Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
203/14.0T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
DESTITUIÇÃO DE TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS
SUSPENSÃO DA GERÊNCIA
PRINCÌPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO FORMAL
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 547, 549, 986, 1055 CPC
Sumário: 1. No processo de jurisdição voluntária previsto no art.º 1055º, do CPC, dirigido à suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais, o Tribunal não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável, não está sujeito a critérios de legalidade estrita.

2. O Tribunal tem o poder-dever de investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 986º, n.º 2, do CPC) - o material de facto, sobre o qual há-de assentar a resolução, é não só o que os interessados ofereçam, senão também o que o juiz conseguir trazer para o processo pela sua própria actividade.

3. Em vez de se orientar por qualquer conceito abstracto de justiça, o Tribunal deve olhar o caso concreto e procurar a solução que melhor serve os interesses em causa, que dá a esses interesses a resposta mais conveniente e oportuna.

4. Qualquer processo de jurisdição voluntária, como processo especial, regula-se pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns, e, subsidiariamente, pelas normas do processo comum (art.º 549º, n.º 1, do CPC).

5. Evidenciadas nos autos dificuldades e/ou incongruências também decorrentes da tramitação simultânea e paralela do procedimento cautelar de suspensão e da acção principal de destituição (art.º 1055º, do CPC), designadamente, na sequência da citação do requerido, mas sendo claro o diferendo dos sócios, na prossecução da finalidade da acção e visando a gestão mais sensata ou conveniente da situação de facto, poderá impor-se especial razoabilidade e bom senso na actuação do princípio do contraditório associado ao princípio da adequação formal (art.ºs 547º e 987º, do CPC).

Decisão Texto Integral:            

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        

            I. M (…) instaurou a presente acção de destituição de titular de órgão social, onde enxertou procedimento cautelar de suspensão de gerente, contra D (…) Lda. (1ª Ré) e Z (…) (2ª Ré), pedindo a suspensão imediata da 2ª Ré do cargo de gerente da 1ª Ré, sem audiência prévia [a)], e, posteriormente, a destituição da 2ª Ré do cargo de gerente da 1ª Ré [b)] e, ainda, a nomeação da A., gerente da 1ª Ré, como representante especial, para assim poder continuar o objecto social da dita sociedade e poder representá-la em todos os actos necessários à prossecução dos seus fins [c)].

            Dispensada a audiência das requeridas e produzida a prova indiciária, por decisão de 27.11.2014, o Tribunal a quo decretou a suspensão da 2ª Ré do exercício das funções de gerente na 1ª Ré[1], e determinou a sua notificação “nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 366º, n.º 6 e 372º do CPC”, bem como a citação das requeridas para, “em 10 dias, querendo, deduzirem oposição ao pedido de destituição de gerente, oferecerem rol de testemunhas e requererem outros meios de prova, sob pena de se terem por confessados os factos alegados pela requerente – artigos 1055º, n.º 3; 986º, n.º 1 e 293º, todos do CPC”, e, por último, a notificação da sócia C (…), “nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1055º, n.º 3, do CPC, a fim de, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias”.

            As demandadas sociedade e Z (…) deduziram oposição à aludida suspensão impugnando a generalidade dos factos da P. I. sem suporte documental e indicando os respectivos meios de prova (documental e pessoal); pediram a revogação do decidido, concluindo que o procedimento devia ser julgado improcedente, por falta do requisito do justo receio de perda de garantia patrimonial e por falta da violação dos deveres de gerente (fls. 97).  

            A sócia C (…) veio “(…) nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 1055º do Código de Processo Civil, comunicar aos autos (…), que concorda na íntegra com os factos e o pedido indicados na Oposição apresentada pelas Requeridas, por corresponderem à verdade” (fls. 135).

            Foi depois proferido o seguinte despacho (a 02.01.2015): “Antes de mais, por reporte ao regime jurídico-processual explanado na decisão proferida nos autos e, bem assim, no teor da própria notificação/citação da requerida opoente, proceda-se à sua notificação para esclarecer se [a] oposição que deduziu ao procedimento cautelar é extensível ao próprio pedido de destituição de gerente (principal) e/ou esclarecer o que tiver por conveniente”.

            Após, por requerimento de 22.01.2015, as “Requeridas” sociedade e Z (…)vieram dizer que ”foram citados para deduzir oposição no prazo de 10 dias ao procedimento cautelar, e foi esta a oposição apresentada que não é extensível ao pedido principal. E que pretendem contestar o pedido principal quando para tal forem notificados. Espera de V. Ex.ª Deferimento”.

            A A./requerente opôs-se, afirmando, designadamente, que a Ré Z (…)deixou de ser a gerente aquando da mencionada oposição e que, atendendo à forma como foi citada, deduzida a oposição, não há mais prazos para contestar o que quer que seja.

            Por decisão de 11.02.2015, a Mm.ª Juíza a quo, louvando-se na “falta de oposição ao pedido principal”, na “operância da revelia” e na “prevalência do conhecimento definitivo do mérito da causa sob a tutela cautelar” (sic), conheceu imediatamente do pedido principal, que julgou procedente, determinando a destituição da requerida Z (…) do exercício das funções de gerente na sociedade D (…) Lda., e, em face da referida decisão definitiva, considerou “prejudicada” a apreciação da oposição de fls. 97.

Inconformada, a Ré Zaida Maria interpôs a presente apelação formulando as (…)

A A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar, principalmente, se - atenta a natureza e a finalidade do processo e a actuação das requeridas e da sócia C (…), e dadas as conhecidas vicissitudes processuais e a forma como se procedeu à “citação” - será de acolher a perspectiva da recorrente no sentido de vir a ser produzida a prova indicada na sua “oposição” confrontando-a com a oferecida pela parte contrária, e o mais que o tribunal decida recolher, conhecendo-se, assim, da oposição deduzida à decretada suspensão, e se, também, e necessariamente, se deverá providenciar pelo conhecimento do objecto da acção principal; ou, ao invés, se não resta alternativa à solução encontrada pela Mm.ª Juíza a quo.

*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva a tramitação descrita no precedente relatório e, além da materialidade aí referida, o seguinte quadro fáctico:

            a) A A. é sócia da sociedade por quotas “D (…), Lda.” (1ª Ré).

            b) Dessa sociedade são ainda sócias duas irmãs da A.: Z (…) (2ª Ré) e C (…).

            c) Cada uma tem na sociedade uma quota igual de € 1 667, sendo o capital social de € 5 001.

            d) Tanto a A. como a Ré Z (…) são gerentes da sociedade D (…)

            e) Para obrigar a sociedade, bem como para convocar a Assembleia Geral, basta a assinatura de apenas uma gerente.

            f) No dia 10.11.2014, a A. recebeu uma carta da 2ª Ré, datada de 05.11.2014, a convocar a Assembleia Geral Extraordinária, com a seguinte ordem de trabalhos:

            - “dissolução e liquidação da sociedade”.

            g) Foi afixado na porta do estabelecimento da 1ª Ré um papel onde se informaram os clientes que a padaria-pastelaria encerrava desde o dia 15.11.2014 até 26.12.2014.

            h) Está pendente em Tribunal uma acção contra a 1ª Ré e outra, pedindo a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda realizado pela 2ª Ré, em nome da sociedade.

            i) No dia 21.8.2014, na Loja do Cidadão de Faro – Balcão dos Registos – a 1ª Ré declarou vender à “3 (…), Lda”, e esta declarou comprar, a fracção autónoma identificada pelas letras AA, sita na (...) , concelho de Loulé, correspondente ao Bloco 2 – Piso 1, para comércio, indústria ou serviços, inscrita na matriz sob o n.º 9747 da freguesia de Almancil e registada na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º 6707, pelo preço declarado de € 300 000 (trezentos mil euros).

            j) O objecto do negócio era o único imóvel que a 1ª Ré possuía.

            k) O imóvel era – e é – o local de funcionamento da padaria-pastelaria da 1ª Ré, seu único estabelecimento.

            l) A A. impugna os documentos que serviram de suporte à realização da mencionada compra e venda, nomeadamente, a respectiva acta da assembleia geral da 1ª Ré.

            m) Encontra-se a correr os seus termos perante o Tribunal da Comarca de Castelo Branco – Instância Central Cível – uma acção declarativa de condenação proposta pela aqui A. contra a aqui 1ª Ré e a “(…)”, pedindo, sumariamente:

            - a declaração de inexistência da convocatória da Assembleia Geral do dia 31.3.2014 e da própria Assembleia Geral;

            - a declaração de falsidade da acta n.º 20;

            - a declaração de inexistência de qualquer deliberação que a acta n.º 20 contenha;

            - a declaração de inexistência de poderes para a sócia Z (…) vender qualquer imóvel;

            - a declaração de nulidade da venda do imóvel em causa;

            - ser ordenado à Conservatória do Registo Predial de Loulé o cancelamento do registo de aquisição do referido imóvel pela “(…)”.

            - regressar à esfera jurídica da aqui 1ª Ré o imóvel vendido à “3 (…)S”.[2]

            n) Na citação da 1ª Ré, por carta registada com A/R, realizada nos presentes autos, fez-se constar: “(…) Fica V.ª Ex.ª citada para, no prazo de 10 dias, querendo, deduzir oposição ao pedido de destituição de gerente, oferecer rol de testemunhas e requerer outros meios de prova, sob pena de se terem por confessados os factos alegados pela requerente - artigos 1055º, n.º 3, 986º, n.º 1 e 293º, todos do CPC. A citação considera-se efectuada no dia da assinatura do AR. O prazo acima indicado é contínuo suspende-se, no entanto, durante as férias judiciais. Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte. Fica advertida de que é obrigatória a constituição de mandatário judicial. Juntam-se, para o efeito, um duplicado da petição inicial e as cópias dos documentos que se encontram nos autos, bem como da decisão proferida. Anexa-se legislação”.

            Mencionou-se o texto dos art.ºs 293º, 366º, 372º, 986º e 1055º, do CPC.

            o) Na citação da 2ª Ré, por carta registada com A/R, fez-se constar: “(…)            Nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 366º, n.º 6 e 372º do CPC, fica V.ª Ex.ª notificada da decisão proferida nos autos acima identificados, cuja cópia se junta.

            Fica ainda V.ª Ex.ª citada para, no prazo de 10 dias, querendo, deduzir oposição ao pedido de destituição de gerente, oferecer rol de testemunhas e requerer outros meios de prova, sob pena de se terem por confessados os factos alegados pela requerente - artigos 1055º, n.º 3, 986º, n.º 1 e 293º, todos do CPC (…)”

            Seguiu-se o texto dos art.ºs 293º, 366º, 372º, 986º e 1055º, do CPC.

            p) Na notificação da sócia C (…) fez-se constar: “(…) Fica deste modo V. Ex.ª notificada, na qualidade de sócia da requerida D (…), Lda., relativamente ao processo supra identificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1055º, n.º 3 (parte final) do CPC, a fim de, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.

            Juntam-se, para o efeito, um duplicado da petição inicial e as cópias dos documentos que se encontram nos autos, bem como da decisão proferida.

            Anexa-se legislação (…)”.

            Seguiu-se o texto do art.º 1055º, do CPC.

            2. Expendeu-se na decisão recorrida, sob o enquadramento “questão prévia respeitante à articulação do procedimento cautelar de suspensão de gerente enxertada na lide principal de destituição de gerente”, nomeadamente:

            - “(…) o procedimento cautelar de suspensão segue uma determinada tramitação e a acção de destituição segue outra. O primeiro é decidido imediatamente, sem audição do requerido [sem observância do contraditório (pese embora nesta parte julguemos que tal deverá ser aferido caso a caso)], depois de realizadas as diligências que forem consideradas necessárias – n.º 2 do art.º 1055º. Na segunda, o requerido tem de ser citado para, querendo, contestar a acção, seguindo-se a fase da produção da prova [que inclui a audição dos restantes sócios ou dos administradores da sociedade] e só depois é proferida decisão final a deferir ou indeferir o pedido de destituição do gerente – n.º 3 do mesmo normativo”.

            - “Por termos considerado que as requeridas poderiam ter incorrido em aparente lapso material ao referir-se apenas ao procedimento cautelar na sua oposição, por despacho de fls. 140, e por reporte ao regime jurídico-processual supra explanado (e que já constava dos autos) e, bem assim, do teor da própria notificação/citação efectuada, procedeu-se à notificação das requeridas a fim de esclarecerem se a oposição deduzida ao procedimento cautelar era extensível ao próprio pedido de destituição de gerente (principal) e/ou esclarecerem o que tivessem por conveniente.

            Nesta sequência, vieram as requeridas, a fls. 143 e ss., esclarecer que foram ´citadas para deduzir oposição no prazo de 10 dias ao procedimento cautelar, e foi esta a oposição apresentada que não é extensível ao pedido principal. E que pretendem contestar o pedido principal quando para tal forem notificados`”.

            - “ (…) as requeridas não só foram citadas para contestar aquela pretensão principal como foram expressamente advertidas das consequências da falta de contestação – sob pena de se terem por confessados os factos alegados pela requerente.

            Não obstante esta advertência, as requeridas não só não deduziram oposição como, depois de convidadas a esclarecer o alcance da sua oposição, vieram dizer que a oposição em causa não era extensível ao pedido principal.

            Em face do exposto, não resta ao Tribunal outra alternativa que não extrair as necessárias consequências jurídico-processuais da aludida falta de oposição ao pedido principal e que são, como logo referimos na decisão proferida a fls. 74 e ss. (e consta expressamente da citação levada a cabo), a confissão dos factos alegados pela requerente, tudo em conformidade com o regime decorrente da conjugação dos artigos 1055º, n.º 3; 986º, n.º 1; 293º; 567º nº 1, aplicável ex vi art.º 549º, n.º 1, todos do CPC”.

            - “Em face do exposto, por respeito aos princípios da eficácia, celeridade e boa gestão processual, a que acresce a prevalência do conhecimento definitivo do mérito da causa sob a tutela cautelar, o tribunal, contrariamente ao que é habitual neste tipo de processos, passará a conhecer imediatamente do pedido principal”.

            3. E referiu-se, depois, ao conhecer do pedido de destituição:

            “(…) Citadas, as requeridas não deduziram oposição.

            Notificada a sócia C (…), nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1055º, n.º 3 do CPC, a fim de, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias, a mesma nada disse relativamente à matéria deste pedido de destituição.”

            4. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Preceitua o art.º 1055º do Código de Processo Civil (CPC)[3] (sob a epígrafe “Suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais”): O interessado que pretenda a destituição judicial de titulares de órgãos sociais, ou de representantes comuns de contitulares de participação social, nos casos em que a lei o admite, indica no requerimento os factos que justificam o pedido (n.º 1). Se for requerida a suspensão do cargo, o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão, após realização das diligências necessárias (n.º 2). O requerido é citado para contestar, devendo o juiz ouvir, sempre que possível, os restantes sócios ou os administradores da sociedade (n.º 3).

            Nos termos do art.º 986º são aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária, entre outras regras gerais, as disposições dos art.ºs 292º a 295º (n.º 1); o tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admitidas as provas que o juiz considere necessárias (n.º 2).

            E reza o art.º 293º que no requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova (n.º 1); a oposição é deduzida no prazo de 10 dias (n.º 2); a falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere (n.º 3).

            A respeito do contraditório do requerido, no procedimento cautelar comum, estabelece o n.º 6 do art.º 366º que quando o requerido não for ouvido e a providência vier a ser decretada, só após a sua realização é notificado da decisão que a ordenou, aplicando-se à notificação o preceituado quanto à citação, sendo que quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no n.º 6 do artigo 366º: a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida; b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 367º e 368º (art.º 372º, n.º 1).

            5. O presente processo é de jurisdição voluntária tendo por objecto o exercício de direitos sociais, mais propriamente, a suspensão e/ou destituição de titulares de órgãos sociais.

            Além das disposições gerais enunciadas no ponto anterior, importa considerar, nas providências a tomar, que o tribunal não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente/não está sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo a liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa (mais conveniente e oportuna), a que melhor serve os interesses em causa; salvaguardados os efeitos já produzidos, será sempre possível a alteração de tais resoluções com fundamento em circunstâncias supervenientes[4] (cf. art.ºs 987º e 988º, n.º 1).

            Com efeito, nos processos de jurisdição voluntária o princípio do inquisitório é assumido em toda a sua plenitude, sobrelevando ao princípio do dispositivo, porquanto no n.º 2 do art.º 986º, inserido nas disposições gerais, concede-se ao tribunal o poder-dever de investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes. [5]

            Quer isto dizer que na jurisdição voluntária o princípio da actividade inquisitória do juiz prevalece sobre o princípio da actividade dispositiva das partes.
Ao passo que na jurisdição contenciosa o juiz só pode, em regra, servir-se dos factos fornecidos pelas partes, na jurisdição voluntária pode utilizar factos que ele próprio capte e descubra.
O material de facto, sobre o qual há-de assentar a resolução, é não só o que os interessados ofereçam, senão também o que o juiz conseguir trazer para o processo pela sua própria actividade. E se, na colheita dos factos, o juiz dispõe de largo poder de iniciativa, o mesmo sucede quanto aos meios de prova e de informação.

            Claro que, mesmo na jurisdição contenciosa, o juiz pode exercer larga actividade oficiosa (art.º 5º); porém, na jurisdição contenciosa os poderes oficiosos do juiz em matéria de instrução do processo tem carácter subsidiário, em confronto com os poderes das partes, ao passo que na jurisdição voluntária não se verifica tal subordinação. E ao estabelecer que nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art.º 987º), a lei quer significar que o julgador, em vez de se orientar por qualquer conceito abstracto de justiça, deve olhar o caso concreto e procurar a solução que melhor serve os interesses em causa, que dá a esses interesses a resposta mais conveniente e oportuna.[6]

              6. Vistos os processos de jurisdição voluntária previstos da Lei Processual Civil, verificamos que, nalguns, a falta de contestação não tem efeito cominatório, pelo que, haja ou não contestação, o juiz decidirá depois de proceder às diligências necessárias (cf., v. g., os art.ºs 990º, n.º 3; 1000º, n.º 4; 1004º, n.º 3; 1008º; 1014º, n.º 3; 1015º, n.º 4; 1021º, n.º 3 e 1042º, n.º 2); noutros, tal efeito ou as consequências derivadas do silêncio dos requeridos estão claramente previstos da lei (cf., v. g., os art.ºs 993º, n.º 5; 1003º, n.º 3; 1027º, n.º 2; 1061º, n.º 2 e 1070º, n.º 2); finalmente, para os casos sem disposição expressa/específica, importará actuar, em primeira linha, as regras consagradas nas disposições gerais dos art.ºs 986º, n.ºs 2 e 987º, sendo que qualquer processo de jurisdição voluntária, como processo especial, regula-se pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns, e, subsidiariamente, pelas normas do processo comum (art.º 549º, n.º 1).

            Estando-se no domínio da jurisdição voluntária, sem prejuízo do regime tipificado, nunca se poderá olvidar, por um lado, a finalidade prosseguida em cada situação legalmente prevista e, por outro lado, as posições das partes manifestadas nos autos quanto à factualidade em causa e o mais que seja possível alcançar dos elementos probatórios já conhecidos ou que seja possível obter.

            7. No caso em análise, compulsados os autos, pese embora a maior ou menor adequação da actuação do tribunal, das requeridas e da sócia C (…) ao formalismo legalmente previsto, mormente no tocante à citação e à oposição/contestação, é inequívoco que a requerida/recorrente não deixou de tomar posição definida perante os factos articulados na petição inicial, em sentido diametralmente contrário ao arrazoado e à pretensão da requerente/recorrida (cf., nomeadamente, os art.ºs 2º a 4º, 123º e 124º da “oposição” de fls. 97); a própria sócia C (…), ouvida, apenas, quanto ao pedido de destituição, também se mostrou contrária ao alegado e ao peticionado pela requerente/recorrida, aderindo à posição manifestada na “oposição” de fls. 97...

            Ora, face ao descrito circunstancialismo, considerados os interesses em jogo nos processos de jurisdição voluntária e sendo inequívoco que o tribunal a quo apenas levou em atenção a posição da requerente e já dispunha de elementos suficientes que apontavam para uma posição contrária das restantes sócias da 1ª Ré - o que, porventura, atento o alegado e a prova que lhe foi associada, já permitiria circunstanciar a situação e o interesse das partes -, afigura-se, salvo o devido respeito por entendimento contrário, que a Mm.ª Juíza a quo deveria dirigir a sua actuação não apenas no sentido da (eventual) afirmação das consequências decorrentes da forma como foi determinada e efectuada a citação para os termos da acção principal de destituição mas também, e sobretudo, procurando saber qual a real posição das restantes sócias da 1ª Ré, já suficientemente evidenciada nos autos, e partir, depois, para a busca da melhor solução de um litígio que, antolhando-se adequadamente configurado, demanda, obviamente, uma resposta que atenda a todos os interesses em presença.

            8. Num processo em que predominam os princípios do “inquisitório” e da “conveniência[7], cabia, assim, à Mm.ª Juíza a quo realizar as diligências necessárias à clarificação da posição processual da 2ª Ré, na parte em que pudesse comportar alguma dúvida e/ou incongruência, e, num segundo momento, providenciar por uma razoável e adequada análise dos meios de prova à disposição do tribunal, proferindo, quer no tocante ao procedimento cautelar de suspensão (cujo decretamento perdurará até que, em fase posterior, se averigúe com mais exigência a prova a produzir com vista à decisão do pedido principal de destituição[8]), quer, ulteriormente, quanto ao pedido de destituição, decisão/decisões consequente(s) à apreciação da globalidade das provas, sendo que, no tocante ao segundo pedido, a própria audição dos restantes sócios (ou dos administradores da sociedade) já integra a fase da produção da prova[9].

            9. Ademais, decretada a suspensão, é então que o “processo” segue para julgamento do respectivo objecto (ou seja, do pedido de destituição) com a análise de toda a prova, devidamente contraditada; com o trânsito em julgado da sentença da acção principal desaparece a suspensão, evidentemente provisória e dependente da solução dada ao pedido de destituição; e o que se prevê no âmbito do processo especial do art.º 1055º é que o contraditório sobre o pedido de suspensão seja diferido para momento posterior à sua decisão, de forma a garantir-se a eficácia da sentença que vier a julgar a destituição, tal como sucede quanto às providências cautelares previstas nos artigos 362º e seguintes.[10]

            10. Independentemente de qual seja a melhor interpretação adjectiva do art.º 1055º (e art.º 257º, n.º 4, do Código das Sociedades Comerciais) - quer se considere que estamos perante um processo principal e definitivo de destituição, que pode ter (como é o caso dos autos), enxertado no processo principal, uma providência cautelar inominada de suspensão[11], cujas decisões (de suspensão e de destituição) são autónomas entre si, porquanto cada uma das decisões põe termo a procedimentos funcionalmente autónomos e independentes, com a diferença/especialidade de a decisão cautelar ser tomada num incidente tramitado/enxertado na acção principal[12], quer se entenda, numa visão mais expressiva, que aquele art.º prevê uma espécie de «dois em um», pois, sob a aparência de uma única acção, prevê efectivamente dois pedidos e dois processos distintos (o de suspensão do cargo de gerente, que é um procedimento cautelar, com semelhanças evidentes com o procedimento cautelar comum previsto nos art.ºs 362º a 376º; e o de destituição da gerência, que é uma acção declarativa com as especificidades características dos processos de jurisdição voluntária) [tanto se pode pedir só a destituição do gerente, como, simultaneamente, esta destituição e a sua imediata suspensão das respectivas funções][13], ou se perfilhe que a suspensão é um dos pedidos da acção única ou procedimento cautelar não especificado a processar separadamente e se justifique a sua existência afirmando que “o legislador reparou em que o sistema por ele criado tinha um grave inconveniente: a manutenção do gerente, apesar da justa causa, até ao trânsito em julgado da sentença que o destitua e que produz efeito ex nunc”[14] -, sempre se dirá que a tramitação paralela e simultânea do dito procedimento cautelar e da acção especial principal (de jurisdição voluntária) poderá trazer dificuldades derivadas da tramitação do incidente/procedimento se poder “confundir” e “englobar” no processo da causa principal[15] (o que não sucederia se tivesse processo próprio e distinto do processo da causa principal, como no caso de ser autuado por apenso)[16], dificuldades também porventura traduzidas/plasmadas em determinados actos processuais praticados no âmbito das citações/notificações, e, subsequentemente, pelas partes, o que, naturalmente, não poderá deixar de ser levado em conta pelo tribunal, tanto mais por estarmos no domínio da jurisdição voluntária.  

            11. Neste contexto, e tendo em atenção a desde há muito afirmada garantia de prevalência do fundo sobre a forma - através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio da cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão -[17], e, in casu, a prevalência da equidade sobre a legalidade estrita e a necessidade de uma gestão mais sensata ou conveniente da situação de facto[18], afigura-se, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento diverso e cientes de que o caso em análise não é isento de dificuldades, que, como tudo surge configurado, o dissídio que envolve as três sócias da 1ª Ré e os interesses em presença exigem mais que uma ponderação meramente formal dos termos em que se procedeu à citação da 2ª Ré para a acção principal [citação porventura correcta à luz do preceituado no art.º 227º e não relevando o eventual não envio da cópia da “acta n.º 21”, sobejamente conhecida…/cf., designadamente, os documentos de fls. 68, 118 e 119] ou a simples invocação do regime decorrente dos art.ºs 549º, n.º 1 e 567º, n.º 1, antes reclama, na prossecução da finalidade da acção, que, com razoabilidade e especial bom senso, se actue o princípio do contraditório por forma a extrair todas as consequências dos elementos de facto e probatórios ao alcance do Tribunal [desde logo, os já indicados nos autos] e, simultaneamente - quiçá, com redobrado cuidado e empenho -, se actue o princípio da adequação formal visando assegurar um processo em que, através da prática dos actos que melhor se adeqúem ao apuramento da verdade e acerto da decisão[19], possam estar criadas as condições para que predomine a equidade (art.ºs 547º e 987º).

            12. Assim e, reafirma-se, atendendo, por um lado, às vicissitudes da presente acção (e sua configuração), por outro lado, às assinaladas dificuldades na conformação e actuação (prática) dos interesses em discussão, e, por fim, ao objectivo primordial de alcançar a solução mais equitativa e que melhor defenda os interesses das partes - para o que será indispensável obter um conhecimento real e actual da situação -, cremos que a resposta a dar a tais dificuldades e exigências envolverá, necessariamente, o reequacionar das matérias que, segundo o recorte normativo atrás indicado, subsistem após a decretada suspensão do exercício de cargo social.

            13. Nesta  conformidade, importa revogar a sentença de fls. 148, devendo o Tribunal recorrido conhecer da oposição ao procedimento cautelar e providenciar pela dilucidação do objecto da acção principal.

            14. Ficam desta forma atendidas as “conclusões” da alegação de recurso.

*

            III. Face ao exposto, julga-se procedente a apelação e revoga-se a sentença recorrida, devendo retomar-se a tramitação como se indica em II. 8., 9. e 11. a 13., supra.

            Custas da apelação segundo o decaimento a final.

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16.6.2015

Fonte Ramos ( Relator)

Mari João Areias

Fernando Monteiro

[1] Tendo-se explicitado quando ao peticionado em “[c)]”: “Por fim, importa apenas referir que sendo a ora requerente já sócia gerente da sociedade, resulta prejudicada a sua nomeação nessa qualidade ou como representante especial, para assim poder continuar o objecto social da Requerida sociedade e, bem assim, poder representá-la em todos os actos necessários à prossecução dos seus fins, pois que tal resulta já concretizado da simples suspensão do cargo da requerida”.

[2] Os factos das alíneas a) a m), considerados na matéria dada como provada em 1ª instância, foram alegados na petição inicial e admitidos na “oposição” de fls. 97 (art.º 3º).
[3] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[4] Isto é, no dizer da lei, tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (art.º 988º, n.º 1, 2ª parte, do CPC).
[5] Cf. o acórdão da RL de 24.6.2010-processo 461/09.2TBAMD.L1-6, publicado no “site” da dgsi.
[6] Vide Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra, 1982, págs. 399 a 401 e Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 65 e seguintes.
[7] Cf. o acórdão da RP de 28.5.2009-processo 781/06.8TYVNG.P1, publicado no “site” da dgsi.
[8] Cf. o acórdão da RP de 19.5.2001, in CJ, XXVI, 3, 191.
[9] Cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 131/2002, de 14.3.2002, e da RP de 30.10.2012-processo 1965/12.5TBVFR.P1, publicados no “site” da dgsi.
[10] Cf. o citado acórdão do Tribunal Constitucional.
[11] Cf. o acórdão da RP de 19.5.2001, cit..
[12] Cf. o citado acórdão da RP de 28.5.2009-processo 781/06.8TYVNG.P1.
[13] Cf. o citado acórdão da RP de 30.10.2012-processo 1965/12.5TBVFR.P1.
[14] Vide Raul Ventura, Sociedades por Quotas – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. III, Almedina, 1991, pág. 111.
[15] Veja-se, a propósito, o caso relatado no citado acórdão da RP de 19.5.2001.
[16] Vide, a respeito da problemática do enquadramento adjectivo dos “incidentes” e dos “actos preparatórios/preventivos e conservatórios”, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, pág. 294.
   E, a respeito do procedimento em apreço, Raul Ventura, ibidem.
[17] Cf. o preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.
[18] Vide Antunes Varela, e Outros, ob. cit., pág. 68.
[19] Cf., de novo, o preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, a respeito do princípio da adequação.