Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
171/15.1T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: EMPREGADOR
MORTE
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
Data do Acordão: 12/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – GUARDA – INST. CENTRAL – SEC. TRABALHO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 340º, AL. E) E 346º DO CÓDIGO DE TRABALHO; 398º DO C. COMERCIAL.
Sumário: I – A morte do empregador em nome individual só determina a cessação dos contratos de trabalho por caducidade quando os sucessores do falecido não prosseguirem a atividade nem se verificar a transmissão do estabelecimento.

II – Demonstrado que existia um contrato de trabalho entre o autor e o felecido empregador em nome individual e que o autor, juntamente com dois irmãos, são os seus sucessores e decidiram prosseguir com a atividade, ficando o autor a gerir de facto o estabelecimento, por incumbência dos herdeiros, o reconhecimento de alegados créditos laborais vencidos no período de gestão dos herdeiros depende a priori da alegação e prova de que se mantinha o vínculo de subordinação jurídica, uma vez que a coexistência das qualidades de trabalhador e de empregador era em abstrato possível, na específica situação dos autos, por aplicação analógica do regime previsto para as sociedades por quotas.

Decisão Texto Integral:





Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

A.... intentou ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra a Herança Líquida e Indivisa aberta por óbito de B... , C... , D... e A... , todos com os demais sinais identificadores nos autos, pedindo a condenação: (a.) No reconhecimento da resolução unilateral do contrato de trabalho por justa causa, da sua iniciativa; (b.) No pagamento da quantia global de € 41.785,47, relativa a créditos laborais emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, acrescida de juros legais, desde a data da citação e até integral pagamento.

Em síntese, alegou que tendo sido admitido ao serviço subordinado de B... , por falecimento deste, passou a ter como entidade patronal a Herança líquida e indivisa aberta por óbito do mesmo, circunstância que permaneceu até à data em que resolveu o contrato de trabalho, por falta culposa do pagamento pontual das retribuições a que tinha direito. Refere estarem em dívida os créditos laborais peticionados. Identifica como sucessores e herdeiros do falecido B... , os demandados C... , D... e A... (o próprio autor), sendo as funções de cabeça-de-casal exercidas pelo primeiro.

Realizada a audiência de partes, não foi possível obter acordo que colocasse fim ao processo.

O réu C... contestou alegando que a ter existido algum contrato de trabalho entre o demandante e o falecido seu pai, o mesmo caducou por óbito deste último. Referiu que o estabelecimento comercial do seu pai onde se encontrava o autor esteve encerrado durante algum tempo, após o óbito de B... , só tendo reaberto em 19 de novembro de 2013, em nome da Herança indivisa, tendo o autor, a partir dessa data, continuado a exercer o cargo de gestor de facto do estabelecimento, sem celebração de qualquer contrato de trabalho. Impugna a invocada justa causa para a resolução da inexistente relação contratual.

Alega que o autor age em flagrante má-fé e abuso de direito.

Igualmente contestou o réu A... , simultaneamente autor e réu na ação, alegando ser verdade todo o vertido na petição inicial.

Atenta a considerada simplicidade da causa, foi dispensada a realização da audiência preliminar.

Fixou-se à ação o valor de € 41.785,47.

Proferido despacho saneador, considerou-se verificada a exceção dilatória da falta de personalidade judiciária da Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de B... , tendo-se absolvido a mesma da instância. Mais se considerou verificada a exceção dilatória da ilegitimidade passiva do autor, por o mesmo não ter interesse em contradizer, decidindo-se pela sua absolvição da instância prosseguindo a ação apenas contra os restantes herdeiros.

Foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com a decisão que se transcreve:

«Pelo exposto decide o Tribunal:

I. Julgando parcialmente procedente a ação, condenar os réus C... e D... a pagar ao autor A... a quantia de € 7 944,48 (sete mil novecentos quarenta e quatro euros quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até integral pagamento.

II. Absolver os réus C... e D... do restante peticionado.

III. Condenar o autor A... e os réus C... e D... no pagamento das custas do processo, na proporção do decaimento.»

Não se conformando com esta decisão, veio o réu C... interpor recurso da mesma, condensando as suas alegações nas seguintes conclusões:    

[…]

Também o réu D... interpôs recurso da mencionada decisão, rematando as suas alegações, com as conclusões que se transcrevem:

[…]

Não foram apresentadas contra-alegações.

Admitidos os recursos pelo tribunal de 1.ª Instância, os autos subiram à Relação, tendo sido observado o preceituado no artigo 87.º, n.º 3 do Código de Processo de Trabalho.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, propugnado pela procedência dos recursos.

Não foi oferecida resposta a tal parecer.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*

II. Objeto do Recurso

É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).

Em função destas premissas, as questões suscitadas nos recursos são idênticas e são as seguintes:

1.ª Da alegada cessação do contrato de trabalho por caducidade;

2. ª Verificação de abuso de direito por parte do autor;

3.ª Da responsabilização dos herdeiros na proporção da respetiva quota.


*

III- Matéria de facto

O Tribunal de 1.ª Instância considerou provados os seguintes factos:

1. Em data não apurada do ano de 1992, o autor foi admitido por B... a fim de exercer a sua atividade como caixeiro, sob a direção e fiscalização daquele, na loja de ferragens em (...) , propriedade de B... .

2. Em 18 de agosto de 2013, B... faleceu, passando os respetivos herdeiros a gerir o estabelecimento, tendo inclusivamente iniciado atividade comercial para os devidos efeitos.

3. O autor auferia mensalmente uma remuneração de € 900,00, com a categoria de gerente da dita loja de ferragens, funções que passou a exercer no terreno sensivelmente a partir de 2008.

4. Exerceu a sua atividade, por conta dos herdeiros de B... até ao dia 15 de julho de 2014, data em operou a resolução do seu contrato de trabalho, invocando justa causa.

5. À data da resolução do contrato, estavam em dívida as retribuições de setembro a dezembro de 2013, fevereiro a junho de 2014, subsídio de férias e de Natal de 2013 e 2014, por referência aos indicados meses.

6. O autor recebeu € 600,00, que imputou por conta da retribuição do mês de janeiro de 2014.

7. Nos últimos anos da sua vida, B... esteve doente, ausentando-se por largos períodos de tempo do estabelecimento, para casa do réu C... , na Figueira da Foz.

8. Quem ficava na direção do estabelecimento era o autor, que atendia e recebia dinheiro dos clientes, pagava faturas aos fornecedores, pagava impostos, encomendava mercadorias.

9. Após a morte de B... , o autor continuou a exercer o cargo de gestor de facto do estabelecimento.

10. No dia 8 de janeiro de 2014, autor e réus acordaram que nenhum dos herdeiros seria remunerado até à recuperação dos créditos e regularização das dívidas aos fornecedores.


*

IV. Da alegada caducidade do contrato de trabalho

Sustentam os recorrentes que o contrato de trabalho celebrado entre o autor e B... cessou por efeito da morte deste ou, pelo menos, após o seu óbito, uma vez que o autor, desde então, assumiu as funções de gestor ou administrador do estabelecimento onde anteriormente trabalhava, pelo que, por aplicação analógica do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais (e não do Código Comercial, como certamente por lapso involuntário se referiu), não poderia acumular essas funções com as de trabalhador. Além do mais, não ficou demonstrado que o autor estivesse a exercer tais funções sob a orientação e direção de qualquer outro herdeiro.

Cumpre apreciar.

Do circunstancialismo factual assente e da subsunção jurídica realizada pelo tribunal de 1.ª Instância aceite pelos recorrentes, mostra-se pacífico nos autos que, em 1992, o autor celebrou um contrato de trabalho subordinado com B... , no âmbito do qual exerceu as funções de caixeiro na loja de ferragens do empregador, em (...) . Sensivelmente, a partir de 2008, passou a exercer as funções de gerente da dita loja.

Em 18 de agosto de 2013, faleceu B... .

Nos últimos anos da sua vida, nos períodos de ausência do empregador era o autor quem ficava na direção do estabelecimento.

Depois do óbito de B... passaram a ser os respetivos herdeiros a gerir o estabelecimento, tendo inclusive iniciado atividade comercial para os devidos efeitos.

Os herdeiros do falecido são o autor e os réus.

Após a morte do B... , o autor continuou a exercer o cargo de gestor de facto do estabelecimento, por conta dos herdeiros, até 15 de julho de 2014.

Quid juris?

De harmonia com o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 340.º, alínea a) e 346.º, nº 1, do Código do Trabalho, a morte do empregador em nome individual faz caducar o contrato de trabalho na data do encerramento da empresa, salvo se o sucessor do falecido continuar a atividade para que o trabalhador se encontra contratado, ou se verificar a transmissão da empresa ou estabelecimento.

Deste modo, conforme refere Pedro Furtado Martins[1] «a lei só determina a cessação dos contratos por caducidade quando os sucessores do falecido não prosseguirem a atividade nem se verificar a transmissão do estabelecimento por outrem».

Ora, na situação em apreço nos autos, infere-se do acervo factual provado que não obstante o falecimento do proprietário da loja de ferragens supra identificada, empregador em nome individual do autor, tal estabelecimento continuou a funcionar sob gestão dos sucessores do falecido.

Destarte, à luz do regime instituído nas mencionadas normas legais, não operou a caducidade do contrato de trabalho pela verificação do facto - morte de B... .

Na análise do caso vertente, importa salientar que antes da ocorrência deste óbito, o autor exercia, desde 2008, as funções de gerente da loja, tendo chegado a exercer a direção do estabelecimento, nas ausências do empregador.

Depois do falecimento de B... , o autor continuou a exercer o cargo de gestor de facto, por conta dos herdeiros.

Contudo, não podemos olvidar que o autor é um dos herdeiros que assumiu a exploração do estabelecimento, depois do falecimento.

Poderá então manter-se o contrato de trabalho nestas específicas circunstâncias do caso?

A 1.ª Instância solucionou esta questão, desenvolvendo a seguinte tese jurídica:

«Ora, no caso vertente, logo após a morte de B... , os seus sucessores, autor e réus, prosseguiram a atividade sem qualquer hiato, de modo que se terá de concluir que não operou a caducidade do contrato de trabalho.

Dir-se-á, contudo, que o contrato teria de cessar na medida em que o autor passou a ser o seu próprio empregador, isto é, verificou-se uma reunião da figura de trabalhador e de empregador.

Importa, todavia, notar que, entre as modalidades de cessação do contrato de trabalho, a lei não prevê a reunião na mesma pessoa das figuras do empregador e do trabalhador.

Assim, de acordo com o artigo 340º do Código do Trabalho:

“Para além de outras modalidades legalmente previstas, o contrato de trabalho pode cessar por:

            a) Caducidade;

            b) Revogação;

            c) Despedimento por facto imputável ao trabalhador;

            d) Despedimento coletivo;

            e) Despedimento por extinção de posto de trabalho;

            f) Despedimento por inadaptação;

            g) Resolução pelo trabalhador;

            h) Denúncia pelo trabalhador”.

A caducidade do contrato verifica-se com o seu termo; por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber; ou com a reforma do trabalhador, por velhice ou invalidez (artigo 343º do Código do Trabalho).

Deste modo, o contrato de trabalho mantém-se válido e eficaz apesar de ocorrer a reunião das figuras de empregador e trabalhador na mesma pessoa.

O que se verificará será um fenómeno distinto.

De facto, segundo o artigo 868º do Código Civil, “quando na mesma pessoa se reúnam as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, extinguem-se o crédito e a dívida”.

Apesar de persistir o contrato, o eventual crédito do trabalhador extingue-se quando este assume a posição de empregador.

Mas este não é o caso dos autos, salvo no que se dirá em seguida.

Na verdade, com a morte de B... e a continuação da atividade pelos sucessores, autor e réus passaram a assumir a posição de empregadores.

A pluralidade de empregadores obsta à extinção as obrigações por confusão, havendo unicamente que limitar a responsabilidade, verificando-se uma confusão parcial. Isto é, sendo o autor, enquanto trabalhador, titular de um crédito perante os seus empregadores, e sendo ele próprio um dos empregadores, o seu crédito extingue-se na parte em que ele próprio é responsável/ devedor.

De qualquer modo, o contrato de trabalho manteve-se válido e eficaz até à sua resolução.»

Discordando do entendimento assumido na sentença, invocam os recorrentes:

«Na sua contestação o agora recorrente pugnou pela caducidade do contrato pelo efeito da morte do empregador, posição que mantém.

Contudo, se assim não se entender, também por outra razão o contrato de trabalho cessou após o óbito de B... .

Na verdade, após o mencionado óbito passou a ser encargo da herança indivisa administrar o estabelecimento comercial da herança, designadamente através do cabeça de casal.

No entanto quem de facto administrou o estabelecimento foi o autor e os factos concretizadores dessa administração estão provados. Por isso, não existiu a partir daquela data subordinação jurídica do autor nem consigo próprio, nem com os demais herdeiros, ou se quisermos com a herança.

Na verdade, não podem, após o óbito e a assunção das funções de administração por parte do autor, considerar-se verificados todos os indícios de existência de um contrato de trabalho, desde logo, a subordinação jurídica a outrem e o exercício das funções sobre o poder de direção de outrem.

Podemos estar perante uma forma de cessação de contrato de trabalho atípica.

Contudo, o artigo 340º do Código do Trabalho parece não admiti-lo.

Não encontramos, de facto, norma jurídica com previsão e estatuição para esta concreta questão mas apelando ao regime vigente para as sociedades comerciais anónimas, encontramos uma resposta que por analogia merece cabimento.

Partindo do pressuposto que o autor após o óbito de seu pai assumiu funções de gestão ou administração do estabelecimento da herança acumulando-as com as de trabalhador nesse estabelecimento e fazendo apelo ao disposto no artigo 398º do Código Comercial que reportado às sociedades comerciais anónimas proíbe a acumulação de funções de administração e de trabalhado subordinado, podemos dizer que o Autor não poderia acumular essas funções, tendo cessado o seu contrato de trabalho, subsistindo apenas as funções de administração. Tanto mais que não se demonstrou ser outro herdeiro a administrar o estabelecimento e o Autor estar a exercer as suas funções sobre a orientação e direção de outro herdeiro.»

Apreciemos.

Na situação vertente, temos do lado da entidade patronal dos trabalhadores da loja, os sucessores do de cujus, um conjunto de três pessoas, contitulares do estabelecimento, por não ter sido ainda dividida a herança do seu anterior proprietário, em que um dos contitulares é o autor.

Inexiste uma norma legal que expressamente contemple como causa de cessação do vínculo laboral a cumulação na mesma pessoa das qualidades de trabalhador e empregador.

Pretendem os recorrentes que seja aplicável por analogia o artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais.

É certo que de harmonia com o preceituado no n.º 1 do artigo 10.º do Código Civil, «os casos em que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos», explicitando o n.º 2 do normativo que «há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei» e acrescentando o n.º 3 que «na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema».

No nosso entender, a recorrer-se à analogia, tendo em consideração a relação estabelecida entre os herdeiros e o preceituado no mencionado artigo 10.º do Código Civil, faz muito mais sentido procurar a solução no regime legal das sociedades por quotas do que na disciplina relativa às sociedades anónimas, pois, no fundo, cada um dos herdeiros é titular de uma quota do património do falecido (cf. artigo 2030.º, n.º 2 do Código Civil).

No regime jurídico das sociedades por quotas não existe qualquer norma semelhante à que consta do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais que expressamente proíbe os administradores da sociedade de exercerem quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo.

Todavia, não obstante a questão não seja pacífica, existe quem defenda a possibilidade de numa sociedade por quotas o sócio-gerente estar vinculado à sociedade por um contrato de trabalho.

Sobre esta matéria pode ler-se com interesse o acórdão da Relação de Coimbra, de 20-10-2005, P.2029/05 [Serra Leitão], acessível em www.dgsi.pt:

«Os sócios gerentes, constituindo os órgãos diretivos e representativos da sociedade participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato subordinado- cfr. Ac. STJ, IN CJ/STJ, VII; III, 248.

Daí que embora que não impossível, é de difícil a configuração uma situação em que o sócio- gerente, esteja vinculado à sociedade por um contrato de trabalho, já que este exige como pedra de toque fundamental, muito mais do que a subordinação económica, a existência de subordinação jurídica, que se traduz, no dizer de Monteiro Fernandes, citado por A Neto, in Contrato de Trabalho, Notas Práticas, 15ª ed., pág. 53, “ numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem”.

Como se sabe, sobre este ponto, a jurisprudência mostra-se dividida, sendo disso exemplo as diversas decisões dos Tribunais Superiores, indicadas no douto aresto supra citado.

Seja como for porém a verdade é que, por norma, na pessoa do sócio gerente se congregam os poderes patronais derivados do vínculo laboral poder determinativo da função, poder disciplinar, poder conformativo da prestação e poder regulamentar).

E daí que também por princípio inexiste para ele a tal subordinação jurídica, podendo quase afirmar-se que o desempenho da gerência social é incompatível com a subsistência de um contrato de trabalho (cfr. o Ac desta Secção proferido no Rec. de Apelação 3940/02).

Talvez seja esta a posição mais consentânea com o estatuto- direitos, deveres e atribuições- da posição de sócio gerente dentro da empresa.

Contudo e como se disse não é pacífico o entendimento jurisprudencial a este propósito.
E ainda que não isento de algumas dúvidas, tem que se admitir que na panóplia imensa de situações que a vida prática nos apresenta (e só em situações muito específicas) que possam coexistir na mesma pessoa, as qualidades de sócio gerente e de trabalhador subordinado.

Ora para que se possa eventualmente concluir pela existência de um vínculo de subordinação jurídica (elemento essencial para a caracterização de um contrato, como de trabalho), podem apontar-se e seguindo o douto aresto do STJ já citado, os seguintes itens:
a anterioridade, ou não, do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio- gerente;
a retribuição auferida, procurando surpreender-se alterações significativas ou dualidade de retribuições; natureza das funções concretamente exercidas antes e depois da ascensão à gerência, com vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há separação de atividades; a composição da gerência quanto ao número de sócios gerentes e às respetivas quotas;
a existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;
a dependência, hierárquica e funcional dos sócios- gerentes que desempenham tarefas não tipicamente de gerência, quanto ao exercício das mesmas.».

Igualmente reproduzimos um trecho do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-09-1999, P. 98S364, que versou a matéria:

«3. - Antes do Código das Sociedades Comerciais - (Decreto-Lei n. 262/86, de 2 de Setembro) - não havia disposição legal expressa sobre o problema, encontrando-se muito dividida a doutrina e a jurisprudência neste ponto.

Assim:

- RAUL VENTURA sustentava "a impossibilidade de um indivíduo funcionar simultaneamente como administrador e trabalhador..." - ut. "Teoria da Relação Jurídica de Trabalho", 1944, volume I, página 299 - adiantando-se que outra é a posição agora exposta a páginas 35 e seguintes do volume III do seu "Comentário ao Código das Sociedade Comerciais" - Sociedades por Quotas -.

- INOCÊNCIO GALVÃO TELES, entendia porém que "... em relação a um administrador pode acontecer e acontece por vezes achar-se investido em funções especiais de natureza executiva, como a de diretor de serviço, que exerce subordinadamente ao Concelho de Administração, com uma remuneração própria, distinta da do administrador, caso em que está também vinculado por contrato de trabalho. Dá-se então como que um desdobramento de papéis: o de administrador, que concorre para a formação do órgão da sociedade, inserindo-se na estrutura desta, e o de prestador de trabalho subordinado da empresa" - ut. Dir., 104, 1972, página 336.

- ABÍLIO NETO, considera também que - "... não constando do nosso direito positivo (...) a expressa proibição de o gerente ou administrador acumular o exercício das suas funções específicas com as de trabalhador subordinado (v.q. diretor de determinado departamento da empresa) nada obstará, em princípio, à reunião na mesma pessoa dessa dupla qualidade, mormente quanto ao desempenho de uma e outra função esteja ligada a perceção de retribuições distintas e haja/uma qualquer subordinação ao órgão de gestão". - in "Direito do Trabalho" Separata B.M.J., 1979, página 167.

4. - O problema tem sido colocado aos tribunais com alguma frequência, encontrando-se a jurisprudência profundamente dividida.

 Assim:

No sentido da incompatibilidade, podem ver-se:

- os acórdãos do S.T.A. de 18 de Julho de 1950 - 10 de Março de 1953 - 18 de Outubro de 1950 e 1 de Fevereiro de 1966, respetivamente em Col. Ofic. XII, 199 - XV, 134 - XXII, 956 e Ac. Dout., V, 499 - e os acórdãos do S.T.J. de 15 de Outubro de 1980 - 16 de Dezembro de 1983 - 8 de Outubro de 1990 - 25 de Fevereiro de 1993 e 17 de Fevereiro de 1994, respetivamente, em B.M.J. 300, 228 - 332, 418 - Ac. Dout., 360, 1417 - 378, 716 e Col. Jur. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, I, 293.

- No sentido da compatibilidade, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Fevereiro de 1972 - 7 de Fevereiro de 1986 - 23 de Julho de 1982 - 8 de Janeiro de 1992 e 19 de Março de 1992, respetivamente, em B.M.J., 214, 210 - 354, 380 Ac. Dout. 252, 612, B.M.J., 413, 360 e 415, 421.

Desta enumeração, algo exaustiva, parece poder apenas concluir-se a uniformidade da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo - Secção do Trabalho e Previdências -, Toda anterior a 1966, e um visível equilíbrio na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, mesmo depois da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, em 1 de Novembro de 1986.

5. - É que este Código contém um preceito específico para as sociedades anónimas, estatuindo no seu artigo 398:

"1. Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviço quando cessarem as funções de administrador.

2. Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça quaisquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano (...)".

Anote-se que este n. 2 foi julgado inconstitucional pelo acórdão do Tribunal Constitucional n. 1018/96, de 9 de Outubro de 1996 - no D.R., II, de 13 de Dezembro, processo 17305, por violação dos artigos 55, alínea d) e 57, n. 2, alínea a), ambos da Constituição da República, na parte em que considera extintos os contratos de trabalho subordinado ou autónomo.

Ficou, assim, intocada a suspensão dos contratos com mais de um ano, solução que, aliás, já era defendida anteriormente.

 6. - Mas o Código não tem qualquer preceito que contemple o problema para os outros tipos de sociedades que regula, o que coloca logo o problema de saber se o preceito lhes deve ser aplicado analogicamente, como bem observa o Professor RAUL VENTURA, a folha 35 da obra citada.

E prossegue:

"Na prática portuguesa existem numerosas pequenas sociedades por quotas em que o sócio gerente exerce funções que não competem aos gerentes: exemplos típicos são o do gerente que vende ao balcão ou trabalha na oficina, ou "está encarregado de ordenhar as vacas" como no caso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1986, acima citado: um preceito legal, que proibisse tal prática seria ridiculamente ineficaz (...).

Como é elementar regra jurídica, para haver contrato de trabalho, é indispensável a verificação de todos os seus elementos típicos: o vínculo de subordinação do trabalhador, digo típicos: ora parece que nestes casos um faltaria sempre: o vínculo de subordinação do trabalhador, que não poderá estar subordinado a si mesmo, na veste de gerente.
Este é o argumento repetido nos acórdãos acima citados (...).

A referida doutrina, mesmo dentro dos seus pressupostos vai longe demais. Inegável é que o vínculo laboral, com a respetiva subordinação se estabelece entre a sociedade-pessoa jurídica e o trabalhador: os gerentes não são a entidade patronal, mas sim órgãos desta. Ora, uma sociedade por quotas pode ter mais do que um gerente, no caso da pluralidade de gerentes haverá quem, representando organicamente a sociedade, exprima as ordens, instruções, fiscalização características do lado ativo da subordinação de um gerente-trabalhador (...).

No entanto, no campo dos princípios, o obstáculo da subordinação não me parece intransponível (...).

Por outro lado, não pode alegar-se impossibilidade absoluta do exercício da autoridade patronal. Nas sociedades por quotas a assembleia pode alterar essa situação por duas maneiras; ou destituindo o gerente e elegendo outro (aliás, bastará eleger mais um) que despeça o trabalhador - conselho dos citados autores franceses; ou dando ao gerente-trabalhador instruções vinculativas (artigo 259 C.S.C.) - (...).

Admitida a cumulação das duas espécies de funções, passa-se a outra ordem de problemas, agora a prova da existência do contrato de trabalho subordinado (...).

Na falta de expressas declarações negociais, nomeadamente provadas por escrito, haverá que recorrer a todas as circunstâncias do caso. Assim, pode ser decisivo que o contrato de trabalho seja anterior à designação como gerente, pois não é de presumir que o trabalhador - que continua a prestar o mesmo trabalho - queira, por causa daquela designação, precedida normalmente da aquisição de uma quota na sociedade, perder a sua antiga qualidade".

A transcrição foi longa, porventura excessiva, mas afigurou-se útil e necessária para o tratamento de um problema tão controvertido na jurisprudência portuguesa e sobre o qual o próprio Professor RAUL VENTURA, em tempos muito recuados - 1944 - e muito longe ainda do Código das Sociedades Comerciais, teve posição algo diferente.

Parece, assim, dever concluir-se pela não aplicação analógica do disposto no artigo 398 do C.S.C. às sociedades por quotas, onde as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de gerente, melhor, de sócio gerente e de trabalhador subordinado.

Na sugestiva expressão atrás transcrita: "um preceito legal que proibisse tal prática seria ridiculamente ineficaz".

De resto, seria no mínimo muito estranho que o legislador do Código das Sociedades Comerciais, tendo pensado no problema, querido a solução, vazando-a expressamente no artigo 398 para as sociedades anónimas, não tenha adotado expressamente o mesmo regime para as sociedades por quotas se desejasse que lhes fosse aplicável.

O silêncio é aqui bem o sinal de não ter querido consagrar a proibição, deixando a solução em aberto para a peculiaridade de cada caso concreto, tendo sempre bem presente que para a existência de um contrato de trabalho é imprescindível a verificação de todos os seus elementos típicos, designadamente que seja patente uma situação de subordinação jurídica.

Como a este propósito observa ILÍDIO DUARTE RODRIGUES, em "A Administração de Sociedades", página 304 - "A existência de eventual subordinação jurídica tem de se apurar e medir no terreno concreto da vida".

Na feliz expressão de um autor brasileiro (ARI P. BELTRAN) deve seguir-se o princípio geral da primazia da realidade em matéria trabalhista.

E, assim, a realidade, o terreno da vida, as circunstâncias concretas do caso, que hão-de dizer-nos da coexistência, ou não, das duas qualidades, de sócio gerente e de trabalhador subordinado.»

Concordamos com o entendimento manifestado no acórdão.

Deste modo, afigura-se-nos ser possível, em abstrato, numa sociedade por quotas, a cumulação das funções de sócio-gerente e de trabalhador subordinado, tudo dependendo da concreta caso a apreciar.

Aplicando por analogia esta solução jurídica, resta apreciar se na concreta situação dos autos está demonstrada a coexistência no demandante das duas qualidades, a de trabalhador e a de empregador.

E o que resulta do acervo factual provado a nosso ver não permite concluir pela verificação dessa coexistência.

Passemos a explicar.

Não há dúvida que até ao falecimento de B... , o autor exercia subordinadamente as funções de gerente.

Contudo, desde que os sucessores de B... (entre eles, o autor) assumiram a gestão do estabelecimento, não existe um único facto que nos permita concluir pela existência de subordinação jurídica do autor ao conjunto de contitulares do estabelecimento.

O que se infere da matéria factual é que sendo o autor o irmão que mais conhecia a loja por ter trabalhado na mesma tantos anos, com funções de responsabilidade, o conjunto de sucessores decidiu que seria o mesmo a exercer de facto a gestão dessa loja, por conta no sentido de por incumbência ou em nome ou representação de todos os sucessores.

Competia ao autor demonstrar a existência, no caso concreto, da manutenção do vínculo de subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho, no período a partir do qual os sucessores assumiram a gestão da loja, o que não logrou fazer (cf. artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

Em suma, o autor não logrou provar que a partir do momento em que os sucessores assumiram a gestão da loja assumiu em simultâneo e coexistência s qualidades de trabalhador e de empregador.

Mostra-se, pois, prejudicada a questão da caducidade do contrato de trabalho, nos termos sustentados nos recursos.

Todavia, os elementos dos autos também não nos permitem concluir que existiu um contrato de trabalho válido e eficaz até à comunicada resolução do mesmo, nos termos em que o fez a sentença recorrida.

Por conseguinte, impõe-se a revogação da decisão posta em crise, por decisão que julgue improcedente a ação e absolva os recorrentes dos pedidos contra si deduzidos.

Termos em que há que julgar procedentes os recursos interpostos, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos mesmos.


*

V. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar os recursos procedentes e, em consequência, revogam a sentença, absolvendo os réus dos pedidos contra si deduzidos.

Custas pelo recorrido.

Notifique.

Coimbra, 9 de dezembro de 2016


 (Paula do Paço)

 (Ramalho Pinto)

(Azevedo Mendes)



[1] “Cessação do Contrato de Trabalho”, 3.ª Edição, pág. 86.