Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
102/19.0GHCVL-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
MAL FUTURO
Data do Acordão: 02/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 153º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - A expressão “hei-de te matar”, desacompanhada de actos de execução ou de início de execução, configura o crime de ameaça, porque encerra a ideia não de um momento presente mas futuro, de modo a afectar a liberdade de determinação da pessoa visada.

II - A expressão “eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos” está projetada para um mal futuro, na medida em que o seu agente nada faz naquele momento quanto ao mal ameaçado, que é o de ir buscar a arma e aviá-los a todos, antes deixando a pairar no ar a ideia de que tem uma arma/espingarda e que a todo o momento a pode ir buscar e aviá-los, sendo certo que este aviar tem o sentido de disparar e matar.

III - O tempo verbal utilizado pelo agente não determina, necessariamente, o enquadramento legal da conduta.

Decisão Texto Integral:
RELATÓRIO

1. … pelo Ministério Público foi proferido despacho de arquivamento relativamente aos arguidos …  pela prática, cada um deles, de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

2. … requereu a assistente … a abertura de instrução ao abrigo do artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, alegando em síntese que:

- No dia 28 de outubro de 2019, quando passava junto de casa da arguida A … esta última saiu-lhe ao caminho, começando a dizer-lhe «hei-de te partir os cornos, sua puta», «hei-de te matar».

- Entretanto, surge a arguida C que, conjuntamente com a arguida A … lhe disseram «hei-de te matar» e «hei-de matar-te, sua puta», tendo a arguida C, ainda, acrescentado, dirigindo-se-lhe: «vou-te partir os cornos».

- Mais tarde, apareceu no local o arguido V que, igualmente, dirigindo-se-lhe disse: «eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos».

- As expressões proferidas pelos arguidos … atentavam contra a sua própria vida, de modo a provocar-lhe medo e inquietação de que os arguidos pudessem concretizar os seus anunciados intentos.

3. Declarada aberta a instrução e realizado o debate instrutório, foi proferido despacho judicial de não pronúncia daqueles arguidos …

4. Desta decisão recorre agora a assistente … que formula as seguintes conclusões:

1 - Dos autos constam indícios suficientes de que, dirigidas à assistente, as arguidas … proferiram as seguintes expressões: "hei-de-te matar" e "hei-de matar-te sua puta", e o arguido … a seguinte expressão: "eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos".

2 - O M.P. entendeu que tais expressões não consubstanciavam o crime de ameaça, pelo que, nessa parte, arquivou o processo.

3 - A assistente, não se conformando, requereu a abertura de instrução com vista à apreciação jurídica da decisão de arquivamento, tendo sido proferida decisão  judicial, de que ora se recorre, a não pronunciar os arguidos pelo crime de ameaças agravadas por entender … que não estão preenchidos os pressupostos da prática do referido crime, uma vez que … se entendeu que, do teor da expressões proferidas não resulta que os arguidos estivessem a anunciar um mal futuro, mas antes presente, no contexto de uma desavença atual entre todos; mais entendeu o Tribunal a quo que não estava preenchido o requisito da falta de receio por parte da assistente.

4 - Não foi, no entanto, isso o que resultou … não obstante para o preenchimento do tipo legal de crime não é necessário que a ofendida tenha sentido, ou não, receio, pois que, de acordo com o art. 153.º, n.º 1 do C.P., o que é necessário é que a ameaça tenha sido efetuada de forma adequada a causar medo ou inquietação à ofendida, ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação, o que no caso em apreço foi claramente forma adequada; não se entendendo assim, foi claramente violado aquele normativo.

5 - Por outro lado, embora uma das características essenciais do crime de ameaça consista no anúncio de um mal futuro, a verdade é que haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente, ou seja, desde que não se trate já de uma tentativa criminosa …

6 - … as expressões "hei-de-te matar" e "hei-de matar-te" … reportam-se claramente para o futuro, não se tratando, claramente, de uma qualquer tentativa de prática do crime, é antes uma promessa futura, o mesmo se diga relativamente à expressão proferida pelo arguido "eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos", principalmente porque tal promessa não foi seguida de imediato pela pretensão de ir buscar a arma, sendo certo que para concretizar os seus intentos teria ainda, no futuro, de a ir buscar.

5. O Ministério Público em 1ª instância respondeu dizendo:

- Revertendo para o caso em análise … expressões em causa não traduzem o anúncio de mal futuro, mas antes presente, no contexto de uma desavença actual entre todos.

- Pelo exposto deve o douto despacho de não pronuncia ser mantido e consequentemente negar-se provimento ao recurso.

6. Nesta instância, a Exmª PGA emitiu parecer onde diz o seguinte:

… As expressões “hei-de matar-te” e “Eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos”, comportam … o anúncio de um mal futuro, pois que se não indica o momento exacto da acção …

Aquelas expressões, quando ditas em tom sério – e veja-se que assistente e arguidos estavam em conflito, tenso até acontecido ofensas à integridade física (cf. acusação pública) -, embora aparentemente usadas no presente do indicativo, não deixam de assumir, na linguagem corrente, uma projecção de futuro, na medida em que não se indica o momento exato da ação anunciada - consideramos que tais expressões, ainda que no tempo verbal presente, no seu uso popular tanto podem constituir uma iminência do mal anunciado como o anúncio de mal futuro, e, portanto, não será por aí que o crime de ameaça deve ser excluído.

… sendo a instrução uma fase processual onde os indícios para a decisão de pronúncia terão de ser bastantes, nos termos acima apontados, e havendo-os no caso, somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente.

7. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

Apreciando:

A questão a apreciar consiste exatamente em apurar/concluir se a indiciada conduta dos arguidos integra o designado crime de ameaças …

*

Nos termos do disposto no artigo 153.º n.º 1 do Código Penal “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

… o preenchimento do tipo objetivo de ilícito pressupõe que:

a) Exista um anúncio (ainda que implícito) ou a transmissão de uma mensagem de um mal (que constitua um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou contra bens patrimoniais de considerável valor);

b) Que o agente pretenda infligir futuramente;

c) O qual dependa da sua vontade; e que,

d) O anúncio seja adequado a provar medo ou inquietação, ou que possa prejudicar a liberdade de auto-determinação da vítima.

Os factos indiciados que importa analisar e integrar juridicamente, são os seguintes: “M … denunciou que A e C lhe disseram “hei-de te matar” e que V afirmou: “Eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos”, referindo-se-lhe, igualmente, bem como a …, … e a …

Mais resulta dos autos que estes factos ocorreram em contexto de uma desavença e conflitualidade entre assistente e arguidos.

Segundo Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 340 a 348, no crime de ameaça, o que está em causa é um ataque ou afectação ilícita da liberdade individual, em que o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção, concluindo que o crime de ameaça é um crime de mera acção e de perigo, de perigo concreto, exigindo apenas que a ameaça seja susceptível de afectar ou de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, deixando de ser um crime de resultado e de dano, passando a crime de acção e de perigo – v. ac. do STJ de 12-09-2012, processo nº 1221/11.6JAPRT.S1.

Para além desta idoneidade ou adequação da ação a lesar o bem jurídico em causa, é indiscutível que as condutas ou ações dos arguidos devem anunciar um mal futuro sendo esta a vexata questio deste recurso. Ou seja, o que importa apurar é se as expressões ou ameaças dos arguidos configuram um mal futuro, a perpetrar a qualquer momento, mais ou menos longínquo ou se, pelo contrário, como se decidiu, as expressões proferidas pelos arguidos «hei-de te matar» e «vou já buscar a espingarda que vos avio a todos», não configuram um anúncio de um mal a praticar no futuro, noutro momento posterior, por se tratar de uma desavença atual.

 O conceito e/ou natureza de mal futuro é questão controversa e controvertida, se vista e analisada em contraponto com a de mal iminente ou atual. Nesta destrinça se concluirá pela verificação ou não do respetivo crime de ameaças.

É assim que a questão também é perspetivada pelo ac. do TRG de 21.05.2018, processo nº 375/16.0GAVLP.G1, ao decidir que “… haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente, pelo que o mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa”.

Esta perspetiva assenta na posição do Prof. Taipa de Carvalho … (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, cit., pág. 343)”.

Revertendo ao caso dos autos, importa atentar desde logo no exato teor da expressão “hei-de te matar” a qual encerra a ideia não de um momento presente mas de futuro. Diferente seria se se tratasse da expressão vou-te matar (ainda que não necessariamente, pois poderia ainda assim, dirigir-se a um momento futuro) ou de forma mais inequívoca vou já matar-te, seguida de qualquer ação nesse sentido.

Inexistindo qualquer ato de execução ou início de execução do dito mal ameaçado, a conclusão plausível que se afigura é a de se estar perante a ameaça de um mal futuro, pretendendo-se com tal conduta afetar a liberdade de determinação da visada assistente, causando-lhe ou provocando-lhe medo e inquietação no modo de agir no seu dia a dia.

Do mesmo modo se entende que a expressão “Eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos”, sem prejuízo de aparentemente inculcar a ideia de uma ação presente, a verdade é que tal afirmação está projetada para um mal futuro, na medida em que o seu agente nada faz naquele momento quanto ao mal ameaçado, que é o de ir buscar a arma e aviá-los a todos. Ou seja, inexiste qualquer ato de execução deste mal ameaçado. O que fica ou sobressai da conduta do agente é que este deixou a pairar no ar a ideia de que tem uma arma/espingarda e que a todo o momento a pode ir buscar e aviá-los, sendo certo que este aviar tem o sentido de disparar e matar. E com esta atitude o agente quis com certeza intimidar e coartar a liberdade de determinação da visada assistente querendo causar-lhe ainda receio e inquietação no seu modo de vida.

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No ac. desta Relação de Coimbra de 13.11.2019, processo nº º 368/17.0GASEI.C1, de que somos relator, perante o facto “Pouco depois, a arguida encontrava-se na varanda da sua residência e, ao avistar a assistente disse, em tom sério: “hás-de morrer, já tenho a tua cama feita” e, perante os militares da GNR que acorreram ao local, disse ainda que “à menina não lhe toco”, decidiu-se:

“Com efeito, quando no facto nº 4 se dá como assente que “hás-de morrer, já tenho a tua cama feita” e, perante os militares da GNR que acorreram ao local, disse ainda que “à menina não lhe toco”, esta conduta tem o exato sentido ou intenção de a arguida ameaçar a assistente com um mal, não presente mas futuro. Pois se a arguida tivesse a intenção de lhe fazer um mal imediato, teria agido de outro modo ou pelo menos teria iniciado alguns atos de execução. Todo o enquadramento da conduta da arguida encaixa na figura típica da ameaça, de deixar vincado para com a assistente que a todo o momento lhe pode causar um mal, o mal que enuncia na sua expressão”.

Por sua vez, no ac. deste TRC de 28-02-2018, processo nº 11/15.1GTVIS.C1, decidiu-se …

Mais se decidiu em acórdãos recentes sobre casos análogos:

- Ac. de 04-12-2019, processo nº 49/19.0GHCVL.C1: …

- Ac. de 29-01-2020, processo nº 81/18.0PBFIG-C1: …

- Ac. de 16-05-2018, processo nº 117/16.0GAVZL.C1: …

- Ac. de 14-07-2015, processo nº 18/12.0GDMMN.E1: …

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Em todos os acórdãos citados, sem prejuízo do tempo verbal utilizado pelo agente, resulta efetivamente que o desígnio manifestado pelo mesmo (agente) se refere a um mal futuro. E, como se assinalou, esta destrinça entre mal futuro ou mal presente ou iminente, tem como referência eventuais atos de execução ou início de execução do dito mal ameaçado

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Dispositivo

Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso da recorrente/assistente  … e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que pronuncie os arguidos … pela prática pela prática, cada um deles,  de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), ambos do C.Penal.

Sem tributação.

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Relator: Luis Teixeira

Adjuntos: Vasques Osório; Maria José Guerra