Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19/16.0GAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
NULIDADE
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 358, 379, 424, DO C. PP; ART. 32 DA CRP
Sumário: I - A alteração da qualificação jurídica, desde que feita fora da hierarquia do crime base que visa a protecção do mesmo bem jurídico, fazendo a convolação para uma forma menos grave que o crime pode revestir (condenação por crime de furto simples, em vez de crime de fruto qualificado ou condenação por crimes de homicídio simples em vez de crime de homicídio qualificado), deve ser comunicada previamente ao arguido, tanto na 1.ª instância como em sede de tribunal de recurso, por imposição legal do art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP.

II - A defesa do arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis tanto relativamente aos factos a apreciar, como à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar, tem-lhe de ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório.

III - A condenação do arguido por crime de ameaça agravada, o qual vinha acusado por um crime de violência doméstica, do qual foi absolvido, sem que o tribunal a quo tenha comunicado previamente a alteração da qualificação jurídica, nos termos do art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, para aquele se pronunciar sobre o novo enquadramento penal dos factos, tem como consequência a nulidade da sentença, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório
No processo supra identificado o Ministério Público acusou A... , casado, carpinteiro, nascido a 14/07/1957, filho de (...) e de (...) , natural de (...) , Figueira da Foz, residente na Rua (...) , Marinha das Ondas, a quem imputa os factos descritos na acusação de fls. 130/136, integrativos da prática em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2 do Código Penal e de um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal.
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O Guarda da GNR G... manifestou desejo de ser ressarcido pelo dano causado na boina modelo da GNR, cifrando o seu prejuízo em 20€.
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O tribunal decidiu:
a) Absolver o arguido dos crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2 do Código Penal e de resistência e coacção, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do CP.
b) Julgar extinto o procedimento criminal pelo crime de injúria p. e p. pelo art. 181.º, n.º1 do CP.
c) Condenar o arguido A... pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaças agravadas, p. e p. pelos art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º1, al. a) do CP, na pena de 98 dias de multa à razão diária de 6€, perfazendo o total da pena de multa de €588,00 (quinhentos e oitenta e oito euros), operando o desconto de dois dias de detenção nos termos do art. 80.º, n.º2 do CP.
d) Julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado e em consequência absolvo o demandado/arguido A... do pagamento ao demandante Guarda da GNR G... da quantia de 20,00€ (vinte euros).
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Inconformado com a sentença recorreu o arguido, o qual pugna pela sua absolvição, ou a manter-se a condenação, pela redução da pena, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1. A sentença recorrida preconiza uma errada interpretação do direito processual aplicável, nomeadamente, à luz das normas constitucionais pertinentes, bem como uma incorrecta aplicação do direito substantivo aos factos dados como provados.
2.  O arguido nos presentes autos vinha acusado e pronunciado da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do CP e de um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do CP.
3.  Na douta sentença e sem antes ter comunicado tal facto ao Arguido, o Tribunal a quo decidiu operar uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e condenar o Arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaças agravadas, p. e p. nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do CP.
4.  Para proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos, o Tribunal a quo, nos termos da lei processual, estava obrigado a comunicar essa alteração ao Arguido.
5.  Ao não o fazer, violou o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.
6.  O entendimento do Tribunal a quo, para além de ilegal, prejudica gravemente os direitos de defesa do Arguido.
7.  Nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, a condenação por factos diversos da acusação e da pronúncia sem cumprimento do disposto no artigo 358.º do CPP, acarreta a nulidade da sentença, nulidade essa que expressamente se alega para todos os efeitos legais.
8.  Deve a douta sentença ser revogada e substituída por douto acórdão que declare, na parte em que procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos e à condenação do Arguido por crime diverso do que constava da pronúncia, a respectiva nulidade, com as legais consequências.
9.  Atenta a matéria de facto provada, não se encontram preenchidos os elementos constitutivos do tipo de ilícito de ameaça agravada.
10. Não se apurou que a visada tenha ouvido e muito menos que tenha percebido as expressões alegadamente proferidas pelo Arguido.
11. O contexto dos factos, conjugado com as regras da experiência comum, exclui totalmente a adequação da alegada ameaça a provocar medo ou receio na visada.
12.A suposta ameaça carece, em si mesma, de sentido e era, objectivamente, impossível de se realizar.
13.Não estão, manifestamente, reunidos dois dos elementos objectivos do crime de ameaça agravada, pelo que, foi errada a integração dos factos provados no tipo legal em causa.  
14. A douta sentença deve ser revogada e substituída por douto acórdão que absolva o Arguido do crime de ameaça agravada pelo qual foi, erradamente, condenado, com as legais consequências.
15. Ao interpretar o artigo 358.º do CPP no sentido de que a alteração da qualificação jurídica da acusação e/ou da pronúncia para crime diverso não carece de ser comunicada ao Arguido, o Tribunal violou o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, o que expressamente se alega, para todos os efeitos legais.
16. A sentença recorrida viola, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea b), 358.º, n.ºs 1 e 3, 283.º, n.º 3, alínea c), todos os CPP, nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do CP e, ainda, no artigo 32.º, n.º 1, da CRP».
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Cumprido o disposto no do art. 413.º, n.º 1, do CPP respondeu Ex.mo Senhor Procurador Adjunto, sustentando que os factos integradores do crime de ameaça agravado já faziam parte do elenco do crime mais grave de violência doméstica, pelo que não se impunha que o tribunal tivesse de comunicar a alteração jurídica para efeitos do art. 358.º, n.º 3, do CPP, sendo que os factos integram o crime pelo qual foi condenado o arguido. 
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Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os efeitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual emitiu douto parecer no sentido de que a sentença sofre da nulidade prevista no art. 379, n.º1, al. b), do CPP, pelo que deve ser concedido provimento ao recurso, remetendo-se os autos ao tribunal a quo para sanar a nulidade, dando cumprimento ao disposto no art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP.
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Notificado o arguido, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP não respondeu.
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Foi cumprido o art. 418.º, do CPP, e uma vez colhidos os vistos legais, indo os autos à conferência, cumpre decidir.
Vejamos pois a factualidade apurada pelo tribunal e respectiva motivação:
A) Factos provados:
«Da acusação Pública:
1. O arguido A... contraiu matrimónio com B... em 18.09.1976.
2. Desse matrimónio nasceram C... , D... e E... , respectivamente, em 29/04/1981, 19/04/1984 e 26/12/1994.
3. Provado apenas que o casal composto pelo arguido e B... residia na Rua (...) , na localidade de (...) , freguesia de Marinha das Ondas, concelho da Figueira da Foz.
4. No dia 21 de Fevereiro de 2016, pouco antes das 20:00h, a Guarda Nacional Republicana do posto territorial de Paião foi contactada para se deslocar à mencionada residência por ali ocorrer uma situação de violência doméstica.
5. Ali chegados, cerca das 20:00h, os Guardas F... e G... , que compunham a patrulha de ocorrências, a prestarem serviço naquele posto, deparam-se com o arguido e B... no exterior daquela residência.
6. Provado apenas que acto contínuo se tentaram inteirar do sucedido, ficando o militar junto de B... e o militar G... junto do arguido. F...
7. Provado apenas que o arguido em tom alto, agressivo e visivelmente fora de si, dirigiu-se a B... dizendo-lhe “és uma nojenta”, “uma puta”, “eu vou para a prisão mas eu mato-te puta de merda”.
8. Provado apenas que aqueles militares imobilizaram o arguido no solo e algemaram-no, tendo nessa altura o arguido se dirigido àqueles militares dizendo “vocês são uns garotos”.
9. Que o arguido, com a conduta descrita e ao dirigir as palavras também acima narradas para os Guardas F... e G... , agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de os atemorizar, molestar fisicamente e de os constranger a não levarem a cabo a sua detenção, bem sabendo que o seu comportamento e as suas palavras eram adequados a tal e que os mesmos eram militares da Guarda Nacional Republicana e estavam no exercício das suas funções.
10. Provado apenas que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente com o propósito de ofender a honra e o bom nome de B... , sua mulher e mãe de seus filhos e de a fazer temer pela sua vida e integridade física, com prejuízo para a sua liberdade de determinação, o que realizou e conseguiu.
11. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.  
Outros Factos Provados:
12. Em momentos anteriores também se verificaram reciprocidade de agressões físicas e verbais.
13. O arguido não tem antecedentes criminais.
14. O arguido da sua actividade de carpinteiro aufere cerca de 750€ ilíquidos, reside em casa própria do casal.
15. O arguido tem 59 anos e 4 filhos já adultos em comum com B... .
16. Como habilitações literárias tem o 4º ano de escolaridade.
17. É proprietário de um veículo automóvel do ano 2000.
18. A ofendida B... inquirida em sede de inquérito no dia 22-02-2016 (dia a seguir aos factos) declarou não desejar procedimento criminal contra o arguido, e posteriormente em 06-4-2016, veio apresentar também formalmente nos autos a desistência de queixa.
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B) Factos Não Provados:
1. Desde data não concretamente apurada e em horas não concretamente apuradas que o relacionamento entre o arguido e B... se degradou, passando o arguido, na casa onde residiam, a discutir por tudo e por nada, a insultá-la e a desferir-lhe vários golpes com as mãos.
2. Que acto continuo os militares da Guarda Nacional Republicana encaminharam B... para o interior daquela residência.
3. Que as expressões referidas em 7) tivessem sido proferidas no momento em que o Guarda F... encaminhava B... para o interior daquela residência.
4. Que acto contínuo, os militares da GNR tivessem pedido ao arguido que se afastasse, o que ele ignorou e não acatou, persistindo a proferir tais expressões e promessa de morte virado para B... .
5.  Que após o que, para evitar a aproximação do arguido a B... , o militar F... interpôs-se entre eles, tendo o arguido, de imediato, mantendo firme o propósito de se abeirar da vítima, desferido um empurrão no militar F... .
6. Que tivesse sido nessa altura que, o Guarda F... imobilizou o arguido colocando-lhe o braço direito atrás das costas, sendo de imediato ajudado pelo Guarda G... .
7.  Que tivesse sido em acto contínuo, na tentativa de se libertar para se dirigir a B... , que o arguido desferiu vários socos com a mão esquerda na direcção do Guarda F... e do Guarda G... , que interveio para imobilização do arguido, atingindo o braço direito do Guarda F... e a cabeça do Guarda G... , que ficaram com dores.
8. Que na mesma altura se tivesse dirigido àqueles militares dizendo “fiquem descansados que vão-me conhecer”, e que tivesse sido nessa sequência que fosse imobilizado no chão e algemado.
9. Que com um dos golpes desferidos, o arguido partiu as insígnias da boina, que compõe a farda da GNR, que o Guarda G... trazia na cabeça, assim lhes causando estragos avaliados em cerca €20,00 (vinte euros).
10. Que o arguido, com a conduta descrita e ao dirigir as palavras também acima narradas para os Guardas F... e G... , agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de os atemorizar, molestar fisicamente e de os constranger a não levarem a cabo a sua detenção, bem sabendo que o seu comportamento e as suas palavras eram adequados a tal e que os mesmos eram militares da Guarda Nacional Republicana e estavam no exercício das suas funções.
11. Que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente com o propósito reiterado e concretizado de humilhar, B... , sua mulher e mãe de seus filhos e de a molestar psíquica e emocionalmente, submetendo-a a violência física e psíquica, fragilizando-a, tratando-a com crueldade enquanto mulher e esposa, sem qualquer justificação válida para tanto, actuando alheio aos seus deveres, sabendo que estava obrigado a respeitar a ofendida com que é casado, o que realizou e conseguiu.
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Não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos, dos alegados, que importem para a decisão da causa, constituindo tudo o mais alegado pelas partes meros factos conclusivos (de salientar a própria construção do 4º parágrafo da acusação em que emerge uma imputação genérica, vaga e imprecisa) ou irrelevantes, atenta a repartição de ónus probatório, meras repetições dos factos relevantes e matéria de direito».
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II- O Direito
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questões a decidir:
a) Apreciar se existe nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, por ter sido alterada a qualificação jurídica dos factos da acusação, de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do CP, para o crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do CP, sem ter sido dado cumprimento ao art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP
b) Enquadramento jurídico-penal dos factos, apreciando designadamente se estão reunidos os elementos constitutivos do crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do CP.

Apreciando:
O arguido, segundo os crimes imputados na acusação, foi julgado por um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2 do CP e de um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do CP, dos quais foi absolvido.
Com relevância para apreciar a questão suscitada importa fixar que o arguido vinha acusado por um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2 do CP e acabou por ser condenado, por um crime ameaça agravada, p. e p. pelos art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do CP, tendo como vítima a mesma pessoa, sua esposa B... .
Recorreu o arguido com o fundamento de que a incriminação de ameaça agrava não constava na acusação e por isso foi surpreendido com a condenação, sem que se tenha dado cumprimento ao disposto no art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP.
Vejamos pois, se tal omissão no caso concreto consubstancia a nulidade da sentença prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP.
O tribunal deu como provados, que importa considerar, os seguintes factos:
«(…)
4. No dia 21 de Fevereiro de 2016, pouco antes das 20:00h, a Guarda Nacional Republicana do posto territorial de Paião foi contactada para se deslocar à mencionada residência por ali ocorrer uma situação de violência doméstica.
(…)
7. O arguido em tom alto, agressivo e visivelmente fora de si, dirigiu-se a B... dizendo-lhe “és uma nojenta”, “uma puta”, “eu vou para a prisão mas eu mato-te puta de merda”.
(…)
10. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente com o propósito de ofender a honra e o bom nome de B... , sua mulher e mãe de seus filhos e de a fazer temer pela sua vida e integridade física, com prejuízo para a sua liberdade de determinação, o que realizou e conseguiu.
11. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal».  
Tais expressões dirigidas à ofendida, independentemente de objectivamente integrarem o crime de ameaça, pelo qual foi condenado, já constavam do artigo 8.º da acusação.
Nesta conformidade, não há qualquer alteração de factos, mas apenas da sua qualificação jurídica.
Vejamos pois qual a relevância processual, no caso de o arguido vir a ser absolvido do crime de violência doméstica e acabar por ser condenado por um crime de ameaça agravada.
Informa o art. 358.º, n.º 1, do CPP, no que ao caso sub judice diz respeito, que se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Dispõe depois o n.º 3, que o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
  Daqui decorre que à mera alteração da qualificação jurídica, é aplicável o regime da alteração não substancial dos factos.
Sempre que haja alteração da qualificação jurídica dos factos há que dar oportunidade ao arguido para salvaguardar os seus direitos de defesa e lhe ser proporcionado o exercício do direito ao contraditório, conforme impõe o art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP.
Aliás, mesmo depois de encerrada a audiência de julgamento, o tribunal, despois de fixar a matéria de facto provada e ao decidir o consequente enquadramento penal dos factos, se a qualificação jurídica não for conhecida do arguido, deve-lhe dar a oportunidade para se pronunciar, querendo, no prazo de 10 dias, nos termos do art. 424.º, n.º 1 e 3, do CPP.  
Só assim não será, quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, isto é, quando a qualificação jurídica se mantiver dentro do mesmo tipo legal de crime, cuja moldura penal abstracta passa a ser inferior (o exemplo mais comum é a situação em que o arguido vem acusado ou pronunciado por um crime qualificado e vem a ser condenado pelo crime base do tipo um crime simples, como acontece frequentemente nos crimes de furto e homicídio) – Cfr.  Ac. STJ de 30/4/1991, in CJ XVI, T. 2, pág. 17.
E bem se compreende que assim seja, pois o arguido não é surpreendido com a nova qualificação, antes é beneficiado, ao deixar de ser qualificado o crime, sendo certo que não precisava de se preparar nova defesa, uma vez que se omitiram as qualificativas, mantendo-se os elementos integradores essenciais e definidores do crime na sua forma mais simples e dos quais tinha conhecimento.
 Neste sentido escreve o Conselheiro Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 15.ª Ed, pág. 696, nota 3, sustentando não ser necessária a comunicação da alteração da qualificação jurídica, relativamente aos factos que já constavam da acusação, ao arguido é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois que o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar ou tomar a posição que bem entendesse.
Não desconhecemos que não vem sendo entendimento unânime da jurisprudência dos Tribunais de Relação, quando o arguido acusado por crime de violência doméstica, vem a ser condenado por um dos crimes que integram a violência daquele crime, quanto à necessidade de dar ou não cumprimento ao art. 358.º, n. 3, do CPP.
E essa unanimidade também não se verifica dentro da mesma Relação, designadamente o Tribunal da Relação de Coimbra, como podemos constatar, face aos arestos publicados sobre a matéria.
No sentido de que não há necessidade de cumprir aquele preceito, com o entendimento de que o arguido está na disponibilidade de todos os elementos relevantes que levaram á condenação, também se vem pronunciado a jurisprudência, entre eles podemos citar: Ac. do TRP de 12/01/2011 – Proc. 208/07.8TACDR.P1, in www.dgsi.pt/jtrp, em que o arguido, acusado por crime de maus tratos, realizado por meio de condutas que traduzem ofensas à integridade física, foi condenado por um crime de ofensa à integridade física, em consequência de uma daquelas condutas, decidindo que a alteração da qualificação jurídica não tem de ser notificada, ao abrigo do art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, por  a alteração não implicar necessidade de nova defesa.
Neste sentido os  Ac. do TRC de 14/09/2011-Proc.150/10.5GCVIS.C1, in http://www.google.pt; de 11/9/2013 e de 14/5/2014 e Ac. do TRE de 5/3/2013, in www.dgsi.pglisbos.pt.
Seguimos o entendimento de que a alteração da qualificação jurídica, desde que feita fora da hierarquia do crime base que visa a protecção do mesmo bem jurídico, fazendo a convolação para uma forma menos grave que o crime pode revestir (condenação por crime de furto simples, em vez de crime de fruto qualificado ou condenação por crimes de homicídio simples em vez de crime de homicídio qualificado), deve ser comunicada previamente ao arguido, tanto na 1.ª instância como em sede de tribunal de recurso, por imposição legal dos art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP.
E parece que assim deve ser, pois, por exemplo, o arguido que vem acusado por um crime de homicídio qualificado, por motivo fútil, vindo-se a provar, que o arguido agiu por forte provocação da vítima, dúvidas não restam que deve ser condenado por homicídio simples, sem necessidade de dar cumprimento àquele preceito legal, pois não precisa de se defender de nada que não conste do libelo acusatório.
Aliás diferente situação ocorre quando se faz a convolação para crime de natureza diferente, como acime referimos, sem que a acusação lhe faça qualquer referência, o que seria de admitir, no caso dos autos, ainda que se imputasse ao arguido o crime de violência doméstica, em consumpção com um crime de ameaça agravada.
Não é manifestamente o caso.
Nenhuma referência é feita ao crime de coacção ou outros crimes, em que se traduzia a violência exercida sobre a vítima, em consumpção com o crime de violência doméstica.
E por isso o tribunal não tem a liberdade de qualificar o crime sem previamente fazer a comunicação ao arguido para o prevenir dessa qualificação, da qual pode discordar, como aqui acontece, que questiona o enquadramento legal feito, como consta da motivação de recurso e serve de fundamento das questões a apreciar em sede de recurso.  
A defesa do arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis tanto relativamente aos factos a apreciar, como à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar, tem-lhe de ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório.
As garantias do processo criminal, constitucionalmente asseguradas, devem ter efectivação concreta, consagrando-se no art. 32.º, da CRP o seguinte:
«1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
(…)
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
(…)».
 Aliás, para além do art. 358.º, n.º 1 e 3, também o art. 424.º, n.º 3, do CPP, retira a liberdade ao tribunal a quo de qualificar juridicamente os factos dados como provados de forma diferente da acusação ou da pronúncia, sem previamente dar conhecimento ao arguido, quando,  depois da audiência de julgamento, e já em exame dos autos para decidir, quanto ao enquadramento legal dos factos, estipula o seguinte:
«Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias»
Esta posição que aqui perfilhamos parece-nos ser a que inequivocamente assegura o pleno exercício do direito de defesa do arguido em toda a sua extensão, relativamente à sentença condenatória, de modo a proporcionar-lhe que se pronuncie sobre a nova qualificação que não tinha sido ponderada.
Este foi o sentido do Ac. do TRP de 18/05/2011 – Proc. 143/10.2GBSTS.P1, in www.dgsi.pt/jtrp, que em caso idêntico ao dos presentes autos, decidiu no sentido de a alteração da qualificação jurídica resultante do facto da sentença ter convolado a acusação do crime de violência doméstica, para o crime de ofensa à integridade física e um crime de ameaça agravada, tem de ser previamente comunicada ao arguido, nos termos do art. 358.º, n.º 1 e 3, sob pena de nulidade da sentença, prevista nos art. 379.º, al. b), ambos do CPP.
No mesmo sentido Ac. do TRL de 2/06/2009 – Proc. 85/08.1PEPDL-A.L1-5.ª Secção, in www.pgdlisboa.pt/jurel; Ac. do TRE de 19/02/2013 – Proc. 1027/11.2PCSTB.E1, in http://bdjur.almedina.net/juris.
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, 4.ª Ed., Vol. I, pág. 523, o princípio do contraditório relativamente aos destinatários traduz-se no seguinte: “a) dever e direito de o juiz ouvir as razões efectivas das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectadados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; d) proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respectivos fundamentos”.
Só quando as garantias de defesa do arguido o exijam é que o tribunal é obrigado a comunicar a alteração da qualificação jurídica e conceder ao arguido prazo para preparar a sua defesa.
É neste sentido a anotação do Conselheiro Oliveira Mendes, ao art. 358.º, in Código de Processo Penal, Comentado, Ed. Almedina, 2014, pág. 1128:
“Por isso se considera que a alteração resultante de um crime simples ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou “menos agravado”, ou seja defendeu-se em relação a todos os elementos de facto normativos pelos quais vai ser julgado”. 
Face ao exposto, sempre que venha a ocorrer alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, sem que seja dentro do mesmo tipo de crime para uma moldura penal hierarquicamente inferior, visando a protecção do mesmo bem jurídico e fora da situação prevista no n.º 2, do art. 358.º, do CPP, terá que haver necessariamente lugar a comunicação da alteração, de acordo com o disposto no art. 358.º, n.º 3, do CPP.
Fora destas situações referidas ou da excepção prevista no n.º 2, do art. 358.º, do CPP, isto é, cuja alteração resulte da defesa do arguido, o tribunal deve dar cumprimento ao n.º 3, do mesmo artigo.
E a razão desta exigência é que só assim se evitará uma decisão surpresa e se proporcionará cabalmente o direito de defesa do arguido, perante a nova perspectiva de resposta punitiva, face aos factos de que tem conhecimento e que até pode aceitar, exercendo o contraditório, constitucionalmente reconhecido pelo art. 32.º, n.º 1 e 5, do CPP apenas ao nível do direito.
Em conclusão: a condenação do arguido por crime de ameaça agravada, o qual vinha acusado por um crime de violência doméstica, do qual foi absolvido, sem que o tribunal a quo tenha comunicado previamente a alteração da qualificação jurídica, nos termos do art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, para aquele se pronunciar sobre o novo enquadramento penal dos factos, tem como consequência a nulidade da sentença, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal.
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III- Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A... , e, em consequência, se revoga a sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, depois de ser dado cumprimento ao estatuído no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, venha a decidir em conformidade.
Sem custas.
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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

Coimbra, 22 de Fevereiro de 2017
(Inácio Monteiro - Relator)
(Alice Santos - Adjunta)