artº 805 nº 2, a), do Código Civil). De resto, a indicação da época do pagamento nem sequer constitui um elemento essencial da letra, no sentido de que não é necessária fazer-lhe, na letra, uma referência expressa: na falta dessa indicação, funciona a presunção – que só é absoluta nas relações mediatas – de que foi sacada à vista (artº 2, II, da LUsLL). Se, portanto, o portador preencher a data do vencimento, a obrigação cartular considera-se vencida no prazo indicado na letra; se deixar em branco a menção relativa a época do pagamento, a letra considera-se, presuntivamente, sacada à vista, vencendo-se, portanto, na data da respectiva apresentação (artº 34 da LUsLL). Em qualquer dos casos, a dívida considera-se vencida e é perfeitamente exigível, não estando aquela vencimento e esta exigibilidade dependentes de qualquer interpelação prévia.

Com a entrega da letra em branco, atribui-se ao portador, entre outros, o direito de decidir, designadamente quanto ao momento da inserção na letra das estipulações cambiárias que determinam o conteúdo do direito cartular, deixadas em branco no momento da sua emissão e entrega. E a este propósito é útil recordar que – ao contrário de outros ordenamentos – entre nós a lei não fixa qualquer prazo[30] para o exercício do poder de preenchimento, aspecto cuja regulação pode, por isso, ser deixada para o acordo de preenchimento – embora essa convenção raramente preveja a data do vencimento que deve ser aposta no título.

Portanto ao portador, é lícito proceder a esse preenchimento no momento[31] da instauração da execução que tenha por objecto a satisfação coactiva da prestação pecuniária incorporada na letra. Neste condicionalismo não se vê como é que o portador pode interpelar previamente o avalista ou outro subscritor da letra, sendo certo que tanto um como o outro tomarão, necessariamente, conhecimento do facto e dos termos do preenchimento com o acto da sua citação para a execução, em que lhes será lícito discutir – excepto se se tratar de portador mediato e de boa fé – a observância do pacto de preenchimento, tanto no tocante à justificação desse preenchimento como relativamente aos seus termos.

Ex-adverso, argumenta-se que a interpelação do avalista é essencial para a prova de que o vencimento da letra se deu na data em que o exequente a apôs no título, de acordo com o pacto de preenchimento[32]. Não parece que esta razão proceda. Em primeiro lugar, o portador pode optar por não preencher a letra com a época do pagamento e, portanto, com a data do vencimento. Depois, o que prova a data do vencimento é a letra ela mesma – e não a interpelação que eventualmente o portador faça ao subscritor (artº 1 da LUsLL). Por último, a interpelação não prova, em caso algum, a conformidade do preenchimento com o pacto de preenchimento. De resto, no caso de portador mediato de boa fé – que, portanto, pode exigir o pagamento da letra de qualquer obrigado cambiário, não lhe podendo ser oposta a excepção do preenchimento abusivo – não se vê qualquer utilidade na interpelação prévia, dado que, nesta hipótese, ao obrigado cambiário a quem for exigido o pagamento, apenas resta accionar cambiariamente os seus próprios garantes, se os houver, ou civilmente o sujeito ou sujeitos que violaram a convenção de preenchimento (artºs 49 da LUsLL e 799 do Código Civil).

Convém recordar – como acima se sublinhou - que com a entrega – consciente - da letra assinada em branco o subscritor confere, necessariamente, à pessoa a quem faz a entrega o poder de a preencher e, portanto, o acto de preenchimento tem o mesmo valor que teria se fosse praticado pelo subscritor ou se já tivesse sido praticado no momento da subscrição, pelo que aquilo que se escreve na letra em branco considera-se escrito pelo subscritor, sendo, assim, de presumir que o conteúdo da letra representa a vontade daquele, embora esta presunção possa ser ilidida pelo subscritor através da demonstração de que houve abuso no preenchimento.

Mas vamos que, realmente, seria de exigir uma tal interpelação prévia, como condição de vencimento e de exigibilidade da obrigação cartular. Na sua ausência sempre valeria como interpelação a citação do subscritor – maxime do avalista - para a execução, embora com a consequência de a obrigação se considerar vencida apenas desde essa citação e o encargo das custas da execução dever recair sobre o exequente, se o subscritor executado cumprir a obrigação no prazo em que ainda o podia fazer (artº 610 nºs 1 e 2, b), e 535 nºs 1 e 2 b), ex-vi artº 531 nº 1, do nCPC). Com a sua citação para a execução, o avalista fica perfeitamente inteirado sobre o facto do preenchimento e sobre o contexto inserido na letra que subscreveu em branco, designadamente quanto à data do seu vencimento: se esse contexto respeita aquilo que se convencionou, o avalista deve honrar a obrigação de garantia que, por força da declaração cambiária de aval, se vinculou e proceder ao pagamento; se aquele contexto for desconforme com o que se acordou é lícito – nas condições apontadas – opor – e demonstrar – a excepção correspondente. Se a excepção consistir no preenchimento injustificado, a sua prova determinará a improcedência da pretensão cambiária e executiva; se consistir, limitadamente, no excesso relativamente à quantia pecuniária inscrita no título, a sua demonstração importará a redução de qualquer daquelas pretensões aos limites assinalados na convenção de preenchimento.

No caso, o executado N... não demonstrou que a exequente tenha preenchido a letra – designadamente quanto à época do vencimento - em contravenção com o pacto de preenchimento concluído concomitante com a emissão e a entrega desse título de crédito. E como não há razão para concluir pela inexigibilidade da obrigação de garantia a que se vinculou por força no negócio jurídico cambiário de aval, não há qualquer motivo para a que a contestação que deduziu contra a execução se tenha por procedente.

Nestas condições, há que concluir pela incorrecção da sentença impugnada. Importa, por isso, revogá-la e logo a substituir por outra que determine o prosseguimento, também contra aquele executado, da execução.

Síntese recapitulativa:

a) Com a entrega da letra assinada em branco o subscritor – v.g., o avalista - confere, necessariamente, à pessoa a quem faz a entrega o poder de a preencher e, portanto, o acto de preenchimento tem o mesmo valor que teria se fosse praticado pelo subscritor ou se já tivesse sido praticado no momento da subscrição, e portanto, que aquilo que se escreve na letra em branco considera-se escrito pelo subscritor, sendo, assim, de presumir que o conteúdo da letra representa a vontade daquele, embora esta presunção possa ser ilidida pelo subscritor através da demonstração de que houve abuso no preenchimento;

b) A lei cambiária não impõe, como condição de exigibilidade da obrigação de garantia do avalista de letra emitida em branco, a prévia interpelação deste.

c) Mas ainda que uma tal interpelação prévia fosse de exigir, na sua ausência sempre valeria como interpelação a citação do subscritor do avalista para a execução, embora com a consequência de a obrigação se considerar vencida apenas desde essa citação e o encargo das custas da execução dever recair sobre o exequente, se aquele cumprir a obrigação no prazo em que ainda o podia fazer.

O executado Nuno Francisco sucumbe no recurso. Deverá, por essa razão, satisfazer as custas dele (artº 527 nºs 1 e 2 do nCPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença impugnada e, consequentemente julga-se improcedente a oposição à execução deduzida pelo executado N... e determina-se, também quanto a este, o prosseguimento da execução.

Custas pelo executado, N...

                                                                                                                             15.10.06

                                                                                                                             Henrique Antunes

                                                                                                                             Alexandre Reis

                                                                                                                             Jaime Carlos Ferreira

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[1] Ac. do STJ de 09.12.87, BMJ nº 372, pág. 369.
[2] Michele Tarufo, Páginas Sobre Justicia Civil, Marcial Pons, 2009, pág. 53.
[3] Michele Tarufo, cit., págs. 36 e 37.
[4] Acs. do STJ de 08.07.87, BMJ nº 369, pág. 481, da RP de 06.01.94, CJ, 94, I, pág. 197 e da RL de 03.11.94, CJ, 94, V, pág. 90.
[5] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1984, pág. 140, Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, 2001, pág. 703, e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, págs. 221 e 222.
[6] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, cit., pág. 139 e 140 e Acs. da RP de 06.01.94 e da RL de 03.11.94 e 17.1.91, CJ, 94, I, págs. 197, 94, V, pág. 90 e 91, I., pág. 121, respectivamente.
[7] Ac. do STJ de 26.09.95, CJ, 95, III, pág. 22, e da RE de 24.11.94, BMJ nº 441, pág. 420.
[8] Disponíveis em www.dgsi.pt. Aos acórdãos apontados pode somar-se, no mesmo sentido, o da RE de 27.02.14, disponível no mesmo sítio.
[9] Para uma caracterização mais esgotante do aval, cfr. o AUJ do STJ de 11.12.2012, DR, Série I, de 21.01.2103.
[10] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1975, pág. 75, José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, pág. 37, Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 6ª edição, Lisboa, 1990, págs. 116, 126 e 127, Vaz Serra, RLJ Ano 105, pág. 376 e Acs. do STJ de 12.10.78 e 26.06.73, BMJ nºs 280, pág. 343 e 228, pág. 233.
[11] RLJ, Ano 55º, pág. 210.
[12] José A. Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito, Coimbra Editora, 2009, págs. 65 e 66.
[13] O debate polariza-se em torno de duas teses: a da emissão; a do preenchimento. Cfr. Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 6ª edição, Lisboa, 1990, pág. 76 e Vaz Serra, RLJ Ano 109, pág. 264 e Títulos de Crédito, BMJ nº 61, pág. 264 e Paulo Sendim, Letra de Câmbio, vol. I, Coimbra, 1979, págs. 32 a 34; Acs. do STJ de 24.10.02, 20.05.04 e 12.07.05, www.dgsi.pt. Em sentido diverso, concluindo que a letra em branco não tem efeito como letra, só surgindo como título cambiário após o preenchimento – embora atribua a este carácter retroactivo, cfr., José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, cit., págs. 117 e 118.
[14] Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ nº 111, pág. 168, e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., Coimbra, 1985, pág. 421.
[15] Carolina Cunha, Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 535.
[16] Acs. do STJ de 11.02.03 e de 13.12.07, www.dgsi.pt.
[17] Carlina Cunha, pág. 621.
[18] Acs. do STJ de 28.05.96, BMJ nº 457, pág. 403, 01.10.98, BMJ nº 480, pág. 482 e 20.10.96, www.dgsi.pt.
[19] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, cit., págs. 129 a 142.
[20] Entre outros, os Acs. da RP de 27.06.06, 14.11.06, 29.11.06, da RE de 01.03.07 e do STJ de 24.10.02, www.dgsi.pt.
[21] V.g., Acs. do STJ de 06.03.03, 20.03.03, 11.11.04, 05.12.06, 06.03.07, 19.06.07, da RL de 16.10.03, 30.06.05, 21.09.06, 24.04.07, da RP de 20.05.03, 20.11.06, 27.02.07, e da RC de 31.01.06 e 14.02.06, www.dgsi.pt.
[22] Carolina Cunha, Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, cit., págs. 592 a 597.
[23] Acs. do STJ de 08.10.09, 23.04.09, 09.09.08, 04.03.08 e 19.06.07, www.dgsi.pt. Todavia, o carácter materialmente autónomo da obrigação do avalista, obsta a que este invoque como causa da respectiva nulidade a indeterminabilidade da obrigação que assumiu, com fundamento na ausência ou desconhecimento do pacto de preenchimento da livrança em branco: Ac. do STJ de 23.04.09.
[24] Ac. do STJ de 22.10.13, www.dgsi.pt.
[25] Carolina Cunha, RLJ, Ano 143, pág. 73.
[26] Ac. de 18.12.13, www.dgsi.pt.
[27] Acs. do STJ de 04.03.08 e de 10.09.09, www.dgsi.pt.
[28] Acs. do STJ de 30.03.06 e da RP de 01.06.06, www.dgsi.pt.

[29] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, pág. 96.
[30] Acs. do STJ de 25.03.04 e de 29.11.05 e da RP de 04.04.02, www.dgsi.pt.
[31] Note-se que não falta doutrina que não vê na lei cambiária qualquer obstáculo a que o preenchimento se faça durante o processo, estando essa admissibilidade apenas dependente das regras da lei adjectiva, que, mesmo que não permita o accionamento de uma letra não completa, não impede o preenchimento posterior e o exercício renovado dos direitos cambiários. Assim, Vaz Serra, Títulos de Crédito, nº 61, págs. 272 e 273. Cfr., o Ac. do STJ de 04.06.02, www.dgsi.pt.
[32] Ac. da RE de 27.02.14, www.dgsi.pt.