Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
175/22.8T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
NOVA VERSÃO DO PLANO
PUBLICAÇÃO DE ANÚNCIO
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 17.º-F, N.º 3, E 17.º, N.º 1, DO CIRE, E 195.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Embora o CIRE não declare a nulidade do processo especial de revitalização em caso de violação do preceito do n.º 3 do respetivo art. 17.º-F – na redação anterior à dada pela Lei n.º 9/2022, de 11-01 –, concretamente no caso de não ter sido publicado no portal do Citius anúncio advertindo da junção ou não junção da nova versão do plano, deve entender-se que é obrigatória a publicação de tal anúncio e que só a partir dessa publicação começará a correr o prazo de votação do plano.

II – A omissão desse ato é suscetível de provocar a anulação do processado, ao abrigo do disposto no art. 195.º, n.º 1, do CPCiv., por remissão do n.º 1 do art. 17.º do CIRE.

Decisão Texto Integral:
Relator: Emídio Francisco Santos
Adjuntos: Catarina Gonçalves
Maria João Areias

Processo n.º 175/22.8T8GRD.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do tribunal da Relação de Coimbra

U..., Lda, com sede na Avenida ..., ..., ..., recorreu ao processo especial de revitalização com vista a estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.

Findo o prazo das negociações, a requerente depositou no tribunal plano de revitalização.

A indicação do depósito foi publicada no portal Citius.

Nos 5 dias subsequentes à publicação, nenhum credor alegou o que tivesse por conveniente quanto ao plano depositado pela empresa.

Findo o prazo de 5 dias atrás referido, não foi publicado no portal Citius anúncio advertindo da não junção de nova versão do plano.

Nesse mesmo prazo, foi votado o plano

O administrador da insolvência remeteu ao processo o seguinte resultado da votação:
· O universo de credores com direito de voto corresponde a créditos no valor total de €1.121.784,74;
· Registaram-se votos correspondentes a um valor global de créditos de € 848.819,81, constituindo uma percentagem de 75,67%;
· Registaram-se votos favoráveis à aprovação do plano no valor de €482.208,41, correspondendo a uma percentagem de 56,81%;
· Registaram-se votos desfavoráveis à aprovação do plano no valor de €366.611,40, correspondendo a uma percentagem de 43,19%;
· Não se registaram votos de abstenção.  

Entre os votos que o administrador considerou desfavoráveis à aprovação do plano figurou o do Instituto de Segurança Social, correspondentes a um crédito no montante de 271 146,16 euros.

O Meritíssimo juiz do tribunal a quo recusou a homologação do plano com fundamento na falta de preenchimento do quórum previsto no n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE (redacção anterior à que lhe foi dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro).

O Instituto da Segurança Social IP requereu a rectificação da sentença no sentido de ela considerar que o sentido de voto da Segurança Social foi no mínimo, o de abstenção, e não contra a aprovação do plano e que, caso assim se não entendesse, se declarasse a nulidade da sentença por preterição de formalidade essencial na contagem dos votos por errónea informação prestada pelo administrador judicial provisório.

No dia imediatamente a seguir à apresentação do requerimento atrás mencionado, o mesmo Instituto da Segurança Social, IP, pediu se desse o mesmo sem efeito e requereu:
· Se declarasse a falsidade da informação constante do documento remetido pelo administrador da insolvência no que respeitava ao sentido de voto da segurança social;
· Se declarasse a nulidade da sentença de recusa de homologação por preterição da formalidade essencial referente à não publicação do anúncio relativo à junção/não junção da nova versão do plano, publicação esta a partir da qual se iniciaria o prazo para a votação.

Após pronúncia do administrador judicial provisório, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo decidiu:
· Notificar o administrador judicial provisório para, no prazo de cinco dias, emitir novo relatório do resultado da votação, desta feita considerando que o Instituto de Segurança Social se abstivera na votação;
· Que fosse proferida nova sentença homologatória/não homologatória do plano, com base nesse novo resultado de votação.

O Instituto da Segurança Social não conformou com a decisão na parte em que não foi dado cumprimento ao artigo 17.º-F, n.º 3 do CIRE, ou seja, quanto à não obrigatoriedade da publicação no portal Citius “da junção ou não junção de nova versão do plano, correndo desde a publicação referida o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações.”

No final pediu se anulasse essa parte do despacho, declarando-se a nulidade da sentença de recusa de homologação por preterição da formalidade essencial - referente à não publicação do anúncio relativo à junção/não junção de nova versão do plano -, publicação essa, a partir da qual, se iniciaria o prazo para votação e para “eventual pedido de recusa de homologação do plano”.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Entende o ISS IP. que uma vez aprovado o plano de recuperação/revitalização, este é sujeito a um segundo controle de cariz jurisdicional, que irá conduzir à sua homologação ou não homologação, sendo aqui conferido um papel de guardião último da legalidade ao tribunal, ao caber-lhe, sindicar, o cumprimento das normas aplicáveis. Outrossim,
2. Por força dos dispositivos legais, são aplicáveis à homologação, ou recusa de homologação, do plano de recuperação/revitalização, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º, com as necessárias adaptações.
3. Ora tal como decorre do art.º 215º do CIRE, o juiz está vinculado ao dever de controlar a legalidade do plano de recuperação, aprovado pelos credores, devendo recusar, a sua homologação quando, nos termos do ali plasmado, ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais, ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza. Destarte,
4. E embora a lei não o defina, tem entendido a doutrina e a jurisprudência que deve entender-se que as “regras procedimentais” são aquelas que visam regular a forma como deverá desenrolar-se o processo, enquanto que as outras (as normas de conteúdo) se reportarão ao dispositivo do plano de revitalização, bem como aos princípios que lhe devam estar subjacentes, sendo as primeiras todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, que incluem os passos procedimentais que nele devem ser dados até que os credores decidam sobre as propostas que lhes foram apresentadas (incluindo, assim, as regras que disciplinam as negociações a encetar entre os credores e o devedor e as regras que regulam a aprovação e votação do plano) e, bem assim, as relativas ao modo como o plano deve ser elaborado e apresentado, enquanto que as segundas (as normas de conteúdo) serão todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente.
5. Outrossim, tem-se entendido que são “normas não negligenciáveis”, as que revestem natureza de violações de normas imperativas e que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza e que interfiram com a justa salvaguarda dos interesses/posições dos credores, chegando ao ponto do “credor que se sinta prejudicado com o plano, contra o qual votou, (não tenha oportunamente manifestado a sua oposição à aprovação do mesmo), gozar ainda assim, se o tribunal o vier a homologar, do direito de impugnar a decisão por via de recurso, nos termos gerais.
6. Entende o ISS IP, num primeiro momento, que não votou e que por isso lhe foi dado provimento nessa parte da sua alegação e que, num segundo momento, deveria ter sido declarada a nulidade da sentença de recusa de homologação por preterição de formalidade essencial, concretamente, a não publicação do anúncio relativo à junção/não junção de nova versão do plano, publicação esta a partir da qual se iniciaria o prazo para votação.
7. Esta ultima pretensão foi indeferida ao ISS IP. pelo que, Venerandos Desembargadores, não lhe resta outro caminho, que não a reacção, em sede de recurso judicial de apelação para a Relação de Coimbra, mesmo em momento anterior à rectificação da sentença de homologação/ não homologação, que ainda virá a ser proferida. Destarte,
8. Não olvida o ISS IP. que a violação deste princípio terá sempre que ser aferida na ponderação global “in casu”, entendendo que a não homologação ou a eventual e “nova homologação do plano” em resultado da “nova contagem dos votos”, deveria ser recusada, determinando-se, a publicação legal, a fim de se iniciar o prazo para votação,
9. Em ordem a evitar-se a vinculação do credor Segurança Social, a um plano que não teve a oportunidade de votar por falta de publicitação, o que se revela claramente excessivo, desproporcionado ou desrazoável.
10. A razão de ser do processo de revitalização radica na vontade dos credores, pelo que a lei lhes atribui um controlo efectivo do mesmo, impondo-lhes, porém, o cumprimento rigoroso das regras respeitantes à publicidade de actos que possam afectar os seus direitos.
11. A publicação no portal do Citius consubstancia acto indispensável para que os credores possam exercer o direito de votação e de poderem requerer a recusa de homologação do plano, nos termos do artigo 216.º, do CIRE.
12. A ausência desta formalidade consubstancia a prática de uma nulidade procedimental não negligenciável,

Em cumprimento da decisão recorrida, o administrador da insolvência apresentou o seguinte novo resultado da votação:
· O universo de credores com direito de voto corresponde a créditos no valor total de €1.121.784,74;
· Registaram-se votos correspondentes a um valor global de créditos de €848.819,81, constituindo uma percentagem de 75,67%;
· Registaram-se votos favoráveis à aprovação do Plano no valor de €482.208,41, correspondendo a uma percentagem de 56,81%;
· Registaram-se votos de abstenção à aprovação do Plano no valor de € 271.146,16, correspondendo a uma percentagem de 31,94%;
· Registaram-se votos desfavoráveis à aprovação do Plano no valor de €95.465,24, correspondendo a uma percentagem de 11,25%.

Conclui no sentido de que o plano não se mostrava aprovado nos termos do artigo 17º-F/5, al. a) e b) CIRE.

Notificado da cópia do novo resultado da votação para esclarecer se mantinha interesse no recurso apresentado, o recorrente reafirmou o seu interesse na apreciação do recurso.

Não houve resposta ao recurso.


*

Síntese da questão suscitada pelo recurso:

Saber se a decisão recorrida é de anular e de substituir por decisão que declare a nulidade da sentença e que ordene a publicação de anúncio advertindo da junção ou não junção de nova versão do plano, a partir da qual se iniciará o prazo para votação do plano e para eventual pedido de recusa de homologação do plano.  


*

Os factos relevantes para a decisão são constituídos pelos antecedentes processuais narrados no relatório deste acórdão.

*

Descritos os factos, passemos à resolução da questão supra enunciada.

Na origem do recurso está a seguinte divergência quanto à interpretação do n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE [redacção anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, pois como bem se observou na 1.ª instância o disposto no artigo 17.º-F com a redacção introduzida pela citada lei apenas se aplica aos processos especiais de revitalização instaurados após a sua entrada em vigor e o presente processo especial de revitalização foi instaurado antes da entrada em vigor da referida lei]:

Enquanto a decisão sob recurso interpretou o preceito no sentido de que a publicação do anúncio de junção ou não junção de novo plano só teria lugar se fosse apresentada alguma impugnação à versão inicial do plano nos termos do n.º 2 do citado artigo, o recorrente sustenta que é obrigatória a publicação de anúncio da junção ou não junção de novo plano e que só a partir de tal publicação começará a correr o prazo de votação do plano.

 Salvo o devido respeito que nos merece a decisão recorrida, o preceito do n.º 3 do artigo 17.º-F é de interpretar no sentido que lhe é dado pela recorrente. Na verdade, ao dispor que “Findo o prazo previsto no número anterior é publicado no portal Citius anúncio advertindo da junção ou não junção de nova versão do plano, correndo desde a referida publicação o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações”, a letra do preceito não oferece dúvidas quanto ao seguinte:
· Após a publicação no portal Citius da indicação de que a empresa depositou no tribunal o plano de revitalização (n.º 1 do artigo 17.º-F), haverá uma outra publicação no portal Citius advertindo da junção ou da não junção de nova versão do plano;
· Será publicado o anúncio de que foi junta nova versão se nos prazos previstos no n.º 2 do artigo 17.º-F algum credor fizer alguma observação quanto ao plano depositado pela empresa e se esta alterar o plano em conformidade, depositando nova versão do plano;
· Será publicado o anúncio de que não foi junta nova versão, na hipótese de, nos prazos referidos no n.º 2, não ter sido feita nenhuma observação ao plano ou se, tendo sido feita, a empresa não alterar o plano em conformidade com tais observações;
· O prazo de votação do plano começa a correr desde a publicação no portal Citius da junção ou da não junção de novo versão do plano.

Considerando que, no caso, não foi publicado anúncio advertindo da não junção de nova versão do plano [e seria este o anúncio a publicar visto que, no prazo de cinco dias após a publicação do plano de revitalização, os credores não fizeram observações a seu respeito] é de afirmar que o processo decorreu com violação do n.º 3 do artigo 17º-F do CIR.

No caso, a consequência desta violação é a anulação do processado a fim de se ser publicado anúncio advertindo da não junção de nova versão do plano, a partir da qual se seguirão os ulteriores termos do processo.

Vejamos.

O processo especial de revitalização não prevê a anulação do procedimento com base na violação de regras relativas à sua tramitação. O que o processo especial prevê, por efeito da remissão do n.º 7 do artigo 17.º-F para o artigo 215.º do CIRE, é a recusa de homologação do plano por violação não negligenciável de regras de procedimento.

Como é bom de ver, a questão da recusa da homologação do plano com fundamento na violação não negligenciável de normas procedimentais não se coloca no caso visto que o plano de revitalização não foi homologado. Aliás o plano não foi sequer aprovado.  

A anulação do processado pretendida pela recorrente apenas poderá ser alcançada por aplicação da regra geral sobre a nulidade dos actos constante do artigo 195.º do CPC. Aplicação cujo fundamento é o n.º 1 do artigo 17.º do CIRE, na parte em que dispõe que os processos regulados no presente diploma regem-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código.

Segundo o n.º 1 do artigo 195.º do CPC, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

A fórmula usada “quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” aponta no sentido de que, para que a irregularidade se converta em nulidade, basta que ela seja susceptível de influenciar o exame ou a decisão da causa, não sendo necessária a prova de que a irregularidade produziu efectivamente um prejuízo. A nulidade será, no entanto, de afastar quando se provar que a irregularidade, sendo susceptível de influenciar o exame ou a decisão da causa, não prejudicou efectivamente tal exame ou decisão.

No caso, a lei – CIRE – não declara a nulidade do processo em caso de violação do n.º 3 do artigo 17.º-F, concretamente no caso de não ter sido publicado no portal do Citius anúncio advertindo da junção ou não junção da nova versão do plano. Logo, tal omissão só produzirá nulidade se ela for susceptível de influir no exame e na discussão da causa.

Esta expressão deve ser interpretada com as devidas adaptações, quando aplicada ao processo especial de revitalização, visto que este não comporta uma fase de exame, entendida como instrução e discussão da causa [cita-se em abono desta interpretação José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de processo Civil, Volume 2.º, Coimbra Editora, Limitada, página 487]. No contexto do presente processo especial de revitalização, a omissão do acto previsto no n.º 3 do artigo 17.º-F produz nulidade se for susceptível de influenciar a votação e aprovação do plano. Assim acontece, visto que era a partir da publicação omitida que se iniciava o prazo de votação do plano e o prazo para qualquer interessado solicitar a não homologação do plano. Assim sendo, não é de excluir a possibilidade de os credores que não votaram o plano não o terem feito por causa da irregularidade cometida. Como não é de excluir a hipótese de a irregularidade ter tido influência no sentido de voto que foi atribuído à recorrente.

Pelo exposto, há fundamento para revogar a decisão recorrida e substitui-la opor decisão a anular o processado, a fim de se proceder à publicação a que se refere o n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE e de seguirem os ulteriores termos do processo especial de revitalização.


*

Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e substituiu-se a mesma por decisão a anular o processado, a fim de se proceder à publicação a que se refere o n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE e de seguirem os ulteriores termos do processo especial de revitalização.


*

Responsabilidade quanto a custas:

Sem custas - artigo 4.º, n.º alínea u) do RCP.   

Coimbra, 9 de Novembro de 2022