Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
482/10.2PAVFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: FURTO
FURTO DE USO
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – AVEIRO – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 203º Nº 1 E 208º CP
Sumário: Estando perfectibilizados os elementos objetivos do crime (subtração ilegítima de coisa móvel, com intenção de ilegítima apropriação para o agente ou para terceiro), não tendo o agente demonstrado a sua intenção de restituir a coisa após a sua utilização, pratica o crime de furto p. e p. pelo artº 203º nº 1 e não o crime de furto de uso p. e p. pelo artº 208ºº do CP.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. Conjuntamente com um outro arguido, ora não recorrente, A..., já mais identificado, foi submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum singular, porquanto acusado pelo Ministério Público da prática indiciária de factos que o constituiriam como co-autor material, e sob a forma consumada, de um crime de furto, previsto e punido pelos art.ºs 26.º e 203.º, n.º 1, ambos do Código Penal, em concurso real de infracções, com idêntica autoria material consumada, de um crime de condução indocumentada de veículo, este previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.ºs 121.º, do Código da Estrada, e 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.

Realizado o contraditório, proferiu-se sentença decretando, além do mais por ora irrelevante, a condenação do dito arguido pela prática dos ilícitos assacados nas penas respectivas de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, e de 100 dias de multa ao mesmo quantitativo diário, a que, em cúmulo jurídico de imediato operado, se fez corresponder a pena única de 170 dias de multa, ainda àquela taxa diária de € 5,00, isto é, a multa global de € 850,00.

1.2. Porque se não revê no veredicto emitido, recorre o mesmo arguido extraindo da minuta através da qual fundamentou a discordância, a seguinte ordem de conclusões [?!]:

1. Para verificação do crime de furto previsto pelo art.º 203.º, n.º 1, do Código Penal, por cuja autoria o recorrente acabou condenado, era necessário ter-se produzido a prova de que ele subtraiu a viatura automóvel em causa, com ilegítima intenção de apropriação para si ou outrem, no sentido de fazer integrar definitivamente tal bem no deu património ou de terceiro.

2. Não foi o caso, pois que dos depoimentos coligidos em sede de audiência, apenas resulta que o recorrente tão-somente pretendia usar o veículo em causa por um curto hiato temporal e não apoderar-se dele para si ou para terceiro.

Terminou pedindo que seja decretada a sua absolvição relativamente a tal crime. 

1.3. Cumprido ao disposto pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público sustentando o improvimento do recurso interposto.

1.4. Proferido despacho admitindo-o, e cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntico improvimento.

Após cumprimento ao estatuído pelo artigo 417.º, n.º 2, do último diploma citado, no exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se nenhuma circunstância impôr a apreciação sumária do recurso, ou obstar ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir seus termos, com a recolha dos vistos devidos, e submissão à presente conferência.

Cabe, pois, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. A decisão sob censura[1] teve por provada a seguinte factualidade:

No dia … , a ofendida B... estacionou o veículo de marca  … com a matrícula ..., sua propriedade, na Rua … , em Aveiro.

Entre essa data e hora e o dia 24 de Setembro de 2010, pelas 17:00, e de forma não concretamente apurada, os arguidos resolveram apoderar-se do mesmo.

Assim, e de forma não concretamente apurada, entraram no interior do veículo.

Após, o arguido A..., que se sentou no lugar do condutor, pôs aquele a trabalhar e abandonou o local onde a viatura se encontrava, conduzindo o mesmo.

Nesse mesmo dia, pelas 19:00 horas, o arguido A...conduziu o referido veículo na Estrada de Vilar em direcção à EN n.º 109, no sentido Norte/Sul, em Aveiro.

O arguido A...não é titular de carta de condução.

O mesmo sabia que não podia conduzir veículos a motor na via pública sem estar habilitado com a respectiva carta de condução.

Ao agirem da forma descrita, os arguidos fizeram-no deliberada, livre e conscientemente.

Os arguidos quiseram fazer seu o referido veículo, bem sabendo que o mesmo não lhes pertencia e que agiam contra a vontade da dona.

Também sabiam não lhes ser permitidas as suas condutas.

O arguido A...é estudante do 12.º ano, trabalhando em part-time no Continente, como repositor, auferindo mensalmente cerca de € 300,00. Vive com os pais, entregando-lhes quase todo o dinheiro que ganha para abatimento de uma dívida.

(...)

O arguido A...foi condenado, no processo 559/09.7 GCAVR da pequena instância criminal de Ílhavo em pena de multa pela prática de um crime de condução sem carta, remontando os factos a 11/10/2009 e a decisão a 23/10/2009

(…).

2.2. Já no que concerne a factos não provados, consignou-se na dita peça processual que:

Não se provou que:

No dia 24 de Setembro de 2010, pelas 15:00 horas, quando os arguidos seguiam apeados perto do Parque de Estacionamento, em terra batida, junto aos Pavilhões de Feiras e Exposições de Aveiro, em Aveiro, verificaram que o veículo de marca  … com a matrícula ..., se encontrava ali estacionada com os vidros abertos e com uma gazua introduzida na ignição.

De seguida, os arguidos abriram as portas e entraram no interior do mesmo.

2.3. Por fim, é do teor seguinte a motivação probatória inserta na decisão alvo de censura:

O tribunal fundou a sua convicção:

- Nos CRC´S juntos aos autos a fls. 82 e 90 e ss;

- Termo de entrega de fls. 14 e doc de fls. 39;

- No depoimento da ofendida que relatou o local e hora onde deixou estacionada a viatura, referindo também o momento em que deu conta que a viatura não estava nesse local. Mais referiu que apresentou queixa em Santa Maria da Feira pois nesse dia tinha aí um compromisso, deslocando-se para o efeito, numa outra viatura pertencente à mãe.

No depoimento da testemunha C… que viu o arguido A...a conduzir a viatura, no dia referido na acusação, tendo o mesmo feito inversão de marcha quando o viu. Parecendo-lhe essa conduta estranha, seguiu a viatura, interceptando-a pouco depois. Através da matrícula contactaram a proprietária da mesma. Juntamente com o arguido A...ia o arguido D....

Ora, sendo os arguidos intersectados pouco tempo depois de o veículo ter sido furtado (menos de 24 horas), na posse do mesmo, bem sabendo que este não lhes pertencia, não restam dúvidas sobre a autoria dos factos acima descritos.

Os arguidos prestaram depoimento no que toca à sua situação pessoal.


*

III – Fundamentação de facto.

3.1. O objecto de um recurso penal é definido através das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal –.

Na realidade, de harmonia com o disposto neste n.º 1, do art.º 412.º, e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Acs. de 13 de Maio de 1998; de 25 de Junho de 1998 e de 3 de Fevereiro de 1999, in, respectivamente, BMJ´s 477/263; 478/242 e 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como se mostram os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995, in Diário da República, I.ª Série – A, de 28 de Dezembro de 1995).

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – ditos art.ºs 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e 2. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2.ª edição, 2000, fls. 335, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.”

Por outro lado, sabe-se, igualmente, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no citado art.º 410.º, n.º 2, naquilo que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou, através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas desse mesmo n.º 2, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.

Na segunda hipótese, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do citado art.º 412.º.

Nesta hipótese (de impugnação ampla), o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne então a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o aludido art.º 412.º, n.º 3:

«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. art.º 430.º do diploma adjectivo mencionado).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412.º). Aliás, é nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do art.º 411.º, n.º 4 que o antecede.
A estruturação recursiva apresentada pelo arguido é exemplo lapidar de uma peça arredia ao acatamento de tais ónus.

Com efeito, enquanto na motivação comina a sentença recorrida com o vício de nulidade, por inobservância ao art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e convoca preterição pelo tribunal a quo do princípio do in dúbio pro reo, já nas conclusões apresentadas ignora completamente tais questões. Por outro lado, se enquanto na mesma motivação transparece a pretensão de impugnar (também amplamente) a matéria de facto, além de já aí menosprezar os ónus correspectivos, olvida depois de todo tal menção nas conclusões.

De acordo com o afirmado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18 de Junho de 2002, publicado no Diário da República, II.ª Série, de 13 de Dezembro de 2002, referindo-se à versão anterior à introduzida pela Lei n.º 48/07, quando a deficiência de não se terem concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art.º 412.º, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso, ou a completar a primeira, caso neste não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos, pois que então se estaria perante uma concessão ao recorrente de um novo prazo de recurso.

Outra será a situação quando a desconformidade resida apenas nas conclusões, caso em que devia ser convidado a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.

Esta foi, aliás, a solução legal ora acolhida no art.º 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

In casu, a leitura da motivação permite, todavia e desde já, alcançar qual o desiderato do arguido. Neste sentido, pese embora as limitações referidas, mormente na motivação e, sobremaneira, nas conclusões, à revelia de qualquer convite prévio ao recorrente para que apresentasse novas conclusões, passaremos a ponderar das questões elencadas, considerando que são as constitutivas do thema decidendum.

3.2. O dever de fundamentar uma decisão judicial mostra-se decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, em cujos termos “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma previstas na lei.”

No entanto, tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no art.º 32.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental.

Tal implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, de modo a possibilitar aferir-se da sua conformidade com a lei.

É isso que decorre expressamente, e desde logo, do disposto no art.º 97.º, n.º 4 do Código Processo Penal, ao estabelecer que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”

Por isso essa exigência é, simultaneamente, um acto de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das garantias de defesa, ambas com assento constitucional, de forma a se aferir da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias.

Daí que a fundamentação de um acto decisório deva estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, sendo certo que no caso de uma sentença deve obedecer ainda aos requisitos formais enunciados no citado art.º 374.º, n.º 2.

Tudo isto para se conhecer, ao fim e ao cabo, qual foi o efectivo juízo decisório em que se alicerçou o correspondente sentenciamento, designadamente os factos acolhidos e a interpretação do direito perfilhada, permitindo o seu controlo pelos interessados e, se for caso disso, por uma instância jurisdicional distinta daquela.

Assim e à partida, não cumprem estes requisitos os actos decisórios que não tenham fundamento algum, por mínimo que seja, e aqueles que se revelem insuficientemente motivadas.

Porém, também não se deve exigir que no acto decisório fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser.

O que importa é que a motivação seja necessariamente objectiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido.

Muitas vezes confunde-se motivação com prolixidade da fundamentação e esta apenas serve para confundir ou obnubilar a compreensibilidade que deve ser uma característica daquela.

O Tribunal Constitucional tem ultimamente reiterado no sentido que ficou anteriormente alinhado.

Aliás, tratando-se de sentenças condenatórias, pelas particulares repercussões que as mesmas têm na esfera dos direitos, liberdades e garantias dos condenados, é exigível que se revelem com mais intensidade as razões de facto e de direito que conduziram à decisão concretamente proferida[2].

Nesta conformidade e por força da obrigatoriedade de motivação das resoluções judiciais, a livre convicção do julgador deve ser “objectivável e motivável”, não só revelando o respectivo exame crítico das provas, como promovendo a sua aceitabilidade[3].

Daí que não seja admissível que a fundamentação das decisões em matéria de facto se baste com a simples enumeração ou arrolamento dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, sendo necessário que se faça uma verdadeira reconstrução e análise crítica da prova que conduziu à demonstração de uma certa factualidade[4].

O Supremo Tribunal de Justiça tem assimilado a generalidade desta jurisprudência constitucional, tendo sido de resto um dos seus catalisadores ou percursores com o conciso e lapidar Acórdão de 13 de Fevereiro de 1992[5].

Aqui decidiu-se que o dever de fundamentação da sentença em matéria de facto, só se cumpre se para além de conter os factos provados e não provados, com a indicação dos meios de prova, contiver ainda os elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência.

Por isso, a exigência legal de fundamentação das decisões judiciais não se satisfaz com a indicação, pura e simples, do tipo de prova produzida, permitindo não só o exame do processo lógico ou racional subjacente à formação da convicção do juiz e permitir, como também averiguar se houve alguma violação sobre a proibição de provas[6].

Esta posição, que ainda se mantém, e que actualmente é praticamente uniforme, tem acentuado a imprescindibilidade de um exame crítico das provas produzidas em julgamento, devendo, por isso, serem explicitados todos os elementos que suportam a convicção probatória.

Ora, relendo-se a sentença recorrida, podemos certamente discordar da mesma, fundadamente ou não, mas percebe-se qual foi o raciocínio seguido na motivação da sua convicção probatória e como a mesma se alicerçou para aí chegar, mediante o exame crítico da prova.

Com efeito, a M.ma Juiz a quo escalpelizou as provas e raciocínio seguidos para que concluísse como o fez, quer dando certos factos como assentes, quer outros como não provados. Dessa análise conjugada resulta a essencialidade dos meios de prova coligidos, e o acatamento do que dela resultou prestados os depoimentos da ofendida, proprietária do veículo subtraído, e do agente da autoridade que surpreendeu os arguidos fazendo-se transportar no mesmo, sucedendo ademais que conduzido indocumentadamente pelo ora recorrente.

Neste sentido, não opera então a nulidade invocada.

3.3. O princípio do in dúbio pro reo é um dos princípios estruturantes do processo penal, ao qual a regra da livre apreciação da prova está sujeita.

Na verdade, o citado art.º 32.º da Lei Fundamental inclui entre as garantias do processo criminal, no seu n.º 2, a de que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…).”

O princípio da presunção de inocência, ali consagrado, “integra uma norma directamente vinculante e constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (art.º 18.º, n.º 1 da CRP.)”[7].

 “A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dúbio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção de prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória.”[8]

O princípio in dúbio pro reo é, pois, uma emanação do princípio da presunção de inocência e surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal.

Pressupondo a violação deste princípio um estado de dúvida no espírito do julgador, deve a mesma ser tratada, nesta perspectiva, como erro notório na apreciação da prova.

Assim sendo, para que se possa afirmar a existência de erro notório na apreciação da prova por violação do princípio in dúbio pro reo, terá de resultar de forma evidente do texto da sentença recorrida – por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, ou então dos juízos lógicos que possam ser efectuados sobre a factualidade em apreço, ou a prova documental plena que não haja sido atendida – que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

O que está em causa não é uma qualquer dúvida subjectiva, mas sim uma dúvida razoável e insanável, que seja objectivamente perceptível no contexto da decisão proferida, de modo a que seja racionalmente sindicável.

Ao invés do que clama o recorrente, no texto da sentença não se vislumbra que a M.ma julgadora tenha tido dúvidas (e muito menos dessa natureza) sobre a prova dos factos impugnados pelo recorrente, e que, por via delas, a decisão recorrida contenha qualquer erro notório na apreciação dos factos ou na valoração da prova produzida.

Pelo contrário, a decisão recorrida procedeu à indicação dos meios de prova em que o tribunal baseou a sua convicção, precisando os que lhe mereceram credibilidade em conjugação com as regras da experiência comum, evidenciando, de forma pormenorizada, perfeitamente perceptível e lógica, as razões pelas quais concluiu considerou como provados dos factos que vinham imputados ao recorrente e dos quais se extrai a sua culpa, isto atentando também, vimos já, ao elencado art.º 374.º, n.º 2.

3.4. A verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade processual não é mais, nem pode ser diversa, da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos.

Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos.

Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras de experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais.

Para avaliar da não arbitrariedade (ou impressionismo) e da racionalidade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.

A observação e verificação do homem médio constituem o modelo referencial[9].

Coerente com tal ideia, dispõe o art.º 127.º do Código de Processo Penal que, Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. É pois no equilíbrio destas duas vertentes (as regras da experiência e a livre convicção do julgador) que a prova há-de ser apreciada.

Este princípio da livre apreciação da prova sendo válido em todas as fases processuais, é no julgamento que assume particular relevo. Não que se trate de prova arbitrária, no sentido de o juiz decidir conforme assim o desejar, ultrapassando as provas produzidas. A convicção do juiz não deverá ser puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Mas a decisão do juiz há-de ser sempre uma “convicção pessoal” até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais[10].

Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de se extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal.” E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação da prova é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar.”

O mencionado art.º 127.º indica-nos um limite à discricionaridade do julgador: as regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Assim, a exposição tanto possível completa sobre os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão, não pode colidir com as regras da experiência.

Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

Na mencionada obra, a este propósito refere o Prof. Figueiredo Dias: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento (...). De qualquer modo, desde o momento em que – sobretudo por influxo das ideais da prevenção especial – se reconheceu a primacial importância da consideração da personalidade do arguido no processo penal, não mais se podia duvidar da absoluta prevalência a conferir aos princípios da oralidade e da imediação. Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”[11]

Como transparece da motivação do recorrente, ele ensaia controverter da verificação do elemento objectivo do primeiro ilícito assacado – de furtum rei –, por inexistência/insuficiência de prova para tanto, pois que, continua, única prova emergente dos autos a de que se encontravam os agentes em causa a utilizar o veículo, no intuito de dele se servirem por um curto período de tempo – rectius, incursos num furtum usus –.

Na previsão do art.º 203.º, n.º 1, do Código Penal, pratica aquele primeiro crime Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia.

Discorrendo sobre este último segmento normativo, a jurisprudência, na esteira da doutrina, tem entendido que não basta a posse instantânea para se verificar a consumação do crime de furto – mas já é suficiente a transferência da disponibilidade da coisa do seu titular para o agente, não se exigindo que este último detenha a coisa de forma pacífica ou em tranquilidade ou sossego [nesse sentido, Ac.s do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2007 (Conselheiro Maia Costa), processo 06P4802 e de 16 de Outubro de 2008 (Conselheiro Arménio Sottomayor), processo 08P221; Ac.s da Relação do Porto de 14 de Maio de 2008 (Luís Gominho), processo 0841211 e de 11 de Março de 2009 (Maria do Carmo Silva Dias), processo 691/06.9 GAVNG; e Ac. da Relação de Guimarães de 10 de Outubro de 2004 (Maria Augusta), processo 1279/05-1 – todos disponíveis em www.dgsi.pt].

Na doutrina, ver Professor Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, II, pág. 43 e ss. e Paulo Saragoça da Matta in “Subtracção de coisa móvel alheia – Os efeitos do Admirável Mundo Novo num crime ‘clássico’”, in Liber Discipulorum para J. Figueiredo Dias, p. 1026].

Trata-se, portanto, de uma posição intermédia, entre aqueles que, como Eduardo Correia [BMJ 182.º, pág. 314], consideram necessário a posse pacífica da coisa apropriada para julgar verificado o elemento “subtracção” e os que, por outro lado, defendem que basta a posse instantânea para a consumação do crime. Este critério intermédio proposto pela doutrina e acolhido pela jurisprudência mostra-se apoiado em razões ligados à estrutura finalista (ou finalidade) da acção empreendida, pois se o agente o que visa é fazer entrar no seu domínio de facto as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha, faz sentido considerar consumado o crime apenas quando ele (agente), além da transferência da disponibilidade da coisa por via da subtracção ao domínio de facto do precedente detentor, adquire um mínimo de estabilidade no respectivo domínio do facto (o que não significa que o domínio de facto tenha de se operar em pleno sossego). Por outras palavras: faz sentido reconhecer que o crime de furto só se considera consumado quando o agente tem esse mínimo de possibilidade de disposição da coisa subtraída [“um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa” – nas palavras do Prof. Faria Costa] sem o qual não há sequer espaço para a afirmação de uma eventual desistência da tentativa, para o arrependimento activo ou para a possibilidade de exercício do direito de defesa.

Na verdade, a subtracção implica a eliminação do domínio de facto de uma pessoa e a (ou pela) afirmação de domínio de facto do agente do crime.

Portanto, é condição da consumação do crime a verificação do novo “empossamento” como possibilidade de gozo e fruição das utilidades da coisa por parte do infractor, pelo menos com “tendencial estabilidade” [Jescheck/Weigend, apud Código Penal Anotado e Comentado - Victor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, em anotação ao art.º 203.º]. A mesma ideia surge com grande clareza nas palavras de Paulo Saragoça da Matta quando afirma que: “a subtracção se verifica e o furto se consuma quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infracção com tendencial estabilidade, i.é., não pelo facto de ela ter sido removida do respectivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu titular pretérito” [loc. cit., pág. 654].
Em suma: a subtracção concretiza-se de acordo com uma finalidade fundada na orientação de vontade do agente que visa, essencialmente, entrar no domínio de facto das utilidades da coisa; trata-se de uma “subtracção com intenção de apropriação” [Jescheck/Weigend] o que nos permite afirmar que o crime se consuma quando a coisa sai da esfera de domínio do titular inicial e o agente adquire um mínimo de estabilidade no domínio de facto correspondente ao seu empossamento, uma estabilidade que lhe assegure uma possibilidade plausível, ainda que não absoluta (posse pacífica), de fruição e disposição da coisa subtraída.

Já conforme subsequente art.º 208.º, n.º 1 do diploma substantivo em causa, é punido Quem utilizar automóvel ou outro veículo motorizado, aeronave, barco ou bicicleta, sem autorização de quem de direito.

O traço diferencial, a linha de fronteira essencial entre ambas as aludidas previsões, num furto e noutro, vai buscar a sua raiz ao elemento subjectivo do agente, mais restritivo neste furtum usus do que naquele furtum rei, uma vez que se aqui ao agente preside o intuito de introduzir na sua esfera patrimonial a coisa alheia de que se apoderou, na mira de passar a exercer sobre ela os poderes como se fosse seu dono, pela inversão do título de posse, já no furto de uso o agente não passa de um detentor, de propósito mais limitado, sobre a forma de usar a coisa.

O dolo específico de intenção, presente, e de que se não abdica na subsunção jurídico-penal, em ambos os furtos, é, no furto de uso direccionado ao aspecto particular do gozo inerente àquele uso.

Carlos Codeço, in “o Furto no C. Penal e no Projecto”, Athena Editora, pág. 274, sublinha por isso mesmo esse dolo específico, que assim é configurado, como sendo a pedra de toque para a distinção entre o crime de furto e o crime de furto de uso de veículo – neste sentido, entre outros, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 2003, in www.dgsi.pt.

Entre ambos os furtos há um ponto de coincidência: um acto material de subtracção de uma coisa.

No furtum rei, escreve Frederico da Costa Pinto, in Furto Uso de Veículo, Associação Académica de Lisboa, pág. 87, prepondera um especial elemento subjectivo, a intenção de apropriação; no furto uso vinga, não uma vontade dirigida a tal apropriação, pois o agente representa tão só a utilização ilegítima, abusiva, do veículo, “não com o animus de um proprietário, mas sim com a atitude espiritual de um possuidor precário.”

A detecção desse intuito, questão que se coloca ao julgador, exterioriza-se através de factos-índices que objectiva e inequivocamente são dela revelação.

Assim a utilização tendencialmente momentânea e a restituição quase imediata é considerada por Faria e Costa, in Comentário ao Código Conimbricense, II, 140, elemento implícito do crime de furto de uso; a utilização para além do limite temporal que se pressupõe momentâneo é já demonstração da utilização uti dominus, enquanto que a restituição prevista no art.º 206.º, do Código Penal constitui mero pressuposto de atenuação especial do crime de furtum rei.

A restituição efectiva só caracteriza o furto uso se, ab initio, preencher o propósito do agente de abandonar a coisa, teoriza José António Barreiros, in Crimes Contra o Património, Universidade Lusíada, pág. 60.

Sublinhe-se que o abandono do veículo só por si não é absolutamente conclusivo dessa intenção, escreveu-se no Ac. do STJ, de 27 de Janeiro de 1999, in P.º n.º 1146/98, tudo passando pela demonstração factual do intuito que orientou o agente na deslocação patrimonial que efectivou.

Outro não é o sentido da jurisprudência do mesmo STJ, patente no seu Ac. de 15 de Dezembro de 1995, acessível in www.dgsi.pt, onde se escreveu que estando perfectibilizados os elementos objectivos do crime (subtracção ilegítima de coisa móvel, com intenção de ilegítima apropriação para o agente ou para terceiro), não tendo o agente demonstrado a sua intenção de restituir a coisa após a sua utilização, fica excluída a prática de crime de furto uso.

O comprovado animus de restituição tem sido a tónica dominante encarada para se configurar o furtum usus – cfr., além do citado Ac. de 27 de Janeiro de 1999, o de 23 de Janeiro de 1991, P.º n.º 41300/90.

Em audiência, o recorrente usou do direito ao silêncio, donde que prova sobrante relativamente ao sucedido, além da documental junta aos autos e que a decisão recorrida precisa, aquela que resultou dos depoimentos conjugados da ofendida B...e do elemento da PSP C....

A primeira, discorrendo, começou por afirmar que deu por falta do veículo em causa, no dia 24 de Setembro de 2010, cerca das 17:30 horas, sucedendo que a mesma viatura havia sido deixada estacionada, na véspera, em plena via pública, na Rua dos Santos Mártires, em Aveiro, cerca das 20:30 horas. Instada, esclareceu, que: foi sua mãe quem neste dia 23 deixou o veículo estacionado, como dito, e num local que lhes era habitual; no dia 24, porque tinha um compromisso ao fim da tarde em Santa Maria da Feira, a testemunha aprestava-se para se deslocar nesse mesmo veículo quando verificou que não estava estacionado no dito local; porque tinha premência na deslocação, utilizou um outro veículo, mas durante o percurso até Santa Maria da Feira esclareceu junto de sua mãe se esta ali deixara o veículo (o que ela corroborou), donde a conclusão de que alguém o retirara; mal chegada a Santa Maria da Feira, deslocou-se, por isso, à PSP local, onde fez a participação de tal desaparecimento (facto corroborado através do documento que é fls. 12, o qual consigna ter sido a participação apresentada pelas 17:34 horas do dia 24 de Setembro de 2010 e torna verosímil todo o relatado, pese embora a menção inicial da depoente a que saíra de Aveiro pelas 17:30 horas); mais tarde a testemunha foi telefonicamente contactada pela testemunha C..., dando-lhe conhecimento da recuperação do veículo, donde que o aditamento à primitiva participação, conforme fls. 13, sendo 19:18 horas. O veículo foi recuperado danificado, vandalizado e sem objectos que a testemunha deixara no seu interior.

A testemunha C..., precisou encontrar-se de serviço, conjuntamente com um outro agente, nas imediações do Pingo Doce, na E.N. n.º 109, em Aveiro, quando se apercebeu que o condutor do Fiat em causa, fez, inopinadamente, inversão do sentido de marcha. Perante tal conduta, o depoente suspeitou, o que verbalizou ao seu dito colega, que esse condutor ou seguia indocumentado ou sob efeito de álcool. Acto contínuo, puseram-se no encalço do Fiat que surpreenderam volvido algum tempo. Condutor era o arguido A.... No seu interior, e além do co-arguido D..., seguiam mais dois acompanhantes que a testemunha não identificou no expediente lavrado, pois que foi o próprio A...a afirmar que eles desconheciam e eram alheios a qualquer subtracção sua. O A...seguia sem título bastante à condução. Instado sobre os documentos do veículo e respectiva titularidade, concluíram ser sua proprietária a ofendida, que contactou telefonicamente, e à qual deu conhecimento da recuperação. Perante o agente o recorrente afirmou que tinha apanhado o veículo abandonado junto aos antigos terrenos da Feira de Março, em Aveiro.

Perante tal prova, surpreende-se, como o fez a decisão recorrida, ou não, como almeja o recorrente, o dolo do art.º 203.º, ou o do art.º 208.º, respectivamente?

A resposta mostra-se com o decidido.

Com efeito, não é verosímil a “coincidência” de o veículo ter sido encontrado já abandonado e só então ter sido subtraído pelo recorrente e co-arguido D.... Mas, mesmo concedendo-se tal circunstância, sempre a sua actuação quando confrontado com a presença policial, dia 24, suporta que seu intuito era o de relativamente a esse bem continuar a comportar-se uti dominus e não com mero possuidor precário. Quem subtrai, no caso um veículo, sempre pode invocar que relativamente a ele, até ser surpreendido, ou até por acto próprio se desapossar do bem, sempre será um possuidor precário! E não colhe o argumento de que aquela evasão do recorrente se destinava apenas a ilidir a entidade policial. O momento para fixação da intenção do agente reporta-se, consignámos, ao seu início. Aqui seria o próprio quem deveria ter precisado a razão para o efeito. Assumindo o silêncio, deixou que o apelo se faça às regras comuns da experiência. Estas ensinam que a mera utilização de um veículo subtraído a outrem apenas se justifica acaso ocorra uma particular razão que a fundamente; fora uma tal hipótese, regra é a de que a subtracção opera com um animus dominus, conducente à perfeição do primeiro dos ilícitos em causa.

Nenhuma censura assim a fazer-se ao acervo factual e com ele ao seu posterior enquadramento jurídico operado pela decisão recorrida.


*

IV – Decisão.

São termos pelos quais se nega provimento ao recurso interposto, e, consequentemente, mantemos a decisão sob censura.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UCs.

Notifique.


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Brízida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves


[1] Ater-nos-emos, sempre que possível, apenas á conduta respeitante ao recorrente.
[2] Seu Acórdão n.º 680/98, de 2 de Dezembro.
[3]  Acórdãos n.ºs 320/97; 464/97 e 546/98, de 23 de Setembro; 288/99, de 12 de Maio.
[4] Acórdãos n.ºs 573/98 e 680/98, de 2 de Dezembro, bem como 367/03, de 14 de Julho.
[5] In Colectânea de Jurisprudência (STJ), Tomo I, págs. 36 e segs.
[6] Acórdão do STJ, de 15 de Março de 2000, in Colectânea de Jurisprudência (STJ), Tomo I, pág. 226.

[7] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, t. II, p. 108.
[8] Cfr. Constituição Portuguesa Anotada de Jorge Miranda e Rui Medeiros, t. I, pág. 356.

[9] Cfr. Acórdão do STJ, de 6 de Outubro de 2010, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Henriques Gaspar, no âmbito do recurso n.º 936/08 JAPRT.
[10]  Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, vol. I, ed. 1974, pág. 204.
[11] Págs. 233/234.