Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
599/10.3TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
NULIDADE INSANÁVEL
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
Data do Acordão: 06/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283.º, N.º 3, ALS. B) E C), 285.º E 311.º, N.º 3, AL. B), DO CPP
Sumário: I - Face ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependentes de arguição por parte dos sujeitos processuais.

II - Consubstanciando tais vícios nulidade de conhecimento oficioso, podem ser conhecidos, a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final.

III - Da consagração da estrutura acusatória do processo, resulta inadmissível que o juiz possa determinar os termos em que deve ser formulada a acusação. Por maioria de razão, também não pode o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.

V - Assim, não podendo ser sanada a referida nulidade, a sua existência - traduzida, no caso, na falta de alegação, na acusação particular, dos elementos objectivos e subjectivo do imputado crime de ofensa a pessoa colectiva (concretamente, na omissão descritiva de o facto difundido pelo arguido não corresponder à verdade, sendo, portanto, inverídico, e de o arguido ter consciência dessa inveracidade -, verificada antes do trânsito em julgado da decisão final, produz a invalidade da dita peça processual e de tudo o que tiver sido processado posteriormente e, consequentemente, conduz ao arquivamento do processo, por inexistência de objecto.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular nº 599/10.3TAMGR do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande o arguido A..., identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado pela assistente “B..., SA”, da prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva sob a forma agravada, p. e p. pelos artigos 187º, nº 1 e 183º, nº 2, por força do nº 2 do citado art. 187º, todos do Código Penal.

O Ministério Público acompanhou a acusação particular deduzida pela assistente.

A assistente deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de € 1.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos.

Realizada que a audiência de julgamento, em 11 de Janeiro de 2012 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, decide-se:

-Condenar o arguido A... pela prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva na forma agravada, p. e p. nos artigos 187º, nºs 1 e 2 e 183º, nº 1, al. a), todos do Código Penal, em pena de admoestação;

-Vai ainda o arguido condenado no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s;

Quanto ao pedido cível:

Julga-se parcialmente procedente o pedido de indemnização cível, e em consequência:

-condena-se o demandado a pagar ao demandante, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o montante global de € 500,00 (quinhentos euros), acrescida de juros de mora desde a presente decisão até efectivo e integral pagamento;

-julgando-se o pedido improcedente quanto ao mais, em conformidade se absolvendo o demandado.

» Custas do pedido de indemnização cível: pelo demandado e pelo demandante na proporção do respectivo decaimento.

Inconformado, recorreu o arguido A..., extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

A) A Srª Juiz "a quo" errou, notoriamente, na apreciação da prova.

B) Já que, tendo em consideração os factos considerados provados, deveria ter tomado outra decisão, a qual seria a da absolvição do arguido;

C) Na verdade, ao considerar provado que a organização sindical Fiequimetal organizou para aquele dia 8 de Julho de 2010, um "Dia Nacional de Protesto e Luta";

D) E que emitiu "Declaração de Greve" que publicou no Jornal Correio da Manhã;

E) Que tal jornada se estendeu a várias empresas;

F) Que foi no âmbito desse cenário de luta que o arguido se dirigiu às instalações da assistente;

G) Que foi a organização sindical que decidiu manifestar-se daquela forma junto das instalações da assistente;

H) Que o cartaz com os dizeres em causa nos autos foi elaborado por membros do Sindicato;

I) Que o arguido, nesse dia, deparando-se com tal cartaz, decidiu empunhar o mesmo;

J) Que corre termos um processo no Tribunal do Trabalho em que o arguido impugna o despedimento de que foi alvo, então

K) Teria o Tribunal que concluir, face às regras da experiência comum e tendo em conta o comportamento que um homem médio adoptaria, colocado naquela situação, concluiria, dizíamos, que não era exigível outra atitude ao arguido que não fosse a de, tendo em conta o cenário com que se deparou, segurar o dito cartaz;

L) E não deveria ter considerado provado que, ao empunhar o cartaz, com tais dizeres, o arguido poderia dar a entender que a entidade patronal lhe imputava factos falsos, fabricando processos, utilizando meios não idóneos para tal;

M) A conclusão que a Srª Juiz tira e que dá como provada de que tais dizeres poderiam dar a entender a todos os que lessem o cartaz que a entidade patronal lhe estava a fabricar processos disciplinares "utilizando meios não idóneos para tal"é, salvo o devido respeito, altamente rebuscada, forçada até!

N) Pergunta-se: quem visse e lesse tal cartaz, porque haveria de pensar que a assistente "lhe imputava factos falsos, fabricando processos, utilizando meios não idóneos para tal..."?!'

O) Perguntamos nós: Meios não idóneos para fabricar processos? Que meios não idóneos podem ser esses? Exemplos?! Nem sequer descortinamos exemplos de "meios não idóneos" para fabricar processos disciplinares ...

P) A expressão "meios não idóneos" foi inventada pela assistente e plasmada na sentença, sem qualquer suporte testemunhal ou documental.

Q) Não se deveria ter considerado provado, por ausência total de prova nesse sentido, que o arguido visou atingir a assistente no seu bom-nome e que, não obstante, aceitou tal probabilidade, com ela se conformando;

R) Já que nunca foi essa a intenção do arguido;

S) O arguido pensou e pensa que tais processos disciplinares foram fabricados, segurou o cartaz com tal dizer naquele dia e hora, pretendendo apenas dizer isso mesmo, no âmbito do seu direito de expressão;

T) Mas nunca foi sua intenção atingir a empresa no seu bom nome!

U) Nem tal faz sentido, atendendo a que não foi ele quem fez o cartaz, nem quem o pensou ou encomendou;

V) Apenas o segurou, no contexto supra relatado e nas circunstâncias supra mencionadas!

W) Acresce que não se vislumbra como pode a empresa ter sido atingida no seu bom nome;

X) Sendo a própria assistente, na pessoa do seu administrador, quem o nega;

Y) Por outro lado, o Tribunal" a quo" deveria ter considerado provado, face à prova testemunhal e documental, que o arguido tinha fundamento para, em boa fé, reputar como verdadeiros os dizeres apostos no cartaz que decidiu empunhar.

Z) Tal resulta da prova documental e também da testemunhal;

AA) Já que o arguido impugnou o despedimento de que foi alvo;

BB) Correndo termos o respectivo processo no Tribunal do Trabalho de Leiria;

CC) Aí reafirmando, peremptoriamente (e após expor os factos que, na sua óptica, o justificam), que os processos disciplinares foram fabricados;

DD) Mesmo junto aos presentes autos encontra-se prova documental que justifica que a Srª Juiz tivesse decidido no sentido de considerar que o arguido tinha fundamento para, em boa fé, reputar como verdadeiros os dizeres apostos no cartaz;

EE) O Sindicato a que pertence reuniu com o administrador da assistente focando este, e só este, assunto dos processos disciplinares;

FF) Certamente que, tudo conjugado, não é admitir que o arguido (e o seu Sindicato) decidissem levar a cabo todas essas diligências, só para passar tempo ou porque não estivessem convencidos de que tais processos disciplinares eram fabricados!

GG) Pelo que, também por tal facto, não deveria o arguido ter sido condenado, antes, absolvido;

HH) Tal como resulta, a contrario sensu, do disposto no art. 187º nº 1 do Código Penal;

II) O tribunal com competência própria para aferir se os processos disciplinares foram, ou não, fabricados, é o Tribunal do Trabalho.

JJ) Sendo essa a instância própria para dirimir os conflitos laborais, como é o caso dos autos;

KK) A Sr.ª Juiz a quo parece ter chamado a si, erradamente, tal competência;

LL) Pois considerou, até, o crime agravado nos termos do art.º 183 do CP, o qual prevê a imputação de factos que o agente conhecia serem falsos.

MM) Ora, salvo o devido respeito, quem tem competência para determinar tal situação são os Tribunais do Trabalho;

NN) É que para se concluir que os processos disciplinares não são fabricados, obrigatório seria analisar-se a questão laboral em si;

00) Isto é, se a entidade patronal tinha razão para injustificar as duas faltas dadas pelo arguido, se a entidade patronal tinha razão para exigir do arguido que assinasse papéis, etc, etc, etc ...

PP) Análise essa que não tem cabimento no âmbito do processo penal;

QQ) Pois só analisando o processo à luz do Direito do Trabalho, se poderá concluir, sem margem para dúvidas, se houve ou não fabricação (no sentido de, do nada, nascerem processos), de processos disciplinares.

RR) Não tendo este Tribunal competência para o fazer;

SS) A Srª Juiz não terá valorado, devidamente, a prova documental junta aos autos pela defesa do arguido;

TT) Com a sua conduta o arguido não preencheu os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime pelo qual vem acusado;

UU) A Srª Juiz a quo terá feito uma interpretação menos conforme do disposto nos arts. 187º e 183º ambos do Cód. Penal;

W) Bem como do disposto no art. 31º daquele mesmo diploma legal;

Termos em que deverá o arguido ser absolvido assim se fazendo, cremos, a costumada

JUSTIÇA!

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que não merece provimento.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

1. Factos provados:

1.1. Da discussão da causa, e relativamente à matéria de facto constante da acusação particular deduzida pela assistente a fls. 149-152, resultaram provados os seguintes factos:

1) A “ B..., SA” é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico de produtos em plástico, fundamentalmente para a indústria automóvel;

2) O arguido prestou serviço junto da sociedade B..., SA, por contrato de trabalho celebrado desde 06 de Dezembro de 1999 até 30.09.2010, data em que foi despedido;

3) O arguido, no dia 08 de Julho de 2010, estava incumbido de trabalhar no turno das 5:00 às 13:00 horas;

4) Nesse dia o arguido não compareceu no local de trabalho;

5) Nesse mesmo dia, entre as 09:30 horas e as 11:30 horas, apareceram nas imediações da empresa (no edifício sede à rua da K..., na zona industrial de W..., Marinha Grande) um conjunto de pessoas, cuja identidade, para além do arguido, não foi possível apurar;

6) Tais pessoas empunhavam um cartaz, que era visível quer do interior quer no exterior das instalações da assistente;

7) No cartaz em questão eram visíveis os seguintes dizeres “A B... além de fabricar peças em plástico para automóveis, fabrica processos disciplinares contra o delegado sindical”;

8) Tais dizeres eram visíveis quer dentro quer fora da empresa, e foram vistos por diversos trabalhadores, bem como fornecedores, além de outras pessoas que se deslocaram à empresa ou passaram pelo local;

9) Empunhando uma das extremidades do cartaz estava o arguido;

10) O arguido foi delegado sindical desde 26 de Abril de 2010, data em que o Sindicato dos Trabalhadores da Química, Farmacêutica, Petróleo e Gás do Centro, Sul e Ilhas (SINQUIFA) o comunicou por fax à sociedade assistente;

11) O arguido é o único delegado sindical na assistente;

12) Na data referida em 10), o arguido já havia sido sancionado com a sanção disciplinar de suspensão do trabalho, com perda de retribuição, pelo período de 2 (dois) dias, através de decisão que lhe foi comunicada em 19.10.2004, no âmbito de processo disciplinar instaurado em 03.09.2004, por factos praticados em 16.08.2004, e cuja nota de culpa lhe foi comunicada em 16.09.2004;

13) Na mesma data, estava pendente processo disciplinar que foi instaurado ao arguido em 25.03.2010, por factos datados de 15.03.2010, cuja nota de culpa lhe foi comunicada em 19.04.2010, e cuja decisão final, comunicada em 31.05.2010, consistiu na sanção disciplinar de suspensão de trabalho, por 12 dias, com perda de retribuição e antiguidade;

14) A empresa B..., SA, é tida como uma empresa cumpridora dos seus deveres, gozando de prestígio, confiança e credibilidade quer no mercado, quer entre clientes, fornecedores e concorrentes;

15) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente;

16) Mais sabia que ao empunhar o referido cartaz, com tais dizeres, juntamente com outras pessoas, em frente às instalações da assistente, poderia dar a entender aos demais colegas e a quem passasse pela empresa que estava a ser alvo de processo disciplinar apenas por ser delegado sindical, e que a entidade patronal lhe imputava factos falsos “fabricando” processos, utilizando meios não idóneos para tal, e que, dessa forma, atingiria a assistente no seu bom-nome, e, não obstante, aceitou essa probabilidade, com ela se conformando;

17) Sabia ainda que tal conduta era proibida e punida por lei penal.

1.2. Da matéria de facto constante do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante a fls. 152-153, e para além do referido em 1.1., provou-se que:

18) Os dizeres mencionados no cartaz empunhado pelo arguido foram alvo de comentários por vários trabalhadores da empresa e por outras pessoas que se deslocaram à empresa e passaram pelo local.

19) Com a divulgação dos dizeres inscritos no cartaz em causa a assistente viu o seu bom-nome afectado.

1.3. Da matéria de facto constante da contestação do arguido a fls. 213-218, provou-se que:

20) No dia 8 de Julho de 2010, a Fiequimetal (Federação Intersindical das Indústrias Metalúrgica, Química, Farmacêutica, Eléctrica, Energia e Minas) organizou o denominado “Dia Nacional de Protesto e Luta”;

21) Para o efeito, a referida Federação, emitiu a denominada “Declaração de Greve”, nela fazendo constar que tal declaração valia como pré-aviso de greve, que fez publicar na edição de 23.06.2010, no Jornal “Correio da Manhã”, e na qual se pode ler que são objectivos da dita “Greve” reivindicar: “por melhores salários, mais emprego e vida digna; contra mais ataques às leis de trabalho e à intenção de liberalizar os despedimentos; pela negociação das convenções colectivas e o respeito pelos direitos nelas consagrados; contra os sacrifícios para os trabalhadores que o Governo preconiza através do PEC”;

22) De entre as pessoas que no dia 08 de Julho empunhavam o referido cartaz, encontravam-se dirigentes e delegados sindicais afectos à Federação Fiequimetal;

23) A dita “Jornada de luta” estendeu-se a várias empresas não identificadas;

24) Foi no âmbito desse “cenário de luta laboral” que o arguido se dirigiu às instalações da assistente;

25) Foi o Sinquifa/Site que decidiu manifestar-se daquela forma junto às instalações da assistente;

26) O mencionado cartaz, com os dizeres nele constantes, foi elaborado por membros do Sinquifa;

27) O arguido, no dia em causa, deparando-se com tal cartaz, decidiu empunhar o mesmo;

28) O arguido, antes de ser sindicalizado no Sinquifa, era sindicalizado no Sindeq – Sindicato Democrático da Energia, Química, Têxtil e Indústrias Diversas;

29) Por fax datado de 13 de Janeiro de 2010 o arguido informou a empresa assistente que se pretendia desvincular de tal Sindicato;

30) Em 28 Abril de 2010 foi instaurado processo disciplinar ao arguido, por factos reportados a 14.04.2010, 20.04.2010 e 04.05.2010, sendo a respectiva nota de culpa comunicada em 16.06.2010; por factos datados de 08.07.2010, foi instaurado novo processo disciplinar ao arguido, o qual foi apensado ao anterior, sendo a respectiva nota de culpa comunicada em 19.07.2010, tendo a decisão final, datada de 30.09.2010, culminado com o despedimento com justa causa do trabalhador;

31) Na sequência do fax aludido em 10, a assistente, por intermédio do respectivo Administrador, enviou um fax ao Sinquifa, com o seguinte teor: “Por fax datado de 26 Abril 2010 comunicam-nos que o Sr. A... passa a desempenhar as funções de Delegado Sindical./ Toda a legislação sobre este assunto, os estatutos da Fiequimetal e desse sindicato, pressupõe a celebração de eleições para delegados e dirigentes sindicais./ Tanto quanto nos é dado a saber não foram realizadas eleições e os restantes sindicalizados existentes na empresa não foram chamados a votar./ Assim sendo, ficamos a aguardar que nos informem a que título foi este senhor nomeado vosso delegado”.

32) Os processos mencionados em 12) e 13) não foram objecto de impugnação judicial;

33) O processo mencionado em 30) foi objecto de impugnação judicial sobre a licitude do despedimento, correndo termos o respectivo processo sob o nº 970/10.0TTLRA no 2º Juízo do Tribunal do Trabalho de Leiria, não tendo ainda sido proferida decisão final.

1.4. Quanto à situação pessoal, familiar, social e profissional do arguido provou-se que:

34) O arguido encontra-se desempregado, auferindo um subsídio de desemprego no montante de € 485,00;

35) Vive com os pais, em casa destes;

36) Contribui para as despesas domésticas com cerca de € 200,00/mês;

37) Tem um filho de 8 anos de idade, para cujo sustento não tem vindo a contribuir;

38) Concluiu o 9º ano de escolaridade;

39) Não tem antecedentes criminais.

 

Ficou, assim, demonstrada toda a factualidade constante da acusação particular e do pedido de indemnização civil deduzido.

2. Factos não provados:

Nada mais se provou em contradição ou para além do supra referido.

Assim,

2.1. Da contestação do arguido não se provou:

- que a assistente tivesse conhecimento da “Jornada de Luta” referida em 20);

-que o pré-aviso de greve tivesse sido dirigido ao Ministério do Trabalho, a todas as Associações Patronais e a todas as empresas abrangidas pelo âmbito dos sindicatos filiados na Federação Fiequimetal, bem como de outras empresas com trabalhadores representados pelos sindicatos filiados;

- que tal pré-aviso tivesse sido publicado em vários órgãos de comunicação social para além do Jornal “Correio da Manhã”;

-que os dizeres contidos no cartaz empunhado pelo arguido estivessem contidos nos objectivos propugnados na “Jornada de Luta” convocada pela Fiequimetal;

-que o arguido tivesse fundamento para, em boa fé, reputar como verdadeiros os dizeres apostos no cartaz que decidiu empunhar.

3. Convicção do Tribunal:

O apuramento dos factos provados e não provados assentou nos seguintes meios de prova:

- em primeira linha, nas declarações do arguido, que confirmou que no dia 08 de Julho de 2010 empunhou o cartaz em causa, em frente às instalações da assistente; confirmou o seu horário de trabalho nesse dia e a respectiva ausência; diz que só nesse dia teve conhecimento dos dizeres constantes no cartaz, tendo o mesmo sido elaborado pelos seus colegas do sindicato; ficou surpreendido com o que nele estava escrito, “porque não sabia se era legal ou não”; ainda assim, concordou com o seu teor e decidiu empunhá-lo, referindo que naquele local estavam muitas pessoas a apoiá-lo. Acrescenta que desde que se desfiliou do Sindeq começaram a “chover” processos disciplinares, tendo o primeiro processo surgido após tal desassociação (depois acaba por reconhecer que existiu um outro processo disciplinar em 2004; diz que teve problemas junto da empresa em se ter desfiliado do Sindeq, mas não explicita em que consistiram tais problemas). A sua acção insere-se no âmbito de uma Jornada de Luta promovida pelo Sinquifa, tendo existido pré-aviso de greve, sendo que os seus colegas do Sindicato, 3 ou 4 dias antes do dia 08 de Julho, lhe forneceram panfletos (onde constava o dito pré-aviso) para afixar à porta da entidade patronal. Diz que o seu objectivo “era uma acção de luta” e “divulgar junto dos seus colegas e associados dos sindicatos” tal acção, sendo que “como delegado sindical tem essa obrigação”. Diz também que “na altura achou piada” aos dizeres constantes no cartaz. Enquanto delegado sindical, e nesse dia, apenas se deslocou à empresa assistente para participar na “manifestação”, não tendo participado em qualquer outra manifestação realizada nesse dia junto de outras empresas.

Acrescenta que todas as vezes que necessitou de falar com a administração da empresa foi sempre recebido, e que nunca teve salários em atraso.

-funda-se ainda, a convicção do Tribunal, nas declarações da assistente, representada pelo respectivo administrador, C..., que depôs de forma clara, consentânea e convincente: diz que nesse dia se deparou com uma manifestação em frente às instalações da empresa, tendo tido conhecimento nessa altura que era dia de “Greve”, desconhecendo se nas respectivas instalações tinha sido colocado qualquer pré-aviso; de entre os manifestantes, que empunhavam apenas um letreiro (o dito cartaz) apenas conhecia o A... como trabalhador da empresa. Refere que o A... já tinha sido alvo de processos disciplinares, o primeiro ocorrido há cerca de 5/6 anos, cuja decisão acatou, e um segundo instaurado numa altura em que não era delegado sindical. Qualquer processo disciplinar nunca é desencadeado por si; normalmente tem origem em reclamações dos clientes, e a iniciativa parte dos directores de produção; por sua vez, a administração aplica a sanção que é recomendada pelo instrutor do processo disciplinar, nunca tendo aplicado qualquer outra por iniciativa própria. Se tivesse qualquer problema pelo facto de o arguido ser sindicalizado no Sinquifa, teria aproveitado o segundo processo disciplinar instaurado ao arguido, cuja decisão foi tomada após a comunicação que já era delegado sindical, para lhe aplicar uma sanção mais gravosa, designadamente o despedimento; ainda assim não o fez – até porque não faz sentido perseguir trabalhadores quando se investe na sua formação contínua.

Quanto à “explicação” que solicitou ao Sinquifa, relativa ao processo de eleição para delegado sindical do arguido, tal deveu-se ao facto de muitas das vezes as eleições ocorrerem dentro das instalações da empresa, e ter havido um trabalhador que o questionou se sabia da existência de um delegado sindical na empresa; é que segundo indagou nenhum trabalhador na empresa sabia que o arguido era delegado sindical; também não obteve qualquer resposta a tal solicitação por parte do Sindicato.

Nesse dia, no interior das instalações da empresa, encontravam-se outros clientes e dois accionistas, que comentaram o facto; preocupou-se em esclarecer-lhes que aquela situação era invulgar, e que nunca tinha existido qualquer outra situação idêntica, e que tal não significaria que a empresa não fosse honrar os compromissos assumidos com os seus clientes. Nunca pôs em causa o direito de manifestação do arguido, ou de qualquer trabalhador; no dia em causa chegou a receber pessoas que se encontravam entre os manifestantes.

-depois, assentou a convicção do Tribunal nos depoimentos das testemunhas M..., contabilista da assistente desde 2006, e E..., auxiliar administrativa da assistente desde Agosto de 2008, que demonstraram ter conhecimentos directamente pertinentes;

A primeira trabalha num gabinete da empresa que confronta directamente com a rua, tendo-se apercebido da manifestação e da presença do A..., bem como do (único) cartaz que empunhavam os manifestantes (aqui se incluindo o arguido); acrescenta que não tinha conhecimento de qualquer greve convocada para esse dia , nem viu qualquer pré-aviso a anunciar a mesma nas instalações da empresa; o cartaz exibido era de grandes dimensões, e os dizeres nele constantes não faziam qualquer sentido; no âmbito das funções que exerce tem contacto directo com os funcionários dos recursos humanos e com o TOC; no que respeita aos processos disciplinares, os mesmos são desencadeados pelos chefes directos da produção (Engª F..., e antes desta pelos chefes de turno), e a administração só toma conhecimento dos factos numa fase posterior. A administração só tem conhecimento dos trabalhadores que são sindicalizados quando estes pedem para descontar para determinado Sindicato no seu vencimento. Ficou indignada com os dizeres constantes no cartaz, a expressão “fabricar” nele usada significa “inventar processos”; e quem para ele olhasse ficaria com uma imagem da empresa que não corresponde à realidade; a empresa nunca concedeu qualquer privilégio ou perseguiu negativamente quem fosse sindicalista. No quer respeita ao arguido, não tem conhecimento que o mesmo fosse delegado nem nunca se apercebeu que o mesmo tivesse exercido qualquer actividade sindical no interior da empresa.

A segunda testemunha referida, E... , trabalha igualmente numa sala que confronta directamente com a entrada da empresa; apercebeu-se da manifestação e do cartaz em causa, assim como da presença do arguido; com tais dizeres a “fábrica ficava mal vista”; também nunca se apercebeu de qualquer actividade desencadeada pelo arguido enquanto sindicalista, desconhecendo que o mesmo detinha tal qualidade.

-assentou ainda, a convicção do tribunal, nos depoimentos das testemunhas F.. (directora de produção da assistente desde 1996) e D... (responsável de produção da assistente desde 2000), que depuseram de forma objectiva e coerente.

A primeira diz que foi ela quem desencadeou todos os processos disciplinares instaurados ao arguido; entre ela e a Administração não existe mais ninguém, sendo que tem conhecimento dos factos através dos chefes de produção que trabalham directamente com o arguido; o que desencadeou o terceiro processo disciplinar ao arguido, tal como os restantes, foi a sua evidência na falta de rigor no trabalho, o que foi constatado após várias diligências realizadas nesse sentido, tendo sido recolhidos os elementos considerados pertinentes. É ela que faculta todos os elementos ao instrutor do processo; não existiu qualquer tentativa de fazer “tropeçar” o arguido, ou de “o pôr a andar”; a assistente não “forja” processos disciplinares de maneira nenhuma; o arguido foi trabalhar para a assistente mediante a celebração de contrato a termo; sindicalizou-se com tal tipo de contrato; passou a efectivo na empresa estando sindicalizado; só no decurso do segundo processo disciplinar teve conhecimento que o arguido era delegado sindical; o facto de deter esta qualidade não tem qualquer relação com o despoletar do processo disciplinar.

Nesse dia, ao que sabe, não havia qualquer greve na empresa, nem tinha conhecimento de qualquer “Jornada de Luta”, não tendo visto qualquer informação nesse sentido nas instalações da empresa. Também não tem conhecimento de que tenham ocorrido quaisquer outras manifestações nas instalações da assistente antes dessa data. Nesse dia todos os trabalhadores da empresa ficaram surpreendidos com a actuação do A..., no sentido de que nem sequer conheciam a actividade sindical deste.

A testemunha D..., enquanto responsável de produção, trabalhava directamente com o arguido, sendo ele que lhe dava instruções directas; foi esta testemunha que participou os factos que desencadearam o terceiro processo directamente à Engª F..., a anterior testemunha; a situação era grave, por isso teve que participar. A assistente não “forjou” qualquer processo disciplinar, este é baseado em factos (que participou directamente à Engª F... depois de recolher diversa informação). Na manifestação a que assistiu não viu qualquer tipo de reivindicação relacionada com direitos laborais, mas apenas a exibição do tal cartaz. A assistente ficou mal vista nesta manifestação, todos os trabalhadores comentaram o facto; nenhum tinha ideia que ele era delegado sindical.

-depois, ainda, assentou a convicção do Tribunal nos depoimentos das testemunhas L... (empregado fabril da assistente desde 2005), que confirmou ter assistido à manifestação, sendo que a única pessoa que nela reconheceu foi o arguido; desconhece que tenham existido quaisquer outras na empresa, e não lhe foi entregue qualquer informação respeitante à “Greve” convocada para esse dia; e Paulo Ferreira (técnico de injecção de máquinas da assistente desde 1999), que assistiu à manifestação e “achou estranho” porque não tinha conhecimento de qualquer “pré-aviso de greve”; desconhece quem são os seus colegas sindicalizados na empresa.

- depois também, funda-se tal convicção nas testemunhas de defesa, pela ordem seguinte:

- G... , dirigente sindical do Sinquifa; participou na “Jornada de Luta”, tendo-se deslocado com os seus colegas a várias empresas na Marinha Grande, entre as quais a sociedade assistente; aproveitaram tal acção para demonstrar o seu protesto em relação aos processos disciplinares sucessivamente instaurados ao arguido, os quais, na opinião dos vários dirigentes sindicais, não tinham qualquer cabimento; no entanto, não se informou minimamente sobre os factos concretos em causa no terceiro processo disciplinar, tendo-se limitado a ouvir a opinião do arguido sobre eles; acrescenta que nesse dia foram recebidos pelo administrador da empresa assistente.

- H... , também dirigente sindical afecto à Fiequimetal: participou na manifestação, e tinha conhecimento que havia um trabalhador da empresa assistente que era delegado sindical e que estaria ser alvo de um processo disciplinar; desconhece os factos concretos que estão na origem de tal processo.

- I... , também dirigente sindical do Sinquifa: participou na “Jornada de Luta”, referindo que nesse dia fizeram “várias acções de luta” em variadas empresas, entre as quais a empresa assistente; o sindicato ao qual o arguido pertencia entendia que este estava a ser alvo de processos disciplinares sem qualquer fundamento, sendo por esse motivo que resolveram manifestar-se daquela forma defronte às instalações da assistente.

- J... , pai do arguido: participou na dita manifestação em apoio do seu filho, desconhecendo qualquer outra versão dos factos que estão na origem do processo disciplinar instaurado ao arguido, para além daqueles que o próprio lhe transmitiu.

Da prova assim produzida, e supra descrita, ficámos com a convicção que o arguido actuou de forma algo irreflectida, imponderada e “ingénua”, mas ainda assim aceitando que dessa forma punha em causa o bom-nome da sua entidade patronal, e conformando-se com tal actuação.

Não se pode aceitar igualmente que determinada associação sindical coloque em causa o bom-nome de determinada pessoa colectiva, de forma pouco fundamentada, e sem revelar conhecimento pormenorizado dos factos que fundamentam o processo disciplinar que em terceiro lugar foi instaurado ao arguido; de facto, percorrendo a posição assumida pelo Sindicato do arguido, quer no segundo, quer no terceiro processo disciplinar que lhe foi instaurado, e cujas cópias constam nos autos, é patente que a posição daquela entidade nunca foi a de não aceitar, ou contrariar, tais processos, tendo resultado demonstrado através dos vários depoimentos dos dirigentes sindicais inquiridos em sede de audiência o fraco conhecimento que tinham dos factos consubstanciadores de tais processos.

No que tange à factualidade não provada, tal deveu-se à ausência de prova acerca da mesma produzida, designadamente no que tange aos procedimentos que foram efectuados quanto à comunicação da greve convocada.

O prestígio, e a credibilidade da empresa, resultou patente nos vários depoimentos dos trabalhadores da mesma que foram produzidos em sede de audiência no que respeita ao seu modo de actuação, tendo ficado bem clara a indignação e descontentamento demonstrado com a atitude do arguido em causa, cuja actividade sindical era desconhecida.

Atendeu-se ainda aos elementos documentais juntos aos autos.

Todos os elementos de prova foram livremente analisados e entrecruzados entre si, à luz das regras de experiência comum.

No que tange à situação pessoal, familiar e económica do arguido, a convicção do Tribunal assentou no teor das suas próprias declarações, que se mostraram credíveis nesse tocante, não tendo suscitado quaisquer reservas.


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            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões as questões a apreciar são as seguintes e comuns a todos os recorrentes:

Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto devendo ser alterada nos termos preconizados pelo recorrente com a sua consequente absolvição.

Como se deixou dito, independentemente de alegação, pode este Tribunal de recurso conhecer de outras questões, como é o caso das nulidades que não devam considerar-se sanadas. Assim resulta do disposto no artigo 410º, nº 3 do Código de Processo Penal e do regime das nulidades previsto nos artigos 118º a 123º do referido Código.

Começaremos, pois, por verificar se ocorre nulidade não sanada.

O arguido foi acusado pela assistente da prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva previsto no artigo 187º, nº 1 do Código Penal com a seguinte previsão:

Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.

São, assim, elementos típicos objectivos do referido crime (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal e Comentário do Código Penal de Paulo Pinto de Albuquerque em anotação ao preceito):

- A afirmação ou propalação pelo agente de factos inverídicos;

- Que digam respeito, nomeadamente, a pessoa colectiva;

            - Capazes de ofender a credibilidade, prestígio ou confiança devidos ao visado;

            E são elementos típicos subjectivos:

            A consciência de que os factos são inverídicos (ou seja, a falta de fundamento para, em boa fé, o agente os considerar verdadeiros);

            - A consciência de que os factos são capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança devidos à pessoa colectiva;

            - A vontade de agir com esse conhecimento, sabendo que a actuação é proibida.

            Ora da acusação, que se encontra reproduzida nos factos provados da sentença recorrida (apenas com alteração relativa ao tipo de imputação subjectiva) em nenhum passo se fez constar que o facto difundido, pelo arguido e demais pessoas que empunhavam o cartaz de onde constava que a assistente fabrica processos disciplinares contra o delegado sindical, não correspondia à verdade, sendo portanto inverídico.

            Como igualmente não se alegou na acusação e tal não foi reproduzido na sentença que o arguido tinha consciência da inveracidade; de que o facto que difundiu não correspondia à verdade.

            Do que resulta que os factos alegados na acusação não são suficientes para integrar a prática pelo arguido do crime que lhe foi imputado, faltando a factualização dos referidos elementos objectivo e subjectivo do crime referentes à falsidade do facto difundido, sem os quais não é possível ter como perfectibilizada a imputação criminal. Em suma, os factos descritos na acusação não são susceptíveis de, só por si, sem a concorrência dos que dela não constam, integrar a prática de crime.

A acusação que não descreva os factos necessários e suficientes à imputação criminal efectuada é nula, como logo se encontra previsto no artigo 283º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal.

A reconhecer-se a possibilidade de conhecimento neste momento da existência da citada nulidade prejudicado poderá ficar o objecto do recurso interposto, pelo que se impunha começar por abordar tal questão.

O artigo 283º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal estipula que "a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou uma medida de segurança (…)".

 Esta nulidade, na falta de disposição legal em sentido contrário, porque não consta do catálogo das insanáveis a que se refere o artigo 119º do Código de Processo Penal, seria, numa primeira abordagem, uma nulidade dependente de arguição, ficando sujeita ao regime legal previsto no artigo 120º a 122.º do mesmo diploma e nesse caso encontrar-se-ia neste momento sanada por não ter sido arguida.

Mas estatui o artigo 311º, nº 2, alínea a) do mesmo Código, que a acusação é rejeitada se for considerada manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito, na parte que releva para o caso concreto, que a acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos.

Ou seja, em momento em que a nulidade da acusação poderia encontrar-se sanada por não ter sido arguida, segundo o regime dos artigos 120º a 122º, pode o juiz rejeitar a acusação se não contiver a narração dos factos; afinal conhecer oficiosamente da nulidade da acusação prevista no artigo 283º, nº 3 que não se sanou pelo facto de não ter sido arguida.

A propósito ensina Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., p. 207 a 208, face ao aditamento do nº 3 do artigo 311º do CPP operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no art. 283.º, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais. Sendo de conhecimento oficioso, pode ser conhecida a todo o tempo, isto é em qualquer fase do procedimento, com a ressalva enquanto a decisão final não transitar em julgado.

Dever-se-á ter presente que as nulidades a que a lei processual penal denomina de insanáveis podem ser declaradas em qualquer fase do procedimento (artigo 119º) mas já não podem ser declaradas após a formação do caso julgado da decisão final, que neste caso actua como meio de sanação. O trânsito em julgado da sentença tem a virtualidade de sanar toda e qualquer nulidade em nome da certeza e segurança do direito.

Embora o artigo 119º do Código de Processo Penal designe de insanáveis as nulidades que contempla na realidade todas elas são sanáveis através da repetição dos actos viciados.

O que se deve questionar é se também a nulidade da acusação é sanável através da repetição dos actos viciados, a repetição da decisão acusatória e trâmites posteriores do processo, devendo ou não estabelecer-se paralelo com as nulidades legal e expressamente designadas de insanáveis.

Deve ter-se presente que o nosso processo penal depois de uma fase de investigação que culmina com a dedução de acusação, tem estrutura acusatória (constitucionalmente reconhecida no artigo 32º, nº 5 da CRP) tendo a acusação a função de definir e fixar o objecto do processo. Como escreve Germano Marques da Silva na obra já citada a fls. 62, uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação. Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao Ministério Público, bem como ao Assistente, os termos em que deve formular acusação. Por maioria de razão não pode o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.

E se assim é a nulidade da acusação será insanável na verdadeira acepção da palavra.

Se é certo que não existe disposição processual penal que o refira expressamente, verificamos que o conceito e dimensão da estrutura acusatória do processo penal vem sendo densificado no sentido mencionado de a acusação não poder ser repetida quando padeça de nulidade.

Senão vejamos o disposto no artigo 287º, nº 1, alínea b), nº 2 e nº 3 do Código de Processo Penal em que o requerimento de abertura da instrução por parte do assistente consubstancia uma acusação. Tal requerimento, caso não obedeça ao requisitos da acusação do artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), deve ser rejeitado e não é susceptível de ser repetido ou de convite à correcção com a evidente consequência da impossibilidade de exercício da acção penal e do arquivamento do processo (cfr. Ac. do TC nº 358/2004 e o Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005).

E vejamos o caso paralelo do artigo 359º do Código de Processo Penal referente a alteração substancial dos factos na fase de julgamento que apenas permite que a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público tenha o valor de denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Se não o forem a consequência será a absolvição (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal em anotação ao referido preceito).

Em suma, a nulidade da acusação não é susceptível de ser sanada, a ocorrer e a ser conhecida antes do trânsito em julgado da decisão final, produz a invalidade dessa peça processual e de tudo o que foi processado posteriormente, devendo conduzir ao arquivamento do processo por inexistência do respectivo objecto.

E sendo assim, evidente se torna que não descrevendo a acusação os factos necessários ao preenchimento do crime que imputa, não pode o juiz por via do regime de alteração dos factos previsto no artigo 358º ou no artigo 359º do Código de Processo Penal tentar suprir o vício. É que tais regimes supõem desde logo que os factos constantes da acusação constituam crime o que no caso, como resulta do antes exposto, não ocorre.

Em face do que fica editado cumpre declarar a nulidade insuprível da acusação com as legais consequências, ficando prejudicada a apreciação do recurso interposto.


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IV. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em declarar nula a acusação deduzida nos autos com a consequente invalidade da própria acusação e de todos os trâmites posteriores, nomeadamente o julgamento e a sentença proferida, ordenando o arquivamento dos autos.

Não há lugar a tributação em razão do recurso interposto.

            Correspondendo a presente decisão a uma rejeição da acusação deduzida pela Assistente, nos termos do artigo 515º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal vai esta condenada nas custas do processo. 

 


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                     (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)
       (José Eduardo Fernandes Martins)