Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
412/09.4PATNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PROVA PERICIAL
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUTABILIDADE
Data do Acordão: 11/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 127.º DO CPP
Sumário: I - Se a avaliação de imputabilidade diminuída traduz um juízo de mera probabilidade, não suportado num conhecimento de cariz técnico-científico do perito, é legítimo ao tribunal, com base em investigação definitiva dos factos, apreciados livremente nos termos do artigo 127.º do CPP, concluir pela existência de uma total inimputabilidade.

II - A declaração de inimputabilidade, pressupondo a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:
A) No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) n.º 412/09.4PATNV que corre termos no Tribunal Judicial de Torres Novas, 2.º Juízo, em 14/1/2014, foi proferido Acórdão, pelo Tribunal de Círculo de Tomar, cujo DISPOSITIVO é o seguinte:
4. Decisão.
4.1. Pelo exposto, o Tribunal julga a convolada acusação procedente, porque provada, e, em consequência, decide:
a) Declarar que o arguido A... praticou actos previstos como crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º e 23.º, 131.º, e 132.ºn.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal;
b) Declarar que o arguido A... era à data dos factos inimputável; e,
c) Não lhe aplicar qualquer medida de internamento, por não oferecer perigosidade.
4.2. Não é devida taxa de justiça.
4.3. Notifique o arguido para levantar a faca de cozinha apreendida, nos termos do disposto no art.º 186.º, do Código de Processo Penal.
4.4. Cumpra o disposto no art.º 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
4.5. Notifique.
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B) Inconformado com a decisão recorrida, dela recorreu, em 5/2/2014, o Ministério Público, defendendo a sua revogação e substituição por outra que condene o arguido pela prática dos factos de que vinha acusado e que integram a prática de um crime de homicídio simples, na sua forma tentada, e não qualificado, como decidiu o Tribunal recorrido e, subsidiariamente, e para o caso de assim não ser entendido, que declare, pelo menos, a perigosidade do arguido.
O recorrente extraiu da motivação as seguintes conclusões: 1.
1. O acórdão recorrido é nulo conforme artigos 374.º, n.º 3, al. b), e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.
2. (…).
3. Face a tal factualidade dada por assente e dada por não provada, entendeu o Tribunal, e foi essa a sua decisão, que se impunha declarar que o arguido era, à data dos factos, inimputável e não lhe aplicar qualquer medida de internamento, por não oferecer este perigosidade.
4. (…).
5. Impõe o artigo 374.º, n.º 3, al. b), do CPP, que a sentença termine pelo dispositivo que terá de conter a decisão condenatória ou absolutória.
6. Por sua vez, preceitua o artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, que é nula a sentença que não contenha as menções a que alude a alínea b), do n.º 3, do artigo 374.º, do CPP.
7. Compulsado o dispositivo do acórdão recorrido, constata-se facilmente tal nulidade, pois é omissa a decisão neste aspecto, já que nem condena, nem absolve o arguido do crime de que vinha acusado, limitando-se a mesma a declarar que o arguido praticou factos que integram a prática de um crime de homicídio qualificado, que o mesmo é inimputável e que não lhe aplica qualquer medida de segurança ou internamento por não ser o arguido perigoso.
8. Tal nulidade deve ser declarada por esse Tribunal Superior e conduz a que, pelo menos, determine a repetição do acórdão para suprir tal deficiência da decisão recorrida.
9. Mas o acórdão recorrido é também nulo por falta e deficiência da análise crítica da prova, conforme artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do CPP.
10. (…).
11. Com efeito, não explicou com suficiência bastante as razões pelas quais não deu como provados os factos constantes da tábua dos factos não provados (factualidade inerente ao elemento subjectivo do crime em causa).
12. (…).
13. Com efeito, o Tribunal reconhece nos factos provados que o arguido apresenta um caudal de verbalidade superior ao do seu desempenho, mas depois aceita pacificamente o que ele relata e de modo absolutamente acrítico.
14. Aceita o Tribunal que o arguido tem inteligência acima da média e evidencia defensividade e compulsividade e, ainda, que apresenta diferenças significativas entre o desempenho verbal e de realização.
15. Ora, tal significa que teria o Tribunal de ter analisado com especial cuidado o que o arguido declarou em audiência.
16. Todavia, e ao invés, aceitou a totalidade das suas declarações – nas quais acreditou piamente – sem uma única nota crítica que se impunha para existir coerência entre tal e os factos que o Tribunal considerou provados sob os números 2.1.15 e 2.1.16.
17. Nunca explicou o Tribunal tal percurso do seu raciocínio para a formação da sua convicção, nem tão pouco porque lhe mereceram credibilidade as declarações do arguido e da ofendida que permitiram, no seu entender, o afastamento das regras de experiência.
18. Refere o Tribunal que, em princípio, quando alguém direcciona golpes de uma faca contra zonas do corpo de outrem onde se alojam órgãos vitais é porque os quer atingir e quer a produção do resultado morte desse outrem.
19. Mas refere, também, que, no caso em apreço, se verificam circunstâncias que permitem afastar essa regra de experiência, como sejam a pré-existência de uma comprovada história médica do arguido, com sintomas de ansiedade e depressão, necessidade de acompanhamento médico e tratamento medicamentoso, o reconhecimento de sinais de perturbação emocional do arguido antes da ocorrência dos factos; o abandono dos tratamentos medicamentosos antes da ocorrência dos factos; a ausência de motivos para a sua actuação; o comportamento errático, perturbado e desconcertado do arguido na noite dos factos ao não querer dormir e insistir em falar com o pai pelo telefone sem razão aparente que justificasse a urgência e ao começar a golpear-se quando contrariado pela mulher, ao só golpear a mulher quando esta procurou tirar-lhe a faca, ao não perseguir a mulher quando esta sai de casa pedindo socorro e ao não verbalizar a sua actuação e, ainda, a circunstância de ser o arguido incapaz de explicar a sua conduta.
20. Ora, o Tribunal diz que se verificou ausência de motivos para a actuação do arguido, mas, depois, é o próprio Tribunal que, nos factos provados, elenca tal motivação ao considerar, nos factos 2.1.4 a 2.1.8 provado que o arguido foi acordar a mulher dizendo que precisava urgentemente de falar com o pai e não aceitou a recusa desta em não lhe facultar o seu telemóvel para telefonar ao pai e ao não aceitar que a B... lhe retirasse a faca e, ainda, ao dizer que o arguido actuou como actuou porque abandonou a medicação.
21. Foram essas as razões da actuação do arguido, é o próprio Tribunal a apontá-las nos factos que deu como provados.
22. Fica, pois, sem se perceber o raciocínio lógico que presidiu ao afastar do funcionamento das regras de experiência para que não se tivesse considerado que o arguido agiu com intenção de tirar a vida à sua mulher.
23. As regras de experiência apontam no sentido de que queria o arguido matar a sua mulher, pois que:
- actuou no meio de uma discussão (motivada pelo telefonema que queria fazer ao pai e pelo facto de a ofendida não lhe emprestar o seu telemóvel) e após ter sido contrariado pela vítima nesse propósito;
- não dá nenhuma explicação para o seu comportamento quando o Tribunal reconhece – nos factos provados – que o arguido tem desempenho verbal superior à realização (o Tribunal não retira daqui qualquer consequência);
- as declarações do arguido e da ofendida contrariam as regras de experiência.
24. Então, não se percebe como o Tribunal avaliou tais regras de experiência, porque, quando as enuncia, apresenta-as de modo contraditório.
25. Nunca explicou o Tribunal porque acreditou na versão do arguido.
26. Igualmente, nunca explicou o Tribunal – de forma minimamente compreensível – porque não valorou a prova pericial constante dos autos que tinha concluído que o arguido actuara numa situação de imputabilidade diminuída, conforme exame de fls. 243 a 245 dos autos.
27. Na sua fundamentação, aludiu o Tribunal a este propósito que o relatório pericial tem por base a história médica passada do arguido e não a sua actuação na noite dos factos e que “(…)”.
28. Ora, de todo, que se não percebe o raciocínio do Tribunal.
29. Então, quais são os elementos actualizados a que se reporta o Tribunal?
30. Parece ter entendido o Tribunal serem as declarações prestadas pela vítima em audiência. Mas essas são exactamente iguais ao relato que o arguido fizera sobre os factos aquando da realização do exame pericial (o próprio Perito Médico o reconhece logo no início dos seus esclarecimentos prestados em audiência).
31. Por outro lado, parece ter entendido o Tribunal recorrido que a perícia de fls. 243 a 245 não contemplou a situação do arguido à data dos factos.
32. Mas não se percebe porquê, pois que do texto das conclusões de tal perícia resulta exactamente o contrário, quando tal meio de prova conclui que “(…) Do atrás exposto, conclui-se que existe uma imputabilidade diminuída do arguido uma vez que se considerou que o seu comportamento foi influenciado por factores emocionais.”.
33. É por demais evidente que tal juízo – inteiramente médico e pericial e subtraído à livre apreciação do julgador, conforme artigo 163.º, do CP - se reporta à data da prática dos factos e mal se percebe que a decisão recorrida afirme o contrário, sem que explique convenientemente porquê.
34. Não se percebe, pois, em que estribou o Tribunal a sua convicção de inimputabilidade do arguido, de que este padecia de doença que o afectava e o impedia de representar a morte da sua mulher ou sequer a produção de ferimentos como resultado da sua conduta.
35. É certo que o Tribunal refere que essa convicção radica na comprovada história médica do arguido e na descrição dos factos efectuada pela própria vítima.
36. Mas a história médica existente já constava e foi contemplada pela perícia de fls. 243 a 245 e o que relatou a ofendida foi o mesmo que relatou o arguido sobre os acontecimentos aos peritos.
37. Por fim, mas não menos importante, igualmente resulta inexplicável em que fundou o Tribunal o seu Juízo de não perigosidade do arguido, pois a este propósito – percorrida a motivação e análise crítica da prova – não se vislumbra uma única alusão a tal propósito (uma única linha que seja).
38. Desconhece-se, pois, e em absoluto, em que fundou o Tribunal a sua conclusão de que o arguido não apresenta qualquer tipo de perigosidade, limitando-se a afirmar que “(…)”.
39. Esqueceu-se, todavia, o Tribunal de precisar em que meios de prova estribou tal convicção, pois só assim a mesma poderia ser sindicada.
40. E o acórdão é também nulo por violação do artigo 163.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, pois que o Tribunal decidiu de forma divergente em relação às conclusões da perícia mas não fundamentou convenientemente a sua decisão recorrendo a um juízo de carácter técnico e científico similar.
41. (…).
42. Mas padece também a decisão recorrida do vício do erro notório na apreciação da prova – artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP -, pois que se afastou das regras da experiência e do juízo dos peritos, infundadamente.
43. (…).
44. Na análise dos depoimentos do arguido e da ofendida, violou o Tribunal as regras da experiência, pois desta resulta que – e em face dos factos que o Tribunal deu por provados – que a vítima estava condicionada pelo interesse que tem na não condenação do arguido, consubstanciado nos seguintes factos dados por provados pela decisão recorrida (por mais que esta afirme o contrário):
- porque se reconciliou com o arguido, entretanto;
- porque, após, teve com o mesmo mais um filho;
- porque, também, depende economicamente dele (face aos rendimentos que ela própria aufere e ao facto de ter 3 filhos menores, resulta evidente que precisa dos rendimentos auferidos pelo arguido);
- porque, a alguém com as qualificações e valores ético-sociais médios da ofendida, estando reconciliada com o arguido, interessa-lhe a sua não condenação.
45. De igual modo, violou o Tribunal as regras da experiência quando concluiu pela não perigosidade do arguido, quando – face aos factos que deu por provados – aquelas impunham exactamente o contrário.
46. Na verdade, resulta dos factos provados que o arguido é impulsivo, que não tem auto-controle, que se arvora em avaliador da sua necessidade ou não de tomar a medicação que necessita, que abandona os tratamentos quando se sente melhor e que, quando tal sucede e é contrariado, reage violentamente.
47. Tal integra o conceito de perigosidade.
48. (…).
49. (…).
50. A decisão recorrida faz uma errada qualificação jurídica dos factos.
51. (…).
52. (…).
53. Ora, se existia tal situação de imputabilidade diminuída, não se poderia formular um juízo de especial perversidade da sua actuação, pois que tais agravantes qualificativas se reportam necessariamente à culpa do agente.
54. (…).
55. Deve, pois, esse Tribunal da Relação alterar a decisão recorrida e considerar que o arguido cometeu o crime de homicídio na sua forma tentada, mas também na sua forma simples.
56. Recorrendo em matéria de facto, entende-se dever ser alterada a factualidade dada por assente pela decisão recorrida.
57. (…).
58. (…).
59. Para tanto estribou-se apenas no depoimento do Exmo. Perito Médico subscritor da perícia psiquiátrica de fls. 243 a 245, mas valorizou de forma incorrecta tais declarações.
60. Nunca o Exmo. Perito médico disse o que quer que fosse que pudesse levar o Tribunal a concluir pela inimputabilidade do arguido e a afastar-se do juízo técnico contido na perícia.
61. Com efeito, as passagens do seu depoimento transcritas no texto da motivação do presente recurso e constantes do sistema de gravação digital integrada, Habilus….não permitem concluir tal, pois que este apenas declarou o seguinte “(…)”-
62. Ou seja, afastou-se o tribunal indevidamente do juízo pericial contido na Perícia de fls. 243 a 245 e não é verdade que tal seja justificado pelo teor dos esclarecimentos do Perito Médico subscritor de tal perícia, por não haver quaisquer novos elementos agora transmitidos ao perito (as declarações da vítima) – como refere o Tribunal – pois é o próprio perito a referir expressamente que o que agora o Sr. Juiz Presidente lhe transmitiu que disse em audiência a vítima é correspondente ao que declarou o arguido aquando da perícia; além de que nunca o Perito Médico declarou em audiência que o arguido estivesse, no momento da prática dos factos, numa situação de inimputabilidade mas apenas que actuou influenciado/condicionado por factores emocionais que conduzem a uma situação de imputabilidade diminuída.
63. Nada poderia autorizar o Tribunal a concluir pela inimputabilidade do arguido, a qual nunca foi afirmada por qualquer juízo pericial, muito antes pelo contrário, o único existente foi no sentido da imputabilidade, ainda que diminuída, do arguido, juízo esse contra o qual indevidamente o Tribunal se direccionou, sem nada que o justificasse.
64. Por outro lado, desvalorizou o Tribunal indevidamente o depoimento da testemunha de acusação – o Sr. Guarda D..., da GNR de Torres Novas – que referiu expressamente que, quando abordaram a ofendida, ao ir socorre-la, esta se revelava sobremaneira preocupada com os filhos que tinham ficado em casa sozinhos com o arguido e relativamente ao que lhes pudesse acontecer, o que revela que a mesma estava ciente de que o arguido lhe tinha querido fazer mal e também o poderia fazer em relação aos filhos e, ainda, que, quando por fim lograram conseguir que o arguido autorizasse a GNR a entrar na sua habitação, foi o próprio arguido que lhes indicou a faca com a qual tinha praticado os factos, quando era certo que ali havia duas e, ainda assim, sabia qual era aquela com que tinha agredido ma sua mulher, o que só revela que o arguido tinha consciência dos seus actos e estava consciente do que tinha feito, nunca tendo existido qualquer corte com a realidade como conclui a perícia psiquiátrica a que o arguido foi sujeito.
65. Nesse sentido, o teor das suas declarações constantes do sistema de gravação digital integrada, Habilus…, designadamente ao declarar que “(…)”.
66. Assim, a prova produzida em audiência não permitia concluir pela inimputabilidade do arguido, pelo que se entende dever esse tribunal alterar a matéria fáctica provada nos termos acima apontados, passando os factos que constam de 2.2 da decisão recorrida (factos não provados) a integrar o acervo dos factos que esse superior Tribunal deve dar como Provados e eliminando dos factos provados o que consta de 2.1.20 da factualidade dada por assente pelo Tribunal.
67. Deve, assim, a decisão recorrida ser alterada e substituída por outra que condene o arguido pela prática dos factos de que vinha acusado e que integram a prática de um crime de homicídio simples, na sua forma tentada, e não qualificado, como decidiu o Tribunal recorrido.
68. Subsidiariamente, e para o caso de assim não ser entendido, ser declarada, pelo menos, a perigosidade do arguido, eventualmente com suspensão do seu internamento, conforma artigo 98.º, do CPP, com sujeição do arguido a acompanhamento médico controlado pelos competentes Serviços da DGRS – submissão a tratamentos e regimes de cura ambulatórios que lhe forem prescritos e considerados apropriados ao seu caso – pois que é possível efectuar o juízo de prognose de que com tal suspensão se atingirão as finalidades da medida e revelando-se a situação de liberdade do arguido compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social que não é feita perigar com tal (artigo 91.º, n.º 2, do CP). Tudo, mediante vigilância tutelar dos serviços de reinserção social.
69. Ao assim não o ter decidido, violou a decisão recorrida os artigos 131.º, 132.º, 14.º, 20.º, 91 e 98, do CP.
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C) O recurso, em 18/3/2014, foi admitido.
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D) O arguido não respondeu ao recurso.
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E) Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 2/7/2014, emitiu douto parecer no qual defendeu a procedência do recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
1. Relatório.
1.1. Em processo comum com intervenção do Tribunal colectivo e com base em factos arrolados a fls. 137 e 138, que se dão aqui por integralmente reproduzidos, a Digna Magistrada do Ministério Público acusou o arguido A..., filho de (...) e de (...), nascido a 29 de Dezembro de 1969, natural da freguesia de (...), concelho de Lisboa, casado, cantoneiro, actualmente desempregado, residente na Rua (...), Torres Novas, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º e 23.º, e 131.º, do Código Penal.
1.2. O arguido não apresentou contestação escrita.
1.3. Não há questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.
1.4. Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo.
2. Fundamentação de Facto.
2.1. Julga-se provada a seguinte factualidade:
2.1.1. No dia 15 de Outubro de 2009, o arguido A... e B... encontravam-se na sua casa de habitação, sita na (...), na cidade de Torres Novas.
2.1.2. O arguido A... e B... eram (e são) casados um com o outro.
2.1.3. Cerca das 3 horas da manhã desse dia, o arguido A... dirigiu-se ao rés-do-chão dessa casa de habitação, onde a sua mulher dormia com o filho C... e acordou-a.
2.1.4. O arguido disse então à sua mulher que precisava urgentemente de telefonar e falar com o seu pai e pediu-lhe para lhe emprestar o telemóvel.
2.1.5. A B..., vendo que o A... evidenciava sinais de ansiedade e nervosismo no seu discurso e postura, disse-lhe que não eram horas para telefonar ao pai, pois este deveria estar a dormir.
2.1.6. Dirigiram-se, então, ambos para a cozinha, continuando o arguido a insistir na necessidade de telefonar ao pai, sem concretizar as razões dessa urgência, e a B... a dizer-lhe que não deveria telefonar àquela hora.
2.1.7. A dada altura, o arguido pegou numa faca que se encontrava na cozinha, com um cabo de 10 cm. e uma lâmina com 8 cm. de comprimento, e começou a golpear o seu próprio ventre.
2.1.8. Ao ver o arguido a golpear-se, a B... tentou tirar-lhe a faca das mãos.
2.1.9. De imediato, o arguido desferiu alguns golpes com tal faca sobre o corpo da sua mulher.
2.1.10. Em consequência directa e necessária desses golpes, a B... sofreu feridas incisas no seu corpo, designadamente na zona da coxa esquerda, na zona infra-mamária esquerda, na grelha costal supra-púbica e nos membros superiores esquerdo e direito, que atingiram o tecido celular sub cutâneo, mas não atingiram a aponevrose.
2.1.11. No dia 9 de Novembro de 2011, a B... ainda evidenciava, em decorrência dos referidos golpes produzidos pelo seu marido, cicatriz nacarada, horizontal, no terço superior da face anterior do hemitórax esquerdo à esquerda da linha média, medindo 1,5 cm. de comprimento por 3 mm. de largura; cicatriz nacarada, horizontal, no terço inferior da face externa do hemitórax direito à esquerda da linha média, medindo 5 mm. de comprimento por 1 mm. de largura; cicatriz nacarada, horizontal, no terço inferior do flanco direito, à esquerda da linha média, medindo 1,5 cm. de comprimento por 1 mm. de largura; cicatriz nacarada, horizontal, no terço inferior do hipogastro, medindo 5 mm. de comprimento por 1 mm. de largura; cicatriz nacarada, vertical, no terço inferior da face antero interna do antebraço direito, medindo 1 cm. de comprimento por 4 mm. de largura; e, cicatriz nacarada, vertical, no terço inferior da face anterior da coxa esquerda, medindo 2 cm. de comprimento por 3 mm. de largura.
2.1.12. Tais lesões determinaram 10 dias de doença, com igual tempo de afectação para o trabalho geral.
2.1.13. Logo após receber tais golpes, a B... saiu de casa e dirigiu-se ao Hotel (...), sito nas imediações, onde pediu ajuda, tendo sido depois transportada ao Hospital de Torres Novas, onde deu entrada às 4,20 horas.
2.1.14. Entretanto, os agentes da P.S.P. ocorreram à casa do casal e, após algum tempo, conduziram o arguido ao Hospital de Torres Novas, a fim de este receber tratamento pelos ferimentos auto-inflingidos.
2.1.15. Sujeito a avaliação psicológica no decurso do presente processo, o arguido evidenciou nas provas uma inteligência média superior para o grupo etário, sugerindo capacidades no plano lógico-abstracto. O rendimento intelectual e cognitivo total avaliado encontra-se na média inferior para sua faixa etária, evidenciando heterogeneidade. Apresenta diferença significativa entre desempenho verbal e de realização, em que o primeiro é superior. Revela desarmonia entre as capacidades reais e o seu desempenho, esta, em parte, devido à interferência de factores emocionais. Também evidenciou defensividade e compulsividade.
2.1.16. Sujeito a exame de psiquiatria forense no decurso do presente processo, o arguido evidenciou que “existe uma imputabilidade diminuída”, uma vez que foi influenciado por factores emocionais.
2.1.17. Por volta do ano de 1997, o arguido A... sofreu uma depressão nervosa e passou a ser acompanhado por um neurologista e medicado com “Socian, Stlinox, Deoxil e Seroxat”.
2.1.18. No momento em que praticou os factos, o arguido já havia abandonado o acompanhamento e a medicação receitada pelo seu médico, por se sentir melhor.
2.1.19. Após abandonar a medicação, o estado emocional do arguido agravou-se e o mesmo recorreu a um indivíduo, que se intitulava padre, que lhe prestava apoio psicológico e espírita.
2.1.20. No momento em que praticou os factos, o arguido agiu determinado pela perturbação e ansiedade que o afectava e, em resultado desse estado, não era capaz de representar que os golpes que desferia sobre a sua mulher poderiam provocar-lhe a morte ou sequer ferimentos no corpo desta, nem de se determinar em função desses resultados.
2.1.21. Após os factos, o arguido separou-se da mulher até se terem reconciliado e voltado a viverem juntos, em Novembro de 2009.
2.1.22. O arguido tem vindo a ser medicamente seguido no Hospital de Tomar e medicado com “Mirtazapina e Lorazepam”, revelando um comportamento emocionalmente estável e sem representar perigo para as pessoas que o rodeiam.
2.1.23. O arguido vive com a mulher e 3 filhos menores, sendo que a última nasceu no dia 30 de Março de 2012. Está desempregado, recebendo um subsídio mensal de € 419, enquanto a mulher recebe cerca de € 500 mensais como doméstica. Pagam € 250 de renda de casa por mês.
2.1.24. Nada consta do CRC do arguido a fls. 215.
*
2.2. Factos não provados.
Não se dão como provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão, designadamente que o arguido A..., no momento em que praticou os descritos factos, agisse de forma livre, deliberada e consciente, querendo tirar a vida ou sequer causar ferimentos no corpo da B....
*
2.3. Motivação.
A convicção do Tribunal baseou-se na apreciação livre, global e crítica dos seguintes meios de prova:
a) Declarações do arguido A... (admitiu ter praticado os factos objectivos da acusação, embora sem conseguir precisar diversos pormenores; declarou que não sabia o que lhe “deu na cabeça” – sic –, pois jamais quis a morte ou qualquer mal à sua mulher, que apenas o ajudava nessa noite; referiu que o casamento sempre decorreu com normalidade e sem episódios de violência, que tinha deixado de tomar a medicação há algum tempo e que estava muito ansioso e perturbado, sem saber as razões para tal; mostrou-se arrependido pelas consequências para a sua família; relatou ainda as suas condições de vida pessoais);
b) Declarações das testemunhas B... (confirmou os factos objectivos da acusação, mas declarou que o seu marido agiu num “acto de loucura” – sic – e que este não a queria matar ou fazer-lhe mal; referiu que o casamento sempre decorreu normalmente e sem episódios de violência, que o seu marido tinha anteriormente revelado problemas emocionais e sido medicamente acompanhado e que nessa noite evidenciava uma grande ansiedade e perturbação; confirmou que entretanto se reconciliaram e voltaram a viver juntos e que o arguido voltou a ser acompanhado medicamente e não revelou novos episódios de violência), D... (guarda da PSP que acorreu ao local), E...(idem) e F... (recepcionista no Hotel (...) e viu a B... a pedir ajuda), que foram convincentes pelo conhecimento directo dos factos que evidenciaram, pelos pormenores que apresentaram e pela sua isenção; e,
c) Documentos de fls. 13 e 215, auto de apreensão de fls. 14, relatório médico de fls. 49 e 50, relatório de perícia de avaliação psicológica de fls. 233 a 236) e relatório pericial de fls. 243 a 245 (pelas razões e juízo cientifico aí explicitado, conjugado com os esclarecimentos prestados no decurso da audiência pelo Exmo. Perito Médico Dr. G... ).
*
Não se deram como provados quaisquer outros factos por falta de prova bastante, segura e credível.
*
Breve apreciação crítica da prova.
A convicção do Tribunal resultou da apreciação crítica dos indicados meios de prova, sobressaindo as declarações do arguido e da vítima, sua esposa, quanto aos factos objectivos da acusação.
Desses relatos transpareceu de forma concordante e com clareza que o arguido A... golpeou a B... com uma faca, causando-lhe as lesões periciadas.
A grande questão de facto que se evidenciou no decurso da audiência (e que já se antevia do inquérito) foi o apuramento dos elementos subjectivos do tipo legal de crime. A apreensão desses elementos depende sobretudo do conhecimento das circunstâncias que rodeiam a actuação do agente e do funcionamento das regras da experiência comum. No caso dos autos, o arguido admitiu ter praticado os factos, mas negou querer a morte da sua mulher e não ofereceu nenhuma explicação para o seu comportamento.
Quando alguém esfaqueia outrem e direcciona esses golpes para zonas que albergam órgãos vitais é porque, em princípio, os quer atingir e porque quer produzir a morte como resultado típico dessa actuação.
No entanto, no caso dos autos, o Tribunal considerou que se verificam uma série de circunstâncias que impõem o afastamento do funcionamento das regras da experiência comum. Na verdade, nem tudo é aquilo que parece à primeira vista. À primeira vista, parecia que a conduta do arguido era determinada pela vontade de tirar a vida à sua mulher ou, pelo menos, de a ferir com gravidade. Porém, conhecendo os demais factos e circunstâncias que rodearam a actuação do arguido, impôs-se o afastamento dessa presunção.
Os factos e circunstâncias que ditaram a convicção do Tribunal quanto a esta questão estão centrados nos seguintes aspectos:
- A pré-existência de uma comprovada história médica do arguido, nomeadamente com sintomas de ansiedade e depressão, necessidade de acompanhamento médico e tratamentos medicamentosos;
- O reconhecimento de sinais de perturbação emocional do arguido antes da ocorrência dos factos;
- O abandono dos tratamentos medicamentosos antes da ocorrência dos factos;
- A ausência de motivos para a sua actuação (destacando-se particularmente o relato da ofendida quanto ao estável relacionamento conjugal e à ausência de outros episódios de violência);
- O comportamento errático, perturbado e desconcertado do arguido nessa noite (não quis dormir; foi acordar a mulher e instá-la para telefonar ao pai sem motivo aparente; quando contrariado começou a golpear-se e só golpeou a mulher quando esta tentou tirar-lhe a navalha; não esboçou qualquer obstáculo nem impediu a mulher de abandonar o local, nem a perseguiu; ausência de verbalização da sua actuação); e,
- A incapacidade do arguido explicar a sua conduta.
A própria vítima é a primeira a dizer que o marido não se quis matar, nem tirar-
-lhe a vida, com quem já se reconciliou e com quem gerou mais uma filha, entretanto. A este propósito poder-se-á duvidar do depoimento da vítima, por ser a mulher do arguido e em função dessa estreita ligação marital. No entanto, não se vislumbraram indícios do depoimento da B... estar de alguma forma condicionado por essa ligação ou reconciliação. Por outro lado, também se reconhece que a acusação não deve desvalorizar o depoimento da sua principal (e única) testemunha quanto a estes factos. A B... foi a única pessoa que viveu os factos com o arguido e que poderia autorizar o funcionamento das regras da experiência comum. Mas não o fez. Imputou a conduta do arguido a “um acto de loucura” e não à vontade livre e esclarecida do A..., por motivo da reconhecida história médica.
Restaria a prova pericial, cujo relatório pericial apenas evidencia a conclusão de que “existe uma imputabilidade diminuída do arguido”, mas sem concretizar as razões de ciência subjacentes a tal juízo – vd. fls. 243 a 245. No entanto, nota-se que tal relatório tem por base o conhecimento da história médica passada e da actual avaliação e estado do arguido, quando o Tribunal estava sobremaneira interessado em conhecer a situação existente à data dos factos. O Exmo. Perito Médico prestou esclarecimentos complementares no decurso da audiência e foi confrontado com novos elementos, nomeadamente a descrição apresentada pela própria vítima sobre os acontecimentos dessa noite. E, em face desses elementos actualizados, admitiu que – a confirmar-se a descrição da vítima –, o arguido poderia nessa noite não saber ou representar as consequências da sua actuação. Por conseguinte, não há rigorosamente um afastamento do Tribunal quanto ao juízo pericial em como “existe uma imputabilidade diminuída”, mas sim a convicção, também admitida pelo Exmo. Perito Médico em face dos restantes elementos apurados, de que o arguido padecia de doença que o afectava e o impedia de representar a morte da sua mulher ou sequer a produção de ferimentos como resultado da sua conduta. E essa convicção radica nos supra indicados aspectos, particularmente na comprovada história médica e na descrição da própria vítima.
Tão pouco há contradição entre a afirmação actualizada em como o arguido evidencia uma imputabilidade diminuída e a constatação de que na noite em que ocorreram os factos experimentava uma situação de inimputabilidade, pois baseiam-se em diferentes realidades e pressupostos, embora centradas na mesma pessoa.
Tais aspectos, circunstâncias e factos acessórios e instrumentais não autorizam o Tribunal a afirmar: o arguido golpeou o tórax e abdómen da B..., logo quis causar-lhe a morte ou ferimentos no corpo. Pelo contrário, a conjugação dos demais factos impõem a conclusão de que o arguido sofria de doença, que tal doença lhe causava vários sintomas, como ansiedade, angústia e perturbação, e que essa doença e seus sintomas o impediram de representar as possíveis consequências da sua conduta. Muito menos, tais aspectos, circunstâncias e factos acessórios e instrumentais permitem concluir que o arguido quis a morte da sua mulher.
3. Fundamentação de Direito e Subsunção Jurídica.
3.1. O despacho de acusação imputa a prática pelo arguido A... de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º e 23.º, e 131.º, do Código Penal (diploma a que se aludirá doravante).
Preceitua a lei que:
Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
A morte de outrem é um dos elementos típicos do tipo legal de crime.
Por outro lado, a tentativa é punível (art.º 23.º, n.º 1), e há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
São actos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores (art.º 22.º).
No caso dos autos, o arguido desferiu golpes com uma faca sobre o corpo da sua mulher, sendo que a atingiu no tórax e abdómen. Embora apenas tenha causado ferimentos superficiais, tais golpes poderiam em princípio, pelo seu número, pela zona visada e pela circunstância de alojarem alguns órgãos vitais, causar a morte da B....
Não se verificou a morte da B..., mas a agressão física constituí um dos elementos típicos do crime e era idónea a provocar a morte.
Comprovaram-se os elementos objectivos do crime, na sua forma tentada.
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3.2. Além disso, a acusação pública invoca expressamente uma circunstância típica que no caso dos autos claramente traduzir a especial censurabilidade do crime de homicídio: a circunstância do agente praticar o crime contra o cônjuge – art.º 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b).
Porém, o Ministério Público não qualificou o crime, nem justificou essa omissão, apesar de a referir expressamente e de estar comprovada.
Na realidade, a acusação também alude a problemas de saúde do arguido, do foro psíquico, mas conclui que o arguido agiu de forma livre e consciente, querendo causar a morte da mulher.
Após a realização da audiência, apurou-se que:
- Sujeito a avaliação psicológica no decurso do presente processo, o arguido evidenciou nas provas uma inteligência média superior para o grupo etário, sugerindo capacidades no plano lógico-abstracto. O rendimento intelectual e cognitivo total avaliado encontra-se na média inferior para sua faixa etária, evidenciando heterogeneidade. Apresenta diferença significativa entre desempenho verbal e de realização, em que o primeiro é superior. Revela desarmonia entre as capacidades reais e o seu desempenho, esta, em parte, devido à interferência de factores emocionais. Também evidenciou defensividade e compulsividade.
- Sujeito a exame de psiquiatria forense no decurso do presente processo, o arguido evidenciou que “existe uma imputabilidade diminuída”, uma vez que foi influenciado por factores emocionais.
- Por volta do ano de 1997, o arguido A... sofreu uma depressão nervosa e passou a ser acompanhado por um neurologista e medicado com “Socian, Stlinox, Deoxil e Seroxat”.
- No momento em que praticou os factos, o arguido já havia abandonado o acompanhamento e a medicação receitada pelo seu médico, por se sentir melhor.
- Após abandonar a medicação, o estado emocional do arguido agravou-se e o mesmo recorreu a um indivíduo, que se intitulava padre, que lhe prestava apoio psicológico e espírita.
- No momento em que praticou os factos, o arguido agiu determinado pela perturbação e ansiedade que o afectava e, em resultado desse estado, não era capaz de representar que os golpes que desferia sobre a sua mulher poderiam provocar-lhe a morte ou sequer ferimentos no corpo desta, nem de se determinar em função desses resultados.
- Após os factos, o arguido separou-se da mulher até se terem reconciliado e voltado a viverem juntos, em Novembro de 2009.
- O arguido tem vindo a ser medicamente seguido no Hospital de Tomar e medicado com “Mirtazapina e Lorazepam”, revelando um comportamento emocionalmente estável e sem representar perigo para as pessoas que o rodeiam.
E não se provou que o arguido A..., no momento em que praticou os descritos factos, agisse de forma livre, deliberada e consciente, querendo tirar a vida ou sequer causar ferimentos no corpo da B....
Tais factos questionam a imputabilidade do arguido A..., pois o art.º 20.º, preceitua que:
1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
3 - A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.
4 - A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.
Como refere Figueiredo Dias o art. 20.°-1 impõe que a anomalia psíquica como substrato biopsicológico do juízo de inimputabilidade se verifique no momento da prática do facto. Trata-se aqui de uma conexão importantíssima na fundamentação do juízo de inimputabilidade, que possui uma dupla vertente, a primeira, que logo corresponde ao seu teor, literal e que poderemos chamar a conexão temporal, outra que poderemos denominar conexão típica.
A conexão temporal traduz-se em que o fundamento biopsicológico da inimputabilidade tem de verificar-se no (e portanto de relacionar-se temporalmente com o) momento da prática do facto. Esta exigência, por evidente que se antolhe face ao princípio da culpa, representou um verdadeiro "ponto de viragem" (em muitas doutrinas e jurisprudências afirmado, mas ainda não completamente assimilado) na doutrina da inimputabilidade: esta deixou de ser um estado - constante, duradoiro, temporário, acidental - para passar a ser uma característica do concreto facto de um agente. Inimputável passa a ser a pessoa que, no momento da prática de um certo facto, se encontra onerada com um substrato biopsicológico que se traduz no concreto facto praticado e o colora com um certo efeito normativo. A partir daqui - e só a partir daqui - se pode relacionar sem contradições o juízo de inimputabilidade com o juízo de culpa.
É pois em relação a cada um dos concretos actos praticados que deve ser aferido o juízo sobre a imputabilidade do arguido. Sem embargo também se dirá que, quando na presença de patologias permanentes durante um largo período de tempo causa se deve procurar esclarecer todos as dúvidas possíveis de forma a ultrapassar a inevitável aporia a que conduzem decisões antagónicas que incidam sobre situações análogas – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/9/2008, disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 02P2288.
Tendo-se comprovado que o arguido sofria de doença (não especificada, mas de que se conhecem alguns dos sintomas e a necessidade de acompanhamento médico e medicamentoso), que os sintomas de tal doença emergiram e determinaram a sua conduta na noite em que ocorreram os factos, o impediam de representar que os seus actos poderiam provocar a morte ou ferimentos na sua mulher e de se determinar em função desses resultados, é imperioso reconhecer que, naquela altura, se verificava uma situação de inimputabilidade do A....
Não há uma actuação culposa e censurável do arguido. A imputabilidade é a qualidade ou susceptibilidade de responsabilizar uma pessoa pelos seus actos. A inimputabilidade determina essa irresponsabilidade, pois nessas situações o agente não age com culpa. E, sendo a responsabilidade criminal subjectiva, sem culpa, não há crime.
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3.3. Da factualidade apurada resulta que o arguido é inimputável (art.º 20.º, do Código Penal), pelo que, face a esta causa de exclusão da culpa não há lugar à aplicação de qualquer pena.
Não obstante, a lei manda imperativamente sujeitar o agente que cometa factos descritos num tipo legal à medida de segurança de internamento em estabelecimento de cura, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da natureza e gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos típicos graves (vd. art.º 91.º, do Código Penal, e Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pág. 471).
É mister que o arguido revele uma determinada perigosidade. Poder-se-á admitir que “a anomalia psíquica do agente já se traduziu num «crime»; logo, ele já foi perigoso. Apoiada nessa certeza, a prova prossegue com a indagação da persistência dessa anomalia, podendo concluir, em caso afirmativo, que se está perante alguém cuja potencialidade para cometer novos «crimes» é inegável. Na hipótese contrária, o juiz dará como extinta a perigosidade, pela verificação do que denominamos um seu «limite objectivo»”. – Cristina Líbano Monteiro, in Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Stvdia Ivridica 24, Coimbra Editora, 1997, pág. 167.
No caso dos autos, verificamos que não há razões para admitir que o arguido, perante as suas condições particulares e as circunstâncias que o envolvem, possa cometer outros factos típicos, pois os factos evidenciam uma natureza acidental e ocorreram inesperadamente, numa altura em que havida cessado o acompanhamento médico e tratamento medicamentoso. Estando actualmente o arguido devidamente inserido familiarmente, sujeitando-se voluntariamente a acompanhamento médico e tratamento medicamentoso, não se justifica o juízo de perigosidade e a necessidade do estabelecimento de medidas de segurança ou outras.
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3.4. Não obstante se tratar do instrumento dos factos tipificados, por se tratar de uma mera faca de cozinha, com menos de 10 cm. de lâmina, e já não interessar aos autos, determina-se a sua restituição ao arguido a quem foi apreendida – cfr. art.º 109.º, do Código Penal, a contrario sensu.”
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III. Apreciação do Recurso:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.
Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
As questões a conhecer são as seguintes:
1. Saber se há nulidade do acórdão, por violação dos artigos 374.º, n.º 3, al. b), e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP;
2. Saber se há nulidade do acórdão, por violação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, ambos do CPP;
3. Saber se o acórdão padece de erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento – artigos 410.º, n.º 2, al. c), e 412.º, n.ºs 2 e 3, ambos do CPP;
4. Saber se deve haver alteração da qualificação jurídica dos factos; 5. Saber se deve ser declarada a perigosidade do arguido e ser suspenso, eventualmente, o seu internamento. ****
1) Da violação dos artigos 374.º, n.º 3, al. b), e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP:
O artigo 374.º, n.º 3, al. b), do CPP, impõe que a sentença termine pelo dispositivo que terá de conter a decisão condenatória ou absolutória.
O artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, preceitua que é nula a sentença que não contenha as menções a que alude a alínea b), do n.º 3, do artigo 374.º, do CPP.
Acontece que, não obstante o disposto nos dois citados artigos, a partir do momento em que é declarada a inimputabilidade de um arguido, há que dar apenas relevância ao binómio factos praticados/tipo objectivo de crime em causa, deixando de fazer sentido apelar ao sentido técnico-jurídico proprio sensu de absolvição e de condenação.
Por isso mesmo, e salvo o devido respeito, não vislumbramos que a decisão ora em crise padeça da nulidade invocada pelo recorrente.
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2) Da violação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, ambos do CPP:
O Ministério Público alega que “o acórdão recorrido não faz um exame crítico da prova produzida em audiência, sofrendo, pois, de falta de fundamentação, em clara violação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP.
Vejamos.
O artigo 205.º, n.º1, da CRP, consagra o seguinte:
1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”
Na al. a), do n.º 1, do art. 379.º, do CPP, comina-se de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374.º, n.ºs 2 e 3, al. b), do mesmo Código.
Pois bem, o artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que versa sobre os requisitos da sentença, e que agora interessa analisar, estipula que «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Esta disposição está intimamente ligada ao art. 127.º, do CPP. Já sabemos que o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada ao princípio em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”. Prof. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 211. No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
A livre convicção, repete-se, não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional. Cfr., Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206.
Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador. Cfr. Prof. Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 302).
A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controlo da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.
É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador.
A razão de ser da exigência de fundamentação em geral está ligada ao próprio conceito do Estado de direito democrático, sendo um instrumento de legitimação da decisão que serve a garantia do direito ao recurso e a possibilidade de conhecimento mais autêntico pelo tribunal de recurso. Assim, a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também ao tribunal de recurso.
Sublinhe-se que a necessidade de motivar as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, um dos Direitos do Homem, consagrados no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que a motivação é um elemento de transparência da justiça inerente a qualquer acto processual.
Na sequência disso, é entendimento da jurisprudência de que o dever de fundamentação se não basta com a mera indicação dos meios de prova, não dispensando uma explicitação do processo de formação da convicção do tribunal de 1ª instância, sob pena de violação do artigo 205.º, da CRP e do direito ao recurso – ver, neste sentido, Acs. do Tribunal Constitucional n.º 680/98, Processo n.º 456/95, de 2/12/1998, in DR, II Série, e n.º 27/2007, Processo n.º 784/05, de 8/1/2007, in DR, II Série, e, ainda, Ac. do S.T.J., de 15/3/2000, in C.J./STJ, Ano VIII, Tomo I, pág. 227.
«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).
Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido» Paulo Saragoça da Mata, A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade da Universidade de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, com a colaboração do Goerthe Institut, Almedina, pág. 261-279. .
Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.
Para essa lógica de convencimento e de possibilidade de controlo por via de recurso, não se exige que se proceda a uma análise crítica exaustiva dos meios de prova e, nomeadamente, com apelo sistemático ao conteúdo concreto da prova, esta vertente apenas se impõe na medida do necessário para a compreensão da decisão, da sua lógica intrínseca, de modo a que não possa apresentar-se como arbitrária ou injustificada, não porque o fosse mas porque indemonstrada a sua justificação. Se é verdade que a fundamentação não se basta com a simples indicação de provas, também é verdade que a análise crítica destas deve ser apenas a necessária e suficiente para dar o conhecer porque se decidiu o tribunal em determinado sentido.
A análise crítica impõe-se sobretudo relativamente a meios de prova oral porque é em relação a estes que, pela sua natureza e especificidade, se torna necessário explicitar a convicção (desde logo a imediação é essencial para a sua avaliação). Já no que se refere a documentos ou prova pericial reveste-se o seu teor de um carácter objectivo e certo que na maioria dos casos dispensa considerações sobre o seu conteúdo, porque este se impõe sem que existam questões delicadas de credibilidade ou razão de ciência a equacionar. Ou seja, se o texto do documento ou o relatório de perícia permitem, só por si, compreender a decisão do tribunal, na verdade não se exige qualquer dissertação sobre eles, patente no processo, imutável e cuja interpretação depende apenas da declaração que contém.
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo – Ac. do STJ, de 12/4/2000, processo n.º 141/2000-3ª; SASTJ, n.º 40, 48.
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Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada no acórdão recorrido, não assiste razão ao recorrente, ao invocar a existência de violação ou errada interpretação do n.º 2, do artigo 374.º, do CPP. A fundamentação constante do acórdão recorrido é clara e nela é patente um exame crítico da prova produzida em audiência de julgamento, pelo que é possível reconduzir racionalmente as razões probatórias que determinaram que o tribunal a quo formasse a sua convicção.
Na verdade, o recorrente percebeu bem os contornos da fundamentação feita pelo Tribunal a quo, limitando-se a colocar em causa a respectiva apreciação, designadamente, ao nível da valoração feita em relação às conclusões da perícia de fls. 243/245 (a merecer especial atenção mais à frente).
Prova inequívoca disso é a extensa crítica que é feita à explanação de ideias efectuada pelo tribunal a quo, da qual entendemos salientar a frase “Ora, de todo, que se não percebe o raciocínio do Tribunal”.
Ora, só existe violação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, se houver uma insuficiência, total ou parcial, da indicação dos motivos que fundamentam a decisão e faltar exame crítico das provas que servem para formar a convicção do tribunal, o que se situa num plano diferente daquele em que assenta uma discordância do recorrente quanto ao respectivo teor.
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Aqui chegados, há que dedicar algumas palavras, em particular, relativamente ao relatório do exame médico-legal, de fls. 243/245, assinado pelo Exmo. Sr. Dr. G..., na medida em que o recorrente considera, ao nível da falta de fundamentação do acórdão, que o acórdão violou o artigo 163.º, do CPP.
O citado relatório teve por base uma entrevista clínica ao arguido, realizada a 20 de Setembro de 2012 e dele consta o seguinte:
“(…) Da história clínica recolhida e da avaliação psicométrica, conclui-se que o Sr. A... não possui qualquer patologia psiquiátrica em que ocorra um corte com a realidade nem existiam consumos de tóxicos na referida noite. É, no entanto, de salientar que, nos meses anteriores à agressão, o arguido apresentava sintomatologia depressiva e ansiosa sem tratamento e que estaria, supostamente, a consultar um bispo, espírita, que lhe referiu estar possuído por espíritos malignos.
O episódio descrito revela uma grande ansiedade e agitação por parte do arguido que não terá impedido a mulher de sair de casa para pedir ajuda.
Como características da personalidade apontam-se a imaturidade e a dificuldade no controlo dos impulsos apesar de não serem descritos outros episódios de violência.
Do atrás exposto, conclui-se que existe uma imputabilidade diminuída do arguido, uma vez que se considerou que o seu comportamento foi influenciado por factores emocionais.
Seria importante que mantenha o acompanhamento psiquiátrico.
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O Tribunal a quo, findo o depoimento das testemunhas, em vista da prova produzida até então, entendeu por bem inquirir o Exmo. Perito que elaborou o referido relatório, a fim de prestar “esclarecimentos adicionais” (ver acta de fls. 271/275), o que veio a acontecer no dia 17/12/2013 (ver acta de fls. 297/299), ao longo de cerca de 16 minutos.
No caso em apreço, já salientámos que o relatório pericial assentou apenas numa entrevista clínica ao arguido, isto é, o juízo que foi emitido pelo senhor perito não se apoiou num conhecimento dos factos em toda a sua extensão (em particular, a descrição da vítima do sucedido).
Por isso mesmo, é compreensível que o Tribunal a quo tenha solicitado esclarecimentos.
Pois bem, entre o décimo e o décimo segundo minuto da sua inquirição, confrontado, pelo Meritíssimo Juiz Presidente, com a possibilidade do arguido não ter a clara representação do que estava a fazer, quando golpeou a sua mulher, e das respectivas consequências, o Exmo. Sr. Dr. G... respondeu, de modo espontâneo, que essa hipótese era possível (não ter uma clara ideia do que estava a fazer, por factores emocionais).
Já após o décimo terceiro minuto da sua inquirição, ao ser inquirido pela Digna Magistrada do Ministério Público, esclareceu que nunca dissera que o arguido tinha tido controlo sobre o que fizera, antes que nunca havia feito um corte com a realidade, o que deu origem a uma última pergunta daquela e que consistiu em saber qual o grau de possibilidade do arguido estar, no momento em que praticou os factos, numa situação de inimputabilidade, tendo sido respondido que colocava a sua análise ao nível da imputabilidade atenuada/diminuída, partindo do princípio que correspondia à verdade o que lhe fora transmitido.
Salvo o devido respeito, o relatório pericial apenas contém um juízo opinativo, vago (acompanhamos o acórdão quando neste é referido que não se concretizam as respectivas razões de ciência ele subjacentes), sobre a questão da imputabilidade do arguido, sendo certo que os esclarecimentos produzidos em audiência não ajudaram a concretizar.
Com efeito, o Exmo. Sr. Dr. G... fez os seus esclarecimentos sempre ao nível do “ser possível”/“grau de possibilidade”, já para não falar que salvaguardou sempre que assentou o seu raciocínio no pressuposto de que o que lhe transmitiram (incluindo os dados fornecidos em audiência de julgamento) era verdade.
Logo, temos de concluir que o seu juízo não pode ser visto como algo de assertivo.
Em resumo, não estamos na presença de um caso de prova vinculada, mas antes perante uma mera expressão de probabilidade (opinião conclusiva) e não de um verdadeiro juízo técnico-científico.
Logo, é de aceitar que o Tribunal a quo se tenha afastado, nessa justa medida, do respectivo relatório.
Aliás, face à natureza do juízo emitido, consideramos não ser sequer aplicável ao caso em apreço o disposto no artigo 163.º, do CPP, motivo pelo qual a questão da violação deste artigo não tem, até, razão de ser – ver, neste sentido: a) Acórdão de 03-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, 214 – “O juízo médico-legal sobre a intenção de matar não é um juízo técnico, científico ou artístico, nem juízo de técnica médica, mas apenas um juízo de probabilidade sobre essa intenção. Por isso, não lhe é aplicável o disposto no artigo 163º CPP. O Tribunal julgará tal matéria acatando somente o que dispõe o artigo 127º do CPP.; b) Acórdão do STJ, de 20-10-1999, CJSTJ 1999, tomo 3, 196 – “Se o juízo de imputabilidade diminuída, formulado pelo perito, foi emitido como uma probabilidade, e não como um juízo técnico-científico é legítimo ao tribunal, com base em investigação definitiva dos factos, apreciados livremente, nos termos do artigo 127º do CPP, concluir pela existência de uma total inimputabilidade”.
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3) Do erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento – artigos 410.º, n.º 2, al. c), e 412.º, n.ºs 2 e 3, ambos do CPP:
Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
O “erro notório na apreciação da prova” verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
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Por tudo o que já foi referido, e em primeiro lugar, quanto ao relatório pericial de fls. 2437245, não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova, na medida em que, em síntese, não há violação de prova vinculada.
E não se argumente, em segundo lugar, que “a vítima estava condicionada pelo interesse que tem na não condenação do arguido”, pois tal não resulta do teor do acórdão recorrido (ver “breve apreciação crítica da prova”), sendo certo que o Ministério Público nada de objectivo traz ao processo nesse sentido, apoiando-se apenas na sua convicção (chega a alegar “por mais que esta afirme o contrário”).
Em terceiro lugar, no que tange à perigosidade do agente, convém recordar o que consta do facto provado 2.1.22:
O arguido tem vindo a ser medicamente seguido no Hospital de tomar e medicado com “Mirtazapina e Lorazepan”, revelando um comportamento emocionalmente estável e sem representar perigo para as pessoas que o rodeiam.
Assim sendo, perante a leitura global do acórdão recorrido, não se descortina onde, relativamente a esta matéria, possa existir erro notório na apreciação da prova, não podendo ser esquecido que os factos remontam a 15/10/2009, e que, desde então, nenhum episódio de violência, envolvendo o arguido, é conhecido.
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Além do que acaba de ser referido, há que apreciar, ainda, a impugnação da matéria de facto, em sede de erro de julgamento, pois o recorrente considera que “a prova produzida em audiência impunha que fosse dada como provada a matéria constante dos factos não provados descritos em 2.2 da decisão recorrida.”, devendo ser eliminado dos factos provados “o que consta de 2.1.20”.
Apoia a sua alegação nos esclarecimentos trazidos aos autos pelo Senhor Perito e no depoimento da testemunha D... (GNR de Torres Novas), de acordo com as gravações indicadas.
Quanto ao que foi dito pela testemunha, não vemos como possa o respectivo depoimento impor uma alteração da matéria de facto.
Na realidade, a testemunha apenas transmitiu que, ao abordar a ofendida, esta se revelava preocupada com os filhos (seria estranho que assim não fosse, depois do ocorrido), e que, quando, por fim, o arguido autorizou a GNR a entrar na habitação, o arguido indicou a faca com a qual tinha praticado os factos e estava a dizer “Eu matei a B...”, acrescentando que se matava (uma das facas tinha sangue).
Ora, a realidade descrita não significa, necessariamente, que, no momento da agressão, o arguido tivesse consciência do que estava a fazer, embora de uma forma atenuada, antes demonstra apenas que, no momento em que foi abordado pela GNR, ou seja, mais tarde, verbalizava determinado comportamento, num determinado contexto de espaço e de tempo.
Nada mais do que isso.
Aliás, o Senhor Perito admitiu como possível que o arguido não tivesse uma “clara ideia” do que acontecera.
Por isso mesmo, se é certo que o relatório pericial menciona uma imputabilidade diminuída, também é verdade que, como já foi aludido, os seus esclarecimentos adicionais não foram assertivos nessa direcção, ainda que, mesmo no final, se tenha voltado a referir a tal realidade, mas já depois de haver deixado em aberto a possibilidade de o arguido não ter, de uma forma ampla, a clara representação do que estava a fazer, quando golpeou a sua mulher.
Logo, entendemos não haver erro de julgamento.
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4) Da alteração da qualificação jurídica dos factos:
Discorda o recorrente do enquadramento jurídico-penal dos factos perfilhado na 1ª Instância, sustentando que o crime cometido é o de homicídio simples previsto no art. 131.º, do Código Penal, na sua forma tentada.
O art.º 132.º, do Código Penal, no qual se prevê e pune o homicídio qualificado, protege o bem jurídico da vida humana contra aqueles que tiram essa mesma vida, denunciando no facto uma especial censurabilidade ou perversidade, constituindo os exemplos-padrão descritos no seu n.º 2 indício de uma culpa agravada.
Ora, tal indício pode ser afastado mediante a verificação de circunstâncias que o anulem.
Pois bem, a declaração de inimputabilidade de um arguido obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do homicídio, uma vez que aquela implica a exclusão da culpa do agente.
Constitui um paradoxo qualificar o homicídio não obstante a inimputabilidade.
Com efeito, tendo em conta que o homicídio qualificado pressupõe um tipo especial agravado de culpa e constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, o agente avaliar a sua ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação, a ausência dessa capacidade de avaliação ou de determinação impede a formulação de um juízo de especial censura acerca da culpa do agente.
Por conseguinte, apesar de estar preenchida a circunstância conformadora do exemplo-padrão da alínea b), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, há que excluir a qualificação da tentativa de homicídio.
Logo, há que alterar a qualificação jurídica dos factos que consta do acórdão recorrido.
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5) Da perigosidade do arguido:
O artigo 91.º, do Código Penal, prevê a medida de segurança privativa da liberdade, de internamento, para inimputáveis sempre que, por virtude de anomalia psíquica e da natureza e gravidade do facto praticado, houver fundado receio que o agente venha a cometer outros factos típicos graves.
O arguido foi declarado inimputável.
Simplesmente, para a aplicação da medida de segurança, não basta a declaração de inimputabilidade e a prática, pelo inimputável, de factos previstos como crime. É necessário que elementos de facto revelem a perigosidade.
Quanto a esses elementos de facto, o Tribunal Colectivo tem o poder de livre apreciação.
Em resultado dessa livre apreciação chegou a esta conclusão:
No caso dos autos, verificamos que não há razões para admitir que o arguido, perante as suas condições particulares e as circunstâncias que o envolvem, possa cometer outros factos típicos, pois os factos evidenciam uma natureza acidental e ocorreram inesperadamente, numa altura em que havida cessado o acompanhamento médico e tratamento medicamentoso. Estando actualmente o arguido devidamente inserido familiarmente, sujeitando-se voluntariamente a acompanhamento médico e tratamento medicamentoso, não se justifica o juízo de perigosidade e a necessidade do estabelecimento de medidas de segurança ou outras.
O recorrente alega que deve ser declarada a perigosidade do recorrente, porque “resulta dos factos provados que o arguido é impulsivo, que não tem auto-controle, que se arvora em avaliador da sua necessidade ou não de tomar a medicação de que necessita, que abandona os tratamentos quando se sente melhor e que quando tal sucede e é contrariado reage violentamente.
Salvo o devido respeito, a descrição feita pelo recorrente refere-se a uma situação que aconteceu, mas que está, face ao que consta dos autos, ultrapassada.
Logo, não merece reparo, também nesta parte, o acórdão recorrido.
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IV – DECISÃO:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Não obstante, alterar o acórdão recorrido, declarando-se que o arguido A... praticou actos previstos como crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º e 23.º, 131.º, do Código Penal.
Sem custas.
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Coimbra, 12 de Novembro de 2014

(José Eduardo Martins - relator)


(Maria José Nogueira - adjunta)