Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1516/14.7TBCLD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
DIREITO DE RETENÇÃO
PROMITENTE-COMPRADOR
CONSUMIDOR
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - INST. CENTRAL - 2ª SEC.COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 755º, Nº 1, AL. F), DO CC,
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO Nº 4/2014 DO STJ
Sumário: I – A jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 4/2014 deve ser entendida no sentido de que o promitente-comprador que seja consumidor (excluindo, portanto, o promitente-comprador que não seja consumidor) goza do direito de retenção nas situações ali abrangidas.

II – Ainda que a jurisprudência uniformizada do STJ deva ser respeitada pelos Tribunais e ainda que a doutrina firmada pelo Acórdão supra citado – que assenta numa interpretação restritiva do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, no sentido de que o direito de retenção aí previsto apenas abrange o promitente-comprador que seja consumidor – seja, em princípio, aplicável a qualquer processo que se encontre pendente, ela não deverá ser aplicada a reclamações de créditos que foram formuladas (no âmbito de um processo de falência) dezoito anos antes e no decurso das quais não foram trazidos aos autos, por nenhuma das partes, os factos que seriam pertinentes para concluir se os credores reclamantes (promitentes-compradores) eram ou não consumidores, por não ser, então, previsível a exigência desse requisito que não estava previsto na lei e cuja relevância/necessidade só mais tarde começou a ser suscitada na doutrina e jurisprudência e por não ser exigível que as partes ponderassem ou admitissem a pertinência desses factos em termos de poderem, agora, ser responsabilizadas pelas consequências da sua não alegação.

III – Daí que, nessa situação e não obstante a aludida jurisprudência uniformizada, deva ser reconhecido o direito de retenção aos credores que o invocaram, ao abrigo do disposto no art. 755º, nº1, al. f), do CC, com base na sua qualidade de promitentes-compradores de determinadas fracções, cuja tradição obtiveram, para garantia do crédito emergente do incumprimento desse contrato.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de falência referentes a A... , Ldª – cuja falência foi decretada por sentença proferida em 15/04/1996 – foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que graduou os créditos reclamados e reconhecidos nos seguintes termos:

A) Pelo produto obtido pela venda do imóvel apreendido e descrito sob averba n.º 2 :

1.º- O crédito dos reclamantes B.... e mulher C.....

2.° - O crédito da N... , S.A.;

3.° - Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do art° 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for;

B) Relativamente ao produto obtido pela venda dos imóveis apreendidos e descritos sob as verbas n.ºs. 4, 5 e 6;

1.° - O crédito do reclamante D....;

2.° - O crédito da N... , S.A.;

3.°- Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do artigo 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo. produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for.

C) Relativamente ao produto obtido pela venda dos imóveis apreendidos e descritos sob as verbas nºs. 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14;

1.º - O crédito dos reclamantes G..., H... e I... , referido em II - m) supra;

2.° - O crédito da N... , S.A., de 37.372.562$50, referido em II - b) supra;

3.°- Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do artigo 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for;

D) Relativamente ao produto obtido pela venda dos imóveis apreendidos e descritos sob as verbas n.ºs 17, 20, 21 e 22:

1.º- O crédito do reclamante F... . ;

2.° - O crédito da N... , S.A.;

3.° - Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do artigo 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for.

E) Relativamente ao produto obtido pela venda dos imóveis apreendidos e descritos sob as verbas nºs. 15, 16, 18, 19, 23 e 24:

1.º - O crédito da N... , S.A.;

2.° - Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do artigo 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento; procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for.

F) Relativamente ao produto obtido pela venda dos imóveis apreendidos e descritos sob as verbas nºs. 25 e 26:

1.° - O verificado crédito dos requerentes da falência, J... e mulher, L.. , referido em IV - supra;

2.° - O verificado crédito da reclamante O... ;

3.º -Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do artigo 209.°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for”.

Discordando dessa decisão, a N... , S.A., veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1)- Vem o presente recurso de apelação interposto da, aliás, douta decisão de verificação e graduação de créditos, proferida pelo Tribunal à quo, nos autos de reclamação de créditos, apenso ao processo de falência, que graduou os créditos, como se transcreve, na parte que ora interessa:

A) Pelo produto obtido pela venda do imóvel apreendido e descrito sob averba n.º 2;

1.º- O crédito dos reclamantes B.... e mulher C.....

2.° - O crédito da N... , S.A.;

3.° - Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do art° 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for;

B) Relativamente ao produto obtido pela venda dos imóveis apreendidos e descritos sob as verbas n.ºs. 4, 5 e 6;

1.° - O crédito do reclamante D....;

2.° - O crédito da N... , S.A.;

3.°- Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do artigo 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo. produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for.

C) Relativamente ao produto obtido pela venda dos imóveis apreendidos e descritos sob as verbas nºs. 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14;

1.º - O crédito dos reclamantes G..., H... e I... , referido em II - m) supra;

2.° - O crédito da N... , S.A., de 37.372.562$50, referido em II - b) supra;

3.°- Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do artigo 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for;

D) Relativamente ao produto obtido pela venda dos imóveis apreendidos e descritos sob as verbas n.ºs 17, 20, 21 e 22:

1.º- O crédito do reclamante F... ;

2.° - O crédito da N... , S.A.;

3.° - Os restantes créditos verificados (incluindo, nos termos do artigo 209°, aqueles com garantia real sobre outros bens cujo respectivo produto não seja suficiente para o seu pagamento integral), caso sobeje produto para o respectivo pagamento, procedendo-se a rateio entre aqueles, na proporção dos respectivos montantes, se necessário for.

2)- A recorrente discorda da douta decisão proferida. Com efeito,

3)- Vieram os credores B.... e mulher C...., D...., G..., H... e I... e F... , reclamar os seguintes créditos:

a)- B.... e mulher C....:

O crédito de € 129.496,13 (25.961.643$00), respeitante à restituição em dobro do sinal de 18.000.000$00 e a juros, sinal esse que entregaram à falida para cumprimento do contrato-promessa de compra e venda que com ela celebraram e que por esta foi incumprido, já que a mesma, culposamente, não outorgou a escritura de compra e venda a que respeitava o contrato prometido e que se referia à venda, a eles, ora reclamantes, pelo preço de 25.000.000$00, que tinha como objecto o prédio urbano constituído pela moradia do lado direito, fracção autónoma designada pela letra "B", composta por cave, rés-do-chão e logradouro, do prédio situado na Rua Joaquim, Frutuoso, no 8, na (...) , inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo no 1.049 e descrito sob o n° 00413/041089, invocando o direito de retenção sobre a referida fracção autónoma, já que obtiveram a respectiva tradição, estando na sua posse desde Junho de 1992;

b) D....:

O crédito de € 116.295,07 (23.315.069$00), respeitante à restituição em dobro do sinal de 10.000.000$00 e a juros, sinal esse que entregou à ora falida para cumprimento do contrato-promessa de compra e - venda que com ela celebrou e que por esta foi incumprido, já que a mesma, culposamente, não outorgou a escritura de compra e venda a que respeitava o contrato prometido e que se referia à venda, a ele, ora reclamante, pelo preço de 19.000.000$00, que tinha como objecto o prédio urbano constituído por uma moradia bi-familiar construída no Lote 3, sito em (...) , composta por uma moradia bi-familiar do tipo T3 e respectivas garagens, identificadas pelas fracções “A”, “B” e “C”, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo n.º 7.195 e descrita sob o n° 963/240190, invocando o direito de retenção sobre as referidas fracções autónomas, já que obteve a respectiva tradição, estando na sua posse desde Novembro de 1992;

c) G..., H... , casada com M.. , I... :

O crédito de € 156.021,25 (31.279.452$00), fundamentando a sua reclamação no incumprimento parcial e culposo, por parte da ora falida, do contrato-promessa de permuta do prédio rústico situado em (...) , Caldas da Rainha, inscrito na matriz sob o artigo n.º 1.056 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 537, pertença do referido E, por 4 habitações tipo T - 3 e 4 garagens, construídas nos lotes n.ºs 8 e 9, do loteamento com o n.º 1/90, implantado, em parte, no prédio cedido pelos AA. e, ainda, o lote n.º 19 resultante do mesmo loteamento.

Alegaram que em cumprimento do mencionado contrato-promessa, o referido Ee mulher transmitiram para a empresa A...., em 7 de Novembro de 1991, através de escritura de compra e venda o aludido prédio rústico que, por sua vez, a " A...., Lda.", apenas cedeu, em 4 de Dezembro de 1992, através de escritura, ao mesmo E, o prometido Lote n.º19, não transmitindo os restantes imóveis, agora constituídos, no que se refere ao Lote no 8, pelo prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00968/Caldas da Rainha - (...) , afecto ao regime da propriedade horizontal e composto pelas fracções A, B, C e D, e ao Lote n.° 9, pelo prédio urbano descrito na CRP sob o n.º 00969/Caldas da Rainha- (...) , afecto ao regime da propriedade horizontal e composto pelas fracções A, B, C e D, - o que deveria ter sido concretizado até 6 de Maio de 1992. Tendo sido convencionado que o valor da transmissão destes imóveis seria de 20.000.000$00, pedem os ora reclamantes o reconhecimento do seu crédito, no montante global de € 156.021,25 (31.279.452$00), sendo, desse montante, 20.000.000$00; relativos ao valor da transmissão dos referidos imóveis, e 11.279.452$00 respeitantes a juros remuneratórios contados desde 6 de Maio de 1992 e até à da declaração da falência, à taxa de 15%, até 25/9/95, e de 10% a partir dessa data. Invocaram o direito de retenção sobre as referidas fracções autónomas, já que obtiveram a respectiva tradição, estando na sua posse desde o início de 1992;

d) F... , o crédito de € 111.087.07 (22.270.959$00), respeitante ao valor do preço (15.000.000$00); acrescido de juros, preço esse entregue, por ele; ora reclamante, à ora falida em, cumprimento de contrato-promessa de compra e venda que com ela celebrou e que por esta foi parcialmente incumprido, já que a mesma, culposamente, não outorgou a escritura de compra e venda a que respeitava o contrato prometido e que se referia à venda, a ele, ora reclamante, além de outras, relativamente às quais foi cumprido o acordado, pelo preço de 15.000.000$00, das fracções autónomas designadas pelas letras “H” (espaço amplo fechado, ao nível do r/c, destinado a estacionamento automóvel) "T", (espaço amplo fechado, ao nível do r/c, destinado a estacionamento automóvel), "AA” (habitação ao nível do 1 o andar) e “AE" (habitação ao nível do 1 ° andar), invocando o direito de retenção sobre as referidas fracções autónomas, já que obteve a respectiva tradição, estando na sua posse desde finais de 1990.

4)- Nas reclamações apresentadas vieram os citados credores reclamantes, ora recorridos, e nos termos expostos, alegar direito de retenção, tendo sido, originariamente, proferida a sentença de verificação e graduação de créditos, datada de 4 de Maio de 1998, na qual, e no que à recorrente N... , concerne, e na parte que nesta sede interessa, estabeleceu a seguinte graduação de créditos:

1. Fracção "B" prédio 00413/041089, (...) (correspondente à verba 2)

1º - O crédito dos reclamantes B.... e mulher, Esc.: 25.961.643$00;

2º- O crédito da N... – Esc.: 23.730.334$00;

2.Fracções" A", "B" e C" prédio 00963/240190 C. Rainha e N." S." P. (correspondendo às verbas 4,5,6)

1° - O crédito do reclamante D.... – Esc.: 23.315.068$00;

2° - O crédito da N... – Esc.: 24.241.171$50;

3° - Os restantes créditos

3.Fracções "A", "B", "C" e "D" prédio 00968/240190 e A, B, C, D 009691/240190 C. Rainha (correspondendo às verbas 7, 8,9,10,11,12,13,14)

1º - O crédito dos reclamantes G.... e H... – esc.: 31.279.452$00;

2° - O crédito da N... – Esc.: 37.372.562$50;

3° - Os restantes créditos.

4.Fracções "H", "T", "AA" e "AE" prédio 00320/281188 (...) (correspondendo às verbas 17,20,21,22)

1º - O crédito do reclamante F... – Esc.: 22.270.959$00;

2° - O crédito da N... – Esc.: 28.456.451$50;

3° - Os restantes créditos.

5)- Tal sentença de graduação de créditos com reconhecimento do direito de retenção de terceiros, os ora recorridos, assentou, tão-somente, em decisões proferidas em acções declarativas nas quais foi reconhecido o direito de retenção, mas em que a ora recorrente N... , S.A. não foi citada na qualidade de credor com garantia real;

6)- A ora recorrente N... não aceitando a graduação assim determinada quanto a todas as fracções supra identificadas, relativamente às quais foi graduada em segundo lugar, depois dos atrás citados credores reclamantes, aqui recorridos, tendo interposto o inerente recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que o julgou improcedente, mantendo, a sentença de verificação e graduação de créditos;

7)- Do Acórdão, assim proferido pela Relação em 21.01.2014, foi interposto recurso pela N... para o STJ;

8)- Por Acórdão do STJ prolatado a 09.09.2014 foi decidido anular as decisões proferidas pela 1.ª Instância e pela Relação, considerando que as sentenças que reconheceram o direito de retenção, não são oponíveis aos credores na insolvência, não podendo com base nelas serem reconhecidos e graduados tais direitos de retenção, e ordenou-se a remessa dos autos à 1.ª Instância para que o tribunal julgasse de acordo com as próprias provas produzidas no apenso da reclamação;

9)- Em cumprimento, veio o tribunal de 1.ª Instância, em 03.07.2015 a proferir a sentença que graduou os créditos, conforme graduação supra transcrita, mantendo a preferência dos credores reclamantes que gozam do direito de retenção, que já havia sido feita por sentença de 04.05.1998;

10)- Enquanto a sentença proferida em 05.05.1998 reconheceu os alegados direitos de retenção por remessa para sentenças proferidas em processos ordinários onde tais direitos foram reconhecidos, e assim, sequer conheceu dos factos concretizadores de tal direito alegados no apenso da reclamação de créditos, a sentença sob recurso (não remetendo para tais sentenças porque inopuníveis aos demais credores, entre estes, à ora recorrente), apreciou os factos alegados no processo de falência e admitiu-os por falta de impugnação, graduando-os pela ordem de preferência conferida pelo direito de retenção;

11)- A douta decisão recorrida considerou que para apreciação do invocado direito de retenção, importava atentar na factualidade que na sua tese resulta assente nos presentes autos, face à ausência de impugnações válidas – em consonância com o despacho proferido a fls. 376 e seguintes dos autos e que se transcreve:

- J... e mulher L.. , em 2 de Fevereiro de 1994, celebraram com a falida um contrato-promessa de compra e venda respeitante à fracção identificada pela letra “B”, correspondente à habitação direita de um prédio composto por duas habitações duplex, do tipo T3, em construção no lote 13 dos (...) , freguesia de Caldas da Rainha – (...) , inscrito na matriz sob o artigo 8396 e descrito na CRP sob o n.º 01494/070694-B.

Em 4 de Fevereiro de 1994 celebraram com a falida um segundo contrato-promessa de compra e venda respeitante à fracção identificada pela letra “A”, correspondente à habitação esquerda de um prédio composto por duas habitações duplex, do tipo T3, em construção no lote 13 dos (...) , freguesia de Caldas da Rainha – (...) , inscrito na matriz sob o artigo 8396 e descrito na CRP sob o n.º 01494/070694-B.A partir de Março de 1995 obtiveram da falida a tradição dos prédios referidos em 1. e 2., que passaram a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fosse de sua efectiva e plena propriedade.

Tal materializou-se com as obras de acabamento das habitações a que os Requerentes se dedicaram, tal como foi acordado com a Requerida por reconhecida falta de meios.

Entre obras de menor monta, realizaram as seguintes obras: colocação de dois portões bascolantes nas garagens; aplicações de madeira no interior; peitoris e soleiras em mármore; afinação de portões bascolantes; diversos acabamentos interiores; instalação do aquecimento central e caixilharia e vidros.

Despenderam um total de 1.577.654$00 em obras de acabamentos nas habitações objecto da promessa de compra e venda.

- B.... e mulher, C.... em 29 de Julho de 1991 celebraram com a falida um contrato-promessa de compra e venda respeitante à fracção identificada pela letra “B”, do prédio situado na Rua (...) , (...) , inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1.409 e descrito na CRP sob o n.º 00413/041089.

Desde Junho de 1992 que obtiveram da falida a tradição do prédio, o qual passaram a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fosse de sua efectiva e plena propriedade.

- D...., em 7 de Setembro de 1992 celebraram com a falida um contrato-promessa de compra e venda respeitante a moradia bifamiliar do tipo T3 e respectivas garagens, identificadas pelas fracções “A”, “B” e “C”, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo n.º 7.195 e descrita na CRP sob o n.º 963/240190.

Desde Novembro de 1992 que obteve da falida a tradição do prédio, o qual passaram a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fosse de sua efectiva e plena propriedade.

- E(já falecido, intervindo em representação os seus herdeiros) em 4 de Dezembro de 1992 a falida cedeu ao mesmo o prometido lote 19, descrito na CRP sob o n.º 1500.

No que respeita à restante parte do compromisso assumido pela falida, deveria a mesma ter transmitido para os Requerentes os prédios prometidos, - constituídos – no que se refere ao lote 8 – pelo próprio prédio urbano descrito na CRP sob o n.º 00968/Caldas da Rainha – (...) e ao Lote n.º 9, pelo prédio urbano descrito na CRP sob o n.º 00969/Caldas da Rainha – (...) , afecto ao regime da propriedade horizontal e composto pelas fracções “A”, “B”, “C” e “D”, o que deveria ter sido concretizado dentro do prazo de 6 meses a contar da data da celebração do contrato-promessa.

Desde o início de 1992 que obtiveram da falida, por acto da livre vontade desta, a tradição dos imóveis relativos à prometida transmissão, os quais passaram a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fossem de sua efectiva e plena propriedade.

- F... , em 19 de Agosto de 1988, celebrou com a falida contrato-promessa de compra e venda referente às fracções autónomas compostas pelas letras “G”, “H”, “T”, “Z”, “AA” e “AE”, do prédio urbano localizado na Rua (...) , inscrito na matriz respectiva sob o artigo 971e descrito na CRP com o n.º 00320/281188.

O Requerente, desde finais de 1990, obteve da promitente-vendedora, por acto da livre vontade desta, a tradição da totalidade das fracções que constituíam o objecto da prometida transmissão, as quais passou a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fossem da sua efectiva e plena propriedade.”.

12)- Ante a factualidade dada como provada, foi decidido que relativamente aos contratos-promessa objecto dos autos, houve traditio e que, inexistindo qualquer causa de exclusão do direito de retenção, seria de concluir que os credores referenciados, ora recorridos, gozam da garantia do direito de retenção, graduando os seus créditos com prevalência sobre a hipoteca;

13)- Constitui questão essencial no presente recurso apurar e concluir se os promitentes-compradores/credores reclamantes ora recorridos, gozam efectivamente do direito de retenção que alegam sobre os imóveis objecto dos contratos promessa de compra e venda e apreendidos a favor da massa falida, e se, em caso afirmativo, a tal direito deve ser reconhecida prevalência sobre a hipoteca anteriormente constituída e registada que recaia sobre os mesmos (como ocorre nos caso sub judice);

14)- Da análise dos contratos promessa de compra e venda juntos aos autos conclui-se que os créditos dos recorridos emergem de contratos meramente obrigacionais;

15)- Os credores reclamantes, ora recorridos, alegam nas reclamações de créditos apresentadas, genericamente, que obtiveram a transmissão da posse dos imóveis prometidos em compra e venda, da promitente vendedora/falida, e que passaram a utilizá-los de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fossem da sua efectiva e plena propriedade, mas não alegam, nem provam, concretos factos, isto é, os actos materiais que passaram a exercer sobre os imóveis prometidos em compra e venda, demonstrativos de que passaram a ser e são verdadeiros possuidores em nome próprio, isto é, actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, necessário à verificação do direito de retenção;

16)- Não alegam, nem provam, nem isso resulta dos documentos juntos às reclamações de créditos, que prometeram adquirir os mesmos identificados imóveis enquanto consumidores, isto é, para uso privado, para uso pessoal, familiar ou doméstico; Na verdade,

17)- Na esteira de certa jurisprudência do STJ, só o promitente-comprador que detenha a qualidade de consumidor, pode beneficiar, na falência, do direito de retenção previsto no artigo 755.º, nº1, al. f) do CC para satisfação do seu crédito reclamado e reconhecido;

18)- Os factos alegados pelos recorridos na reclamação de créditos são insuficientes para, por si só, permitir julgar provado neste apenso, o direito de retenção alegado, e assim, insuficiente para fundamentar a graduação dos créditos tal como feita na douta decisão recorrida;

19)- Sem prejuízo do que antecedentemente se deixa plasmado no que tange à falta de alegação pelos recorridos da sua qualidade de consumidores na promessa da aquisição dos imóveis, e que os tenham destinado a uso privado, a uso pessoal, familiar ou doméstico - o que é válido para todos eles - resulta, desde logo, muito claro, que in casu, os recorridos D...., Ee F... (e sem conceder relativamente aos demais), ao prometerem adquirir várias fracções autónomas, não o fizeram, na qualidade de “consumidor” uma vez que não podiam destinar todas elas, concomitantemente, ao uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, que lhe é próprio;

20)- Sobre o entendimento de consumidor e por todos, refere-se o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência – Ac. De 25.11.2014, Proc. 7617/11.6TBBRGC.G1.S1, in http://www.dgsi.pt, o qual vem perfilhar a noção ínsita na Directiva Comunitária 1999/44/CE Consumidor será “qualquer pessoa singular que … actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional”e na Lei de Defesa do Consumidor:“Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” e para o qual e em suma,

21)- O promitente comprador, para efeitos do direito de retenção, será o consumidor, pessoa singular, que adquire o bem para uso pessoal, familiar ou doméstico.

22)- Donde, forçoso é concluir que não podem considerar-se verificados os requisitos do direito de retenção previstos no art. 755.º nº1 al. f) do CC, sendo os factos alegados pelos recorridos manifestamente insuficientes para decidir, como decidiu o tribunal a quo, sobre a existência do direito de retenção dos recorridos, impondo-se a revogação da decisão recorrida;

Quando assim não entenda, o que, e só, por era hipótese se admite:

23)- A extensão da aplicação do direito de retenção previsto no art.755, nº 1, al. f), in casu, graduando o créditos dos recorridos à frente do crédito hipotecário reclamado pela recorrente, acarretaria irremediavelmente um regime jurídico-legal violador dos princípios básicos do Estado de Direito, designadamente os princípios da proporcionalidade, da protecção da confiança e da segurança do comércio jurídico imobiliário e do direito de propriedade privada jurídica, ínsitos no art. 2º, 18º nº1 e 62.º da Constituição da República Portuguesa, constituindo uma inaceitável restrição à confiança e segurança associados ao registo predial nos termos do disposto nos art.s 60.º e 65.º do CRP;

24)- No âmbito do presente processo de falência, e dos negócios jurídicos que estivessem em curso à data da declaração da falência, os promitentes-compradores dos imóveis apreendidos a favor da massa falida, ainda que, com entrega destes, cujo contrato promessa com eficácia meramente obrigacional, não tenha sido cumprido, não pode ver o seu crédito graduado à frente do crédito hipotecário por via do direito de retenção;

25)- O direito de retenção regulado nos artigos 754.º e ss do CC consiste na faculdade que o devedor de uma coisa possui de a não entregar enquanto não for pago do crédito que por sua vez lhe assiste e a hipoteca, concede aos credores o direito de serem pagos pelo valor de certos bens do devedor, estando os seus créditos validamente registados - artigo 686.º do CC;

26)- Perante a verificação, nos autos, de contratos meramente obrigacionais, deveria o tribunal a quo, em qualquer caso, ter propendido para a prevalência do crédito hipotecário da recorrente face aos créditos dos recorridos, conferindo assim, na graduação de créditos prioridade ao direito da recorrente;

27)- Por esta razão, e se outra não for admitida, o que, e reiterando, só por mera hipótese se admite, sempre a deverá a decisão sob recurso ser revogada.

Termos em que, face ao exposto, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, por violação, nomeadamente, dos artigos 755.º nº1, al. ) e 686.º ambos do CC, artigos 2º, 18º nº1 e 62.º da Constituição da República Portuguesa, e art.s 60.º e 65.º do CRP, substituindo-a por outra que gradue o crédito da recorrente em primeiro lugar pelo produto da venda dos imóveis descritos nas verbas nº 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 17, 20, 21 e 22, i.e., das identificadas fracções “B” do prédio descrito na CRP de Caldas da Rainha sob o nº 413/ (...) e quanto às fracções “A”,”B” e “C”” do prédio descrito na CRP de Caldas da Rainha sob o nº 963/ (...) , quanto às fracções “A”, ”B” ,”C” e “D”, do prédio descrito na CRP de Caldas da Rainha sob o nº 968/Caldas da Rainha, quanto às fracções “A”, ”B” ,”C” e “D”, do prédio descrito na CRP de Caldas da Rainha sob o nº 969/ Caldas da Rainha e quanto às fracções “H”, ”T”, “AA” e “AE” do prédio descrito na CRP de Caldas da Rainha sob o nº 320/ (...) .

B.... e mulher, D.... e F... , apresentaram contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

  A - Os créditos titulados pelos recorridos foram oportunamente reclamados, tendo os recorridos - no rigoroso cumprimento do disposto no art. 188º do CPEREF - alegado e demonstrado, a existência do Contrato promessa; o seu incumprimento; a tradição dos bens prometidos e a respectiva posse, e, em consequência, alegaram a garantia de que dispunham (direito de retenção);

B - Na data em que foi apresentada a reclamação de créditos - Julho de 1996 - os recorridos juntaram todos os elementos probatórios de que dispunham e que eram, por si, suficientes para provar a existência dos respectivos créditos, daquelas garantias e, sobretudo para verificar e graduar os respectivos créditos, no lugar que legalmente lhes competia.

C - Nem a ora recorrente, nem qualquer outro credor da falida, contestou qualquer reclamação de créditos:

D - Assim, e bem, todos os factos alegados pelos recorridos, nas respectivas reclamações,  dão-se como provados, por acordo, decorrente da falta de impugnação.

E - Por esse motivo foram os créditos dos recorridos devidamente graduados, quer na sentença proferida em 1998, quer na sentença sob recurso;

F - Sento todavia inócua, é falsa a afirmação feita pela recorrente no sentido de tais créditos terem sido reconhecidos e graduados por consideração às sentenças proferidas em acções autónomas nas quais a recorrida não teve intervenção;

G - Tais créditos foram reconhecidos e graduados, quer na 1ª sentença de graduação (1998), quer na sentença recorrida (2015), com fundamento nas reclamações de créditos dos recorridos e nos elementos probatórios que os recorridos juntaram com aquelas reclamações, conjugadas com a aceitação dos factos alegados nas mesmas, por força da falta de impugnação.

H - O momento próprio para ter contestado, quer os créditos reclamados, quer as garantias invocadas, e, nomeadamente, para tentar colocar em crise todos os factos então alegados pelos recorridos, demonstrativos quer do crédito, quer da garantia (direito de retenção), não é agora; teria sido em 1996, no prazo legal previsto no artigo 192º do CPEREF;

I - Não tendo a recorrente, ou qualquer outro credor, contestado as reclamações de créditos dos recorridos, e, por isso, levantado qualquer dúvida ou questão quanto aos factos ali alegados, e nem sequer o tendo feito, já em 2015, no momento em que foi proferido o despacho saneador, no presente apenso, precludiu definitivamente a possibilidade de o fazer mais tarde, nomeadamente (e só) em sede de recurso da sentença de graduação;

J - Tendo transitado a questão, de facto, do reconhecimento da existência do crédito, da tradição e da posse, nesta fase - recurso da sentença de graduação - apenas podem ser suscitadas questões de direito:

K - Assim, e muito embora os recorridos hajam alegado e demonstrado factos concretos através dos quais se materializou a posse, ao contrário do que alega a recorrente, a verdade é que tal questão é, nesta fase, extemporânea;

L - Tal como também é extemporânea, pelo mesmo motivo, a apreciação da qualidade de consumidor, ou seja, a questão de saber se os recorridos prometeram adquirir as fracções no âmbito do exercício das respectivas actividades profissionais e empresariais, ou pessoalmente;

M - As promessas de aquisição não tinham qualquer conexão com as actividades profissionais dos recorridos, tendo-se a posse concretizado na pessoa dos próprios e família, mas em todo o caso também a apreciação dessa questão de facto se afigura, agora, extemporânea, e, processualmente, inadmissível.

N - Já quanto à questão de direito, diga-se, no que respeita à aplicabilidade do regime previsto nos artigos 442° nº2, 755° nº 2 f) e 759°, todos do Código Civil, que, em sede de falência, em especial no âmbito do domínio do CPEREF, como é o caso, é inequívoca a aplicabilidade daquelas normas, ou seja, a prevalência do crédito titulado pelos promitentes compradores que se encontram na posse dos imóveis por via da tradição decorrente da promessa, sobre o crédito hipotecário;

O - Aliás, é essa a solução reiterada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência citado pela recorrente, proferido a 20.03.2014, no processo nº 92/05.6TYVNG-M.P1.51;

P - O mesmo acórdão reitera também uma outra questão de direito levantada pela recorrente: a violação de princípios constitucionalmente garantidos, por força da prevalência, sobre o crédito hipotecário, do crédito garantido por direito de retenção, sendo que o direito de retenção, reconhecido ao credor promitente comprador, que se encontra na posse do imóvel, é uma solução legal e expressamente prevista, que foi consagrada em resposta à necessidade de protecção de uma parte habitualmente desfavorecida nas relações contratuais em questão, no respeito pelo princípio da igualdade, e do seu corolário de protecção e tratamento desigual a situações diferenciadas, e merecedoras de protecção.

Q - No que respeita à inovação, interpretativa, introduzida por aquele acórdão, atinente à qualidade de consumidor, e muito embora, como já se referiu, todos os recorridos tenham adquirido as fracções para seu uso pessoal e/ou familiar, o que alegaram e demonstraram, ª verdade é que, no momento das reclamações de créditos (996) não podiam prever a exigência futura dessa mesma qualidade, a qual não tem qualquer suporte literal nas mencionadas disposições legais:

R - Assim, tão-pouco se poderia hoje, numa eventual apreciação do preenchimento dos requisitos factuais de verificação da titularidade do crédito, tradição e posse, considerar uma exigência - qualidade de consumidor - que surgiu por via interpretativa, quase 20 anos depois do momento em que o crédito foi alegado e caracterizado, sob pena de grave violação do princípio da segurança jurídica, constitucionalmente garantido, enquanto decorrência do artigo 2º e 18º da Constituição da República Portuguesa.

5 - Nenhuma censura merece pois a douta Sentença de Graduação de créditos.

Concluem pela improcedência do recurso.

Também os credores G..., I... , M.. e H... , vieram apresentar contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

A) Os Recorridos demonstraram, cabalmente e sem qualquer impugnação, através da sua reclamação e documentos juntos a fls. 144 a 182 do Apenso 30/B/96 a existência dos pressupostos do direito de retenção que invocaram a 5 de Julho de 1996;

B) O requerimento de Reclamação de Créditos, dos Recorridos foi redigido em rigoroso cumprimento do disposto no artigo 188º do CPEREF, e nele vieram os Recorridos reclamar a verificação do seu crédito, mencionando a proveniência do mesmo, a sua natureza, a posse sobre os imóveis em questão, o incumprimento da promitente (a falida) e a existência da garantia de que dispunham - o direito de retenção;

C) A Apelante não impugnou o crédito reclamado pelos Recorridos, nem os pressupostos por estes alegados para o reconhecimento do direito de retenção que alegaram - a celebração do contrato-promessa, o sinal e seu montante, através de permuta, a entrega dos imóveis e a data em que ocorreu, o prazo e cominações relativos à outorga da escritura, tudo, de resto, suportado por escritos, também não impugnados, como lhe era permitido pelo artigo 192º CPEREF;

D) Com efeito, do n.º4 do art. 196º do CPEREF outra interpretação não pode resultar porquanto “consideram-se reconhecidos os créditos não impugnados e os que tiverem sido aprovados na tentativa de conciliação”;

E) Reconhecido o crédito pelo incumprimento do contrato-promessa, o direito de garantia que existia "em potência a partir da tradição da coisa", passa a existir "em acto", ope legis, ou seja, independentemente de reconhecimento em sentença proferida em acção contra o promitente vendedor, in casu a falida.

F) A Apelante recorre da decisão do Tribunal a quo por questionar se ”(…) gozam efectivamente do direito de retenção que alegam sobre os imóveis objecto dos contratos promessa (…) e apreendidos a favor da massa falida, e se, em caso afirmativo, a tal direito deve ser reconhecida prevalência sobre a hipoteca anteriormente constituída e registada que recaia sobre os mesmos (…).”

G) Considerando que os Recorridos “(…)não alegam, nem provam, concretos factos, isto é, os actos materiais que passaram a exercer sobre os imóveis prometidos em compra e venda, demonstrativos de que passaram a ser e são verdadeiros possuidores em nome próprio, isto é, actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, necessário à verificação do direito de retenção” e “(…) não alegam, nem provam, que prometeram adquirir os mesmos identificados imóveis enquanto consumidores, isto é, para uso privado, para uso pessoal, familiar ou doméstico (…).”

H) Apenas em sede de recurso veio a Apelante, inacreditavelmente, fundamentar a sua tese em jurisprudência recente do STJ, pretendendo impugnar o crédito dos Recorridos, alegando factos novos com base no «(…) Acórdão Uniformizador de Jurisprudência – Ac. De 25.11.2014, Proc. 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1(…).»

I) O identificado Acórdão de 25.11.2014, Proc. 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1 pela Apelante, é um Acórdão de Revista do STJ, e não de uniformização de jurisprudência como confia a Recorrente, vindo aquele somente clarificar o conceito de consumidor resguardado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, este com o nº4/2014.

J) O Venerando Tribunal da Relação deverá desconsiderar a pretensão da Recorrente por se tratar de questão nova suscitada tão-somente em sede recursiva.

K) Nos presentes autos é de certeza cristalina, para além do mais, a sindicância da questão sub judice à lei em vigor à data do início do processo falimentar, isto é, em Fevereiro de 1996.

L) Assim, é inquestionável que a lei aplicável aos presentes autos é a vertida no CPEREF.

M) Há assim que ter em consideração que à luz da lei então vigente os pressupostos de verificação do direito de retenção eram os seguintes (cuja alegação e prova resultam aliás dos autos): 1) existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real, 2) entrega da coisa objecto do contrato promessa, e 3) titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato promessa.

N) O douto Ac. do STJ de 13 de Novembro de 2014 considerou que os factos decorrentes da caracterização do direito de retenção estão preenchidos por acordo das partes, por falta de impugnação, veja-se: «(…) Nestas provas inclui-se o acordo das partes, decorrente da falta de impugnação dos factos caracterizadores do direito de retenção.» (sublinhado nosso).

O) Não obstante a desnecessidade da “qualidade de consumidor” dos Recorridos porque, inequivocamente, não aplicável, sempre se dirá que os Recorridos desde o ano de 1992 passaram a residir habitualmente nas id. fracções objecto da promessa, isto é, em Casais de S. Jacinto, lote 9, Caldas da Rainha, o que está aliás documentalmente provado.

P) Nessa senda, nem tão-pouco é de corroborar que os Recorridos careceram de alegar e provar “(…) que prometeram adquirir os mesmos identificados imóveis enquanto consumidores, isto é, para uso privado, para uso pessoal, familiar ou doméstico (…)”, uma vez que tal requisito não era legalmente exigido.

Q) Em nenhum dos dois Acórdãos proferidos nos presentes autos pelo STJ nos presentes autos, ambos posteriores à prolação do Ac. Uniformizador de Jurisprudência de Março de 2014, feito qualquer referência ou exigência quanto à questão da qualidade de consumidor enquanto requisito do direito de retenção dos Recorridos, nem tão-pouco faça qualquer referência à existência de eventuais pressupostos em falta, como pretende a Recorrente fazer crer.

R) Tendo os Recorridos junto aos autos os elementos probatórios suficientes para que o Tribunal a quo pudesse apreciar os pressupostos da existência do direito de retenção – à data em que a Reclamação de Créditos foi apresentada, a 5 de Julho de 1996 - podia, e devia, aquele Tribunal decidir como decidiu.

S) O direito de retenção dos Recorridos pode ser reconhecido no processo de falência por via da reclamação do crédito e, quando não impugnados, o crédito e a invocação do direito de retenção podem, sem mais, ser aí reconhecidos para efeitos de concurso e graduação;

T) Andou bem a Sentença de Verificação e Graduação de Créditos ao graduar os créditos como graduou, não havendo violação dos preceitos invocados pela Apelante, pelo que deverá a mesma ser mantida.

Concluem pela improcedência do recurso e pedem que a Recorrente seja condenada como litigante de má-fé em multa pedagógica e em indemnização a favor dos Recorridos no montante que se viram obrigados a despender com o pagamento dos honorários aos seus mandatários, quer no processo e agora no presente recurso, em quantia nunca inferior a € 2.000,00.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se estão reunidos os pressupostos legais para que possa ser reconhecido aos credores reclamantes (promitentes-compradores em contratos-promessa celebrados com a falida) o direito de retenção que invocaram, analisando especificamente a questão de saber se deve ser aqui aplicada a interpretação restritiva do art. 755º, nº 1, f), do CC, emergente do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 e se, como tal, o aludido direito de retenção dependia da alegação e prova de factos com base nos quais se pudesse concluir que os referidos credores eram “consumidores”;

• Saber se a norma que institui a prevalência do aludido direito de retenção sobre a hipoteca é inconstitucional por violação dos princípios e normas constitucionais a que alude a Apelante.


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III.

A sentença recorrida considerou assentes (face à ausência de impugnações válidas) os seguintes factos com relevância para a apreciação do direito de retenção invocado pelos credores J... e mulher L.. ; B.... e mulher C....; D....; G...; H... casada com M.. ; I... e F... :

1. J... e mulher L.. , em 2 de Fevereiro de 1994, celebraram com a falida um contrato-promessa de compra e venda respeitante à fracção identificada pela letra “B”, correspondente à habitação direita de um prédio composto por duas habitações duplex, do tipo T3, em construção no lote 13 dos (...) , freguesia de Caldas da Rainha – (...) , inscrito na matriz sob o artigo 8396 e descrito na CRP sob o n.º 01494/070694-B.

2. E em 4 de Fevereiro de 1994 celebraram com a falida um segundo contrato-promessa de compra e venda respeitante à fracção identificada pela letra “A”, correspondente à habitação esquerda de um prédio composto por duas habitações duplex, do tipo T3, em construção no lote 13 dos (...) , freguesia de Caldas da Rainha – (...) , inscrito na matriz sob o artigo 8396 e descrito na CRP sob o n.º 01494/070694-B.

3. A partir de Março de 1995 obtiveram da falida a tradição dos prédios referidos em 1. e 2., que passaram a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fosse de sua efectiva e plena propriedade.

4. Tal materializou-se com as obras de acabamento das habitações a que os Requerentes se dedicaram, tal como foi acordado com a Requerida por reconhecida falta de meios.

5.Entre obras de menor monta, realizaram as seguintes obras: colocação de dois portões bascolantes nas garagens; aplicações de madeira no interior; peitoris e soleiras em mármore; afinação de portões bascolantes; diversos acabamentos interiores; instalação do aquecimento central e caixilharia e vidros.

6. Despenderam um total de 1.577.654$00 em obras de acabamentos nas habitações objecto da promessa de compra e venda.

7. B.... e mulher, C.... em 29 de Julho de 1991 celebraram com a falida um contrato-promessa de compra e venda respeitante à fracção identificada pela letra “B”, do prédio situado na Rua (...) , (...) , inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1.409 e descrito na CRP sob o n.º 00413/041089.

8. Desde Junho de 1992 que obtiveram da falida a tradição do prédio, o qual passaram a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fosse de sua efectiva e plena propriedade.

9. D...., em 7 de Setembro de 1992 celebraram com a falida um contrato-promessa de compra e venda respeitante a moradia bifamiliar do tipo T3 e respectivas garagens, identificadas pelas fracções “A”, “B” e “C”, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo n.º 7.195 e descrita na CRP sob o n.º 963/240190.

10. Desde Novembro de 1992 que obtiveram da falida a tradição do prédio, o qual passaram a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fosse de sua efectiva e plena propriedade.

11. E(já falecido, intervindo em representação os seus herdeiros) em 4 de Dezembro de 1992 a falida cedeu ao mesmo o prometido lote 19, descrito na CRP sob o n.º 1500.

12. No que respeita à restante parte do compromisso assumido pela falida, deveria a mesma ter transmitido para os Requerentes os prédios prometidos, - constituídos – no que se refere ao lote 8 – pelo próprio prédio urbano descrito na CRP sob o n.º 00968/Caldas da Rainha – (...) e ao Lote n.º 9, pelo prédio urbano descrito na CRP sob o n.º 00969/Caldas da Rainha – (...) , afecto ao regime da propriedade horizontal e composto pelas fracções “A”, “B”, “C” e “D”, o que deveria ter sido concretizado dentro do prazo de 6 meses a contar da data da celebração do contrato-promessa.

13. Desde o início de 1992 que obtiveram da falida, por acto da livre vontade desta, a tradição dos imóveis relativos à prometida transmissão, os quais passaram a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fossem de sua efectiva e plena propriedade.

14. F... , em 19 de Agosto de 1988, celebrou com a falida contrato-promessa de compra e venda referente às fracções autónomas compostas pelas letras “G”, “H”, “T”, “Z”, “AA” e “AE”, do prédio urbano localizado na Rua (...) , inscrito na matriz respectiva sob o artigo 971e descrito na CRP com o n.º 00320/281188.

15. O Requerente, desde finais de 1990, obteve da promitente-vendedora, por acto da livre vontade desta, a tradição da totalidade das fracções que constituíam o objecto da prometida transmissão, as quais passou a utilizar de forma pública, pacífica e em exclusivo, como se fossem da sua efectiva e plena propriedade.


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IV.

Não obstante a extensão das conclusões das alegações (conclusões que, em bom rigor, nem sequer o são, já que nada sintetizam e apenas reproduzem integralmente o corpo das alegações), são apenas duas as questões suscitadas pela Apelante.

A primeira prende-se com a verificação dos requisitos legais do direito de retenção, sustentando a Apelante que os credores a quem foi reconhecido esse direito não alegaram todos os factos dos quais dependia a sua existência, já que não alegaram os concretos actos materiais que passaram a exercer sobre os imóveis, demonstrativos de que passaram a ser verdadeiros possuidores e não alegaram factos que permitam concluir pela sua qualidade de consumidores (porquanto não alegaram que tivessem destinado os imóveis a uso privado, pessoal, familiar ou doméstico) como seria necessário para que, na esteira de certa jurisprudência do STJ, pudessem beneficiar, na falência, do direito de retenção.

A segunda questão prende-se com a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, sustentando a Apelante que tal prevalência viola princípios básicos do Estado de Direito e constitucionalmente garantidos e que, como tal, os promitentes-compradores de imóveis apreendidos a favor da massa falida, no âmbito de contratos com eficácia meramente obrigacional que não foram cumpridos, não podem ver os seus créditos graduados, por via do direito de retenção, à frente do crédito hipotecário, ainda que os imóveis lhes tenham sido entregues.

Analisemos, então, cada uma dessas questões.

Dispõe o art. 755º, nº 1, alínea f), do CC, que goza do direito de retenção “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º”.

Ora, perante a matéria de facto que se considerou assente (tendo em conta os factos que haviam sido alegados e não foram impugnados), é indiscutível que os aludidos credores são beneficiários de promessa de transmissão de direito real (direito de propriedade) que obtiveram a tradição dos imóveis sobre os quais incidiam os contratos-promessa e que viram esses contratos incumpridos por razões imputáveis à outra parte e, portanto, encontrar-se-iam verificados todos os requisitos que são enunciados pela norma supra citada e dos quais depende a existência do direito de retenção pelo crédito resultante do incumprimento desses contratos.

É verdade, no entanto, que, na sequência de uma determinada posição que começou a surgir na nossa jurisprudência, o Acórdão do STJ de 20/03/2014[1] (Acórdão nº 4/2014) veio uniformizar jurisprudência nos seguintes termos: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

E é essa doutrina que a Apelante pretende ver aqui aplicada, ao sustentar que, para beneficiarem do direito de retenção, os promitentes-compradores teriam que ser “consumidores”, sendo certo que não alegaram qualquer facto com base no qual se possa concluir que tinham essa qualidade.

Ainda que isso não se contenha, de modo expresso, no texto da posição jurisprudencial uniformizada – onde apenas se diz que “…o consumidor promitente-comprador…goza do direito de retenção…”, parece clara a intenção de ali se considerar que só o promitente-comprador consumidor goza desse direito, o mesmo não acontecendo com o promitente-comprador que não possa ser considerado como consumidor. De outra forma, não se perceberia a alusão feita ao “consumidor promitente-comprador”, já que, se não se pretendesse restringir o direito de retenção a quem detivesse a qualidade de consumidor, certamente que ali se teria aludido simplesmente ao promitente-comprador sem qualquer necessidade de especificar a sua qualidade de consumidor[2].

Refira-se, por outro lado, que, ainda que aquela jurisprudência uniformizada apenas se reporte à graduação de créditos em insolvência – mais especificamente no âmbito do CIRE – ela assenta, indiscutivelmente – como se depreende da respectiva fundamentação – numa interpretação restritiva do art. 755º, nº 1, al. f), do CC (no sentido de que esta norma apenas se reporta e apenas abrange o promitente-comprador que seja consumidor). Com efeito, ali se considerou – por força da leitura e interpretação das normas do CIRE aplicáveis ao contrato promessa – que, mesmo no âmbito dos processos de insolvência, o citado art. 755º, nº 1, f), seria aplicável conferindo aos promitentes-compradores, no âmbito de contratos-promessa meramente obrigacionais em que houve tradição da coisa, um direito de retenção pelo crédito emergente do não cumprimento do contrato por decisão do administrador judicial. Ali se considerou, todavia, que a norma supra citada deveria ser interpretada de forma restritiva, escrevendo-se, a dado passo e com base naquele que se entendeu corresponder ao pensamento do legislador, o seguinte: “Assim se compreende que a alínea f) do artigo 755º nº 1 seja entendida restritamente de molde a que se encontre a coberto da prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor”. E, como emerge da respectiva fundamentação, ainda que a jurisprudência uniformizada apenas se reporte a reclamações de créditos na insolvência, a interpretação restritiva do citado art. 755º que ali foi adoptada tem carácter genérico e não se reporta exclusivamente à insolvência. Tal interpretação da norma citada é também defendida por Miguel Pestana de Vasconcelos[3], dizendo (a fls. 376 da ob. cit.) que tal disposição é “…materialmente uma norma de tutela do consumidor” e que “…embora a letra da lei não faça essa precisão, o recurso aos outros elementos hermenêuticos permite reconstruir a ratio – que é, claro, o aspecto decisivo – e restringir, nessa medida, o alcance da norma: o direito de retenção do art. 755.º, n.º 1, al. f) só beneficia o consumidor”, de tal forma que “nos outros casos, ou seja, quando o promitente-adquirente não seja um consumidor, não há qualquer tutela particular”.

No caso que analisamos, estamos perante reclamações de créditos formuladas (em 1996) no âmbito de um processo de falência e ao abrigo do CPEREF.

Ainda que o aludido Acórdão para Uniformização de Jurisprudência tenha visado os processos de insolvência no âmbito do CIRE, não existiriam, à partida, razões substanciais que justificassem a sua não aplicação às reclamações de créditos formuladas no âmbito de um processo de falência ao abrigo do CPEREF, estando em causa – como estão – contratos-promessa de natureza obrigacional com tradição da coisa prometida vender, já que, em qualquer caso, os contratos não foram cumpridos por força da falência/insolvência, devendo considerar-se, por aplicação do disposto no art. 755º do CC, que esses promitentes-compradores têm direito de retenção nos termos fixados nesta disposição legal.

Resta saber se essa disposição deverá ou não ser objecto da interpretação restritiva que foi adoptada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência supra citado, de modo a abranger apenas o promitente-comprador que seja consumidor, interpretação esta que retiraria aos credores reclamantes/Apelados o direito de retenção que a sentença recorrida lhes reconheceu, na medida em que nada se provou – porque nada foi alegado – que permita concluir pela sua qualidade de “consumidores”.

Importa notar, antes de mais, que, ainda que os acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não tenham carácter vinculativo para os Tribunais – ao contrário do que acontecia com os anteriores Assentos – eles devem, em princípio, ser respeitados, salvo se existirem razões ponderosas que justifiquem outro entendimento, designadamente, novos factos, argumentos, razões ou circunstâncias que, não tendo sido considerados no acórdão uniformizador, possam justificar uma nova e diferente decisão.

Mas, sem pretender desrespeitar o entendimento firmado pelo aludido Acórdão, afigura-se-nos que ele não poderá ser adoptado no caso que analisamos.

Importa notar que tal Acórdão foi proferido em 2014 e as reclamações de créditos aqui em causa foram formuladas em 1996 (18 anos antes).

Ora, ainda que – como nota o Ac. do STJ de 17/11/2015[4] – a doutrina daquele Acórdão seja aplicável imediatamente a qualquer processo, já que aquilo que está em causa é apenas a interpretação da lei, a verdade é que, ao tempo em que foram formuladas as reclamações, nada fazia prever que o direito de retenção que os credores reclamavam exigisse a alegação e prova da sua qualidade de consumidor (e, certamente por isso, nada alegaram no sentido de o demonstrar). Essa exigência não constava da lei (tal como hoje não consta) e, pela pesquisa que efectuámos, tão pouco era exigida pela jurisprudência. Além do mais, e sem questionar a correcção da interpretação adoptada pelo Acórdão Uniformizador supra citado, a verdade é que o pensamento legislativo em que se fundamentou não era, de forma alguma, evidente e manifesto de modo a que os interessados pudessem prever a necessidade (ao menos eventual) do apontado requisito.

Com efeito, o aludido direito de retenção foi introduzido pelo DL nº 236/80, de 18/07, por via do qual passou a constar, no art. 442º, nº 3, do CC que “No caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador goza, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor”, referindo-se, no preâmbulo desse diploma, que esse direito de retenção radicava na circunstância de a tradição da coisa criar uma forte expectativa de estabilização do negócio e uma situação de facto socialmente atendível. Nada é referido, nesse preâmbulo, que aponte para o facto de aquele direito apenas ser atribuído a quem possa ser considerado consumidor, apenas se aludindo à necessidade de tutela dos interessados em habitação própria que, para o efeito, recorrem à celebração de contratos-promessa. No entanto, ainda que tenham esses interessados (consumidores) a motivar a alteração daquele regime, nada ficou a constar da lei que restringisse a sua aplicação a essas situações.

O Dec. Lei nº 379/86 manteve o direito de retenção nos termos que já se encontravam definidos – apenas deslocando a norma para outro local – e, não obstante se referir, no preâmbulo, que o legislador de 1980 tinha pensado directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles, também se disse que nenhum motivo justificava que o instituto se confinasse a tão estreitos limites. Resulta, aliás, do referido preâmbulo que o direito de retenção apenas levantava particulares motivos do reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia (a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, máxime tomados de instituições de crédito), já que, em todos os demais casos de celebração de contrato-promessa com tradição da coisa, aquele direito se justificava, na medida em que a tradição da coisa cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio e que a essa boa fé deveria corresponder um acréscimo de segurança. E, mesmo no caso particular que, segundo aquele preâmbulo, justificaria maior reflexão (o caso da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, máxime tomados de instituições de crédito), se entendeu manter aquele direito de retenção, ali se referindo que, no conflito de interesses entre os beneficiários das promessas e as instituições de créditos que concedem empréstimos para a respectiva construção, era razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares, o que vinha na lógica da defesa do consumidor.

Mas, não obstante aludir à defesa do consumidor nos termos assinalados, nada se diz que possa ser entendido como intenção de limitar aquele direito a quem detivesse (nos termos legais) a qualidade de consumidor; o que dali resulta é que se pretendeu atribuir prioridade (pela concessão do direito de retenção) à tutela dos particulares no confronto com as instituições de crédito. Aliás, evidenciando o aludido preâmbulo que o legislador pensou em todas essas situações, parece que, caso tivesse a intenção de restringir aquele direito aos consumidores, não deixaria de o consignar de modo expresso, ao invés de manter o direito de retenção nos mesmos termos que se encontravam previstos desde 1980.

Parece-nos, portanto, que,  ao tempo em que foram formuladas as reclamações, nada fazia prever que o direito de retenção que os credores reclamavam exigisse a alegação e prova da sua qualidade de consumidor; essa exigência não constava da lei; não era exigida pela jurisprudência e tão pouco se poderia dizer, pelas razões apontadas, que existissem razões concretas com base nas quais se pudesse ou devesse depreender dos textos legislativos (e respectivos preâmbulos) e do pensamento do legislador a necessidade (ao menos eventual e na perspectiva de determinada interpretação que se admitisse como possível) do apontado requisito.  

E tanto é assim que, até à data, esse requisito nunca foi considerado ou abordado nos presentes autos.

De facto, os credores reclamantes nada alegaram nesse sentido; a Apelante nunca impugnou, com esse fundamento, a garantia (direito de retenção) invocada e tão pouco o fez no âmbito do recurso de apelação que interpôs da primeira sentença de graduação de créditos e no âmbito do recurso de revista que interpôs do acórdão proferido pela Relação; essa questão também não foi abordada em qualquer uma das sentenças (seja a sentença inicial, seja aquela sobre a qual incide este recurso) nem nos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação e pelo STJ relativamente à 1ª sentença que acabou por ser anulada (por fundamentos que nada têm a ver com a alegada inexistência do direito de retenção em virtude de os credores não poderem ser qualificados como consumidores ou por não terem alegado factos dos quais se pudesse extrair essa qualidade).

A questão está a ser suscitada, pela primeira vez, no âmbito deste recurso.

Sustentam, aliás, os Apelados que, por nunca ter sido suscitada em momento anterior, essa questão corresponde a uma questão nova, apenas suscitada em sede de recurso, que, como tal, não poderá ser aqui apreciada.

Em rigor, talvez não seja uma verdadeira “questão nova” que não possa ser aqui apreciada.

Com efeito, a questão que era suscitada e sobre o qual o Tribunal tinha o dever de se pronunciar consistia em saber se os créditos reclamados beneficiavam ou não do direito de retenção. Era essa a questão suscitada que o Tribunal tinha que apreciar e decidir e continua a ser essa a questão suscitada no presente recurso. A questão de saber se a qualidade de consumidor corresponde ou não a um requisito de existência do direito de retenção é uma questão de interpretação e aplicação da lei que o Tribunal sempre teria o poder de apreciar, independentemente da sua expressa invocação e que, como tal, não constituirá propriamente uma questão para os efeitos assinalados[5].

Mas a verdade é que – como se considerou no Ac. do STJ de 30/04/2015[6] – não está em causa uma questão estritamente jurídica, na medida em que a interpretação restritiva em causa pressupõe, na sua aplicação, uma componente factual que não foi, oportunamente, trazida aos autos e em relação à qual não era sequer exigível – pelas razões supra apontadas – que as partes ponderassem ou admitissem a sua relevância em termos de poderem, agora, ser responsabilizadas pelas consequências da sua não alegação.

De facto, a aplicação da doutrina introduzida pelo citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência - que se reconduz, como vimos, à interpretação restritiva do art. 755º, nº1, f),do CC, no sentido de abranger apenas o promitente-comprador que seja consumidor – dependia da alegação de factos que nos permitissem concluir se os credores reclamantes (promitentes-compradores) eram ou não consumidores. Mas, a verdade é que esses factos não foram trazidos aos autos; nem os credores reclamantes alegaram os factos com base nos quais se poderia agora concluir pela sua qualidade de consumidores nem a ora Apelante alegou quaisquer factos com base nos quais se pudesse concluir em sentido contrário e tal circunstância ficou a dever-se – como referimos – à circunstância de, à data, não se atribuir a esses factos qualquer relevância para efeitos de verificação dos requisitos do direito de retenção.

Ou seja, não sabemos se os aludidos credores são ou não consumidores (com muita probabilidade, até serão, mas não o alegaram), sendo certo que, ao contrário do que sustenta a Apelante, a circunstância de os credores, D...., Ee F... , terem prometido adquirir várias fracções autónomas, não é suficiente para concluir que não o tenham feito na qualidade de consumidores. Depreendendo-se da fundamentação do aludido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (cfr. nota 10 do aludido Acórdão), que o conceito de consumidor ali considerado corresponde ao “…utilizador final com o significado comum do termos, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda” ou apelando ao conceito que nos é dado pelo Acórdão do STJ de 25/11/2014[7] (citado pela Apelante), segundo o qual a qualidade de consumidor a que alude aquela jurisprudência uniformizada “…deve ser entendida no seu sentido estrito, correspondente à pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa” ou ao conceito fixado no art. 2º, nº 1, da Lei nº 24/96 de 31/07 (todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios), parece claro que a mera circunstância de o promitente-comprador ter prometido comprar mais do que uma fracção é insuficiente para concluir que não actuou como consumidor ou utilizador final.

Não se sabendo, portanto, se os credores reclamantes são ou não consumidores (porque nada foi alegado a esse propósito), a aplicação da interpretação emergente do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência a que nos vimos referindo conduziria ao não reconhecimento do direito de retenção já que, estando em causa um facto que seria constitutivo desse direito, o ónus da respectiva alegação pertenceria aos credores reclamantes e, portanto, seriam eles a sofrer as consequências da sua inépcia.

Mas a verdade é que essa consequência seria um ónus pesado e totalmente injustificável para os aludidos credores, na medida em que a relevância e pertinência daqueles factos não se colocava à data em que formularam as reclamações. Tal relevância/pertinência apenas se veio a colocar anos mais tarde quando começou a ser discutida, na doutrina e na jurisprudência e com base no pensamento legislativo (que não estava – e não está – consignado na lei de modo claro), a necessidade de um requisito adicional para o direito de retenção (a qualidade de consumidor), controvérsia que veio a culminar com o aludido Acórdão para Uniformização de Jurisprudência (proferido dezoito anos depois de terem sido formuladas as reclamações de créditos nos presentes autos).

Daí que, na nossa perspectiva, não possa ser aqui aplicada a interpretação decorrente do aludido Acórdão, devendo apenas considerar-se como requisitos do direito de retenção invocado pelos credores reclamantes aqueles que estão consignados na lei, de modo claro e expresso, e sem necessidade, portanto, da alegação e prova da qualidade de consumidor.

Improcede, portanto, a primeira questão colocada no recurso, mantendo-se a decisão que reconheceu aos credores o direito de retenção sobre os imóveis que haviam prometido comprar e cuja tradição haviam obtido.

 

Analisemos, então, a segunda questão suscitada no recurso.

Sustenta a Apelante que a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca viola princípios básicos do Estado de Direito e constitucionalmente garantidos, designadamente os princípios da proporcionalidade, da protecção da confiança e da segurança do comércio jurídico imobiliário e do direito de propriedade privada jurídica, ínsitos no art. 2º, 18º nº1 e 62.º da Constituição da República Portuguesa, constituindo uma inaceitável restrição à confiança e segurança associados ao registo predial nos termos do disposto nos art.s 60.º e 65.º do CRP.

Daí que, na sua perspectiva, os promitentes-compradores de imóveis apreendidos a favor da massa falida, no âmbito de contratos com eficácia meramente obrigacional que não foram cumpridos, não possam ver os seus créditos graduados, por via do direito de retenção, à frente do crédito hipotecário, ainda que os imóveis lhes tenham sido entregues.

O art. 759º do CC dispõe, clara e expressamente, que o direito de retenção sobre coisa imóvel prevalece sobre a hipoteca ainda que esta tenha sido registada anteriormente.

Importa dizer, antes de mais, que a prevalência do direito de retenção do promitente-comprador sobre os créditos hipotecários das instituições de crédito foi uma opção clara e consciente do legislador, como se depreende do preâmbulo do Dec. Lei nº379/86, onde se diz o seguinte: “O problema só levanta particulares motivos do reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, máxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.

Mas essa opção legislativa estará em conformidade com os princípios e regras constitucionais?

Tal inconstitucionalidade tem sido invocada e já foi apreciada em diversos acórdãos do Tribunal Constitucional que, neste caso particular, têm concluído pela sua inexistência.

A questão foi inclusivamente abordada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência supra citado onde, a esse propósito, se escreveu o seguinte:

No tocante ao princípio da igualdade estatui o artigo 13º nº 1 da Constituição da República que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Mas seria ocioso tecer grandes considerações sobre aquilo que é de há muito um dado adquirido sobre aquele normativo: não se pode tratar de uma forma igual aquilo que à partida é desigual. Ora a dilucidação desta problemática depende essencialmente de uma ponderação dos valores e interesses legítimos vigentes na sociedade num determinado momento histórico. E considerações semelhantes valem também no tocante ao princípio da proporcionalidade, também informador do sistema jurídico; a sua aplicação ao caso concreto terá que fazer-se tendo em vista os valores que se entende constituírem os prevalentes na comunidade, harmonizando-os axiologicamente entre si. Como em muitos outros setores do ordenamento jurídico, também aqui, ao nível do contrato promessa, o legislador no seu poder-dever de corrigir desequilíbrios e tomando em linha de conta os interesses e riscos em presença, entendeu propender para a proteção da parte mais débil, o promitente-comprador, face ao credor hipotecário, desde que aquele tivesse entregue ao outro outorgante o sinal e obtido a tradição do objeto do contrato. Assim e na linha do entendimento do que tem vindo a ser repetidamente decidido por este Supremo Tribunal e ainda pelo Tribunal Constitucional, não vemos que haja qualquer inconstitucionalidade naquela opção legislativa…Não se argumente pois de igual modo que os princípios da previsibilidade e segurança seriam afetados pela concessão e prevalência do direito de retenção; trata-se de mais uma escolha do legislador, à semelhança de outras – v.g. créditos de trabalhadores - que evidencia claramente uma ponderação de interesses em atenção à parte mais fraca no âmbito da relação contratual, o que implica necessariamente compressão de alguns direitos com vista à busca de uma solução mais equitativa; é o que sucede quanto à prevalência excecional do crédito emergente de contrato promessa ainda, que de natureza obrigacional, sobre a hipoteca, desde que se tenha verificado a tradição do respetivo objeto acompanhada pelo pagamento total ou parcial do preço. Poder-se-á dizer, parafraseando um acórdão deste Supremo Tribunal, estarem assim presentes, na interpretação exposta das normas aplicadas, os critérios práticos da justa medida, razoabilidade e adequação material ínsitos no princípio da proporcionalidade que temos vindo a comentar”.  

O Tribunal Constitucional analisou esta problemática no Acórdão nº 356/04 de 19/05/2004[8], concluindo pela não inconstitucionalidade das normas que consagram a prevalência do direito de retenção do promitente-comprador sobre a hipoteca, aí se referindo o seguinte:

Na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos, é decisiva a circunstância, de resto sublinhada pelo tribunal a quo, de o regime impugnado já se encontrar em vigor no momento em que a hipoteca foi constituída. Em face de tal circunstância não se pode concluir, desde logo, pela violação do princípio da confiança relativamente a expectativas anteriormente firmadas.

Para além disto, é ainda de referir que a norma em apreciação no presente recurso opera meramente uma ponderação adequada do interesse das instituições de crédito detentoras de créditos hipotecários na protecção da confiança inerente ao registo predial e do interesse dos consumidores na protecção da confiança relativa à consolidação de negócios jurídicos, notandose que os mesmos respeitam, em muitos casos, à aquisição de habitação própria permanente.

Nesta perspectiva, também a contenção dos princípios da confiança e da segurança jurídica associados ao registo predial, que resulta da atribuição de preferência ao direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente, tem a sua justificação na prevalência para o legislador do direito dos consumidores à protecção dos seus específicos interesses económicos (associados, em inúmeros casos, à aquisição de habitação própria, pelo que é ainda convocável o artigo 65º da Constituição) e à reparação dos danos (artigo 60º da Constituição – cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 323).

Em face do que ficou exposto, não se verifica, portanto, a inconstitucionalidade da norma apreciada”.

No mesmo sentido se pronunciaram os Acórdãos do mesmo Tribunal nºs 466/2004 e 73/2011 de 23/06/2004 e 03/02/2011[9].

 Nenhuma razão encontramos para questionar essa jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional e, como tal, acolhemos, na íntegra, o juízo de constitucionalidade aí formulado e os respectivos fundamentos.

Os credores reclamantes (promitentes-compradores) gozam, portanto, do direito de retenção sobre as fracções que prometeram comprar e cuja tradição obtiveram e esse direito de retenção prevalece sobre a hipoteca que garante o crédito da Apelante.

Improcedem, portanto, as questões suscitadas no presente recurso, o que conduz à confirmação da sentença recorrida.


******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 4/2014 deve ser entendida no sentido de que o promitente-comprador que seja consumidor (excluindo, portanto, o promitente-comprador que não seja consumidor) goza do direito de retenção nas situações ali abrangidas.

II – Ainda que a jurisprudência uniformizada do STJ deva ser respeitada pelos Tribunais e ainda que a doutrina firmada pelo Acórdão supra citado – que assenta numa interpretação restritiva do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, no sentido de que o direito de retenção aí previsto apenas abrange o promitente-comprador que seja consumidor – seja, em princípio, aplicável a qualquer processo que se encontre pendente, ela não deverá ser aplicada a reclamações de créditos que foram formuladas (no âmbito de um processo de falência) dezoito anos antes e no decurso das quais não foram trazidos aos autos, por nenhuma das partes, os factos que seriam pertinentes para concluir se os credores reclamantes (promitentes-compradores) eram ou não consumidores, por não ser, então, previsível a exigência desse requisito que não estava previsto na lei e cuja relevância/necessidade só mais tarde começou a ser suscitada na doutrina e jurisprudência e por não ser exigível que as partes ponderassem ou admitissem a pertinência desses factos em termos de poderem, agora, ser responsabilizadas pelas consequências da sua não alegação.

III – Daí que, nessa situação e não obstante a aludida jurisprudência uniformizada, deva ser reconhecido o direito de retenção aos credores que o invocaram, ao abrigo do disposto no art. 755º, nº1, al. f), do CC, com base na sua qualidade de promitentes-compradores de determinadas fracções, cuja tradição obtiveram, para garantia do crédito emergente do incumprimento desse contrato.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


[1] Publicado no DR, I Série, de 19/05/2014.
[2] Essa intenção resulta, aliás, com evidência, de alguns dos votos de vencidos, onde se manifestou a discordância pela doutrina firmada por se entender que ela não se deveria limitar a quem fosse consumidor.
[3] Direito das Garantias, 2013, 2ª ed., pág.374 a 377.
[4] Proferido no proc. nº 1999/05.6TBFUN-I.L1S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, o Ac. do STJ de 17/11/2015, proc. nº 1999/05.6TBFUN-I.L1S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] Proferido no processo nº 1187/08.0TBTMR-A.C1.S, disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Proc. nº 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.
[9] Disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt.