Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
359/09.4GBOBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: INDÍCIO
NOÇÃO
BUSCA DOMICILIÁRIA
Data do Acordão: 03/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ÁGUEDA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 174º, 177º CPP
Sumário: 1. A categoria de indício não corresponde a uma certeza de determinado facto, sequer à existência de prova, ainda que controversa do mesmo, podendo corresponder simplesmente a um estado de suposição a que se chegou analisando a realidade transmitida para investigação com recurso a raciocínio lógico fundado nas regras da experiência.

2. A materialização da suspeita ou dos indícios não tem de coincidir forçosamente com a existência prévia de prova mas com um estado de coisas que indique, em face das regras da experiência, que essa prova é possível, como seja uma queixa apresentada e devidamente circunstanciada, vigilância efectuada pelas entidades policiais que dê conhecimento de factos integradores de crime e possa posteriormente materializar-se em prova, testemunhos recolhidos informalmente que posteriormente se possam materializar em prova e obviamente meios de prova previamente produzidos.

3. É perante a existência de uma suspeita consistente da prática de um crime que se pode e deve concluir pela necessidade de uma busca e que se pode concluir pela sua adequação e racionalidade.

4. Exigir mais do que uma suspeita fundamentada ou se se quiser mais do que indícios, seria negar à busca o que dela se pretende e a sua razão de ser, a obtenção de prova.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
No âmbito do processo de inquérito nº 359/09.4GBOBR a correr termos nos Serviços do Ministério Público da Comarca do Baixo Vouga sediados em Oliveira do Bairro, o Ministério Público requereu ao Juiz de Instrução o seguinte (transcrição):
Iniciou-se o presente inquérito com a denúncia de fls. 3, cujo conteúdo ora se dá por integralmente reproduzido, efectuada por J…, na qualidade de gerente da empresa "XX...... - Artigos de Utilidade Doméstica, Lda". De tal denúncia resulta, em suma, que o arguido V… se apoderou de uni veículo de matrícula …, da marca Citroen, modelo C2, de cor preta; de um telemóvel da marca Nokia, modelo 1209; de uma mala de demonstração com purificador de água; de uma mala de testes, nomeadamente de reagentes e de aparelhos de electrólise, objectos esses que pertenciam à denunciante "XX...... - Artigos de Utilidade Doméstica, Lda." e que haviam sido entregues ao arguido para efeitos de poder exercer as funções de vendedor daquela empresa. No que concerne, porém, ao veículo, o mesmo pertence à empresa "F…", mas estava em poder daquela empresa, sendo certo que o valor daquele veículo - 9.500,001E - qualifica, só por si, o crime.
Os factos ora descritos são susceptíveis, em abstracto, de integrar a prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p.p. pelos ares 202.°, al. a), e 205.°, n.°s 1 e 4, do Código Penal.
Os factos ora consignados encontram-se melhor documentados e sustentados, em turnos indiciários, a fls. 10, 13 a 24 e 55 a 58, e pelas declarações de fls. 21, cujo conteúdo ora se dá por integralmente reproduzido. Resulta também que os aludidos objectos ainda não foram devolvidos ao denunciante.
A presente investigação terá mais probabilidade de ser bem sucedida, nomeadamente no que concerne a todos os actos conducentes à recolha da prova necessária para comprovar o cometimento do ilícito denunciados, com a realização da diligência infra requerida, com vista à descoberta da verdade material.
Pelo exposto, a realização de busca mostra-se concretamente imprescindível para o apuramento da verdade material, ao permitir a recolha de elementos conducentes ao apuramento do crime denunciado e demonstra-se essencial para a descoberta da verdade dos factos indiciados e, caso se venha a comprovar o alegado, fundamentais para a prova dos ilícito em investigação. A assim não ser, pôr-se-ia em causa toda a investigação, com prejuízo da descoberta da verdade material.
Tornando-se, assim, absolutamente indispensável ao prosseguimento da investigação, a realização de busca, conclua ao M.mo J.I.C., com a Pr. se ordene a realização de uma busca domiciliária ao arguido V…, residente na urbanização…, Bloco E, - cfr. fls. 45, a fim se proceder à apreensão dos objectos supra descritos, nos termos das disposições conjugadas dos art.s 174.°, n.°s 1 a 4, 177.°, n.° 1, 178.°, n.°s 1 a 3, e 268.°, n.° 1, al. f), todos do Código de Processo Penal.

O Mmº Juiz de Instrução proferiu em 22.12.2009 despacho, indeferindo o requerido pelo Digno Magistrado do Ministério Público, do qual consta a seguinte fundamentação:
Do previsto nos arts. 269°, n° 1, al. a), 174°, n° 2, 3, 4 e 5 e 177° do Cód. Proc. Penal resulta que as buscas efectuadas no domicílio apenas podem ser ordenadas ou autorizadas pelo juiz de instrução criminal. É assim, atento o prejuízo que desta diligência advém para a privacidade das pessoas, invadidas na intimidade da sua habitação.
Compreende-se, também e por isso mesmo, a exigência contida no art. 174°, n° 2 do Cód. Proc. Penal, quando refere que a busca realizar-se-á quando houver indícios de que os objectos relacionados com a prática de um crime ou que possam servir de prova se encontrem em lugar reservado não livremente acessível ao público. Aqueles indícios, indispensáveis à realização da diligência de busca, hão-de assentar, necessariamente, em meios de prova, e em meios de prova tais que consintam a compressão da reserva e intimidade das pessoas.
Por outro lado, os direitos cuja compressão se tem de aceitar em face da busca domiciliária são merecedores de especial protecção, atenta a situação de fragilidade em que fica colocada a reserva da vida privada dos sujeitos objectos da diligência
No caso dos autos a indiciação do visado pela busca resulta apenas das declarações do representante legal da empresa XX...... - Artigos de Utilidade Doméstica Lda. De acordo com tais declarações, o suspeito teria recebido, para execução de actividade de vendedor da referida empresa, certos bens móveis (que identifica) recusando-se a devolvê-los alegando ter créditos sobre aquela empresa resultantes dessa actividade, sendo certo que a empresa entende não haver qualquer dívida a pagar.
Ora, salvo melhor entendimento, tais factos são, por si só, de duvidosa relevância criminal, face ao elementos do tipo legal de abuso de confiança p.p. artigo 205° do CP - nomeadamente: quanto à inversão do título da posse - apropriação ilegítima na sequência de entrega lícita - e quanto ao dolo. De facto, a existir crédito (ou mera convicção minimamente fundada de crédito do suspeito sobre a empresa queixosa) dificilmente serão preenchidos os apontados elementos do tipo, sendo que importará, igualmente, ponderar o disposto no artigo 755° n°1 c) do CCivil.
Acresce que das diligências até agora realizadas - nenhum outro elemento de relevo retira quanto ao contexto em que terão ocorrido os factos.
Finalmente importa notar que, para além do referido não se vislumbram outros factos concretos de onde se possa retirar, seja provável de que na aludida residência estejam guardados os objectos em causa, nem sequer que haja ao menos «indícios» de que tal aconteça.
Em resumo, nesta fase os autos não contêm indícios relevantes que suportem a conclusão de que na residência em causa estarão objectos relacionados com a prática de um crime ou que possam servir de prova, sendo certo que a diligência de «busca domiciliária» não é meio idóneo para se substituir a providência cível adequada à restituição dos bens em causa, que, aliás (fls.57) já estará em curso.
Porque é assim, entende-se não estarem satisfeitos os necessários pressupostos legais para a requerida busca.

Inconformado com tal despacho, dele recorreu o Digno Magistrado do Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1.º
No presente inquérito, J…, na qualidade de legal representante da empresa "XX...... - Artigos de Utilidade Doméstica, Lda", apresentou queixa contra o arguido V.... De tal denúncia resulta, em suma, que o arguido V… se apoderou de um veículo de matrícula …, da marca Citroen, modelo C2, de cor preta; de um telemóvel da marca Nokia, modelo 1209; de uma mala de demonstração com purificador de água; de uma mala de testes, nomeadamente de reagentes e de aparelhos de electrólise, objectos esses que pertenciam à denunciante "XX...... - Artigos de Utilidade Doméstica, Lda" e que haviam sido entregues ao arguido para efeitos de poder exercer as funções de vendedor daquela empresa. No que concerne, porém, ao veículo, o mesmo pertence à empresa "Finicrédito, SA", mas estava em poder daquela empresa, sendo certo que o valor daquele veículo - 9.500,00€ - qualifica, só por si, o crime.
2.°
Os factos ora descritos e em investigação nestes autos são susceptíveis, em abstracto, de integrar a prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p.p. pelos art.s 202.°, al. a), e 205.°, n.°s 1 e 4, do Código Penal.
3.°
A presente investigação terá mais probabilidade de ser bem sucedida, nomeadamente no que concerne a todos os actos conducentes à recolha da prova necessária para comprovar o cometimento do ilícito denunciado, com a realização da de busca domiciliária requerida, com vista à descoberta da verdade material.
4.°
Tornando-se, assim, absolutamente indispensável ao prosseguimento da investigação a realização de busca, o Ministério Público Promoveu ao M.mo J.I.C. que ordenasse a realização de uma busca domiciliária ao arguido V…, residente na urbanização …, a fim se proceder à apreensão dos objectos supra descritos, nos termos das disposições conjugadas dos art.s 174.°, n.°s 1 a 4, 177.°, n.° 1, 178.°, n.°s 1 a 3, e 268.°, n.° 1, al. f), todos do Código de Processo Penal, Promovendo-se ainda se cumprisse em 30 dias após a emissão do respectivo mandado; Pr. o Ministério Público ainda que, a ser deferida a presente Pr., se instruísse o mandado com cópia de fls. 13 a 17, para melhor identificação dos objectos cuja apreensão se pretende.
5.°
O M.mo J.I.C. no despacho recorrido considerou que, a existir um crédito, ou mera convicção minimamente fundada de crédito do arguido sobre a empresa queixosa, dificilmente serão preenchidos os elementos do tipo, sendo que importará, igualmente, ponderar o disposto no art. 755º, n.° 1, ai. c), do Código Civil.
6.°
O arguido não prestou quaisquer declarações; ora, nem do silêncio do arguido, nem de quaisquer outros elementos já constantes nos autos, pode de maneira alguma concluir-se a falta de dolo do arguido. Como é consabido, o dolo é uma postura subjectiva do arguido relativa à vontade e conhecimento do cometimento do crime, não sendo possível concluir pela falta de dolo pelo silêncio do arguido.
7.°
Refere-se no despacho recorrido que é necessário tem em conta o disposto no art. 755.°, n.° 1, al, c), do Código Civil. É certo que essa questão foi aflorada no auto de denúncia, a fls. 3, sendo certo, porém, que o denunciante nega a existência de qualquer dívida e que nem dos demais elementos constantes no inquérito resulta a existência de qualquer crédito que o arguido possa ter relativamente à empresa ou a suposição da existência desse crédito por banda do arguido.
8.°
Desse modo, não existem quaisquer elementos que permitam supor que o contexto em que o arguido terá agido seja o do direito de retenção, nem que, desse modo, a conduta imputada ao arguido não fosse ilícita, nos termos do art. 31.º, n.°s 1 e 2, al. b), do Código Penal.
9.°
Com a busca requerida, não pretende de modo algum o Ministério Público substitui-se ao interessado nem às providências cíveis que o mesmo entenda tomar, nem pretende alcançar através do processo crime qualquer outro objectivo que não seja o da comprovação do ilícito denunciado, Com efeito, a apreensão, ao arguido, dos objectos descritos no auto de denúncia, mediante busca domiciliária, seria um relevante elemento de prova do crime ora em investigação, tudo com vista à descoberta da verdade material.
10.°
E, atenta toda a factualidade conhecida nos autos, é razoável supor que, se o arguido tiver os objectos em causa em seu poder, se encontrem no seu domicílio e não, por exemplo, em poder de terceiro.
11.°
A busca, como meio de obtenção de prova, deve ser ordenada quando houver indícios de que quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.
12.°
Para que a busca seja ordenada basta, assim, a existência de meros indícios, ou seja, uma indicação, um sinal ou um vestígio de algo relacionado com um crime, não se mostrando necessário que os indícios sejam suficientes ou fortes, pois, nesse caso, já existiria prova para deduzir acusação, esvaziando-se de sentido aquele meio de obtenção de prova.
13.°
No caso em apreço, os indícios de que o arguido incorreu na prática do crime aqui denunciado fundam-se na relação de bens apresentada, na documentação disponibilizada pela denunciante concernente ao direito de propriedade e disposição sobre esses bens, à cópia da notificação judicial avulsa efectuada ao arguido e às declarações do legal representante da denunciante.
14.°
Logo, e considerando, também, as características dos objectos subtraídos ao poder de disposição da empresa denunciante, designadamente a dimensão do automóvel quanto mais não seja, tudo leva a crer que este ainda ocultará aqueles bens na sua residência, não havendo qualquer elemento que permita supor que os objectos estejam em poder de terceiro; sendo certo que, de modo a efectuar a compressão do direito de reserva pelo mínimo possível, o Ministério Público Pr. que se instruísse o mandado de busca com cópia de fls. 13 a 17, para melhor identificação dos objectos cuja apreensão se pretende.
15.°
Pelo que estão reunidos todos os pressupostos para a realização de busca domiciliária à residência do arguido nos moldes promovidos pelo Ministério Público.
16.°
Não o entendendo assim, o despacho recorrido desconsiderou as regras da experiência e violou a norma constante do art. 174°, n° 2 do CPP.

Face ao exposto, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a emissão dos mandados de busca nos termos requeridos pelo Ministério Público.
V. Ex.ªs, porém, e como sempre, farão Justiça!

O Mmº Juiz a quo admitiu o recurso não se tendo pronunciado nos termos do artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal.

Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto absteve-se de emitir parecer.
Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais.
Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.
***
II. Apreciação
Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
Assim, o recurso interposto suscita a questão de saber se se verificam os requisitos legais do artigo 174º, nº 2 do Código de Processo Penal para a realização da busca requerida.

Apreciando:
Comecemos por analisar as disposições legais que contêm previsão no sentido da possibilidade de busca.
Preceitua o artigo 174º do Código de Processo Penal:
1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.
2 - Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca. (sublinhado nosso)
(…)
O artigo 177º do Código de Processo Penal contém exigências acrescidas em relação a busca domiciliária, cujo conteúdo concreto não tem implicações na resolução da questão proposta.
Como vemos, esse preceito faz depender a possibilidade legal de recurso a este meio de obtenção de prova da "existência de indícios de que alguém oculta em lugar reservado e não livremente acessível objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova" indícios esses que manifestamente não só se referem à existência de bens ocultos, mas também, necessariamente, à sua relação com um crime; igualmente indiciado.
O que se pode entrever neste meio de obtenção de prova é que pode contender com direitos fundamentais, daí que seja importante para a interpretação dos requisitos mencionados perscrutar as normas constitucionais em causa, dado que não poderá ter acolhimento aquela que não respeitar a conformidade com os valores da constituição. Esse passo foi dado pelo Mmº Juiz a quo. Vejamos se a sua conclusão merece acolhimento ou se pelo contrário tem razão o Digno recorrente.
Assim, o artigo 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante designada por CRP) preceitua no seu nº 1 que «a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, á capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, á imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e á protecção legal contra quaisquer formas de descriminação
É o direito à reserva da intimidade da vida privada que o referido meio de prova pode efectuar.
Logo no artigo 32º, nº 8 da CRP (para além de disposição idêntica no Código de Processo Penal) se estabelece que são nulas as provas obtidas mediante ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
Aliás, a ofensa dos direitos em questão, fora das situações devidamente justificadas e autorizadas em processo penal, constitui crime (cfr. artigos 190º, 191º e 192º do Código Penal).
Por seu turno o artigo 34º, nº 1 da CRP estabelece no seu nº 1 que «o domicílio e o sigilo da correspondência e de outros meios de comunicação privada são invioláveis» enquanto o nº 2 preceitua que «a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei». Finalmente há que reter o disposto no artigo 18º da CRP, estipulando no seu nº 1 que os preceitos constitucionais respeitantes a direitos liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas, só podendo a lei restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
E este último preceito é de particular importância na delimitação do alcance dos normativos que permitem a realização do referido meio de obtenção de prova, posto que apenas consente interpretação no sentido de que de que estas são permitidas quando estritamente indispensáveis para salvaguardar o interesse do Estado na perseguição do crime, materializando princípio da proporcionalidade que pode ser analisado em três vectores, o da necessidade, da adequação e da racionalidade.
A necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção, equivalendo à exigibilidade dessa intervenção, a adequação significa que a providência se mostra adequada ao objectivo almejado, ao fim contemplado pela norma e não a outro, a racionalidade implica justa medida, que o órgão competente proceda a uma correcta avaliação da providência em termos quantitativos e qualitativos, que através dela se obtenha o resultado devido. Assim a falta de necessidade e adequação traduz-se no arbítrio, a falta de racionalidade em excesso (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Jorge Miranda – Rui Medeiros em anotação ao artigo 18º).
Incontornável é igualmente que do artigo em referência deriva a vinculação dos tribunais a interpretar, integrar e aplicar a lei relativa a direitos, liberdade e garantias de modo a conferir-lhes a máxima eficácia possível dentro do sistema jurídico e a não aplicar preceitos legais que os não respeitem com os instrumentos da apreciação da inconstitucionalidade.
Como resulta do exposto, a máxima da interpretação da lei que tem, aliás, expressão no artigo 9º do Código Civil, para além do seu conteúdo literal, é a unidade do sistema jurídico que, em primeiro lugar, é informado pela constituição onde se materializam as suas traves mestras.
Mas também vem expressamente consignado no citado artigo 9º, nº 3 que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
E definidos os contornos constitucionais relativos a liberdades e garantias, definidos os princípios a ter a conta na interpretação da lei ordinária, é evidente que as disposições em causa não podem ser interpretadas no sentido de ser permitido o recurso ao citado meio de obtenção de prova sem que exista qualquer substrato de suspeita, devidamente materializado que permita a capitulação dos direitos em causa em nome da investigação e perseguição do crime.
Mas também não devemos esquecer que estamos perante um meio de obtenção de prova que não pode, por isso, estar dependente da prévia existência de prova. Que necessidade haveria de realizar uma busca para obter prova já efectuada por outro via?
Esta é, aliás, a "pedra de toque" de todo o esforço interpretativo e de tentativa de harmonização do texto constitucional com a lei ordinária. Destinando-se a lei a regular situações concretas, não pode ser interpretada no sentido de lhe ser retirado qualquer efeito útil, qualquer conteúdo normativo, afinal.
Por isso que o Código de Processo Penal se refira a indícios e não a fortes indícios como ocorre relativamente a outras situações. E a categoria de indício não corresponde a uma certeza de determinado facto, sequer à existência de prova, ainda que controversa do mesmo, podendo corresponder simplesmente a um estado de suposição a que se chegou analisando a realidade transmitida para investigação com recurso a raciocínio lógico fundado nas regras da experiência.
Como se menciona no Acórdão desta Relação de 23.5.2007, relatado pelo Exmº Desembargador Belmiro Andrade (publicado em www.dgsi.pt) "o processo penal desenvolve-se através de um "iter" que tem o seu ponto de partida na suspeita, passa pela recolha de material probatório, crivado pelo juízo de probabilidade, até terminar na certeza prática da realização do ilícito que apenas será alcançada a final, em julgamento, após discussão e debate das provas reunidas."
Estamos pois no ponto de partida, a materialização da suspeita ou dos indícios não tem de coincidir forçosamente com a existência prévia de prova mas com um estado de coisas que indique, em face das regras da experiência, que essa prova é possível, como seja uma queixa apresentada e devidamente circunstanciada, vigilância efectuada pelas entidades policiais que dê conhecimento de factos integradores de crime e possa posteriormente materializar-se em prova, testemunhos recolhidos informalmente que posteriormente se possam materializar em prova e obviamente meios de prova previamente produzidos.
Ou seja, é perante a existência de uma suspeita consistente da prática de um crime que se pode e deve concluir pela necessidade de uma busca e que se pode concluir pela sua adequação e racionalidade.
E bem se compreende que assim deva ser, não obstante as citadas garantias constitucionais, porque exigir mais do que uma suspeita fundamentada ou se se quiser mais do que indícios, seria negar à busca o que dela se pretende e a sua razão de ser, a obtenção de prova.
Neste sentido salientam-se também os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.2.2006, processo nº 33/06 da Relação de Évora de 8.6.2004, processo 1119/2004 e ainda o mais recente Acórdão desta Relação de 18.11.2009, processo 329/09.2JALRA.C1, relatado pelo Desembargador José Eduardo Martins que subscreve como Adjunto o presente Acórdão.
Ora, no caso estamos perante uma participação devidamente circunstanciada de factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de abuso de confiança, a que se seguiram declarações produzidas pelo director comercial da empresa ofendida confirmando o teor da queixa e apresentado documentação, no sentido de que o arguido que era vendedor da sociedade ofendida, não devolveu a esta os bens (veiculo automóvel, telemóvel, mala de demonstração com purificador de água, mala de testes) que lhe foram entregues para o exercício dessa funções. O mesmo declarante refere que o arguido alega a existência de crédito sobre a empresa ofendida para justificar a não entrega dessas bens, o que não corresponde à verdade. O arguido foi ouvido e não prestou declarações.
O Mmº Juiz para denegar a realização da busca invoca que os indícios indispensáveis à realização da diligência de busca, hão-de assentar, necessariamente, em meios de prova, e em meios de prova tais que consintam a compressão da reserva e intimidade das pessoas. Que por outro lado, os direitos cuja compressão se tem de aceitar em face da busca domiciliária são merecedores de especial protecção, atenta a situação de fragilidade em que fica colocada a reserva da vida privada dos sujeitos objectos da diligência. Que a indiciação do visado pela busca resulta apenas das declarações do representante legal da empresa XX...... - Artigos de Utilidade Doméstica Lda. Que salvo melhor entendimento, tais factos são, por si só, de duvidosa relevância criminal, face ao elementos do tipo legal de abuso de confiança p.p. artigo 205° do CP - nomeadamente: quanto à inversão do título da posse - apropriação ilegítima na sequência de entrega lícita - e quanto ao dolo. De facto, a existir crédito (ou mera convicção minimamente fundada de crédito do suspeito sobre a empresa queixosa) dificilmente serão preenchidos os apontados elementos do tipo, sendo que importará, igualmente, ponderar o disposto no artigo 755° n°1 c) do Código Civil. Que acresce que das diligências até agora realizadas - nenhum outro elemento de relevo retira quanto ao contexto em que terão ocorrido os factos. Que, finalmente, para além do referido não se vislumbram outros factos concretos de onde se possa retirar, seja provável de que na aludida residência estejam guardados os objectos em causa, nem sequer que haja ao menos «indícios» de que tal aconteça. Que a diligência de «busca domiciliária» não é meio idóneo para se substituir a providência cível adequada à restituição dos bens em causa, que, aliás (fls.57) já estará em curso.
Manifesto é que esta fundamentação assimila a noção de índicos a que se refere o artigo 174º, nº 1 do Código de Processo Penal a fortes indícios da prática do crime. E a invocação do disposto no artigo 755º do Código Civil insere-se precisamente nesse vício de raciocínio, mas, contraditoriamente, neste caso já não se menciona que exista indício com suporte probatório da verificação de tal situação geradora de direito de retenção. Sempre se diga que a prova já constituída não indica no sentido da existência do direito de retenção, não só o director comercial da ofendida nega a existência de débito da sociedade ofendida em relação ao arguido, como o arguido, tendo sido ouvido, nada referiu a esse propósito. E na verdade não se compreende que, se o arguido tivesse efectivamente algum crédito, não tenha pelo menos referido esse facto, confrontado que foi com a sua constituição como arguido.
Por outro lado, manifesto é que as regras da experiência indicam que, se os bens móveis em causa estão na posse do arguido, o local mais provável em que este os guardará será no seu domicílio. Mais uma vez nesse particular se confundem indícios com fortes indícios, com prova concreta produzida no sentido de que os bens se encontram nesse local.
E, por outro lado, há que distinguir claramente o meio de obtenção de prova "busca" conducente à apreensão de bens que tem a função de meio de prova, com eventual providência cível destinada a recuperar os bens, providências que têm essas distintas e inconfundíveis finalidades, sendo que o eventual recurso à segunda não pode inviabilizar a realização da primeira.
Pelo exposto e porque efectivamente se verificam índicos de que o arguido tem na sua residência objectos relacionados com crime e estes que podem servir de prova do cometimento do mesmo, a busca requerida é justificada e deve ser ordenada, sendo manifesto o bem fundado do recurso.
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IV. Decisão
Nestes termos acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência revogam a decisão recorrida e determinam a sua substituição por outra que determine a realização de busca e a emissão dos respectivos mandados nos termos que foram requeridos.
Não há lugar a tributação.
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Coimbra,
(Texto processado e integralmente revisto pela relatora).

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(Maria Pilar Pereira de Oliveira)

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(José Eduardo Fernandes Martins)