Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1399/09.9T2AVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
ADEQUAÇÃO FORMAL
Data do Acordão: 03/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.381, 387, 392 DO CPC
Sumário: I - É adequado o procedimento cautelar comum consistente na apreensão e remoção dos bens móveis, que constituem o recheio de uma habitação, requerido por quem se arroga proprietário desses bens, e que, contra a sua vontade, deles foi desapossado, sendo o meio processual ajustado a conferir tutela provisória aos seus interesses.

II - São características comuns das providências cautelares: a provisoriedade, a instrumentalidade e a “sumario cognitio”. E o seu objectivo essencial é obviar ao “periculum in mora”.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

A (…) e B (…)  vieram instaurar providência cautelar não especificada, sob a forma de processo comum, nos termos do artigo 381º e seguintes do Código de Processo Civil, contra C (…), pedindo que, sem audição prévia da requerida, se proceda à apreensão e remoção dos bens das requerentes, os quais identifica, se necessário com recurso a arrombamento, assim como vários imóveis, uma quarta parte indivisa de um prédio rústico, brasão em estanho e objectos em ouro, para garantia do ressarcimento dos danos sofridos pelas requerentes.

Para tanto alegam ser proprietárias de um imóvel, (…) concelho de ...., inscrito na matriz sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº (...), o qual foi provisoriamente entregue à requerida, com todo o seu recheio, no âmbito do processo cautelar nº 406/09.0TBILH, e que, na sequência de transacção efectuada no mesmo, foi acordado em ser restituído às requerentes, com o respectivo recheio. Porém, as requerentes, ao deslocarem-se ao imóvel, depararam com ele vazio e com vários estragos, efectuados pela requerida ou por alguém a seu mando. Adiantam que, apesar das diligências efectuadas, não conseguiram recuperar os bens que se encontravam no imóvel, que para procederem à reparação do mesmo terão de despender cerca de € 100.000,00 pretendendo as mesmas propor acção contra a requerida para obterem a entrega dos bens e ressarcimento dos danos causados.

Produzida a prova, foi proferida decisão que, julgando parcialmente procedente a providência cautelar, determinou “…a apreensão e remoção dos bens pertença das Requerentes supra descritos no ponto 2.1.11 da factualidade provada, com arrombamento de portas, se necessário, devendo uma das Requerentes ser nomeada fiel depositária dos mesmos, indeferindo-se a requerida apreensão dos objectos em ouro e estanho e imóveis identificados no requerimento inicial”, tendo as custas ficado a cargo das requerentes, nos termos do artigo 453º, nº1 do Código de Processo Civil.

Notificada de tal decisão, por dela discordar, veio a requerida interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões, que assim se sintetizam:

- A utilização do procedimento cautelar comum – em vez dos procedimentos cautelares especificados do arresto ou do arrolamento -, traduz-se numa situação de utilização de meio processual desadequado para a tutela da pretensão das requerentes, equivalendo à figura jurídica de erro na forma de processo (artigo 199º do Código de Processo Civil);

- No caso vertente, atenta a natureza do facto que subjaz a tal erro – desadequação substancial do pedido face ao meio processual utilizado – não é viável o aproveitamento de quaisquer dos actos praticados no processo, com vista à sua aproximação à forma adequada, implicando a anulação de todo o processo;

- Há fundamento para o indeferimento liminar da providência cautelar, o que deve ser declarado pelo Tribunal ad quem;

- Além do mais, não se encontram demonstrados os pressupostos legais da providência cautelar em crise, concretamente o requisito do fundado receio de perda da garantia patrimonial da requerida para a satisfação do invocado direito de crédito das requerentes, que a providência em causa visa assegurar;

- A decisão recorrida violou, além do mais, os artigos 381º, nºs 1 e 3, 387º, nº1 e 421º, todos do Código de Processo Civil,

pugnando, assim, a recorrente, com a procedência do recurso, pela revogação da decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que indefira liminarmente a providência cautelar, ou, assim não se entendendo, indefira a mesma providência por não verificação dos seus pressupostos legais.

As recorridas não contra – alegaram.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2.  Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente as seguintes questões:

- adequação formal da providência cautelar deduzida face à pretensão formulada pelas requerentes da mesma;

- verificação ou não dos pressupostos legais necessários ao seu decretamento.

 

III. FUNDAMENTO DE FACTO

São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância e relevantes para a apreciação do objecto do presente recurso:

1. Por escritura pública de doação datada de 28.07.1995, a requerida e seu marido, pais das requerentes, doaram a estas duas moradias geminadas, constituídas por cave, r/c e 1.° Andar, sitas na (...), n.° (...), (...), freguesia de (...), Concelho de (...), inscritas na matriz predial respectiva sob o art. (...), descritas na Conservatória do Registo Predial de (...), sob o nº (...)/19930601.

2.Tal prédio foi objecto de providência cautelar de restituição provisória da posse, intentada pela Requerida contras as aqui Requerentes, que correu os seus termos sob o n.° 406/09.0 TBILH, Aveiro – Juízo de Grande Instância Cível – Juiz l, tendo o mesmo sido provisoriamente entregue à Requerida, com o todo o seu recheio.

3.Todo o recheio aí identificado, que existia nas duas moradias supra descritas, foi doado verbalmente às requerentes pela requerida e seu marido.

4.O procedimento cautelar supra indicado foi objecto de transacção, tendo a Requerida acordado em proceder à restituição do imóvel às Requerentes, entrega essa que deveria ocorrer até ao dia 15 de Julho de 2009.

5.As chaves do imóvel foram deixadas na caixa de correio da Requerente (.....), no dia 16 de Julho de 2009.

6.Porém, quando as Requerentes se deslocaram ao imóvel, depararam com este completamente vazio, já que a Requerida havia levado tudo o que pôde transportar, bem como com vários estragos, provocados pela Requerida ou alguém a seu mando.

7.Assim, constataram os danos constantes das fotografias juntas aos autos, nomeadamente paredes e pavimentos danificados pela retirada de diversos bens, como sendo sanitários, esquentadores, máquinas de cozinha, armários, quadros de parede, candeeiros, etc…

8.Apesar de várias diligências no sentido de recuperar os bens que se encontravam no interior do imóvel, retirados pela requerida, nada foi restituído até à presente data. 

9.Além disso, para proceder à reparação do imóvel necessitam as Requerentes de valor superior a € 100.000,00.

10. As Requerentes pretendem intentar a competente acção de condenação contra a requerida, para que lhes sejam devolvidos os seus bens e, bem assim, para ressarcimento de todos os danos causados, no valor que se vier a apurar.

11. Os bens que existiam no imóvel e que por ora conseguem identificar são os seguintes:

– na cave, dois armários com louças e roupas de cama;

- na cozinha, móveis de cozinha, fogão com forno, um frigorífico, quatro cadeiras e camilha, louças guardadas nos referidos móveis, um candeeiro com pé em barro;

- no quarto da cave, um divã e um colchão, um roupeiro de parede com várias roupas de cama;

- na cave do lado sul, móveis de cozinha, um frigorífico, um fogão, um esquentador, um conjunto de sofás (3 peças), uma mesa oval e seis cadeiras, uma cristaleira, um camilha, duas camas, sendo uma delas de casal e a outra de solteiro, e dois armários, várias peças de louça;

- na cozinha dos anexos, lado sul, um sofá cama, uma camilha, uma estante, um armário com loiça, um frigorífico, uma grelha, um esquentador, uma camilha, um mesa circular, uma cómoda, uma cama de armário, uma estante, dois cadeirões e roupa de cama;

- na garagem do lado sul, um frigorífico, dois guarda fatos, duas camilhas, garrafeira e respectivo recheio;

- na cozinha do anexo, lado norte, um sofá cama, um frigorífico, um armário com loiça, uma mesa e quatro bancos, uma cama de casal, duas mesas de cabeceira, uma cómoda, uma camilha;

- na garagem do lado norte, garrafeira e respectivo recheio e um depósito de gasóleo;

- na cave do lado sul, um despensa com quatro armários com roupas e utensílios diversos;

- na cave do lado norte, na cozinha traseira, móveis de cozinha, fogão, frigorífico, mesa com quatro cadeiras;

- no quarto, uma cama de casal, duas mesas de cabeceira, uma camilha, uma cómoda, um sofá, uma cadeira e roupas de cama;

- na cozinha da cave e quarto ao lado frente norte, móveis de cozinha, frigorífico, fogão, esquentador, conjunto de sofás, mesa e oito cadeiras, uma cristaleira com loiças, um cama de casal, duas camas de solteiro, uma cómoda, espelho, um guarda fatos, duas cadeiras e roupa de cama;

- no rés-do-chão norte, na sala comum, duas cristaleiras, uma baixa e outra alta, um armário com quatro gavetas, um móvel de televisão, duas mesas e duas cadeiras, cinco cadeiras de encaixar, um módulo de três gavetas, uma televisão, um conjunto de dois sofás, um candeeiro, vertical cilíndrico, um porta cd’s, quatro bancos, uma mesa de apoio, quatro quadros, um candeeiro de pé, louça diversa, artefactos de decoração;

- na cozinha, armários de cozinha, frigorífico, e uma arca frigorífica vertical, forno e fogão, máquina de lavar a louça, máquina de café, mesa de cozinha e quatro cadeiras, fritadeira e esquentador;

- no terraço, lado norte, um cadeirão, uma mesa de madeira, uma churrasqueira, uma mesa redonda, um conjunto de sofás de verga e mesa, um candeeiro vertical, cilíndrico, dois biombos, uma máquina de lavar, uma máquina de secar, uma caldeira a gasóleo da marca Lasian, um carrinho de chá;

- no hall, uma consola e um armário, um espelho de parede;

- na despensa, uma tábua de passar a ferro, um aspirador, um ferro eléctrico, uma estante de madeira com dois módulos e utensílios diversos;

- um quarto de criança com dois camiseiros, sendo um com seis gavetas e outro com quatro gavetões, um sofá com duas camas, uma camilha, uma secretária de criança e dois bancos, um banco de veludo azul, roupas e brinquedos e fotografias diversas;

- no quarto principal, uma cama de casal, duas mesas de cabeceira, uma cómoda e um camiseiro, um banco em veludo azul, dois quadros, dois espelhos, três candeeiros e seis fotografias;

- no hall de entrada principal, um módulo de parede, um espelho de parede, duas mesas, dois vasos em madeira;

- no primeiro andar do lado norte, um quarto com cama de casal, duas mesas de cabeceira, uma cómoda, uma cadeira, roupa de cama;

- outro quarto, com duas camas, uma mesa de cabeceira, uma cadeira;

- no hall, uma camilha;

- no sótão com Kitchnet, um móvel de cozinha com balcão, forno e placa, esquentador, frigorífico, mesa oval com seis cadeiras, uma cristaleira com louça, um terno de sofá e mesa de apoio, uma camilha, uma mesa e uma cadeira de plástico;

- no rés-do-chão do lado sul, na sala, mesa com seis cadeiras, um conjunto de três sofás, um móvel, um espelho, uma televisão e respectivas mesas de apoio e uma cama de armar;

- na cozinha, móveis de cozinha, frigorífico, micro ondas, mesa de cozinha com quatro bancos, televisão, um esquentador, placa e forno e loiças;

- no hall, uma mesa de computador;

- num dos quartos, uma cama de casal, duas mesas de cabeceira, dois candeeiros, uma camilha, uma cadeira, uma cómoda com espelho;

- no outro quarto, três camas individuais, um armário estante, um espelho, uma camilha, uma cadeira, um terço, uma mesa de passar a ferro, um tanque em fibra;

- no hall das escadas no rés-do-chão um mesa de apoio e verga e um baú em verga;

- no primeiro andar lado sul, salão, móveis de cozinha, com balcão, placa e fogão, máquina de lavar a loiça, frigorífico, uma arca frigorífica vertical, dois baús em madeira, um esquentador, um aspirador, um desumidificador, uma televisão, um DVD, um conjunto de três sofás, um sofá cama, uma mesa de apoio, um puff, um mesa oval e seis cadeiras, um módulo de parede com duas prateleiras, um armário vitrina, três mesas de apoio sobrepostas, um espelho de parede, uma mesa, um DVD, uma cristaleira grande com seis portas, sendo três delas em vidro e três gavetas, um armário com porta e três prateleiras, um móvel com tampo em pedra, uma aparelhagem de som, uma arca em madeira, duas cadeiras em verga, duas cadeiras em madeira, sendo uma de praia com tecido, um candeeiro de pé;

- no hall, um armário, um espelho, uma sapateira, dois aquecedores, um aquecedor a gás;

- num dos quartos, uma cama de casal, duas mesas de cabeceira, um  módulo com três gavetas, uma estante com seis prateleiras, uma secretária com um módulo com três gavetas, uma cómoda com tampo em pedra, um espelho de parede, um módulo sem gavetas, quatro quadros, dois bancos, uma cadeira, três candeeiros;

- na varanda do quarto, uma cómoda com três gavetas, uma secretária com um módulo de estantes, um camiseiro com três gavetas, um tanque em plástico, uma máquina de lavar, dois bancos, uma cadeira, roupa e utensílios de decoração;

- no outro quarto, uma cama de casal, duas mesas de cabeceira, uma cómoda, um módulo com seis estantes, uma máquina de costura, um espelho, mais duas cómodas, sendo uma com tampo em pedra, um armário guarda roupa, dois bancos, uma cadeira, um aquecedor eléctrico, sete candeeiros, roupa e utensílios diversos.

12. Todos estes bens encontram-se na (…) 1ª moradia imediatamente a seguir ao n° 11, no sentido ascendente da numeração (sentido Montouro – Mesas, lado esquerdo), e na 3ª moradia imediatamente a seguir ao n° 11, no sentido ascendente da numeração (sentido Montouro – Mesas, lado esquerdo).

13. A relação das Requerentes e da Requerida, respectivamente filhas e mãe, tem vindo a degradar-se de dia para dia.

14. A Requerida não se coíbe de dizer a quem quer ouvir que as filhas, suas herdeiras legitimárias, nunca irão herdar nada daquilo que lhe pertence.

15. A Requerida vive apenas de rendimentos bancários e de imóveis.

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

            Adequação da providência requerida ao pedido nela formulado

Da verificação dos requisitos da providência cautelar requerida

            O direito fundamental de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrado, incorporando o direito de acção, e o princípio da sua efectiva tutela judicial, é garantido quer em relação à violação efectiva de direitos subjectivos, quer quando esteja eminente ou haja perigo de lesão desses mesmos direitos[3].

            De tal forma que se pode concluir que a cada direito corresponde uma acção ou uma providência destinada ao seu reconhecimento, mas igualmente à prevenção da sua violação ou a conferir efeito útil a tal reconhecimento.

            Neste contexto, o princípio da efectiva tutela judicial pressupõe a composição provisória da situação controvertida antes da decisão definitiva, de molde a prevenir a violação de direitos e/ou a assegurar a utilidade da decisão que os haja reconhecido, tarefa prosseguida através de procedimentos cautelares, de natureza urgente, cuja especificidade visa a garantia desses objectivos.

            Pode-se, assim, afirmar que a “tutela processual provisória decorrente das decisões provisórias e cautelares é instrumental perante as situações jurídicas decorrentes do direito substantivo, porque o direito processual é meio de tutela dessas situações. A composição provisória realizada através da providência cautelar não deixa de se incluir nessa instrumentalidade, porque também ela serve os fins gerais de garantia que são prosseguidos pela tutela jurisdicional (…).

        A composição provisória que a providência cautelar torna disponível pode visar uma de três finalidades: aquela composição pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela requerida. Sempre que a tutela provisória se legitime pela exigência de garantir um direito, deve tomar-se uma providência que garanta a utilidade da composição definitiva, quer dizer, uma providência de garantia”[4].

            São características comuns das providências cautelares: a provisoriedade, a instrumentalidade e a sumario cognitio.

            A primeira daquelas características emana da circunstância da providência cautelar prosseguir uma tutela distinta da facultada pela acção principal, de que é dependente, e pela necessidade de a substituir pela tutela que vier a ser definida por essa acção. O objecto da providência não é o direito acautelado, mas a garantia desse direito, a regulação provisória da situação ou a antecipação da tutela requerida.

            É objectivo primário do procedimento cautelar evitar a lesão grave ou dificilmente reparável de um direito em resultado da demora na composição definitiva do litígio. Visa obviar ao periculum in mora. A sua verificação constitui pressuposto de qualquer procedimento cautelar: inexistindo, este será indeferido ou não decretado.

            Como, a propósito deste requisito, escreveu Lucinda Dias da Silva[5], «…o ”periculum in mora” corresponde ao pressuposto característico dos processos cautelares, dado nele se sintetizar a fonte primária de probabilidade de dano que preside à concepção da tutela cautelar, por sua vez justificativa das especificidades próprias deste tipo de processos (…).

            O perigo em causa assume, porém, uma tripla particularidade, na medida em que a sua caracterização impõe que, cumulativamente, se considerem a sua fonte, o seu grau e o seu objecto.

            Tratar-se-á, respectivamente, de perigo decorrente do decurso do tempo processual da acção principal (fonte), que se reflicta negativamente, de forma grave e dificilmente reparável (grau) no efeito útil de tal acção (objecto)».

            A providência cautelar exige apenas a prova sumária – sumario cognitio – do direito ameaçado, isto é, a probabilidade da existência do direito para o qual se demanda a tutela provisória, e o receio da sua lesão.

            Nesta característica enraíza o designado fumus boni iuris, requisito indispensável ao decretamento da providência cautelar, que se traduz na possibilidade de antever a aparência do direito invocado pelo requerente.

            Com efeito, “incumbe ao requerente demonstrar a probabilidade de procedência da acção principal, invocando factos que permitam inferir tal conclusão, pelo que tais factos constituirão, no seu conjunto, uma aproximação sumária da causa de pedir da acção principal (…).

            Trata-se, nesta medida, de um requisito prévio, relativamente aos demais, permitindo distinguir, adentro da causa de pedir da acção cautelar (…), além dos factos consubstanciadores da existência de perigo para a tutela jurisdicional efectiva no processo principal (factualidade relevante exclusivamente no processo cautelar), um segmento correspondente ao conjunto de factos que proporcionam um vislumbre do que será a causa de pedir da acção principal e permitem aferir da probabilidade de futura procedência dessa lide (…).

            (…) a perfunctoriedade da análise e do grau de convencimento respeita aos factos correspondentes à titularidade do direito, considerando-se suficiente que se gere no tribunal a convicção, não de que o requerente é titular do direito que invoca, mas de que é verosímil ou altamente provável que assim venha a ser declarado, pelo que importará que, quanto a este requisito, assim atenuado (por respeitar à aparência de titularidade do direito e não à efectiva titularidade do direito), se forme no espírito do julgador o grau de certeza especial, que permite a pronúncia no sentido de que os factos que lhe estão associados se consideram provados”[6].

            Requerida determinada providência cautelar, importa aferir, antes de mais, da necessidade do seu decretamento, através da indagação do preenchimento dos princípios do “fumus boni iuris” e “periculum in mora”.

Caso resulte dessa indagação conclusão de natureza afirmativa, importará então avaliar se a medida requerida é a adequada à prossecução do fim que se visa atingir, e, concluindo-se em sentido positivo, se é a mais adequada.

Mas ainda que essa circunstância não se verifique, sempre o julgador poderá conceder outra providência que não a requerida[7], de forma a assegurar a tutela provisória dos interesses do requerente, considerando a natureza hipotética do direito invocado, mediante a mínima ingerência possível na esfera jurídica do requerido.

Finalmente, “na hipótese de se concluir estarem verificados todos os mencionados pressupostos, cumprirá indagar se a medida a decretar (…) se revela proporcional, o que se aferirá sopesando os prejuízos que resultariam, para o requerente, da não concessão da providência cautelar e as desvantagens que decorreriam, para o requerido, da concessão de providência cautelar, sendo que a medida não será decretada se este último prejuízo for consideravelmente superior ao primeiro”[8].

Os princípios enunciados encontram acolhimento na letra da lei, designadamente quando o nº1 do artigo 381º do Código de Processo Civil, norma prevista para o procedimento cautelar comum, estabelece que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”, sendo que, nos termos do nº 2 do mesmo dispositivo, “ o interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor”, prevendo o nº1 do artigo 387º do mesmo diploma legal que “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”. Por seu turno, o nº2 do mesmo normativo prescreve que “a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido, exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.

As providências cautelares comuns só poderão ser requeridas quando nenhuma das legalmente tipificadas se possa aplicar à situação a acautelar[9], dada a natureza subsidiária daquelas.

Deste modo, além do requisito da subsidiariedade, “o decretamento deste tipo de providência depende da reunião, no caso, de pressupostos específicos: o fundado receio de que outrem, antes da proposição da acção ou no decurso dela, cause lesão grave ou de difícil reparação ao direito do requerente; a adequação da providência concretamente requerida à efectividade do direito ameaçado; o excesso considerável do dano que se pretende evitar relativamente ao prejuízo decorrente da sua concessão (artºs 381 nº 1 e 387 nºs 1 e 2 do CPC).

Apesar da sua atipicidade, e, consequentemente da indeterminação do seu campo de aplicação, as providências cautelares comuns terão, em regra, como finalidade a regulação provisória de uma situação e a antecipação de uma tutela definitiva”[10].

Argumenta a apelante, nas suas conclusões de recurso, existir desadequação do meio processual escolhido pelas apeladas, que, em vez da providência cautelar comum, como o fizeram, deveriam ter recorrido aos procedimentos típicos do arresto ou do arrolamento. Com base nesse mesmo raciocínio, sustenta existir vício equivalente a erro na forma de processo, com a consequência de anulação de todo o processado, por não ser possível o aproveitamento de qualquer dos actos praticados, pretendendo que, com a procedência do recurso interposto, seja revogada a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por decisão que indefira liminarmente a providência requerida.

Todavia, ainda que se configurasse o apontado vício – e desde já se adianta não existir -, as consequências dele decorrentes nunca seriam as pretendidas pela recorrente, como também já se extrai do anteriormente exposto.

Com efeito, a natureza da providência cautelar, os objectivos por ela prosseguidos, o princípio da adequação formal e o teor do artigo 392º do Código de Processo Civil impõem necessariamente distinta conclusão.

Na presente providência cautelar comum – não especificada – as requerentes/apeladas requereram que se procedesse à apreensão e remoção dos bens móveis, que identificam, que alegam pertencerem-lhes e que afirmam terem sido retirados da residência, de cuja propriedade também se arrogam, pela requerida, transferindo-os para outro local.

Pedem ainda o decretamento de tais medidas em relação a vários imóveis, uma quarta parte indivisa de um prédio rústico, brasão em estanho e objectos em ouro, para garantia do ressarcimento dos danos que alegadamente sofreram em resultado da actuação da requerida.

Porém, como resulta da decisão colocada em crise com o presente recurso, só quanto àqueles primeiros bens móveis, em relação aos quais foi decretada a providência cautelar, ocorreu sucumbência para a requerida/apelante, só nessa parte tendo ficado vencida, circunscrevendo-se o objecto do recurso, como tal, a essa parte delimitada da decisão.

Quanto aos bens móveis em causa, pretendem as recorridas que se proceda à sua apreensão e remoção, com fundamento no facto de lhes pertencerem e de deles se ter apossado a recorrente.

Há, por conseguinte, inteira compatibilidade entre a providência requerida e a factualidade que lhe serve de fundamento.

Pelo contrário, nem o arresto, que incide sobre bens do devedor[11], para garantia de satisfação do crédito que o requerente invoca ter sobre ele[12], nem o arrolamento, destinado a prevenir o “justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou documentos…”[13], consistindo na “descrição, avaliação e depósito dos bens”[14] são procedimentos cautelares adequados a almejarem a tutela provisória dos interesses das apeladas, que, invocando a sua propriedade sobre os bens móveis a apreender e a remover, pretendem, antes da composição definitiva do litígio, continuar a exercer os direitos inerentes ao direito que invocam, designadamente, a sua fruição, não se bastando com o mero depósito.

Registe-se que o arrolamento é uma medida cautelar de natureza conservatória, podendo prosseguir duas finalidades: assegurar a manutenção dos bens litigiosos enquanto é discutida a sua titularidade na acção principal, ou garantir a manutenção de documentos necessários à comprovação da titularidade do direito sobre as coisas arroladas[15].

Na providência instaurada pelas recorridas, pretendem as mesmas antecipar o efeito útil do direito de propriedade que invocam sobre os bens que identificam, e que, de resto, constituem o recheio da habitação de que também se dizem donas, objectivo que visam alcançar com a sua apreensão e remoção, acções que comportam a subsequente entrega desses bens, e que não se compagina com o arrolamento, e menos ainda com o arresto[16].

O elenco factual comprovado é indiscutivelmente bastante para se concluir pelo preenchimento dos requisitos necessários ao decretamento da providência cautelar requerida.

Acha-se, com efeito, demonstrada a aparência do direito invocado pelas requerentes, isto é, o direito de propriedade de que se arrogam sobre o recheio constituído pelos bens móveis de que foram desapossadas e cuja apreensão e remoção reclamam.

Face ao mesmo quadro factual apurado é ainda possível a formulação de um juízo de prognose acerca do “periculum in mora”, reforçado pela deterioração das relações entre recorrente e recorridas (respectivamente, mãe e filhas), e pela circunstância de aquela afirmar publicamente que estas não irão herdar nada de seu.

Não existe, por outro lado, desproporcionalidade que desaconselhe o deferimento das medidas cautelares requeridas.

Deste modo, improcedem os argumentos da recorrente quanto à impugnação deduzida, não merecendo reparo a decisão recorrida.


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Conclusão:

É adequado o procedimento cautelar comum consistente na apreensão e remoção dos bens móveis, que constituem o recheio de uma habitação, requerido por quem se arroga proprietário desses bens, e que, contra a sua vontade, deles foi desapossado, sendo o meio processual ajustado a conferir tutela provisória aos seus interesses.

São características comuns das providências cautelares: a provisoriedade, a instrumentalidade e a “sumario cognitio”. E o seu objectivo essencial é obviar ao “periculum in mora”.


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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo, assim, a decisão recorrida.

Custas, nesta instância: pela recorrente.


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto
[2] Art.º 664º do mesmo diploma
[3] Cf. artigo 20º da CRP e 2º, nº2 do Código de Processo Civil
[4] Acórdão da Relação de Coimbra, 08.04.2000, processo nº 285/07.1TBMIR.C1, www.dgsi.pt
[5] “Processo Cautelar Comum”, pág. 144 e segs.
[6]Lucinda Dias da Silva, ob. cit., págs. 143, 144
[7] Cf. artigo 392º, nº3, 1ª parte do Código de Processo Civil
[8] Lucinda Dias da Silva, ob. cit., pág. 146
[9] Artigo 381º, nº3 do Código de Processo Civil
[10] Citado Acórdão da Relação de Coimbra, 08.04.2000, processo nº 285/07.1TBMIR.C1; cf. ainda Acórdão da Relação de Coimbra, 28.04.2008, processo nº 513/07.3TBSRT.C1, www.dgsi.pt
[11] Quando, no caso em apreço, as recorridas se arrogam proprietárias dos bens cuja apreensão requereram

[12] Cf. Artigo 406º, nº1 do Código de Processo Civil; entre outros, Acórdão da Relação de Coimbra, 30.06.2009, processo nº 152/09.4TBSCD-A.C1, www.dgsi.pt
[13] Artigo 421º do Código de Processo Civil
[14] Artigo 424º, nº1 do Código de Processo Civil
[15] Cf. Abrantes Geraldes, “Temas de Reforma”, vol. IV, pág. 264
[16] Cf. Acórdão da Relação de Coimbra, 16.12.2003, processo nº 3394/03, www.dgsi.pt